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Processo n.º 980/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A., B., C., D., E., F., G., H. e I. propuseram acção para o reconhecimento de direito contra o Estado Português, formulando os seguintes pedidos:
(i) condenação do Réu a recolocar os autores no nível remuneratório correspondente ao índice 700 da escala indiciária das carreiras do regime geral da função pública desde a data em que de tal índice os retirou, bem como a colocá-los naquele em que normalmente hoje se encontrariam se a situação profissional de cada um dos autores tivesse continuado a evoluir entre Junho de 1997 e a presente data; (ii) condenação do Réu a pagar aos autores as diferenças remuneratórias correspondentes às liquidações que até Março de 2001 estão individualmente calculadas no artigo 24.º da petição inicial, bem como todas as que daí em diante se venceram até integral pagamento, no montante bruto adequado a que, uma vez efectuados todos os descontos legais e designadamente a tributação dos impostos e contribuições devidos, cada um dos autores recebe o montante líquido idêntico ao que receberia caso o pagamento das retribuições devidas tivesse sido efectuado no momento devido; e ainda a quantia de quinze mil euros, a título de indemnização por danos;
(iii) condenação do Réu a pagar aos autores as quantias descriminadas e peticionadas na alínea anterior, os correspondentes juros moratórios à taxa de 7% desde a data da citação até integral pagamento.
Por despacho saneador proferido em 16 de Janeiro de 2008, o Mmo. juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, julgando procedente a excepção de ilegitimidade passiva, absolveu o Réu da instância.
Inconformados, os autores interpuseram recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, alegando, na parte que releva para efeitos do presente recurso de constitucionalidade, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), tal como foi interpretado e aplicado na decisão recorrida, i. é no sentido de que a acção deve ser proposta contra a autoridade competente para reconhecer o direito ou interesse do autor e não contra a pessoa colectiva onde tal órgão ou agente se encontra inserido.
Por acórdão, proferido em 17 de Setembro de 2009, o Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso, confirmou a decisão recorrida.
2. É dessa decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Através dele pretendem os recorrentes a apreciação da constitucionalidade do artigo 70.º, n.º 1 da LPTA (em conjugação com o artigo 69.º, n.º 2), interpretado no sentido de que dele decorreria que uma acção como a dos autos tem de ser proposta, não contra a pessoa colectiva de direito público Estado, mas sim contra o órgão administrativo competente para a prática dos actos administrativos decorrentes do, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse que o autor se arroga.
Entendem os recorrentes que tal dimensão normativa do preceito viola o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no artigo 22.º da Constituição, bem como o princípio do nível adequado de densidade de protecção consagrado no artigo 268.º da Lei Fundamental.
O Relator no Tribunal Constitucional, no despacho que notificou os recorrentes para alegarem, circunscreveu o objecto do recurso ao artigo 70.º, n.º 1 da LPTA, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida.
Os recorrentes vieram então apresentar as suas alegações, tendo concluído do seguinte modo:
1ª A norma do art° 70º, nº 1 da LPTA, na precisa vertente normativa consagrada no Acórdão recorrido, sempre se teria de ter por desconforme ao princípio constitucional da responsabilidade directa do próprio Estado, consagrado no art° 22 da CRP, já que imporia que o funcionário público lesado nos seus legítimos direitos e interesses (ao invés do cidadão comum) teria de demandar não o mesmo Estado mas sim a “unidade orgânica” (Ministério ou até Direcção Geral) em que estava hierárquico-funcionalmente inserido,
2ª E a qual, obviamente, não tem qualquer capacidade, legitimidade ou competência legal para reconhecer e declarar esse mesmo direito e interesse legítimos,
3ª Bem como significaria uma compressão, para não dizer mesmo uma inutilização, da garantia jurisdicional efectiva (consagrada no art° 268° da CRP) dos cidadãos (aqui também funcionários, mas nem por isso menos cidadãos), totalmente injustificada, desnecessária e desproporcionada.
4ª Num caso em que, como no presente, se discute a situação jurídico-remuneratória dos AA. enquanto funcionários públicos e a definição do correcto escalão remuneratório que lhes é devido, a interpretação e aplicação conformes à Lei Fundamental do supra-referenciado art° 70º, n° 1 da LPTA conduzem à conclusão de que o meio processual idóneo para alcançar a tutela jurisdicional efectiva daquele direito e interesse legítimos é a presente acção, e de que para ela o Réu Estado tem assim plena legitimidade passiva.
5ª E o referenciado artº 70º, nº 1 da LPTA, na vertente normativa com que foi interpretado e aplicado na decisão recorrida (ou seja, no sentido de significar a ilegitimidade passiva do mesmo Estado), padece de óbvia inconstitucionalidade material, por violação dos já citados arts. 22° e 268°, ambos da CRP.
O Exmo. Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional, em representação do Estado Português, contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
3. No despacho que notificou os recorrentes para alegarem, o relator circunscreveu o objecto do recurso ao artigo 70.º, n.º 1 da LPTA, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, i. é que a acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo deve ser proposta contra a autoridade competente para praticar os actos administrativos decorrentes, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse legítimo que o autor se arroga, e não contra a pessoa colectiva em que aquela se integra.
Não tendo tal despacho sido impugnado, tendo aliás os recorrentes alegado apenas quanto a essa questão de constitucionalidade, assim delimitada, é só relativamente a ela que recairá o juízo do Tribunal Constitucional no âmbito do presente recurso de constitucionalidade.
Questão de constitucionalidade
4. A questão com a qual o Tribunal Constitucional é confrontado no caso dos autos é a da conformidade com a Constituição do n.º 1 do artigo 70.º da LPTA, na interpretação segundo a qual a acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo deve ser proposta contra a autoridade competente para praticar os actos administrativos decorrentes, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse legítimo que o autor se arroga, e não contra a pessoa colectiva em que aquela se integra.
Entendem os recorrentes que tal norma viola o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no artigo 22.º da Constituição bem como o direito a uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados, consagrado no artigo 268.º da Constituição.
A interpretação dada ao preceito no acórdão recorrido corresponde à orientação dominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (v. acórdãos do STA de 9 de Fevereiro de 1989, proc. n.º 025215, in Apêndice ao DR de 14-11-1994, pág. 1090; de 23 de Junho de 1998, proc. n.º 38063, in Apêndice ao DR de 12-04-2001, pág. 923; de 16-01-2001, proc. n.º 45926, in Apêndice ao DR de 17-02-2003, pág. 71 e de 5 de Julho de 2001, proc. n.º 46056, in Apêndice ao DR de 16-04-2003, pág. 955).
A posição do STA pode sintetizar-se do seguinte modo: (i) o meio processual a que o legislador resolveu chamar “acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo”, apesar do nome, não tem a estrutura das outras acções, que continuam a reger-se pelas regras do processo civil (artigos 72.º e 73.º da LPTA), mas antes a do recurso contencioso de actos dos órgãos da administração local; (ii) dada a sua estrutura, são-lhe aplicáveis as normas concernentes aos pressupostos do recurso contencioso – com excepção naturalmente daqueles que não se mostram adequados à sua natureza específica, como a existência, ou presunção de existência, de acto administrativo lesivo ou o não esgotamento de um prazo para a interposição ou propositura (que pode ter lugar a todo o tempo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 69.º da Lei de Processo) – o que significa, no que respeita à legitimidade passiva, que a acção deve ser proposta contra o órgão com competência para se pronunciar sobre o direito ou interesse que o autor se arroga e pretende ver reconhecido.
Também a doutrina partilhava esse entendimento (v. José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 139).
Não está em causa, no âmbito do presente recurso, a correcção de tal interpretação da lei processual, designadamente da equiparação da estrutura da acção para reconhecimento de direito à do recurso contencioso de anulação.
Sob apreciação está apenas a conformidade desse critério normativo com a Constituição.
5. No que respeita à alegada violação do artigo 22.º da Constituição, não se vê de todo em todo como esse preceito constitucional possa ser violado pela norma sub judicio. Desde logo, porque através de uma acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo o autor não pretende ressarcir-se de danos que haja sofrido e pelos quais o Estado e as demais entidades públicas pudessem ser responsáveis.
Qualquer que seja a posição adoptada quanto ao alcance e objecto desse meio processual – a doutrina costumava distinguir entre teorias de alcance mínimo, médio e máximo (v., sobre o assunto, Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 139-147) – é pacífico que fora dele ficam as questões sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, para o efeito dispondo o particular de meio processual específico, regulado nos artigos 71.º e 72.º da LPTA, tendo nela legitimidade passiva a pessoa colectiva Estado.
Assim sendo, não tem sentido a invocação da responsabilidade civil extracontratual do Estado, garantida no artigo 22.º da Constituição.
6. Importa ainda apreciar a norma sub judicio à luz do direito a uma tutela jurisdicional efectiva, reconhecido aos administrados no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
Tal como decidiu o Tribunal no acórdão n.º 179/2007, também no caso dos autos, o juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio tem de tomar em conta três vectores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
Desde logo, não se afigura desrazoável a necessidade de ser chamada ao processo – e, por isso, de ser indicada como ré na acção – a autoridade competente para praticar os actos administrativos decorrentes, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse legítimo que o autor se arroga, porquanto é a mesma quem tem interesse directo em contradizer a pretensão do autor de ver reconhecido o seu direito.
Depois, não se mostra de especial dificuldade o cumprimento da exigência legal de correcta identificação da contra-parte, pois, tratando-se da autoridade competente para praticar os actos administrativos decorrentes, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse legítimo que o autor se arroga, a mesma é sujeito da relação jurídico-administrativa controvertida em que também é sujeito o particular.
A isso acresce que a consequência associada ao incumprimento do ónus de correcta identificação da contra-parte não é a da irremediável preclusão da possibilidade de o autor ver reconhecido o direito que reclama, uma vez que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1.º da LPTA, lhe assiste a possibilidade de propor outra acção sobre o mesmo objecto.
Uma vez que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 69.º da LPTA, a acção para reconhecimento de direito pode ser proposta a todo o tempo, é indiferente a questão de saber se, nessa situação, seria aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, que, nos casos de absolvição da instância, consente a propositura de outra acção com o mesmo objecto, mantendo-se os efeitos derivados da propositura da primeira causa se a nova acção for intentada dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.
Assim, não se pode considerar que a norma sub judicio seja de tal modo desrazoável ou desproporcionada que se deva reputar violadora do direito a uma tutela jurisdicional efectiva.
III – Decisão
7. Nestes termos, acordam em:
a) Não conhecer parcialmente do objecto do recurso;
b) Não julgar inconstitucional o n.º 1 do artigo 70.º da LPTA, na interpretação segundo a qual a acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo deve ser proposta contra a autoridade competente para praticar os actos administrativos decorrentes, ou impostos, pelo reconhecimento do direito ou interesse legítimo que o autor se arroga, e não contra a pessoa colectiva em que aquela se integra;
d) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
d) Condenar os recorrentes em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta por cada um.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.