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Processo n.º 224/2010
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que lhe indeferiu a reclamação deduzida contra a não admissão, pelo relator na 2.ª instância, do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, pretendendo a apreciação da questão de inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP) “quando interpretado no sentido de que, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quando de acórdão condenatório, proferido em recurso, pelas Relações, apesar de os factos em apreço nos autos terem ocorrido antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – Fevereiro de 2004 – quando é certo que foi por culpa do Estado (Tribunais) e não por qualquer facto imputável ao arguido, ora reclamante, não foi julgado em tempo útil: o arguido foi constituído arguido e sujeito a primeiro interrogatório judicial em Fevereiro de 2004; foi o Tribunal, sem que o arguido nisso tivesse qualquer interferência – nem a abertura de instrução requereu, que demorou mais de 4 anos a marcar o julgamento, pelo que não pode por isso ser prejudicado por uma interpretação legal que agora se faz acerca da possibilidade ou impossibilidade de admissão de recurso”, pelo que “impedir-se que o recurso apresentado pelo arguido seja apreciado pelo STJ, pelo facto de se ter demorado mais de 4 anos a realizar-se o julgamento, só pelo facto de em 2007 ter entrado em vigor a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, constituirá a violação das garantias de defesa dos arguidos previstas na Constituição da República Portuguesa”.
Foi proferida decisão sumária que negou provimento ao recurso com a seguinte fundamentação:
“O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. Despida das referências fácticas concernentes à situação concreta verificada nos autos, constata-se que a questão normativa, que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, é paralela à apreciada e discutida nesta 2.ª Secção, no Acórdão n.º 645/2009, tendo a solução, a ela dada, merecido o voto unânime de todos os seus juízes, incluindo o do aqui relator. De notar, ainda, que este aresto manteve a linha de argumentação já vinda dos Acórdãos 263/2009 e 551/2009, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Por isso, estamos perante uma questão que importa qualificar de simples, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
Na sequência da fundamentação expendida naquele Acórdão n.º 645/2009, que aqui se dá por reproduzida, atenta a facilidade existente no seu acesso, o Tribunal Constitucional decidiu:
“a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
b) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, e artigo 5.º, n.º 2, do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
Ora não se vislumbram quaisquer razões para abandonar quer o pensamento em que se abonou esta decisão, quer o julgamento nela feito da questão de constitucionalidade.
Importa, pois, negar provimento ao recurso.”
A recorrente reclamou desta decisão nos seguintes termos:
“1 No âmbito dos presentes autos pelo Senhor Juiz Conselheiro Relator foi decido rejeitar por decisão sumária recurso do arguido, ora reclamante, entendendo:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o STJ aos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
b) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do artigo 400º, n.º 1, al. f) do CPP, na redacção da Lei 48/2007 de 29 de Agosto e artigo 5º, n.º 2, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
2. O arguido não se conforma com esta decisão sumária e dela por esta via reclama, especificando de seguida os fundamentos para a discordância da decisão reclamada.
3. Salvo o devido respeito por opinião contrária entende, o arguido que a questão em apreço nos autos não pode ser qualificada como simples e não é, de todo, uma situação idêntica à dos Acórdãos mencionados na Douta Decisão sumária.
4. Na verdade não estamos numa situação típica de alteração legislativa no âmbito de um processo em curso.
5. A apreciação do caso sub judice nos presentes vai para além da questão de se concluir que com a entrada em vigor da lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, os recursos das relações que confirmem as decisões de 1ª Instância e que apliquem ao arguido pena inferior a 8 anos, não são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça.
6. Até porque «no respeito por princípios materiais ligados à posição de arguido, ou por exigências de coerência sistemática e harmonia intra-processual, a lei nova não se aplicará aos processos iniciados anteriormente quando a aplicabilidade imediata possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo».
7. Na verdade os factos em apreço nos autos ocorreram em 17 de Fevereiro de 2004, ou seja, mais de três anos antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
8. Foi por culpa do Estado (Tribunais) e não por qualquer facto imputável ao arguido, ora reclamante, não foi julgado em tempo útil.
9. Na verdade, o arguido foi constituído arguido e levado a primeiro interrogatório judicial em Fevereiro de 2004.
10. Foi o Tribunal, sem que o arguido/reclamante nisso tivesse qualquer interferência – nem a abertura de instrução requereu, que demorou mais de 4 anos a marcar o julgamento.
11. Foi o facto de um dos co-arguidos se ter «ausentado» para o Brasil que levou a que o processo de retardasse por períodos inadmissíveis.
12. A questão estará então em saber se será justo, legal e constitucional, se por factos ocorridos em 2004, ou seja muito tempo antes (anos) da entrada em vigor da nova lei, será ou não admissível o recurso no caso em apreço nos autos que correm termos no STJ no âmbito do processo n.º 2/10.9YFLSB da 5ª Secção.
13. Tanto mais que todo o inquérito decorreu no período de vigência da antiga lei processual.
14. Foi o Tribunal, sem que o arguido/reclamante nisso tivesse qualquer interferência – nem a abertura de instrução requereu, que demorou mais de 4 anos a marcar o julgamento.
15. Qualquer cidadão tem direito a um julgamento justo e atempado.
16. No caso em apreço não se verificou o julgamento do arguido em tempo, considerado, útil.
17. Impedir-se que recurso apresentado pelo arguido seja apreciado pelo STJ, pelo facto de se ter demorado mais de 4 anos a realizar-se o julgamento, só pelo facto de em 2007 ter entrado em vigor a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, constituirá a violação das garantias de defesa dos arguidos previstas na Constituição da República Portuguesa.
18. A verdade é que quando os factos ocorreram – Fevereiro de 2004 – encontrava-se em vigor a Lei que permitia, em caso de condenação pelo crime (como sucedeu), o recurso até ao STJ.
19. Por essa razão tem o arguido, aqui reclamante, o direito de ver o recurso apresentado apreciado pela mais alta instância judicial do nosso País, o Supremo Tribunal de Justiça, devendo qualquer interpretação em sentido contrário, ser considerada inconstitucional.
20. Vedar-se a possibilidade ao arguido, no caso concreto e tendo em conta o circunstancialismo mencionado nesta reclamação, de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça implica uma diminuição das garantias de defesa do arguido, limitando o exercício do direito ao recurso pelo recorrente.
21. Ao decidir pela conformidade, encontra-se violado o direito ao recurso previsto no art.º 32.º, n.º 1, da CRP.
22. Tendo em conta a data da ocorrência dos factos relembra-se 4 anos antes da entrada em vigor da lei «processualmente mais restritiva» o ora reclamante criou expectativas na sua defesa em caso de ter de lançar mão de recurso de decisão que viesse a ser proferida, expectativas, essas, que lhe são vedadas pela aplicação da nova lei.
23. Para além dos direitos que possuem eficácia ao longo de todo o processo (artigo 61º, n.º 1 do C.P.P.), os direitos de defesa do arguido são, para efeitos do disposto no artigo 5º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal e não apenas os que se encontram previstos para a fase processual em causa na ocasião em que ocorreu a mudança da lei.
24. Visto que a supressão de um grau de recurso, comprometendo as legítimas expectativas quanto ao direito a dele fazer uso, representa um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma restrição do seu direito de defesa.
25. Assim, no domínio do presente processo criminal, a jurisprudência reconhece que, por força dos artigos 27.º,28.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, encontra-se constitucionalmente assegurado o duplo grau de jurisdição quanto às decisões condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a qualquer outros direitos fundamentais, mas tal garantia de duplo grau não abrange outras decisões proferidas em processo penal.
26. Ora, estando em causa processo iniciado MUITO ANTES da vigência da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, que veio estabelecer na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal não ser admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, há que afastar a aplicação da lei nova, no caso dos presentes autos.
27. Neste sentido decidiu este Supremo Tribunal em sentido oposto no Acórdão de 10 de Janeiro de 2008, proferido no processo n.º 4376/07 da 5ª Secção;
28. Como supra se referiu, nos presentes autos está em causa uma questão e sucessão de leis processuais penais no tempo.
29. Não uma sucessão qualquer, mas sim sucessão com mais de 4 anos, tendo em conta a data dos factos e a data do julgamento.
30. A aplicação imediata da lei processual penal, em matéria de graus de recurso, não atende às razões jurídico-políticas da aplicação da lei penal favorável, visto tratar-se de matéria processual penal de conteúdo material, ou seja, é matéria que condiciona a efectivação da responsabilidade penal ou contende directamente com os direitos do arguido ou do recluso.
31. No caso em apreço e tendo em conta o exposto em 30 coarctar-se o direito ao recurso traduzir-se-ia numa violação dos seus direitos fundamentais, isto salvo o devido respeito.
32. Considerar-se que a decisão de que ora se reclama, ao pugnar pela irrecorribilidade do recurso, uma vez que, se deve aplicar a nova lei – 4 anos depois - limita os direitos de defesa dos arguidos, visto que lhes irá retirar um grau de jurisdição, visto estarmos perante processo iniciado antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, violando assim os mais elementares direitos de defesa do arguido consagrados na C.R.P.
33. Considerar-se, como se julgou na Douta decisão sumária, não inconstitucional a situação em apreço nos autos tendo em conta as condicionantes expostas de 7º a 22º desta reclamação não faz, salvo o devido respeito, qualquer sentido.
34. Na verdade, a não admissão do recurso por parte do Senhores Juiz Presidente do STJ nos presentes autos, implica, salvo o devido respeito, uma ofensa das garantias de defesa dos arguidos e a violação dos artigos 18º, n.º 2, 32º, n.º 1 e 8 e 34º n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
35. Na verdade, no caso sub judice, pelo grande período de tempo decorrido entre a prática dos factos e o início do julgamento, deverá considerar-se inconstitucional o art.º 400º, nº 1, al. f) do CPP, quando interpretado no sentido de que, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão condenatório, proferido em recurso, pelos Tribunais das Relações, apesar de os factos em apreço nos autos terem ocorrido antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – Fevereiro de 2004 – quando é certo que foi por culpa do Estado (Tribunais) e não por qualquer facto imputável ao arguido, ora reclamante, não foi julgado em tempo útil: o arguido foi constituído arguido e sujeito a primeiro interrogatório judicial em Fevereiro de 2004; foi o Tribunal, sem que o arguido nisso tivesse qualquer interferência – nem a abertura de instrução requereu (nem nenhum dos co-arguidos o fez), que demorou mais de 4 anos a marcar o julgamento, pelo que não pode por isso ser prejudicado por uma interpretação legal que agora se faz acerca da possibilidade ou impossibilidade de admissão de recurso.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente melhor suprirão, deve, em conferência, ser revogada a Douta Decisão Sumária de que ora se reclama, devendo em consequência ser declarada a inconstitucionalidade do o art.º 400º, nº 1, al. f) do CPP, quando interpretado no sentido de que, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão condenatório, proferido em recurso, pelas Relações, apesar de os factos em apreço nos autos terem ocorrido muito antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – Fevereiro de 2004 – quando é certo que foi por culpa do Estado (Tribunais) e não por qualquer facto imputável ao arguido, não foi julgado em tempo útil: o arguido foi constituído arguido e sujeito a primeiro interrogatório judicial em Fevereiro de 2004; foi o Tribunal, sem que o arguido nisso tivesse qualquer interferência – nem a abertura de instrução requereu, que demorou mais de 4 anos a marcar o julgamento, pelo que não pode por isso ser prejudicado por uma interpretação legal que agora se faz acerca da possibilidade ou impossibilidade de admissão de recurso.”
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
O artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC, permite que o Relator aprecie o mérito do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, mediante decisão sumária, quando a questão a decidir é de simples resolução. E, como resulta do mesmo preceito, essa simplicidade pode resultar da circunstância de existir jurisprudência anterior sobre ela.
Sobre a questão colocada pelo recorrente já se pronunciaram os Acórdãos n.º 263/2009, 551/2209 e 645/2009.
O recorrente argumenta que nessas decisões não estavam em causa situações em que os factos ocorreram vários anos antes da entrada em vigor do diploma que restringiu a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não tem razão o recorrente, uma vez que da leitura daqueles arestos resulta precisamente que se ponderaram situações em que o processo se iniciou em data anterior à aprovação da Lei n.º 48/2007, tendo obviamente os factos também ocorrido em data anterior a esse momento.
Entendeu-se nesses acórdãos que a fixação da extensão admissível dos recursos de acordo com a lei vigente no momento da sentença de 1ª instância preserva integralmente os princípios constitucionais nessa matéria, não sendo legítimo que o arguido confie em que o sistema de recursos vigente no momento em que praticou os factos se mantenha inalterado. Não se concebe a existência de estratégia processual que venha a ser comprometida pela alteração do regime de recursos antes de ter sido proferida a decisão que se pretende atacar, porque só perante esta surge, em concreto, o interesse em recorrer e se define o seu âmbito possível.
Não tendo sido alegadas razões que justifiquem uma alteração desta posição deve ser indeferida a reclamação apresentada
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.