Imprimir acórdão
Processo n.º 1003/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. S.A. propôs contra B., Ldª e C. Ld.ª uma acção de condenação no pagamento de determinada quantia a título de valor de energia eléctrica fornecida em “média tensão” que, por erro, não fora facturada oportunamente.
A acção foi julgada improcedente, por caducidade, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho de 1996. A sentença foi sucessivamente confirmada pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, este por acórdão de 3 de Novembro de 2009.
2. A autora interpôs recurso deste acórdão, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, quando interpretada no sentido de que apenas o fornecimento em “alta tensão” (e por interpretação extensiva, em “muito alta tensão”) se encontra excluído do âmbito das medidas de protecção do consumidor instituídas pelo citado artigo 10.º.
Prosseguindo o recurso, a recorrente alegou e concluiu nos seguintes termos:
“(…)
1. A decisão proferida pelo STJ está ferida de inconstitucionalidade.
2. A decisão recorrida decide pela caducidade do direito da A. dado que entende que o nº 3 do artº 10º da Lei nº 23/96 não inclui os fornecimentos em média tensão.
3. Trata-se duma interpretação inconstitucional da referida norma.
4. O preceito assim interpretado deve considerar-se inconstitucional por desconforme com os princípios da proporcionalidade e da igualdade consignados na Constituição.
5. Admitir que as regras sobre prescrição e caducidade do pagamento de energia da Lei nº 23/96 possam estender-se aos consumidores de média tensão, admitir que eles não se achem compreendidos no nº 3 do artº 10º, equivale a atribuir-lhes um excesso de protecção em confronto com a protecção conferida aos consumidores em baixa tensão, aos clientes domésticos e aos consumidores finais.
6. Equivale a infringir o princípio da proporcionalidade nas suas três vertentes de adequação, necessidade e racionalidade. E, como logo resulta, tal implica outrossim ofender o princípio da igualdade.
7. De resto pode ver-se o problema do prisma da lesão, porquanto o excesso da protecção dado a uns consumidores – os da média tensão, na hipótese de não estarem abrangidos pela ressalva do artº 10º nº 3 – redunda indirectamente em prejuízo dos consumidores de baixa tensão.
8. Com efeito, as vantagens de carácter financeiro, que àqueles são conferidas no domínio da prescrição e da caducidade do pagamento acabam por diminuir a capacidade do prestador de serviço de fornecimento de energia eléctrica para o prestar com a máxima qualidade como exige a lei.
9. Circunscrita à alta tensão, no estrito sentido técnico do termo, a ressalva da prescrição e da caducidade constante do artº 10º, nº 3 da Lei 23/96 padece de inconstitucionalidade, por tratar desigualmente a alta e a média tensão (e, sem se esquecer a muito alta tensão), quando é certo que coincidem, como atrás se patenteou ad abundantiam, nos aspectos básicos que importam para a aplicação do regime jurídico.
10. Significa isto então que os tribunais, em obediência ao artº 204º da Constituição, julgando inconstitucional o preceito com essa interpretação, não deve mais fazer do que deixar de a aplicar-
11. Não pode ser. Seria, de todo em todo, contraditório com o objectivo precípuo do legislador e com a coerência do princípio: os consumidores em alta tensão acabariam por também beneficiar da prescrição e da caducidade do pagamento do preço do serviço ao fim de seis meses.
12. Esse resultado acarretaria, por outra banda, um significativo sacrifício financeiro do prestador do serviço de energia eléctrica, desproporcionado, injusto e com possíveis consequências na qualidade do serviço e no interesse geral do País.
13. O encargo dos tribunais, recte do Tribunal Constitucional, apenas pode ser outro: não afastar a alta tensão, mas sim adjuntar-lhe a média tensão, acrescentar, por via interpretativa e integrativa ao artº 10º nº 3, o segmento que falta de modo a cobrir a média e a muito alta tensão; em suma, proceder àquilo a que se chama uma decisão aditiva, seguindo a prática que o próprio Tribunal Constitucional (à semelhança dos de outros países) tem várias vezes já adoptado.
14. Assim, o Tribunal Constitucional deve considerar a interpretação dada pelo STJ ao artº 10º da Lei nº 23/96 inconstitucional e invocando os valores e interesses constitucionais conferir à norma uma interpretação que restabeleça o respeito pelo princípio da igualdade e da proporcionalidade em conformidade com o Parecer do Prof. Jorge Miranda.
15. Se assim não se entender sempre se refere que a A. invoca na sua PI e na sua Réplica que o fornecimento de energia eléctrica à tensão de 15.000 volts efectuado às Rés tem as características próprias de um fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.
16. Por outro lado, a A. invoca tais características próprias de fornecimento de energia eléctrica em alta tensão como distintas dos fornecimentos em baixa tensão.
17. Atentemos sobretudo aos factos invocados nos artºs 30, 33 e 40 da Réplica mas também aos factos descritos sob os artigos 8 a 27 da PI (só parcialmente quesitados pelo Tribunal de ia Instância, cf. quesitos 6º a 20º da Base Instrutória de fls.).
18. O STJ desprezou a realidade de facto invocada, decidindo sem a conhecer.
19. Transformou a questão suscitada pressupondo que a média tensão era distinta da alta.
20. Ora, as decisões dos Tribunais não podem pressupor, têm que decidir sobre a realidade de facto apurada aplicando-se o direito.
21. Ora, o que a A. invoca é que o fornecimento em 15.000 volts tem as características próprias da alta tensão.
22. Que conhecimento permite ao Tribunal sustentar o contrário se se coibiu de apurar a realidade de facto-
23. Face aos factos invocados pela A., a interpretação dada pelo Tribunal ao nº 3 do artº 10º da Lei nº 23/96 é inconstitucional, pois trata o que é igual de forma desigual.
24. Nestas circunstâncias, havendo dúvidas sobre se a média tensão tem as características próprias de um fornecimento de energia eléctrica em alta tensão, deve então o Tribunal Constitucional mandar baixar o processo para que se apurem os factos controvertidos nessa matéria para poder conhecer a questão suscitada, nos termos do artº 78º-B da Lei do Tribunal Constitucional.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões.”
A recorrida B. apresentou contra-alegações. Nessa peça processual, excepciona o não conhecimento do recurso, alegando que, em vez de questionar a conformidade constitucional da norma aplicada, o que a recorrente pretende é a alteração do juízo adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça. E, quanto ao mérito, sustenta que a interpretação que foi conferida ao n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 não ofende os princípios constitucionais invocados pela recorrente.
II. Fundamentação
3. Para tutela dos utentes dos serviços públicos essenciais (serviço de fornecimento de água; serviço de fornecimento de energia eléctrica; serviço de fornecimento de gás; serviço de telefone), a Lei n.º 23/96 regulou imperativamente certos aspectos das relações entre aqueles e os fornecedores, proibindo certas práticas, consagrando direitos especiais do utente e impondo particulares deveres ao fornecedor do serviço. Um dos aspectos regulados foi o dos prazos do exercício dos direitos de crédito do fornecedor, seja quanto à cobrança do preço do serviço prestado, seja quanto à exigência da diferença entre o preço facturado e o valor do serviço prestado, em caso de erro imputável ao prestador.
Com essa finalidade, na redacção originária, que a decisão recorrida considerou aplicável ao caso, o artigo 10.º da Lei n.º 23/96 dispunha:
“Artigo 10.º
Prescrição e caducidade
1 – O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 – Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
3 – O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.”
Este preceito foi objecto das alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro e pela Lei n.º 247/2008, de 2 de Junho, tendo passado a dispor:
«Artigo 10.º
Prescrição e caducidade.
1 – O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 – Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
3 – A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente è data limite fixada para efectuar o pagamento.
4 – O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
5 – O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.»
Como se vê, a lei estabelece prazos especialmente curtos de prescrição e caducidade para exercício dos direitos de crédito do fornecedor. E estabelece-os com carácter de generalidade e universalidade. Com uma única excepção: exclui deste regime de prazos especialmente curtos “o fornecimento de energia eléctrica em ‘alta tensão’”. Gerou-se a dúvida, traduzida em decisões judiciais divergentes, sobre o que, para este efeito, caberia no conceito de “alta tensão”. O acórdão recorrido interpretou a evolução legislativa como tendo natureza interpretativa, no sentido de que o legislador pretendeu sufragar o entendimento de que a expressão “alta tensão” não abrange os fornecimentos em “média tensão”. Optou pela interpretação de que o conceito coincide com o dos vários diplomas que integram o chamado “pacote legislativo do sector eléctrico”, designadamente o Decreto-Lei n.º 128/95, de 27 de Julho de 1995, em que: baixa tensão é a tensão até 1 kV; “média tensão” é a tensão superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV; “alta tensão” é a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; muito “alta tensão” é a tensão superior a 110 kV (artigo 4.º).
4. Temos, portanto que, para todos os serviços públicos essenciais, a regra é (n.º 2 do artigo 10.º) a de que o direito de recebimento da diferença de preço (só esse aspecto agora interessa), em caso de erro de contabilização de consumos imputável ao fornecedor, caduca no prazo de 6 meses. Dessa regra só se exceptua o fornecimento de energia eléctrica em “alta tensão” (n.º 3 do artigo 10.º). E que o acórdão recorrido respondeu negativamente à questão de saber se nesta excepção se compreende o fornecimento de energia em “média tensão” e, consequentemente, decidiu o conflito por aplicação da regra do n.º 2 do mesmo artigo 10.º.
Todavia, não pode concluir-se daqui que a questão se resume à subsumpção numa ou noutra das referidas normas, com o sentido de que, tendo-se optado por aplicar uma se exclui a aplicação da outra. O tribunal a quo não se limitou a apreciar se a situação se compreendia no âmbito da norma que prevê a regra (a caducidade) ou na norma que prevê a excepção. Determinou o campo de aplicação da regra mediante o recorte da excepção. Mas foi sobre a norma que define a excepção que principalmente incidiu a controvérsia das partes e foi ela o nó problemático da decisão.
Efectivamente, foi em consequência do sentido a que chegou quanto a esta (ou da extensão que lhe deu) que o Supremo concluiu pela submissão da situação à regra geral da caducidade estabelecida pelo diploma. Perante o Supremo Tribunal discutia-se se a valoração efectuada pelo legislador, da qual decorre que a regra de caducidade a favor dos consumidores cesse perante certo tipo de consumos referidos na norma que estabelece a excepção, se estende ao fornecimento em “média tensão”. Foi disso que o Supremo centralmente se ocupou, tendo, inclusivamente, apreciado a questão de constitucionalidade do sentido da norma assim interpretada. Para o acórdão, «[estava] em causa a diferença entre o preço facturado e pago, e o valor efectivo da aplicação dos nºs 2 e 3 do artigo 10.º, mais especificamente no n.º 3, uma vez que o que importa saber é se, no caso, o fornecimento de energia eléctrica foi ou não em “alta tensão”» (pp. 12 do acórdão). E, depois de examinar o conceito operante de “alta tensão” e “média tensão”, concluiu que “o prazo de caducidade previsto no n.º 2 do artigo não está abrangido pela excepção do seu n.º 3, a qual se aplica apenas ao fornecimento de energia em “alta tensão” (e, por maioria de razão) à “muito alta tensão”) e, como vem sendo decidido, a caducidade prevista no n.º 2 do artigo 10.º operou o efeito extintivo sobre o direito accionado pela autora/recorrente” (pp. 13 do acórdão).
Neste contexto, tem de reconhecer-se que a norma do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 29/96, interpretada no sentido de que o fornecimento de energia eléctrica em “média tensão” não é exceptuado à regra de caducidade do direito de recebimento da diferença de preço no prazo de 6 meses, integra a ratio decidendi do acórdão recorrido
Consequentemente, improcede a questão prévia de não conhecimento do objecto do recurso suscitada pela recorrida.
5. Ao Tribunal Constitucional não cabe apreciar ou corrigir a interpretação e aplicação do direito ordinário efectuada pelo tribunal a quo. Não é da sua competência determinar se as normas de direito ordinário que os tribunais da causa elegeram eram as pertinentes para a resolução judicial do conflito, se a interpretação adoptada é a exacta ou mais acertada, ou se a matéria de facto apurada é suficiente para a resolução das questões colocadas. Compete-lhe, somente, julgar a constitucionalidade (ou, se for o caso, a ilegalidade por violação de lei de valor reforçado) da norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação com fundamento em inconstitucionalidade (artigo 79.º-C da LTC).
Consequentemente, é manifestamente estranha aos poderes do Tribunal, em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, a pretensão da recorrente de que se mande baixar o processo a fim de apurar factos que a recorrente considera controvertidos e necessários para correcta decisão do aspecto jurídico da causa, designadamente no que respeita à qualificação do fornecimento de energia eléctrica em causa como “alta tensão” ou “média tensão” (conclusões 15 a 24).
Indefere-se, pois, essa pretensão, passando-se ao conhecimento do objecto do recurso.
6. Considerando o modo como a recorrente definiu o objecto do recurso, não está em causa, em si mesma, a norma que estabelece um prazo curto (seis meses após o pagamento da importância facturada) de caducidade do direito do prestador do serviço a receber a diferença de preço, em caso de erro de facturação que lhe seja imputável. Apenas se pede a apreciação da norma do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 (actual n.º 5 do mesmo artigo 10.º) na interpretação de que não abrange – portanto, que não exceptua da protecção concedida aos utentes pelo n.º 2 do mesmo artigo 10.º – o fornecimento de energia eléctrica em “média tensão”.
Como começou por referir-se, a Lei n.º 23/96 institui diversos mecanismos de protecção dos utentes dos serviços públicos essenciais e rege as relações entre o prestador do serviço e utente, independentemente da natureza jurídica (individual ou colectiva) deste e da finalidade de utilização do serviço em causa (doméstico, industrial, comercial, actividade profissional de prestação de serviços). Protege o utente (n.º 1 do artigo 1.º), qualquer utente dos serviços públicos essenciais, tendo um âmbito subjectivo mais vasto do que o de aplicação da Lei de Defesa dos Consumidores (artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), cuja finalidade é assegurar protecção aos interesses do consumidor final enquanto tal, aquele que adquire a fornecedores profissionais bens e serviços para uso e fruição própria e não para uso profissional. Quer dizer: os utentes a que a Lei n.º 23/96 se refere são também esses consumidores em sentido estrito; mas não são apenas eles.
Um dos pontos regulados na Lei n.º 23/96 – e foi sobre ele que incidiu a controvérsia na acção de que o presente recurso emerge, só ele reclamando a nossa atenção – é o dos prazos de exercício dos direitos de crédito do fornecedor. Quer para o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, quer para a exigência da diferença entre o preço facturado e o preço correspondente ao consumo efectuado, em caso de erro do prestador do serviço nessa facturação (v.gr. por deficiência dos instrumentos de contagem, por erro de leitura, de processamento ou de cálculo), a lei estabelece um prazo curto de 6 meses, qualificado como de prescrição no primeiro caso e de caducidade no segundo. Há, portanto, um regime especial, que afasta as regras gerais do Código Civil, no domínio dos serviços essenciais regulados no diploma.
Porém, quanto ao serviço de fornecimento de energia eléctrica, o n.º 3 do artigo 10.º (actualmente, o n.º 5 do mesmo artigo 10.º), exclui do âmbito deste regime especial quanto ao exercício dos direitos de crédito do prestador do serviço o fornecimento em “alta tensão”. Por via desta excepção, desta única excepção ao regime especial estabelecido pelo diploma, as relações entre essa categoria de utentes e o fornecedor, em matéria de prescrição e caducidade, retornam à disciplina constante das regras gerais da lei civil e comercial. O acórdão recorrido interpretou esta norma, definiu a extensão da excepção ao regime especial, como não abrangendo o fornecimento de serviço em “média tensão”. Contra a pretensão da recorrente que advoga uma interpretação que equivale a contrapor “alta tensão” a “baixa tensão”.
Aceitando, como tem de aceitar-se no presente recurso, que essa é a correcta determinação de sentido da norma, importa apreciar se, ao assim distinguir entre utentes em “média tensão” e utentes em “alta tensão”, o legislador violou a Constituição, por infracção aos princípios da proporcionalidade e da igualdade, como a recorrente sustenta, apoiada em pareceres jurídicos que juntou aos autos ainda em fase anterior do processo.
A esses parâmetros vai o Tribunal limitar a apreciação da constitucionalidade da norma em causa. Com efeito, não há razão para outras ponderações, designadamente respeitante à protecção constitucional dos consumidores, parâmetro que não é aqui aplicável porque o artigo 60.º da Constituição tem em vista, à semelhança do direito nacional e europeu, o consumidor final (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, pp. 780). Efectivamente, a norma em causa respeita ao fornecimento de energia eléctrica para uso industrial e comercial. E é do comum conhecimento que os utentes em “alta” ou em “média” tensão não são consumidores finais, nesse sentido.
7. Como no primeiro dos pareceres jurídicos juntos aos autos se defende e o acórdão recorrido igualmente aceita, ao determinar que, no caso do fornecimento de energia em “alta tensão”, não se aplica o regime especial que tutela o utente contra pretensões de correcção da facturação por erro do prestador do serviço, o legislador pressupôs que os utentes da categoria referenciada, ao contrário dos restantes utentes, estão em condições de gerir essa situação, sem dificuldades excessivas, pelo que o equilíbrio entre as exigência de consolidação da situação (favorável ao consumidor) e, portanto, de segurança jurídica, e as exigências de justiça (reclamada pelo prestador que prestou o serviço ou efectuou o fornecimento e pretende receber o preço) se alcançava, neste caso, por aplicação do regime geral da lei civil e comercial. Quer dizer, ao apontar como elemento definidor do âmbito da exclusão uma certa categoria de tensão de energia eléctrica, o legislador está indirectamente a remeter para o círculo dos sujeitos que a utilizam, tendo em conta as características típicas da sua estrutura patrimonial e organizatória e o modo como nela se inserem os gastos com o consumo de energia. Para o legislador este grupo de utentes – os utentes em “alta” na definição que o Supremo adoptou – não necessita de ser protegido por prazos mais curtos do que os prazos gerais de caducidade e prescrição.
Sustenta a recorrente que também os utentes do serviço de fornecimento de energia eléctrica em “média tensão” devem ser incluídos nesta categoria de utentes não carecidos de protecção especial. Na sua perspectiva, não há razão para distinguir, ou melhor, a mesma razão que levou o legislador a proteger menos intensamente os utentes com ligação em “alta tensão” vale para afastar o regime especial do diploma quanto aos utentes em “média tensão”. De outro modo, beneficiando estes da protecção regra – na hipótese, o prazo de 6 meses de caducidade do direito do fornecedor proceder a correcções de erros de facturação –, violar-se-á o princípio da proporcionalidade por excesso de protecção, uma vez que não se verificam quanto a eles as razões materiais que justificam esse regime. A sua estrutura organizativa e patrimonial permitir-lhes-ia lidar com as consequências do diferimento no tempo das correcções devidas a erro de facturação, nos mesmos termos que os utentes da “alta tensão”. Atribuir-lhes a mesma protecção conferida aos consumidores em “baixa tensão”, estender-lhes a defesa justificadamente conferida aos clientes domésticos e aos consumidores finais, equivale a ofender o princípio da proporcionalidade por excesso de protecção.
É certo que o princípio da proporcionalidade é um princípio constitucional estruturante da República Portuguesa como Estado de direito (artigo 2.º da CRP), a cuja observância os actos do poder público estão sujeitos de modo mais abrangente do que o que se manifesta nos lugares habitualmente recenseados como seus afloramentos explícitos no texto constitucional (p. ex.: artigo 18.º, n.º 2; artigo 19.º, n.ºs 4 e 8; artigo 28.º, n.º 1; artigo 30.º, n.º 5; artigo 65.º, n.º 4; artigo 272.º, n.º 2; artigo 266.º, n.º 2).
Porém, o seu domínio mais frequente de operatividade, como parâmetro de controlo de actos do poder normativo público, é o das medidas lesivas, restritivas ou ablativas de direitos ou, de qualquer modo, impositivas de encargos ou de sacrifício de posições jurídicas de quem a elas é sujeito.
Assim, embora seja abstractamente concebível a infracção à proporcionalidade por “excesso de protecção”, dificilmente esse excesso pode fundar a se um juízo de inconstitucionalidade por parte dos tribunais, formulado esse juízo de modo absoluto, i.e., avaliado o excesso em si mesmo, com referente exclusivo no conteúdo de protecção conferido a determinada posição jurídica, sem fazer intervir a perspectiva do sacrifício de um direito de outro sujeito ou da consequente desprotecção de outra posição jurídica.
Na verdade, quando o Estado concede a uma certa categoria de pessoas ou de situações uma protecção descabida, que se traduza num privilégio injustificado relativamente a outra ou outras categorias, o excesso converte-se, afinal, em violação do princípio da igualdade e só segundo esse parâmetro e na medida em que ele o consinta pode ser escrutinado. Ainda que analiticamente mediado pelas três máximas ou subprincípios em que a proporcionalidade se desdobra – princípio da adequação (as medidas restritivas devem revelar-se como um meio abstractamente idóneo para atingir o fim visado), princípio da necessidade ou da exigibilidade (essas medidas tem de ser exigidas para alcançar o fim em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo fim) e princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas para alcançar os fins pretendidos) –, metódica que fornece objectividade à apreciação jurisdicional, a formulação de um juízo de desproporcionalidade por excesso de protecção, um juízo de violação da proibição do excesso efectuado de modo absoluto sobre a medida que beneficia uma categoria ou uma situação sem o referente do outro interesse ou situação sacrificada dificilmente deixará de consistir numa invasão do espaço de discricionariedade legislativa.
Efectivamente, ao legislador cabe escolher, dentro do quadro constitucional (salvo, obviamente, quando da Constituição decorra a prossecução obrigatória de determinados fins) os objectivos a prosseguir e o modo de prossegui-los, designadamente nos domínios das políticas económicas e sociais. Por outro lado, a determinação da relação entre uma medida ou as suas alternativas e o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, geralmente, avaliações e prognoses complexas no plano empírico (social e económico). Ora, como se disse no Acórdão n.º 200/01, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação” na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações entre o estado que é criado através de determinada medida e aquele que dela resulta e que considera corresponder, em maior ou menor grau, à consecução dos objectivos visados com a medida adoptada (que, dentro dos quadros constitucionais, ao próprio legislador compete definir). Neste domínio, fora de casos de indefensabilidade manifesta das opções legislativas, a escolha do legislador democraticamente legitimado para proceder à escolha das políticas públicas a desenvolver num dado momento histórico e do modo de prossegui-las deve prevalecer sobre as avaliações ou as prognoses do órgão de controlo jurisdicional. Na verdade, fora de situações em que o Tribunal seja chamado a efectuar uma ponderação que permita sopesar outros interesses ou posições jurídicas afectadas pela medida – e o desproporcionado será, então, o sacrifício ou restrição desses outros direitos ou situações –, a censura das medidas legislativas por “excesso de protecção” sobrepõe-se ou pressupõe e, na prática, redunda num juízo crítico acerca da escolha das finalidades visadas pelo legislador ou na apreciação do acerto das opções tomadas. O âmbito da prognose legislativa não é, em princípio, controlável pela justiça constitucional. É esta uma limitação funcional que a jurisdição não pode transpor, na medida em que é aos órgãos de direcção política (ao legislador) que compete conformar a vida económica e social, movendo-se num plano de incerteza, por vezes geradora de soluções legislativas de efeitos discutíveis, para os quais o remédio está na vontade do corpo eleitoral. Fazer intervir o princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo do excesso de protecção em si mesmo resolver-se-ia numa apreciação da bondade material das opções do legislador aí onde não há vinculações constitucionais susceptíveis de densificação e controlo objectivos.
8. Por outro lado, deslocando a questão para o plano, mais corrente e de mais definido espectro, de ponderação entre os interesses beneficiados e os interesses atingidos com a medida - em último termo, é à defesa destes interesses que se dirige a intervenção da recorrente -, também a argumentação improcede.
Com efeito, não pode dizer-se que a introdução de prazos especialmente curtos de caducidade para a correcção dos erros de facturação imputáveis ao fornecedor (por deficiência dos equipamentos de medição de sua responsabilidade, por erro de leitura, de cálculo ou de processamento), mesmo quando o utente é um consumidor do serviço em “média tensão”, seja uma regulação jurídica que sacrifique desmesuradamente os interesses do fornecedor do serviço. Nada indicia que o estabelecimento de um prazo de caducidade de 6 meses inviabilize ou torne demasiado onerosa a correcção de tais erros que beneficiem essa categoria de utentes. Designadamente não há elementos para concluir que, nesse prazo, seja impossível ou que implique sobrecustos desrazoáveis para o fornecedor do serviço de fornecimento de energia eléctrica, necessariamente uma empresa dotada de elevado nível de organização, a adopção de medidas de gestão ou de mecanismos de controlo interno que permitam detectar e corrigir erros de facturação de tal natureza, eficientemente e em tempo útil.
9. Finalmente, não procede argumentar com a repercussão negativa que o excesso de protecção conferida a uma categoria de utentes tem sobre a qualidade ou o preço da prestação do serviço à generalidade dos consumidores.
Em primeiro lugar, esse prejuízo é indirecto e hipotético, não havendo uma relação de causalidade entre uma coisa e outra. As consequências da perda do direito de corrigir a facturação e exigir o pagamento por virtude da caducidade incidem directamente sobre o património do prestador do serviço, não sobre os restantes consumidores. Fazer suportar aos demais utentes das ineficiências de equipamento ou organização que geraram a perda de receita não é uma inevitabilidade. O que o regime legal obriga é a melhor organização por parte da empresa prestadora, adequando o seu funcionamento ao estímulo negativo de num prazo curto (mas não inviabilizador) o preço do fornecimento se tornar irrecuperável se cometer erros, não a que o fornecedor possa externalizar ou repercutir sistematicamente sobre os demais utentes os efeitos desfavoráveis dessa perda. E, seguramente, que o resultado não deve ser esse efeito perverso, nem é essa a intencionalidade do regime de protecção aos utentes. Salvo naquilo que é o risco técnico do negócio segundo padrões de boa organização e economicidade, a regulação deve obstar a que o fornecedor transforme em agravamento de tarifas ou perda de qualidade do serviço os custos decorrentes das suas deficiências de gestão ou funcionamento.
Essa possibilidade de repercussão ou de dispersão do resultado desfavorável de uma medida deste género pelo universo dos consumidores é, em último termo, questão de êxito das políticas assumidas de defesa dos utentes que extravaza o controlo de constitucionalidade. Aliás, todas as medidas de protecção aos consumidores ou a uma categoria de utentes projectam consequências nas condições gerais de prestação do serviço, com grande incerteza quanto aos resultados económicos e sociais. O princípio democrático exige que o legislador disponha de larguíssima margem de apreciação na escolha dessas políticas públicas no domínio económico e social.
10. Sustenta, seguidamente, a recorrente que, circunscrita à “alta tensão”, no estrito sentido técnico (tensão com valor compreendido entre 45 KV e 110 KV), a norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 – no presente recurso só interessa a dimensão normativa respeitante à caducidade –, enferma de inconstitucionalidade, por tratar desigualmente os fornecimentos em “alta e em média tensão”, quando é certo que a situação dos utentes de uma e outra categoria coincide nos aspectos básicos que podem importar para a adopção desse regime jurídico.
Na apreciação desta questão deve começar por se ter presente que, no regime dos serviços públicos essenciais, a regra consiste em submissão do credor a prazos especialmente curtos de prescrição e caducidade. Para todos os serviços abrangidos pelo diploma (e não apenas para o fornecimento de energia eléctrica) e para todos os utentes (e não apenas para os consumidores domésticos ou os meros consumidores finais), são afastados os prazos gerais de prescrição ou caducidade de créditos. Privilegiando o interesse da segurança jurídica, o legislador entendeu que o utente (todos os utentes) deveria ficar a coberto de inopinadas despesas extraordinárias, resultante da correcção retrospectiva de um erro que lhe não seja imputável. Daí a fixação de um prazo especialmente curto para o exercício desse direito de crédito, por forma que o montante em dívida não exceda limites suportáveis e a situação de incerteza se não prolongue, com a consequente dificuldade de correspondência entre a estrutura de custos e a formação dos preços. Passados esses prazos, é risco da empresa fornecedora e não do utente arcar com os prejuízos decorrentes de erros de facturação.
Esta é a regra, que a todos os utentes iguala na posição perante o prestador de serviços públicos essenciais e da qual o legislador só exceptuou o fornecimento de energia eléctrica em “alta tensão”. Esta categoria de utentes foi considerada não carecida dessa especial protecção ou, pelo menos, foi o legislador sensível, na procura do equilíbrio entre os interesses do prestador e os dessa categoria de utentes, a que não se justificava privar o fornecedor da faculdade de corrigir a facturação e receber o preço da energia efectivamente consumida. Distinguiu-se o utente de energia eléctrica em “alta tensão”, mas para lhe dar um tratamento de desfavor relativamente ao universo dos utentes de serviços públicos essenciais. Será constitucionalmente imposto igualar o utente que recebe a energia eléctrica em “média tensão” neste tratamento mais desfavorável que o legislador deu aos de “alta tensão”-
11. Como o Tribunal tem repetido (cfr., por todos, Acórdão n.º 232/03, in www.tribunalconstitucional.pt) o princípio da igualdade, princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global, postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais. O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada.
No n.º 1 do artigo 13.º (é esta a base constitucional que importa considerar, uma vez que a solução normativa não recorre a qualquer “categoria suspeita”), o princípio da igualdade apresenta-se ao juiz como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação do legislador. Sem que, no entanto, se lhe negue a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas conotadas com um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, eliminado o arbítrio, justificar o tratamento desigual. O princípio da igualdade pressupõe averiguação e valoração casuísticas da “diferença” de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
Isto posto, recorde-se que o ponto de partida do Tribunal, para efeito de confronto de qualquer solução normativa neste domínio dos serviços públicos essenciais com as exigências do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, tem de residir na constatação de que, com carácter de generalidade e universalidade, para todos os fornecimentos e para todas as categorias de utentes, a regra é a da caducidade em prazo especialmente curto. É assim também para os fornecimentos de energia eléctrica, de que beneficia a generalidade dos utentes, quer se situem na posição de consumidores em sentido estrito, quer de utilizadores profissionais. Num sistema assim concebido, o que pode ser sujeito a mais exigente escrutínio, face ao princípio da igualdade como proibição do arbítrio, é o tratamento excepcional de determinada categoria de consumos; não a inclusão de qualquer situação no regime geral vigente na matéria. Dito de outro modo, o primeiro universo de referência é o da regra, não o da excepção. Para as soluções que se afastem da regra é que o legislador tem de apresentar uma especial justificação; não para a delimitação negativa da excepção e, portanto, para a inclusão na regra. Num tal quadro normativo global, só poderá censurar-se o legislador, face ao princípio geral da igualdade, por não incluir uma determinada situação no âmbito do regime excepcional menos favorável do que o regime geral (especial), se a identidade ou semelhança dessa situação com aquelas que são incluídas no regime excepcional se apresentarem de total e indiscutível evidência.
Ora, não pode considerar-se arbitrária a delimitação do âmbito da excepção que passa pela distinção entre ser o serviço fornecido ao utente em média
ou em “alta tensão”. Não pode dizer-se que o legislador ao escolher este critério tenha feito uma opção para a qual não é possível apresentar qualquer fundamentação compatível com os critérios constitucionais ou destituída de coerência com os objectivos prosseguidos e os resultados previsíveis.
Com efeito, o fornecimento de energia eléctrica em “média tensão” (tensão entre fases cujo valor eficaz é superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV) ou em “alta tensão” (tensão entre fases cujo valor eficaz é superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV) é efectuado a utentes que a vão incorporar no seu processo produtivo (de bens ou serviços). Nesse aspecto – como nos aspectos essenciais do processo de determinação da tarifa e cálculo do preço dos consumos (cfr. Regulamento de Relações Comerciais, Anexo ao Despacho n.º 20 218/2009 da ERSE, in Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 2009 e Regulamento Tarifário do Sector Eléctrico, Anexo ao Despacho n.º 27 599/2009, in Diário da República, II Série, de 24 de Dezembro de 2009) – há substancial identidade entre uma e outra categoria de utentes.
Mas termina aí a certeza sobre a identidade de situações. De modo geral, é diferente a dimensão das empresas que recorrem a um e a outro tipo de ligação à rede pública ou de aquisição do serviço ou fornecimento. A ligação de “média tensão” é adequada a utilizações industriais ou comerciais, muito variáveis quanto ao tipo e dimensão e muito diversificadas quanto aos sectores de actividade económica (v. gr., indústria de componentes automóveis, metalúrgica, moldes, vitrificação, grande hotelaria, centros comerciais, aeroportos, hospitais, etc.). A ligação em “alta tensão” é geralmente utilizada por grandes empresas industriais que incorporam intensivamente a energia no seu processo produtivo (indústria siderúrgica, indústria da celulose, indústria de plásticos, indústria de adubos, serviços energéticos, etc.).
Na interpretação adoptada pela decisão recorrida, com a norma em causa o legislador optou por só excluir da protecção universalmente conferida aos utentes dos serviços públicos essenciais, relativamente ao fornecimento de energia eléctrica, os utentes com ligação em “alta tensão”. Para essa opção pode encontrar-se fundamento no facto de a generalidade dos utentes que entra nessa categoria serem grandes empresas e utilizadores intensivos de energia no processo produtivo. Características que por vezes estarão presentes, mas que não podem predicar-se com o mesmo grau de generalidade das empresas às quais a energia é fornecida em “média tensão”, muito mais diversificadas nos sectores económicos em que intervêm e variáveis na dimensão e na quantidade de energia consumida.
Ao tratar, no que respeita ao prazo de correcção de erros de facturação, os utentes em “média tensão” nos mesmos termos que trata os de “baixa tensão” e “baixa tensão especial” o legislador não introduz qualquer benefício em favor daqueles. Limita-se a dar-lhes o tratamento que, em geral e de modo universal (a todos os utentes e em todos os domínios) é conferido aos utentes de serviços públicos essenciais. Estão equiparados quanto ao consumo de energia eléctrica do mesmo modo que sucede quanto aos demais serviços essenciais. Face a esta regra, incumbe sobre quem pretenda que os utentes em “média tensão” devem ser tratados menos favoravelmente, por identidade de critério com os utentes em “alta”, o ónus da demonstração de que a norma em causa produz uma diferenciação arbitrária.
Ora, não há elementos que permitam ao Tribunal afirmar que a única solução compatível com o princípio da igualdade seria a equiparação dessa categoria de utentes àqueles a quem a energia é disponibilizada em alta (e muito alta) tensão. Designadamente, não há elementos empíricos – e não seria certamente impossível à recorrente, considerando a posição que ocupa no mercado de electricidade, demonstrá-los no processo – que permitam a afirmação de que, funcional e dimensionalmente, as duas categorias de utentes são indistinguíveis quanto à possibilidade de lidar com reclamações tardias de correcção de erros de facturação imputáveis ao fornecedor de energia ou às suas repercussões.
12. Aliás, como parâmetro de controlo do direito infra-constitucional, num quadro legislativo global semelhante àquele em que a norma se insere, o princípio da igualdade parece mais adequado para escrutínio de validade da diferenciação dos utentes em “alta” do que para impor a igualação a estes (no tratamento desfavorável) dos consumidores em “média tensão”.
Efectivamente, no caso não estamos perante a reclamação de alguém (de alguma categoria de sujeitos) contra um tratamento desigual que o atinja, proibindo-lhe o que a outros não proíbe ou restringindo-lhe uma possibilidade de acção que a outros não limita, ou conferindo um benefício, ou alargando uma possibilidade de acção a outros quando ao reclamante (à categoria considerada), na mesma situação, não confere essa posição de vantagem. Na verdade, o que a argumentação da recorrente verdadeiramente censura é a não fidelidade do legislador à opção que justifica o regime excepcional desfavorável para certa categoria de utentes de energia eléctrica. Com isso, mais do que propriamente a violação do princípio da igualdade, o que se critica é a não observância de um princípio de não contraditoriedade ou de congruência nas opções de base a que se subordinam as soluções legislativas. Se o legislador entendeu que se justificava excepcionar em função de determinado critério, deveria levar até ao fim essa diferenciação, consagrando-a com toda a extensão (de situações ou categorias) que o critério compreendesse. Mas, retomando para este ponto o que anteriormente se disse, julgar a norma inconstitucional com este fundamento traduzir-se-ia em invadir o espaço de discricionariedade legislativa, consistiria em censurar as avaliações de facto e as prognoses ou ponderações do legislador no aspecto económico e social.
Assim, o sentido normativo a que chegou a decisão recorrida não é uma opção censurável por violação do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar a recorrente nas custas, com vinte e cinco unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento do recurso pelas razões constantes do Acórdão N.º 321/2009).