Imprimir acórdão
Processo n.º 634/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso da decisão do 3ª Juízo, 2ª Secção dos
Juízos Cíveis do Porto, de 8 de Abril de 2009, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), na parte em que recusa a
aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a
interpretação defendida pelo Tribunal da Relação do Porto – segundo a qual
compete aos Juízos Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa
proposta nos termos do regime processual civil experimental, instituído pelo
Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, quando o respectivo valor exceder a
alçada do Tribunal da Relação, e não tenha sido requerida a intervenção do
tribunal colectivo –, com fundamento em inconstitucionalidade por violação dos
art.ºs 112.º, n.º 2 e l65.º, alínea p), da CRP.
2. O presente recurso emerge de acção declarativa que A. SA propôs contra B.
Ld.ª nos Juízos Cíveis do Porto, em que esta deduziu reconvenção, com a
consequente alteração do valor do processo.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«A presente acção foi intentada à luz do regime processual experimental aprovado
pelo DL. nº 108/2006, de 08/06.
O regime processual experimental aplica-se, designadamente, de acordo com a al.
b) do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, nos Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto.
Tal regime não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, já que
daquele regime não consta toda a regulamentação necessária à tramitação da
acção, havendo, assim, que recorrer ao Código de Processo Civil, enquanto
legislação subsidiária, no que não seja afastado pelo regime processual
experimental, nomeadamente às normas dos arts 305º e segs. do C.P.C. que regulam
o valor da causa.
Ora de acordo com o disposto no art. 308º, nº 2 do C.P.C., no caso de o Réu
deduzir reconvenção, o valor do pedido formulado pelo réu, quando distinto do
deduzido pelo Autor, soma-se ao valor deste e este aumento de valor produz
efeitos no que respeita aos actos e termos posteriores à reconvenção.
Nos presentes autos verifica-se que o Réu deduziu pedido reconvencional distinto
do deduzido pelos Autores, pelo que se soma ao valor deste.
Assim sendo, fixa-se o valor da causa em € 152,861,75.
A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto tem vindo a sufragar o
entendimento de que a competência para preparar e julgar uma acção declarativa
proposta nos termos do regime processual civil experimental instituído pelo DL.
nº 108/2006, de 8/06, quando o respectivo valor exceder a alçada da Relação e
não tiver sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, deve ser
atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, aos Juízos Cíveis.
Neste sentido foi já decidido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de
08/04/2008, 05/06/2008 e 30/09/2008, proferidos nos processos nºs 0820596,
0831362 e 0855853, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt.
A referida Jurisprudência apoia-se nos seguintes argumentos:
O DL. nº 108/2006, de 08/06, que aprovou o regime processual experimental, não
estabeleceu qualquer limite de valor para as acções declarativas cíveis
instauradas ao abrigo de tal regime, pelo que as mesmas podem ter valor superior
à alçada da relação.
O regime processual experimental aplica-se, designadamente, nos Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto e nos Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal
da Comarca do Porto, de acordo com o disposto nas als. b) e c) do artigo único
da Portaria nº 955/2006, de 13/09.
Não está prevista a aplicação de tal regime nas Varas Cíveis do Tribunal da
Comarca do Porto.
O DL. nº 108/2006, de 08/06, não prevê que no decurso da acção declarativa cível
instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a seguir, a
partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário.
Conclui, assim, que a acção cível instaurada nos termos do referido diploma
nunca poderá observar, em nenhum momento da sua tramitação, a forma de processo
comum ordinário, pelo que a competência originária para conhecer deste tipo de
acções pertence aos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e só no caso
das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo é que os Juízos
Cíveis deverão remeter o processo às Varas Cíveis para julgamento e posterior
devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da L.O.F.T.J..
Discordámos, com o devido respeito, da argumentação expendida, por se nos
afigurar que a mesma é susceptível de infringir o texto constitucional.
Com efeito, não se retira do teor do DL. nº 108/2008, de 08/06, que fosse
intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que
continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava anteriormente.
Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria nº 955/2006, de 13/09, alterar a
competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria
aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a
competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo.
De acordo com o disposto no art. 112º, nº 2 da Constituição da República
Portuguesa, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da
subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de
autorização legislativa.
Dispõe por sua vez o art. 165º, al. p) do mesmo diploma que é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre organização e competência
dos tribunais, salvo autorização ao Governo.
Não pode, assim, o Governo, sem autorização legislativa, alterar as normas de
competência dos tribunais, aprovadas por Lei.
A organização e competência dos tribunais sempre seria, de resto, matéria de
reserva de “acto legislativo”, entendendo-se como tal, nos termos do art. 112º,
nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as leis, os decretos-leis e os
decretos legislativos regionais e nunca matéria de simples portaria.
Todavia e se assim é, constata-se que a norma contida no artigo único da
Portaria nº 955/2006, de 13/09, quando interpretada no sentido defendido nos
Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima referidos, infringe o disposto
nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, ao considerar-se, por não estar prevista a aplicação do regime
processual experimental nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e por
não se prever, no DL. nº 108/2006, de 08/06, que no decurso da acção declarativa
cível instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a
seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário,
que a competência para conhecer das acções cíveis instauradas na Comarca do
Porto, de valor superior à alçada da Relação, na sequência da soma do valor dos
pedidos do autor e do reconvinte, pertence aos Juízos Cíveis e, só no caso das
partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo, é que as referidas
acções deverão ser remetidas às Varas Cíveis para julgamento e posterior
devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais, está a infringir-se, em nosso entender e ressalvando o
devido respeito por opinião contrária, a regra de competência estabelecida no
art. 97º, nº 1, al. a) da referida Lei.
Dispõe este último normativo que compete às Varas Cíveis a preparação e
julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal
da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo.
E certo que o nº 4 do mencionado preceito refere que são ainda remetidos às
Varas Cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam
originariamente da sua competência, nos casos em que a lei preveja, em
determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
Afigura-se, no entanto, que tal disposição se encontra formulada para os
processos especiais, originariamente da competência dos Juízos Cíveis.
Ora o regime processual experimental não configura um processo especial, já que
nos Juízos Cíveis do Porto, tal regime aplica-se na falta de outra forma de
processo aplicável, tal como resulta desde logo do art. 1º do DL. nº 108/2006 e
não poderá considerar-se especial uma forma de processo que, num certo tribunal,
se aplica na falta de outras.
O regime processual experimental configura-se antes como um processo comum nos
Juízos Cíveis do Porto.
Assim sendo e na medida em que tal regime não visou alterar as regras de
competência e não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, às
quais terá de recorrer-se enquanto legislação subsidiária, nomeadamente às
normas dos arts. 98º, nº 2 e 305º e segs. do referido diploma, impõe-se uma
interpretação da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006 conforme
com o disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República
Portuguesa.
Tal interpretação, em nosso entender e ressalvando sempre o devido respeito por
opinião contrária, apenas poderá ser feita no sentido de que, quando, por força
da reconvenção, o valor da acção instaurada nos Juízos Cíveis da Comarca do
Porto ultrapasse o valor para o qual detinham competência, os Juízos Cíveis
deixam de ser os competentes em razão do valor, devendo a acção ser remetida ao
tribunal competente, com a consequente alteração da forma do processo aplicável
nesse tribunal, no caso, o processo ordinário previsto no Código de Processo
Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto.
Decisão:
Na sequência do exposto:
a) recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por infracção
do disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República
Portuguesa, da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09,
com a interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima
referidos e, consequentemente,
b) julga-se aplicável à presente acção a forma de processo comum ordinário, por
força do disposto nos arts. 461º e 462º do Código de Processo Civil e
determina-se, em conformidade, que a presente acção passe a prosseguir os seus
termos sob a referida forma de processo.»
3. O relator proferiu despacho em que determinou a notificação das partes para
se pronunciarem sobre o possível não conhecimento do objecto do recurso, por lhe
parecer sustentável que a decisão recorrida não comporta efectiva recusa de
aplicação da norma que constitui objecto do recurso.
Apenas o Ministério Público respondeu, sustentando que a decisão recorrida deve
ser interpretada como adoptando, como razão fundamental e expressa para decidir
como decidiu, a recusa de interpretação da norma cuja apreciação de
constitucionalidade se pretende.
Ponderadas, face ao teor da decisão recorrida, de um lado as razões
do despacho do relator e do acórdão n.º 652/09 e do outro a argumentação do
Ministério Público, entende-se que não procede a objecção suscitada ao
conhecimento do objecto do recurso.
Efectivamente, a recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade,
da norma agora submetida a apreciação é desenvolvidamente fundamentada ao longo
do despacho recorrido e é expressa mediante uma proposição autónoma no
respectivo dispositivo. No contexto jurisprudencial nela invocado, este juízo
sobre a inconstitucionalidade da solução normativa em causa apresenta-se como a
razão determinante da decisão recorrida para não adoptar essa via interpretativa
adoptada pelo tribunal superior que, não fora essa razão de constitucionalidade,
o tribunal a quo seguiria. Retira-se do despacho recorrido que,
independentemente de reservas que no plano interpretativo pudesse manter ao seu
acerto, o juiz a quo só não se conformou com a orientação jurisprudencial que
refere porque se confrontou com o que, no seu entender, seria a
inconstitucionalidade da solução nela consagrada.
Cumpre, pois, passar ao conhecimento do objecto do recurso.
4. Questão de constitucionalidade em tudo idêntica à que no presente processo se
discute foi apreciada pelo Tribunal no acórdão n.º 22/2010, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, do seguinte teor:
“Ora, no referido acórdão [o Acórdão n.º 586/09, de 18 de Novembro disponível em
www.tribunalconstitucional.pt], o Tribunal Constitucional não julgou
inconstitucional a norma extraída do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de
13 de Setembro, na parte em que determina que o regime processual experimental,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, é aplicável aos Juízos
Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto. É a seguinte a fundamentação deste
acórdão:
“4. Em primeiro lugar, importa delimitar a questão de constitucionalidade que
está em causa nestes autos.
Se atentarmos no despacho proferido pela 3ª Secção do 2º Juízo Cível do Porto,
deve concluir-se que se trata de saber se o artigo único da Portaria n.º
955/2006, de 13 de Setembro, em execução do comando legislativo expresso pelo
n.º 1 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 08 de Junho, se encontra
ferido de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que o Governo teria
alterado a competência material dos tribunais judiciais – que, anteriormente à
vigência daquela norma, cabia às varas cíveis –, em violação da reserva de
competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, n.º 1, alínea
p), da CRP] e sem que dispusesse da competente autorização legislativa.
Vejamos então o teor das conclusões do próprio despacho:
«— “a competência originária para conhecer das acções declarativas cíveis de
valor superior à alçada da Relação (ainda que por força da dedução de pedido
reconvencional, cujo valor se soma ao da acção — art. 308. n.º 2, do Código de
Processo Civil,), instauradas ao abrigo do regime processual civil experimental
instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, pertence aos Juízos Cíveis”;
— esta (nova) distribuição de competências decorre da entrada em vigor e da
aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro;
— dispõe a al. p) do artigo 165.° (Reserva relativa de competência legislativa)
da Constituição da República Portuguesa: «É da exclusiva competência da
Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização
ao Governo:
(p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto
dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de
composição de conflitos»;
— até à entrada em vigor da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, a
distribuição de competências entre os Juízos Cíveis do Porto e as Varas Cíveis
do Porto era estabelecida pela Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais);
— ao dispor sobre a distribuição de competências entre os Juízos Cíveis do Porto
e as Varas Cíveis do Porto, o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de
Setembro, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação a al. p) do
artigo 165.° da Constituição da República Portuguesa;
— ao contrariar a distribuição de competências fixada pela Lei n.º 3/99, de 13
de Janeiro, o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, padece
de ilegalidade;
— no caso dos autos, a aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13
de Setembro, leva a uma designação do tribunal competente para a demanda
diferente da que resulta da aplicação da Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais;
— o tribunal deve recusar, no caso vertente, a aplicação da Portaria n.º
955/2006, de 13 de Setembro devendo aplicar a Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais e, por conseguinte, as normas de processo civil
previstas no Código de Processo Civil experimentalmente revogadas pelo
Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho;
— a acção vertente deverá ser tramitada desde o início da instância, na forma
processual aplicável por força do disposto no Código de Processo Civil, não
sendo de anular qualquer acto processual praticado, por se adequarem todos à
referida forma processual.
Decisão
Por todo o exposto, recusando a aplicação do artigo único da Portaria n.º
955/2006, de 13 de Setembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade
orgânica, julgo aplicável à acção vertente a forma de processo comum ordinária,
prevista no art. 461. ° do Código de Processo Civil.» (fls. 42 e 43)»
A norma desaplicada é, pois, o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de
Setembro, e não o n.º 1 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 08 de
Junho, pelo que será sobre a primeira que vai incidir o juízo deste Tribunal.
O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 108/2006 é a norma habilitante da
Portaria e dispõe o seguinte:
“Artigo 21º
Aplicação no espaço
1 – O presente decreto-lei aplica-se nos tribunais a determinar por portaria do
Ministro da Justiça.
(…)”
Note-se ainda que o referido Decreto-Lei foi aprovado ao abrigo da competência
legislativa partilhada do Governo [artigo 198º, n.º 1, alínea a), da CRP], sem
que tivesse havido prévia autorização legislativa da Assembleia da República.
Para execução de tal norma, a Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro,
determina, na alínea b) do seu artigo único que o regime processual experimental
previsto no Decreto-Lei n.º 108/2006, é aplicável, entre outros tribunais, nos
Juízos Cíveis da Comarca do Porto.
Ora, em função do valor do pedido (in casu, 34.643,93 €), o autor da acção que
corre nos autos recorridos instaurou-a perante as Varas Cíveis do Porto,
invocando expressamente como aplicável o Regime Processual Experimental, mas a
1ª Secção da 2ª Vara Cível do Porto, a quem os autos foram distribuídos,
julgou-se incompetente para dela conhecer, por despacho proferido em 19 de
Setembro de 2008 (fls. 20 a 23), tendo remetido os autos aos Juízos Cíveis do
Porto.
Por sua vez, confrontado com o preceito normativo supra aludido, a 3ª Secção do
2º Juízo Cível do Porto proferiu despacho cuja síntese acima se transcreveu,
tendo-se considerado também incompetente.
5. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre a
constitucionalidade da norma ora em apreço (cfr. Acórdão n.º 69/08, de 31 de
Janeiro de 2008, disponível in www.tribunalconstitucional.pt), mas fê-lo numa
perspectiva totalmente diversa, qual seja a de aferição exclusiva da sua
eventual inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade
(artigo 13º, da CRP). Naquele aresto, o Tribunal chegou, basicamente, à
conclusão que a norma desaplicada pela decisão recorrida não se afigura como
materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo
13º da CRP), na medida em que a natureza experimental do regime justifica a
criação de uma desigualdade, mínima e razoável, de tratamento entre situações
idênticas.
Não é, todavia, esta a questão de constitucionalidade que está em causa e nem os
argumentos então invocados para fundamentar a não inconstitucionalidade do
regime, designadamente a sua natureza experimental, podem ser transpostos para
este caso.
Com efeito, a repartição de competências entre os órgãos de soberania
constitucionalmente consagrada, bem como a reserva de competência parlamentar
não podem ficar dependentes do carácter definitivo ou temporário do regime em
apreço.
O critério que o Tribunal tem considerado, em jurisprudência firme e constante,
como aferidor da inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de
competência da Assembleia da República (com a consequente exclusão da
competência de outros órgãos) é o do carácter inovatório da norma.
6. Nos presentes autos, há que apreciar se a norma extraída do artigo único da
Portaria n.º 955/2006, na parte em que determina que é aplicável o regime
processual experimental aos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto,
padece de inconstitucionalidade orgânica por ter sido aprovada pelo Governo, sem
prévia autorização legislativa da Assembleia da República.
Por outras palavras, a questão que se coloca é de saber se a norma sub judice
procede, em termos inovatórios, ou não, à modificação da organização e
competência dos tribunais.
Se a resposta for afirmativa, então o Governo só poderia ter legislado mediante
autorização legislativa da Assembleia da República (artigo 165º, n.º 1, alínea
p), da CRP), não dispondo dela, a norma seria inconstitucional não só por
violação da reserva de competência da Assembleia da República, mas também por
violação da reserva de lei, dado que um acto regulamentar não poderia dispor
sobre a matéria em causa.
Se a resposta for negativa (por exemplo, porque a norma se limita a regular a
forma de processo), então não haverá inconstitucionalidade orgânica e o Governo
tem competência para legislar e regular a matéria.
7. Antes de averiguar qual o sentido do artigo único da Portaria n.º 955/2006,
vejamos, sinteticamente, qual o âmbito de aplicação do Decreto-Lei nº 108/2006.
Nas palavras de Paula Costa e Silva “o Decreto-Lei nº 108/2006 tem um âmbito de
aplicação ambicioso. Segundo o seu art. 1º, ele aplicar-se-á a todas as acções
declarativas comuns a que não corresponda processo especial e a acções especiais
para o cumprimento de obrigações especiais emergentes de contratos” (in “A ordem
do juízo de D. João III e o regime processual experimental”, Revista da Ordem
dos Advogados, 2008, p. 258).
No mesmo sentido se pronuncia Luís Filipe Brites Lameiras, “independentemente do
seu objecto ou do seu valor, todas as acções a que corresponderia o processo
comum, ou apontada forma especial se vão agora reger pelas regras (únicas),
constantes do RPE” (in Comentário ao Regime Processual Experimental, Coimbra,
2007, p. 16).
A extensão do âmbito de aplicação do Decreto-Lei é mais aparente do que real,
uma vez que a Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, veio restringi-lo.
E parafraseando, novamente, Paula Costa e Silva “o RPE, se foi pensado como
podendo ter uma aplicação a todo o processo declarativo cível comum, tem o seu
campo de aplicação restringido a quatro tribunais: Juízo de competência
especializada cível do Tribunal da Comarca de Almada, Juízos cíveis do Tribunal
da Comarca do Porto, Juízos de pequena instância cível da Comarca do Porto e
Juízos de competência especializada cível do Tribunal da Comarca do Seixal Cfr.
Portaria n. 955/2006, de 13 de Setembro)”.
8. Decorre claramente do preâmbulo da Portaria que ela se destina a determinar
quais os tribunais que, em concreto, aplicam o regime processual civil de
natureza experimental, criado pelo Decreto-Lei nº 108/2006, aplicável às acções
declarativas cíveis entradas a partir de 16 de Outubro de 2006.
A Portaria não se destina pois a regular a competência – âmbito de jurisdição –
de um concreto tribunal, mas antes a fixar, de entre os tribunais da Ordem
Jurídica Portuguesa, quais os que, no âmbito das suas competências legais, e
sublinhe-se, que é apenas no âmbito das competências que a lei lhes atribui – as
devem exercer aplicando um regime processual especial – o regime processual
experimental.
Segundo o diploma – e para o que in casu nos interessa – os Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto tramitarão acções, por aplicação do regime
processual experimental, a que, até à data da sua entrada em vigor, se aplicava
uma forma de processo comum. Nada se diz no diploma quanto à competência dos
tribunais, pelo que não se confere nenhuma competência aos juízos cíveis para
tramitarem acções que ultrapassem a alçada da Relação.
9. Aliás, a competência dos tribunais continua a estar fixada na Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) – a Lei nº 3/99, de
13 de Janeiro. Assim, o artigo 97º fixa a competência das varas cíveis, o artigo
99º estabelece a competência dos juízos cíveis e o artigo 101º determina a
competência dos juízos de pequena instância cível, os quais devem julgar por
aplicação da lei geral e isso não é alterado pela portaria em análise.
A Portaria não confere, portanto, a varas cíveis competências que pertençam a
juízos cíveis, nem vice-versa. Ou seja, a Portaria não desloca, em termos
inovatórios, a competência de uns tribunais para outros.
Com efeito, com a aprovação do Decreto-Lei que instituiu o regime processual
experimental somente se pretendeu “criar um regime de tramitação simples e
flexível, conferindo ao juiz um papel determinante na direcção do processo,
permitindo-lhe dentro de certos limites e em colaboração com as partes, que
prescinda de actos que considere inúteis ou desadequados e que pratique outros
que julgue apropriados” (Susana Antas Videira, “Regime processual civil
experimental – algumas considerações do ponto de vista jurídico-constitucional”,
Scientia Jurídica, 2007, p. 105 e 106)
Ou seja, pretendeu-se criar uma forma de processo única sujeita ao princípio da
gestão, aplicável a todos os tribunais cíveis a que não caiba regime especial.
Trata-se de uma tramitação flexível que funciona como uma espécie de paradigma e
que não deve prejudicar o dever de gestão processual. Esta tramitação única será
tendencialmente aplicável aos processos a que actualmente se aplica a forma de
processo declarativo comum, consequentemente o elemento relevante para o
mencionado Decreto-Lei é a forma de processo e não a competência do tribunal.
Como afirma Mariana França Gouveia, “(…) nota positiva é a eliminação do diploma
de diferenças de regime em função do valor da causa”. Trata-se de “um tipo de
processo que não distingue em função do valor da causa”. (in Regime Processual
Experimental, Anotado, Coimbra, 2006, p. 30 e 31),
Se, porventura, a portaria tivesse vindo fixar que as varas ou os juízos de
pequena instância tramitariam as acções, segundo o regime processual
experimental, estaria dispondo que os tribunais com competência de valor
superior à alçada da Relação – as Varas – ou tribunais cujo valor da acção se
contivesse até à alçada de primeira instância – juízos de pequena instância –
tramitariam as causas, não por aplicação da forma de processo ordinário ou
sumaríssima, respectivamente, mas de acordo com a forma prevista no regime
processual experimental.
E nem a vocação universal do Decreto-Lei, no que respeita à forma de processo,
colide com as já referidas competências dos tribunais cíveis fixadas na LOFTJ.
A norma do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro,
interpretada com o sentido que acabámos de ver, não bole com a organização e
competência dos tribunais, mas antes com a tramitação processual, pelo que não
se enquadra na matéria de reserva relativa da Assembleia da República nem de
reserva de lei.
Em suma, a norma do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro,
não é inconstitucional.”.
É para esta fundamentação que, sem necessidade de mais desenvolvimentos, também
agora se remete, concluindo-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma
que constitui o objecto do presente recurso.
5. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Não julgar inconstitucional o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de
Setembro, na interpretação segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto
preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual
civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho,
quando o respectivo valor exceder a alçada da Relação e não tenha sido requerida
a intervenção do tribunal colectivo;
B) E, em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Lx., 14/4/2010
Vítor Gomes (vencido quanto ao conhecimento, nos termos do acórdão n.º
652/09)
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento, no essencial, pelas razões
constantes do acórdão N.º 652/09)