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Processo n.º 441/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
(Conselheira Maria João Antunes)
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
Recorrente A. e Recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Tribunal de 25 de Março de 2009.
2. Por sentença de 28 de Março de 2008, o Tribunal Judicial da Comarca de
Condeixa-a-Nova condenou o Recorrente pela prática, em co-autoria, de um crime
de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível no artigo
105.º, n.ºs 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, este Tribunal, pelo
acórdão agora recorrido, negou provimento ao mesmo, confirmando a sentença
recorrida. Tendo sido dado como provado que A. exercia a administração de facto
da sociedade B., S.A., foi condenado pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, na forma continuada, ao abrigo do disposto nos artigos 105.º,
n.ºs 1 e 5, e 6.º do RGIT e 30.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (CP). Da decisão
importa reter o seguinte:
“2. O recorrente A. argumenta que o artigo 6.º do RGIT não abrange a
responsabilidade dos administradores de facto.
Prescreve tal preceito:
(…)
A disciplina normativa pré-vigente, do RJIFNA, era idêntica.
Segundo o recorrente, só os gerentes e administradores que o sejam pela forma
legal ou contratualmente estabelecida, a que por comodidade chamaremos de
direito, e não já os que o sejam apenas de facto, podem ser sujeitos activos do
crime de abuso de confiança fiscal.
Trata-se de questão controversa.
Disse, a este respeito, a Relação do Porto, no seu Acórdão de 24 de Março de
2004 (Processo: 0342179):
‘Este entendimento da recorrente esbarra com a literalidade do art.º 6.º de
ambos os diplomas. Este normativo, art.º 6º - na senda do art.º 12º do Código
Penal - alarga a responsabilidade penal e consequentemente a punibilidade pela
actuação em nome de outrem, quando o agente actuou voluntariamente como titular
dos órgãos de uma pessoa colectiva, mesmo quando o respectivo tipo de crime
exija certos elementos que a lei descreve. A formulação legal inculca o
contrário do alegado pela recorrente: a lei diz muito claramente, naquele
português claro, para militar entender, na impressiva formulação de Antunes
Varela, que os crimes de que tratam o RJIFNA e o RGIT, e concretamente os crimes
de abuso de confiança contra a segurança social, podem ter como sujeitos activos
gerentes de facto, como é o caso da recorrente. Para tanto basta, além do mais
que agora irreleva referir, que essas pessoas actuem voluntariamente como se
tivessem essas qualificações e como se fossem titulares de órgãos ou
representantes da pessoa colectiva ou sociedade.
O legislador, avisado como é e conhecedor de que nesta área as cifras negras são
grandes [Cfr. Preambulo do Código Penal e Lopes Rocha, A responsabilidade das
Pessoas Colectivas, CEJ 1085, pág. 110], no desenho do ilícito típico das
condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas,
desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera
associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de
direito ou meramente de facto. A vingar a tese da recorrente, como justamente
acentua o assistente, certamente se generalizariam as situações de facto
destinadas a eximir os agentes de factos delituosos às sanções penais. A
informalidade, referida no conhecido relatório Mckinsey, dominaria então a
economia.
A eficaz solução legislativa, ditada por conhecidas e acima referidas razões de
política criminal, não viola pois os princípios da legalidade e do estado de
direito.’
Concordamos com este entendimento.
No plano não já da responsabilidade individual do administrador de facto, mas
antes da imputação à pessoa colectiva e entidade fiscalmente equiparada,
julgamos ser dominante na jurisprudência o entendimento de que tal imputação
ocorre por infracções praticadas por meros dirigentes ou representantes de
facto, posição que teve o assentimento do Tribunal Constitucional, que no seu
Acórdão n.º 395/2003 considerou não ser inconstitucional a interpretação do
artigo 7.º do RJIFNA segundo a qual a expressão «órgãos ou representantes»
incluía os órgãos ou representantes de facto.
Em todo o caso, existem duas questões distintas: a dos critérios de imputação de
responsabilidade às pessoas colectivas e equiparadas, que constam do artigo 7.º
do RGIT; a questão da responsabilidade dos agentes individuais por factos
praticados em nome e no interesse da pessoa colectiva, regulada no artigo 6.º do
RGIT – que é a norma correspondente ao artigo 12.º do Código Penal. Nada obriga
a que existam soluções simétricas para as duas questões – que são claramente
distintas.
O artigo 12.º do Código Penal teve sobretudo em vista alargar a responsabilidade
de determinadas pessoas singulares aos crimes próprios ou específicos em que os
respectivos elementos típicos se não verificam na pessoa do agente, mas na do
representado – tem, por isso, a natureza de uma cláusula de extensão da
responsabilidade penal ou da punibilidade.
A expressão adverbial ‘mesmo quando’ empregue no n.º 1 do artigo 12.º, significa
que há responsabilidade por actuação em nome de outrem também nas hipóteses
indicadas nas respectivas alíneas a) e b) do artigo.
Assim, o artigo 12.º do Código Penal e o artigo 6.º do RGIT definem a
responsabilidade penal de quem actua como titular de órgãos, membro ou
representante de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto,
nos casos em que, agindo nessa qualidade, a sua acção corresponda a um tipo de
crime, mesmo quando o respectivo tipo legal prevê a punição de crime próprio,
isto é, crime que exige a verificação de determinados elementos pessoais ou uma
actuação no interesse próprio e esses elementos concorram na pessoa colectiva,
sociedade ou mera associação de facto e não naqueles administradores ou
representantes.
Afigura-se-nos que o referido artigo 12.º – a que corresponde o artigo 6.º do
RGIT –, no texto resultante da revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de Março, ao delimitar o círculo de sujeitos que agem em nome de
outrem que são jurídico-penalmente responsáveis, mediante as expressões actuação
«como titular de um órgão de uma pessoa colectiva» e «em representação legal ou
voluntária», abrange a actuação de administradores de facto, sendo certo que nem
o artigo 12.º, n.º1, do Código Penal, nem o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 28/84,
de 20 de Janeiro (Delitos económicos), nem o artigo 6.º do RGIT se referem aos
órgãos, mas a quem agir voluntariamente como órgão.
Por outras palavras: seguindo a letra da lei, o artigo 7.º do RGIT, tal como o
artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, só responsabilizam as pessoas colectivas
pelas infracções praticadas pelos seus órgãos, diferentemente do que acontece no
artigo 6.º do RGIT e no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 28/84, em que basta que o
agente actue como órgão, arrogando-se essa qualidade.
Agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas
antes exercer um poder correspondente ao do órgão.
O recorrente A., não sendo administrador «de direito» da sociedade-arguida,
exercia, «de facto» essa administração, conjuntamente com o seu co-arguido,
conforme resulta da matéria de facto provada.
Ainda que lhe competisse, essencialmente, a área comercial da empresa, a decisão
de não entregar o IVA é de ambos os arguidos e ambos co-dirigiam e partilhavam
os destinos da sociedade, sendo ambos responsáveis, nos termos dos factos
assentes, não se podendo dizer que estivesse fora da sua disponibilidade
providenciar, no âmbito da co-administração, para que o IVA fosse entregue.
Havendo co-administração, entre um administrador de direito e um administrador
de direito, ainda que estejamos perante um crime omissivo puro ou próprio – como
é o crime de abuso de confiança fiscal –, entendemos que nada obsta à co-autoria
do ilícito por ambos, posto que ambos exerciam a administração, ainda que
repartindo áreas, e ambos co-decidiram a actuação a tomar em termos de
cumprimento das obrigações fiscais em sede de IVA.
Não identificamos que com tal entendimento se origine qualquer contradição
dentro do sistema.
Repare-se que o n.º 5 do artigo 227.º do Código Penal, relativo à insolvência
dolosa, que efectivamente menciona «quem tiver exercido de facto a respectiva
gestão ou direcção efectiva» foi introduzido apenas pela Lei n.º65/98, de 2 de
Setembro.
Antes, o n.º 3 do mesmo artigo já previa a punição do «terceiro que praticar
algum dos factos descritos no n.º1 ».
Esse n.º 3 consentia o entendimento de que abrangia a actuação de todas as
pessoas singulares que agissem em nome do devedor (com conhecimento e em
beneficio deste), pois tais pessoas podiam ser consideradas «terceiros» em
relação ao devedor, sendo, então, a pena especialmente atenuada.
O novo n.º5 introduzido pela Lei n.º65/98, de 2 de Setembro, pretendeu, a nosso
ver, esclarecer cabalmente a questão, de forma a afastar aquela atenuação da
pena nas situações aí previstas.
Por outro lado, o artigo 8.º, n.º1, do RGIT, não rege sobre responsabilidade
criminal, mas antes sobre responsabilidade civil por substituição,
compreendendo-se que a sua redacção contraste com a do n.º 1 do artigo 6.º, que
rege sobre responsabilidade criminal.
Assim interpretados os preceitos legais em apreço, não se identifica, a nosso
ver, qualquer inconstitucionalidade do artigo 6.º do RGIT na acepção de que
abrange a punição do administrador de facto, designadamente por violação dos
princípios da tipicidade e da legalidade criminal (sobre a responsabilidade dos
administradores de facto, ver Germano Marques da Silva, Responsabilidade penal
das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pp.
234, 243 a 245, 294 e segs., especialmente pp. 315 e segs.).
Improcede, pois, a pretendia exclusão da responsabilidade do recorrente A., com
fundamento em ser administrador de facto.”
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso para apreciação da
conformidade constitucional da norma (ou interpretação da norma) do artigo 6º do
Regime Geral das Infracções Tributárias, na medida em que esta inclui no seu
âmbito incriminatório a figura do “administrador de facto”, por desrespeitar “o
princípio da segurança jurídica, o da tipicidade e o da legalidade criminal
(art. 29º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa).”
4. Notificado para alegar, o Recorrente concluiu o seguinte:
“I – O recorrente suscitou oportunamente a questão da inconstitucionalidade do
art. 6.º, n.º 1 do RGIT ao Tribunal da Relação de Coimbra.
II – O Tribunal da Relação de Coimbra veio confirmar a validade da norma
impugnada por Acórdão que não admite recurso ordinário.
III – Recorre-se agora ao Tribunal Constitucional com fundamento no disposto na
alínea b) do nº 1 do art. 280º da Constituição da República Portuguesa e na
alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal constitucional.
IV - A norma do art. 6.º, n..º 1 do RGIT em momento algum menciona a figura do
administrador de facto.
V - Sendo o ordenamento jurídico um todo unitário, resulta óbvio que se o
legislador desejasse a punição dos meros ‘administradores de facto’ pela prática
de crimes fiscais, a norma do art. 6.º, n.º 1 do RGIT faria referência expressa
aos mesmos ou, em alternativa, como se fez no código penal, cada tipo específico
em que essa incriminação fosse recomendável incluiria essa menção na sua
redacção tal como consta no art. 227.º, n.º 5 do CP.
VI - Não existe no ordenamento jurídico português a definição do que é que possa
ser (ou de que é o que faz) um administrador de facto.
VII - A inclusão jurisprudêncial do administrador de facto na previsão da norma
do art. 6.º, n.º 1 do RGIT deverá ser julgada inconstitucional por configurar um
caso de autêntica analogia incriminatória.
VIII – Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a norma em causa possui um
âmbito incriminatório extremamente vago que não permite a delimitação exacta dos
casos em que a actuação em nome outrem é relevante para efeitos da prática de
crimes de natureza fiscal.
IX – Ambos cenários ofendem o sub-princípio da confiança inerente ao princípio
do Estado de Direito Democrático e o princípio da legalidade criminal.
X – Por conseguinte, a punição do ‘administrador de facto’ consentida pelo art.
6.º, n.º 1 do RGIT, torna essa disposição legal materialmente inconstitucional,
por violação do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.º 1 da nossa lei fundamental.
XI – Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade parcial da norma
constante no art. 6.º, n.º 1 do RGIT com a consequente projecção dos respectivos
efeitos a nível do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra,
Tribunal que deverá acatar o juízo de inconstitucionalidade expresso
reformulando, em conformidade, a decisão proferida.”
5. O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
“1. Apesar do artigo 6º do RGIT ter uma redacção idêntica à do artigo 12º. do
Código Penal, os elementos de interpretação – independentemente do seu valor -
utilizados para a interpretação do referido artigo 12º., não devem ser
acriticamente transpostos para a interpretação daquele artigo 6º.
2. Na verdade, estando em causa a responsabilidade penal de pessoas colectivas e
estando o artigo 6º. do RGIT integrado no direito penal fiscal, estas
especificidades implicam a adopção de critérios menos formalistas na
interpretação daquela norma.
3. Neste contexto - e tendo em atenção que o essencial é a “relação material que
o representante estabelece com o bem jurídico” que a norma visa proteger -, a
extensão da responsabilidade criminal aos “administrados de facto” da sociedade,
surge como algo de lógico e natural.
4. Dada a natureza da criminalidade em que nos situamos (nº 2), a interpretação
normativa em causa é a adequada às finalidades do sistema punitivo.
5. A norma objecto de recurso, não viola, pois, nem o artigo 2º, nem o artigo
29º, nº 1 (princípio da legalidade), ambos da Constituição.
6. Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b),
da LTC, para apreciação do artigo 6º do Regime Geral das Infracções Tributárias,
na medida em que este inclui no seu âmbito incriminatório a figura do
administrador de facto [de uma sociedade].
O artigo 6.º do RGIT tem a seguinte redacção:
(Actuação em nome de outrem)
1 – Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante
de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída ou de
mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de
outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do
representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante
actue no interesse do representado.
2 – O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico
fonte dos respectivos poderes.
O Recorrente indica como parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma
que é objecto do presente recurso o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, de
acordo com o qual:
Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer pena ou medida de segurança
cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
A questão de constitucionalidade posta a este Tribunal é a de saber se o artigo
6.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de a expressão “quem agir
voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o
administrador de facto viola ou não um dos corolários do princípio da legalidade
em matéria criminal – a proibição do recurso à analogia incriminatória (nullum
crimen sine lege stricta).
Trata-se, no caso, à semelhança do que sucedeu nos autos que deram origem aos
Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 395/2003 e 183/2008 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), “da adopção de um critério normativo, dotado de
elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma
pluralidade de situações concretas”, que é por isso mesmo susceptível de
controlo por parte do Tribunal Constitucional.
7. Atento o teor do acórdão recorrido é de concluir que para o Tribunal da
Relação de Coimbra a expressão, constante do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT, “quem
agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade” abrange o
administrador de facto, bastando “que o agente actue como órgão, arrogando-se
essa qualidade. Agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do
órgão, mas antes exercer um poder correspondente ao do órgão.”
Em abono deste entendimento estaria a comparação da letra dos artigos 7.º do
RGIT e 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, com a do artigo 6.º (nos
primeiros, responsabilizam-se as pessoas colectivas pelas infracções praticadas
pelos seus órgãos; no segundo, basta que o agente actue como órgão, arrogando-se
essa qualidade); a introdução do n.º 5 do artigo 227.º do CP, por via da Lei n.º
65/98, de 2 Setembro; e a irrelevância do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, por este
reger sobre “responsabilidade civil por substituição.” Da adesão aos fundamentos
do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Março de 2004 resulta,
ainda, que aquele entendimento seria imposto pela letra do artigo 6.º; pelo
elemento histórico, na medida em que “no desenho do ilícito típico das condutas
voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas o legislador
desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera
associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de
direito ou meramente de facto”; e pela justificação político-criminal da
solução.
8. A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente,
se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das
palavras da lei, se transpõe a barreira da moldura semântica do texto, “criando
situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das
normas penais e consequentemente privando estas normas da possibilidade de
cumprirem a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a
lesão de relevantes bens jurídicos” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
395/2003). O fundamento e o conteúdo de sentido do princípio da legalidade em
matéria criminal impõem que a norma se contenha no quadro de significações
possíveis das palavras da lei, sob pena de a interpretação permitida dar lugar à
analogia proibida.
9. Como é sabido, a letra do artigo 7.º do RGIT não tem obstado a que o
intérprete lá inclua o representante de facto, apesar de a lei referir as
infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas,
sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades
fiscalmente equiparadas (nesse sentido, pronunciando-se pela conformidade
constitucional de tal interpretação, cfr. o citado Acórdão n.º 395/2003).
Enquanto que ali se questionou a imputação das pessoas colectivas por infracções
cometidas por administradores de facto, a questão que se coloca agora é
precisamente a inversa, importando aferir se, face ao artigo 6.º do RGIT, é
admissível a imputação de quem exerceu a administração de facto da sociedade.
10. O problema da imputação dos gerentes e administradores de facto é discutido
na doutrina a propósito do artigo 12.º do CP, que tem a seguinte redacção:
Artigo 12.º
Actuação em nome de outrem
1. É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa
colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou
voluntária de outrem (…)
2. A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a
aplicação do disposto no número anterior.
10.1. Através desta norma pretendeu-se “estender a punibilidade dos tipos legais
da parte especial, que supõem determinados elementos pessoais ou uma actuação no
interesse próprio, também àquelas pessoas em que tais elementos típicos se não
verificam (e que portanto não são destinatários próprios ou possíveis da norma
incriminadoras), mas que todavia actuaram como órgãos ou representantes de uma
pessoa relativamente à qual se verificavam aqueles elementos pessoais ou aquele
interesse próprio” (FIGUEIREDO DIAS, “Pressupostos da punição e causas que
excluem a ilicitude e a culpa”, Jornadas de Direito Criminal. O Novo Código
Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, 1983,
p. 51. Cf., ainda, “Introdução” constante do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de
Setembro, ponto 15.).
10.2. A inclusão dos administradores ou representantes de facto na previsão da
norma foi discutida logo na Comissão Revisora do Código Penal, demonstrando as
respectivas Actas que “o problema do eventual alargamento do conceito de
representação de facto é conhecido do legislador e foi por ele resolvido no
sentido de que é necessário que haja um título que confira poderes ao
representante, excluindo, deste modo, um conceito de representação que
abrangesse a representação de facto.” (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA,
Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e
representantes, Lisboa, Editorial Verbo, 2009, p. 242).
10.3. No sentido de que este artigo 12.º do CP não inclui a punibilidade dos
administradores de facto, pronuncia-se PEDRO CAEIRO, sustentando que só assim se
compreende a alteração aos crimes falenciais resultante da Lei n.º 65/98, de 2
de Setembro. Desta alteração legislativa resultou a inclusão do então n.º 5 do
artigo 227.º do CP [actual n.º 3], correspondentemente aplicável aos artigos
228.º e 229.º [bem como ao artigo 227.º-A], nos termos do qual:
Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2
deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera
associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou
direcção efectiva (…).
Assim, para este autor, “tal inovação só faz sentido se se entender que a
actuação dos chamados gerentes e administradores de facto não se encontra
coberta pela disposição do artigo 12.º” (cfr. “A responsabilidade dos gerentes e
administradores por crimes falenciais na insolvência de uma sociedade
comercial”, Colóquio “Os quinze anos de vigência do Código das Sociedades
Comerciais”, Coimbra, Fundação Bissaya Barreto, 2001, p. 93. Cfr. igualmente, do
mesmo autor, a anotação ao artigo 227.º do CP no Comentário Conimbricense do
Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp.
411-412).
10.4. Embora não se referindo à situação específica dos administradores ou
gerentes de facto, TERESA SERRA sustenta uma interpretação deste artigo 12.º do
CP focada na posição material que o agente em questão tem relativamente ao bem
jurídico, posição essa que lhe permite agredi-lo de modo privilegiado: “A
ampliação da autoria realizada pela cláusula de actuação em nome de outrem tem
de se fundar em princípios e estruturas próprias do direito penal. (…) [O]
centro de gravidade da actuação em nome de outrem não é colocado na relação
interna de representação, mas reside correctamente na relação material que o
representante estabelece com o bem jurídico. Assim, não se imputa ao
representante nada que lhe seja alheia ou estranho: a sua responsabilidade
resulta, única e exclusivamente, de fundamentos que nele próprio concorram
material e pessoalmente.” (cfr. “Actuação em nome de outrem no âmbito
empresarial, em especial no exercício de funções parciais. Observações breves”,
Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora,
2003, pp. 608-609).
10.5. Já GERMANO MARQUES DA SILVA sustenta que “no caso do denominado
administrador de facto (…) o intérprete não é chamado a qualquer juízo de
integração, simplesmente deve clarificar se a expressão ‘age voluntariamente
como titular de um órgão’ pode compreender ainda o caso de quem pratica
efectivamente actos em nome da sociedade embora o acto fonte dos respectivos
poderes não seja perfeito ou nem sequer exista segundo o direito privado.” (cfr.
Responsabilidade penal das sociedades…, cit., p. 316).
Este autor enfatiza igualmente a especial posição dos agentes em causa para a
lesão do bem jurídico: “agente destes crimes só pode ser quem tenha o domínio
para realizar a conduta típica ou quem infrinja um dever especial requerido pelo
tipo, com independência do regime jurídico obrigacional interno (relativo à
sociedade) e externo (relativamente a terceiros com quem mantém relações
jurídicas).” (ob. cit., p. 317). Conclui então que a responsabilidade penal dos
administradores a que se referem os artigos 12.º do CP e 2.º do Decreto-Lei n.º
28/84, de 20 de Janeiro, “não se limita aos administradores e representantes de
direito, mas abrange também os administradores de facto (…)” (ob. cit., pp. 317
e seguintes). Nesse sentido concorrem não só interesses de política criminal
como o próprio elemento literal do tipo. Por um lado, a ocorrência frequente de
situações em que a nomeação do administrador enferma de vícios jurídicos –
designadamente culposos – justifica a não existência de tal lacuna de
punibilidade. Por outro lado, o que o tipo exige é a actuação voluntária como
órgão. Ora, “agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do
órgão, mas exercer um poder correspondente ao do órgão e por essa via lesar o
bem jurídico. Trata-se agora de responsabilidade por facto próprio e se o agente
voluntariamente viola o bem jurídico, actuando como se fosse efectivamente
titular do órgão social, não há razão substantiva, nem formal, para excluir a
sua responsabilidade.” (cfr. ob. cit., p. 319).
10.6. A propósito dos crimes falenciais, também MARIA FERNANDA PALMA entende ser
de prescindir da formalização jurídica da representação, impondo-se, no mínimo,
“a aparência de representação ou de actuação como titular de órgão da pessoa
colectiva. A aparência jurídica permitirá, aliás, que meros sócios ou outros
agentes que não sejam titulares, do ponto de vista jurídico, dos órgãos da
pessoa colectiva, mas o sejam apenas de facto, realizem o tipo.” (cfr. “Aspectos
penais da insolvência e da falência”, Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, volume XXXVI, n.º 2, 1995, p. 412).
11. Regressemos ao objecto do presente recurso, focado no artigo 6.º do RGIT.
Sublinhe-se que as considerações expendidas a propósito da interpretação de
normas do direito penal clássico não são susceptíveis de uma transposição
acrítica para áreas do direito penal tributário.
11.1. Neste campo específico da fiscalização judicial da não violação do
princípio da tipicidade, o Tribunal Constitucional deve restringir a sua
actividade à averiguação da conformidade da interpretação normativa em causa com
o alcance semântico do tipo. A intentio legislatoris apenas releva se e na
medida em que alcança correspondência na “letra” da lei. O mesmo se diga
relativamente ao elemento sistemático e a considerações de índole teleológica. A
certeza e previsibilidade do tipo incriminatório apenas se atém ao conteúdo que
é possível extrair directamente do mesmo. A exigência de cognoscibilidade prévia
das condutas incriminadas não pode abranger um esforço exegético tal que integre
considerações relativas a outros elementos de interpretação jurídica,
nomeadamente sistemáticos e históricos, que não os que se relacionem com o
conteúdo semântico do ilícito. Não significa isto que tais elementos não são
relevantes na interpretação de preceitos criminais. São-no, não só a propósito
de formulações de iure condendo mas também enquanto auxiliares da tarefa prévia
de averiguação do sentido normativo dos mesmos. Mas, em sede do princípio
constitucional da tipicidade criminal, não podem ser apresentados como
argumentos decisivos da asserção final que conclua pela violação, ou não,
daquele princípio fundamental.
11.2. Assim, o que interessa apurar é se a expressão Quem agir voluntariamente
como titular de um órgão engloba, ou não, os casos dos administradores de facto.
De modo a consagrar a punibilidade de tais administradores, a única obrigação
que impende sobre o legislador é a de formular um preceito-tipo que contenha na
sua previsão a actividade característica da administração de facto, não se
encontrando o mesmo vinculado às construções dogmáticas de outros ramos do
direito.
11.3. Semanticamente, a expressão Quem agir voluntariamente como titular de um
órgão apenas impõe a actuação (voluntária) em determinadas vestes (i.e. como
titular de um órgão). Não exige nem a detenção de título suficiente nem a
validade de tal título. Como realça GERMANO MARQUES DA SILVA, “agir
voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas exercer
um poder correspondente ao do órgão e por essa via lesar o bem jurídico.” (cfr.
ob. cit., p. 319, sublinhado adicionado).
Deste modo, a conduta típica apresenta-se apta a integrar, no seu elemento
semântico, não só a conduta de quem age nas vestes de titular de um órgão como
quem se apresenta nessa aparência, independentemente da inexistência de qualquer
ligação funcional formal efectiva ou de eventuais vícios que rodeiam a mesma. O
que o tipo exige, de modo a permitir uma imputação integrada nas fronteiras do
princípio da tipicidade, é a actuação voluntária como ou enquanto titular do
órgão. Esta previsão abrange assim os casos em que, como sucede nos autos, pelo
exercício de facto das funções de administração societária é lesado o bem
jurídico tutelado. O preenchimento do tipo prescinde, deste modo, de uma
qualquer formalização, ainda que incompleta ou irregular, da relação de
administração ou gerência societária.
12. A averiguação da (in)constitucionalidade de interpretações normativas em
face do princípio da legalidade criminal na vertente de tipicidade deve focar-se
na determinação do alcance semântico do tipo criminal, verificando se a
interpretação em causa ultrapassa, ou não, tais fronteiras. O que não se
verifica no caso em apreço.
Não se encontrando ultrapassada a “barreira semântica”, a interpretação
normativa em causa cabe no leque de sentidos que é possível assacar ao preceito.
Deste modo, resta concluir pela não verificação da violação princípio da
legalidade criminal consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
III – Decisão
13. Nestes termos acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional, negar
provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) uc.
Lisboa, 13 de Abril de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento do recurso, conforme declaração
anexa)
Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração de voto que se anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira,
Vencido, nos termos da declaração que junto.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso, no essencial, pelas razões
constantes, entre muitos outros, dos acórdãos 674/99, 331/2003, 336/2003 e
494/03, entendendo que não constitui uma questão de constitucionalidade
normativa, sobre a qual possam recair os poderes cognitivos do Tribunal
Constitucional, a fiscalização de um alegado processo interpretativo que
conduziria a uma aplicação de uma norma que, por força do princípio da
legalidade penal, ultrapassasse o campo semântico dos conceitos que o legislador
penal terá utilizado; ou seja, entendendo que não é constitucionalmente
permitido a este Tribunal a verificação da ocorrência de uma alegada
interpretação («extensiva», «analógica» ou «actualista») de uma norma penal, em
invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade.
Na sequência, não sendo o alegado processo interpretativo susceptível de ser
sindicado por este Tribunal, está o mesmo, então, confrontado com uma norma –
assumida como um dado - que, pura e simplesmente, estatui a responsabilidade do
administrador de facto. Ora, quanto a uma norma com um tal teor, voto a decisão
de não inconstitucionalidade.
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida por entender que o artigo 6º, nº 1, do Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, quando
interpretado no sentido de a expressão “como titular de um órgão de uma
sociedade” abranger o administrador de facto, é inconstitucional, por violação
do artigo 29º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
1. Um Estado de direito (artigo 2.º da CRP) deve proteger o indivíduo não apenas
através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin,
Strafrecht. Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre,
München, 1992, p. 67). O que supõe que, a par de outros princípios, a
intervenção penal seja submetida ao princípio da legalidade (artigo 29º da CRP),
cujo conteúdo essencial, em matéria incriminatória, se traduz em que não pode
haver crime que não resulte de lei prévia, escrita, certa e estrita (sobre isto,
Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina
Geral do Crime, Coimbra Editora, 2007, p. 177 e ss.).
No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 183/2008 conclui-se relativamente a
este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade
a decidir, que:
«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma
“garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de
outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional –
explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias
relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma
carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a
experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do
Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias,
Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de
limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do
sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado.
É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da
presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da
legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem
não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses
político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de
sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade
pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências
comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de
uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo
de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção
“axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar
a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser
corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
É o que bem explica Figueiredo Dias (Direito Penal. Parte Geral, Tomo I,
2ª ed., p. 180):
Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam,
por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente
que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma)
abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou
célebre a afirmação de v. Liszt segundo a qual a lei penal constitui a magna
Charta do criminoso.
No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho (Direito Penal, I, Porto 2003,
p. 210 s.):
O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas
teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não
esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários
significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim,
ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves
do que as expressamente abrangidas pela norma legal (…). Responde-se que assim
é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha
do carácter fragmentário do direito penal.
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal
encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível ? uma
barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito
concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades
político?criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na
base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia
pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo
dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da
República Portuguesa)».
A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente, se
a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras
da lei, se transpõe a barreira da moldura semântica do texto. Para uma resposta
negativa em nada contribui a argumentação do tribunal recorrido.
2. Como é sabido, a letra do artigo 7º do RGIT não tem obstado a que o
intérprete lá inclua o representante de facto, apesar de a lei referir as
infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas,
sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades
fiscalmente equiparadas (neste sentido, pronunciando-se pela conformidade
constitucional de tal interpretação, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
395/2003).
A circunstância de o legislador, em 1998, ter aditado ao artigo 227º do CP o nº
5 (nº 3 na redacção vigente), nos termos do qual, sem prejuízo do disposto no
artigo 12º do CP, é punível (…) quem tiver exercido de facto a respectiva gestão
ou direcção efectiva (…), só pode ser entendida no sentido de a actuação dos
administradores de facto não se encontrar coberta pelo artigo 12º do CP (neste
sentido, Pedro Caeiro, “A responsabilidade dos gerentes e administradores por
crimes falenciais na insolvência de uma sociedade comercial”, Colóquio “Os
quinze anos de vigência do Código das Sociedades Comerciais”, Fundação Bissaya
Barreto, 2001, pp. 93 e 96 e s.).
A irrelevância do elemento sistemático retirado do artigo 8º, nº 1, do RGIT só é
procedente, nos termos em que é invocada na decisão recorrida, se, de facto, se
tratar aqui de norma em matéria de responsabilidade civil, o que é discutível
doutrinal e jurisprudencialmente (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
129/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; e, ainda, João Matos
Viana, “A (in)constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos
administradores e gerentes pelas coimas aplicadas à sociedade” e Germano Marques
da Silva, “Responsabilidade subsidiária dos gestores por coimas aplicadas a
pessoas colectivas”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 2,
Números 2, p. 199 e ss., e 3, p. 297 e ss., respectivamente).
O elemento histórico da interpretação aponta antes no sentido de o legislador
não ter desconsiderado a circunstância de os agentes serem titulares de direito
ou meramente de facto. Foi desconsiderada, isso sim, a constituição regular ou
irregular da pessoa colectiva, bem como o facto de se tratar de mera associação
de facto, mas tal ocorreu por via de referência expressa no artigo 12º, nº 1, do
CP e 6º, nº 1, do RGIT, não se podendo retirar daqui que, então, também se
abrange o titular meramente de facto. Quer uma quer outra disposição legal
pressupõem a distinção entre quem é punível por actuação em nome de outrem – no
caso, quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade – e a
pessoa em nome da qual se actua – no caso, uma sociedade, relativamente à qual
se verificam determinados elementos pessoais exigidos pelo tipo legal de crime,
praticando o agente o facto no seu próprio interesse –, sendo que somente quanto
a este último aspecto há extensão expressa à sociedade irregularmente
constituída e à mera associação de facto.
A propósito da justificação político criminal de norma que puna a actuação do
administrador de facto em nome de uma sociedade é de reafirmar que o fundamento
e o conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria criminal impõem
que tal norma – ainda que político-criminalmente justificada – se contenha no
quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de a
interpretação permitida dar lugar à analogia proibida. “Em rigor, o princípio da
legalidade e o seu corolário da tipicidade sobrepõem-se absolutamente à
necessidade político-criminal” (declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma
aposta ao Acórdão nº 395/2003).
3. O artigo 6º, nºs 1 e 2, do RGIT estende a punibilidade do abuso de confiança,
previsto e punido no artigo 105º, nºs 1 e 5, do mesmo regime, a quem agir
voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade, ainda que seja
ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.
Destas palavras da lei resulta que a referência à actuação do agente como
titular significa que o tipo legal de crime só é preenchido quando o agente
pratica a conduta proibida enquanto titular (de direito) de um órgão de uma
sociedade. Não quando o agente se faz passar por titular, isto é, quando pratica
a conduta proibida como se fosse titular. É este, aliás, o sentido do nº 2 do
artigo 6º, nos termos do qual é sempre necessário um acto jurídico que seja
fonte dos poderes do agente. Ainda que se trate de acto jurídico ineficaz, pois
“não se compreenderia que o dever penal estivesse dependente da regularidade
jurídico-comercial das deliberações que nomeiam a gerência ou a administração”
(Pedro Caeiro, loc. cit., p. 94, a propósito do nº 2 do artigo 12º do CP).
4. Também a expressão “quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma
pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto”, constante do nº 1 do
artigo 12º do CP, é interpretada, embora não de forma unânime, no sentido de que
esta disposição legal, “ao referir as pessoas que actuam como titulares… etc.,
não pretende responsabilizar aqueles que, não o sendo, se fazem passar por tal,
mas sim os agentes que praticam as condutas proibidas enquanto titulares…, etc.”
(Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra
Editora, 1999, comentário ao artigo 227º, § 9. Cf, ainda, no mesmo sentido,
declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma aposta ao Acórdão nº 395/2003).
Para além do elemento sistemático, já referido, que se retira do artigo 227º, nº
3, do CP na redacção vigente, abonam também no sentido desta interpretação as
Actas da Comissão Revisora do Código Penal, de acordo com as quais “o problema
do eventual alargamento do conceito de representação até à representação de
facto é conhecido do legislador e foi por ele resolvido no sentido de que é
necessário que haja um título que confira poderes ao representante, excluindo,
deste modo, um conceito alargado de representação que abrangesse a representação
de facto” (Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus
Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, p. 242, não obstante o
defendido na p. 315 e ss.). Embora o nº 2 do artigo 12º se reporte expressamente
aos casos de representação, a regra que aí se contém oferece um critério
interpretativo de acordo com o qual o nº 1 se refere ao titular (de direito) do
órgão da pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ainda que seja
ineficaz o acto de que depende a titularidade do órgão (neste sentido, Pedro
Caeiro, loc. cit., p. 94).
Diferentemente da posição que fez vencimento, entendemos que “as considerações
expendidas a propósito da interpretação de normas do direito penal clássico” são
transponíveis “para áreas do direito penal tributário”, com o limite de não ser
ultrapassado o sentido possível das palavras da lei. Relativamente à norma em
apreciação nos presentes autos, deve até concluir-se que a interpretação no
sentido de a expressão “como titular de um órgão de uma sociedade” (artigo 12º
do CP) não abranger o administrador de facto é a que vai ao encontro da letra do
nº 2 do artigo 6º do RGIT, a qual é mais abrangente do que a do nº 2 do artigo
12º do CP.
5. Entendo, pois, que a interpretação do artigo 6º, nº 1, do RGIT no sentido de
a expressão “como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o administrador
de facto, ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, colocando o
intérprete no domínio da analogia proibida pelo princípio da legalidade em
matéria criminal (artigo 29º, nº 1, da CRP).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender, em primeiro lugar, que o Tribunal não deveria ter
conhecido por recurso. Com efeito, não tendo sido impugnada a norma
incriminadora, ou seja, a que consta do artigo 105.º n.ºs 1 e 5 do Regime Geral
das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho), a verdade é que,
isoladamente, do n.º 1 do artigo 6º deste diploma não é possível, salvo melhor
opinião, retirar a norma com o conteúdo sindicado.
Ultrapassado este obstáculo, votei no sentido da inconstitucionalidade da norma
aderindo às razões invocadas no projecto apresentado pela primitiva Relatora,
para cuja declaração de voto remeto, com a devida vénia, nesta parte.
Carlos Pamplona de Oliveira