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Processo n.º 959/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão
sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrida a Massa Insolvente de
“B., Lda.”, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b)
da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão proferido, em
conferência, pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 13 de Outubro de
2009 (fls. 224 a 230), para que seja apreciada a “inconstitucionalidade do
entendimento que o Tribunal recorrido retira do disposto no regime constante do
art. 121.º, n.º 1, alínea i) do C.I.R.E., ao determinar enquanto incondicional e
inilidível a resolução do acto de pagamento de suprimentos em momento inferior a
um (1) ano ao do início do processo da insolvência, ou seja, sendo o carácter
inilidível de tal resolução autorizada pelo art.º 350.º, n.º 2 do Código Civil”
(fls. 238).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 244), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator verificar que alguns desses pressupostos não foram preenchidos,
pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do
artigo 78º-A da LTC.
3. O Tribunal Constitucional apenas dispõe de poderes de sindicar a eventual
inconstitucionalidade de normas (ou interpretações normativas) que tenham sido
efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, conforme decorre do artigo
79º-C, da LTC. Sempre que esteja em causa um recurso do tipo previsto na alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o recorrente fica especialmente onerado,
perante a instância recorrida, com a prévia e adequada suscitação da questão de
inconstitucionalidade normativa que pretenda vir, posteriormente, a ser
apreciada pelo Tribunal Constitucional (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Ora, apesar de afirmar o contrário no requerimento de interposição de recurso
(cfr. § IX., a fls. 239), a recorrente não suscitou, de modo processualmente
adequado, a questão da inconstitucionalidade, na precisa dimensão normativa que
pretende ver agora apreciada por este Tribunal. Ou seja, em momento algum
colocou a recorrente em causa a inconstitucionalidade de uma interpretação
normativa da alínea i) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE, que determinasse
“enquanto incondicional e inilidível a resolução do acto de pagamento de
suprimentos em momento inferior a um (1) ano ao do início do processo da
insolvência, ou seja, sendo o carácter inilidível de tal resolução autorizada
pelo art.º 350.º, n.º 2 do Código Civil”.
Ao invés, das suas conclusões do recurso de revista podem retirar-se os
seguintes excertos:
“Décimo quinto: A decisão recorrida violou, neste particular, o disposto no
art.º 234.º, n.º 1 do CSComerciais, nos art.ºs 121.º, n.º 2 com remissão ao n.º
1, alínea i) do mesmo normativo e 125.º, estes do C.I.R.R (…).
Décimo sexto: A decisão recorrida versa sobre matéria eivada de
inconstitucionalidade (…).
Décimo oitavo: O regime constante do art.º 121.º, n.º 1, alínea i) do C.I.R.E.,
ao determinar enquanto incondicional a resolução do acto de pagamento de
suprimentos em momento inferior a um (1) ano ao do início do processo de
insolvência viola, em termos desproporcionados o princípio do contraditório,
ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo art.º 20.º da
CRPortuguesa.” (fls. 159).
Daqui decorre que: i) por um lado, a recorrente começou por atacar a própria
decisão recorrida, imputando a inconstitucionalidade à própria decisão
jurisdicional e não a uma precisa norma jurídica (ou respectiva interpretação
normativa); ii) por outro lado, a recorrente afirma que a inconstitucionalidade
afectaria o regime constante do preceito legal em causa e não propriamente a
própria norma jurídica dele extraído; iii) por último, ainda que se viesse a
admitir que a invocação de inconstitucionalidade se dirigia à norma jurídica “in
se”, certo é que o recorrente nunca fez nenhuma alusão à natureza inilidível da
presunção, por força da ponderação do n.º 2 do artigo 350º do Código Civil.
Em suma, extrai-se das alegações do recurso de revista apresentado pela
recorrente que aquela não suscitou de modo processualmente adequado a
inconstitucionalidade da norma que constitui objecto do presente recurso, em
especial, na concreta e específica dimensão normativa com que aquela configura o
objecto a apreciar por este Tribunal. Em momento algum, a recorrente fez alusão
perante as instâncias recorridas acerca da natureza inilidível da presunção
legal decorrente da alínea i) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE, pelo que não pode
agora pretender que o Tribunal Constitucional aprecie uma questão de
inconstitucionalidade normativa que não foi, naqueles precisos termos, colocada
perante o tribunal “a quo”.»
2. Inconformada com a referida decisão, a recorrente veio reclamar, nos
seguintes termos:
«A questão que se coloca é singela e não merecerá demoradas considerações,
subordinando-se a recorrente à decisão que for lavrada em conferência. É que,
II. a Egrégia Juíz Relatora decidiu sumariamente pelo não conhecimento do
recurso interposto por entender que a recorrente «abandonou» a pretensão de ver
sindicada pelo Tribunal Constitucional o entendimento de que o art.° 121º, n.º
1, alínea 1) do C.I.R.E., ao determinar enquanto incondicional a resolução do
acto de pagamento de suprimentos em momento inferior a um (1) ano ao do início
do processo da insolvência se reveste de inconstitucionalidade que urge
erradicar;
III. Sustenta a tese do abandono a partir da conclusão de que a aqui
reclamante não fez adequado eco dos termos em que sindicou a decisão da 1ª
instância e sucessivamente ecoada nos recursos posteriormente interpostos,
mormente, ao dispor semanticamente os termos em que o Supremo Tribunal de
Justiça operou a decisão denegatória;
IV. Não pode ser maior a razão de discordância da reclamante. De facto,
«in casu», não se vislumbra, por parte da reclamante o abandono da sua tese.
Assim,
V. encontra-se transcrito a fl.s 3 da decisão sumária reclamada o ponto
Décimo-Oitavo das conclusões do recurso de revista formuladas pela recorrente no
sentido da necessidade de sindicância do entendimento de que “O regime constante
do art.° 121º, nº 1, alínea 1) do C.IRE, ao determinar enquanto incondicional a
resolução do acto de pagamento de suprimentos em momento inferior a um (1) ano
ao do início do processo de insolvência viola, em termos desproporcionados o
princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado
pelo art.° 20º da CR Portuguesa “;
VI. Neste contexto semântico, entende a reclamante que a formula em que
redigiu os termos do recurso interposto para o Tribunal Constitucional respeitou
as razões da discordância expostas na conclusão Décima-Oitava das suas
conclusões de recurso,
VII. com o complemento, apenas angariável após o conhecimento da decisão
exposta no Acórdão prolatado em revista pelo STJustiça, da inilidíbilidade de
tal resolução autorizada pelo art° 350.°, n.º 2 do Código Civil. Ora,
VIII. esta complementação não desvirtua a fórmula reivindicatória da
inconstitucionalidade da norma tal como a mesma vinha sendo exposta desde o
recurso interposto em 1ª instância de recurso,
IX. nem congrega em si um simples ataque à decisão do STJustiça. A tal
ponto,
X. que a reclamante expressamente veiculou em defesa dos termos do seu
recurso dirigido ao Egrégio Tribunal Constitucional que a decisão recorrida
“(…)
…viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o
princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado
pelo art.° 20º da CRPortuguesa no sentido de que ao sufragar a negação à
A./recorrente do direito a ver sindicado em audiência de julgamento o valor das
suas alegações viola princípios basilares do direito processual civil, mormente,
os da garantia do acesso aos tribunais, o da justiça, o do direito ao
contraditório e o da igualdade entre as partes
— cfr. Art. °s 2º, 3º e 3. °-A do CPCivil;
Viola, ainda, o princípio do direito do acesso da recorrente aos tribunais e à
justiça por entender que a alegada INCONDICIONALIDADE da resolução a inibe de
utilizar qualquer argumento susceptível de infirmar a resolução do reembolso de
suprimentos por não existir norma no ordenamento jurídico português que permita
tal derrogação, o que arrasta, por consequência, a própria inibição da
recorrente de legitimar a propositura da acção impugnatória a que se refere o
art.° 125º do C. 1. R. E.;
Mantém a recorrente a certeza de que tal entendimento retirado pelo Tribunal
daquela norma viola o princípio do contraditório, princípio essencial de
direito, como tal recolhido pelo art.° 16° da Constituição da República
Portuguesa tal como a mesma resulta da leitura e aplicação da Lei Constitucional
n.º 1/2005, de 12 de Agosto;
Ou seja: o entendimento doutrinal e jurisprudencial atribuído à norma contida no
art.° 121. °, n.º 1, alínea i) do C.I.R.E. viola o art.° 16.° da CRPortuguesa -
que acolhe o princípio do contraditório como princípio fundamental inscrito fora
da Constituição - princípio que resulta directamente de outros preceitos
constitucionais, designadamente o art.° 2º enquanto consagrador do princípio do
Estado de direito democrático e, em especial, o art.° 20º nºs 1 e 4 como
preceito que estabelece o direito de acesso aos tribunais e o direito a um
processo equitativo,
viola o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais,
afirmado pelo art.° 20º da CRPortuguesa e
viola o princípio do contraditório no âmbito do processo criminal ínsito no
art.° 32.°, n.º 5 da CRPortuguesa já que nesta consagração é pacífico que a
mesma dignidade constitucional assiste no processo civil.
XI. Ou seja: é crença da reclamante que não ocorreu qualquer desvirtuação
da formula recursiva tal como a mesma se formulou no requerimento de
interposição de recuso e
XII. a proceder a tese reclamada que aqui se combate por realizar uma
exagerada valoração da forma sobre a necessidade de preservação e discussão da
verdade material, viola-se o disposto nos art.°s 69º, 70º, nº 5, «a contrario
sensu» e 72º, nº 2 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações
subsequentes e
XIII. principal e gravosamente, viola-se o direito / principio de recurso
que constitui matriz essencial do direito constitucional português.» (fls. 256 a
260)
3. Após notificação para efeitos de resposta, a recorrida deixou expirar o prazo
sem que viesse aos autos pronunciar-se sobre o teor da reclamação.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Desde logo, importa notar que o sistema português de fiscalização de
constitucionalidade não consagra um direito ilimitado à interposição de recurso,
fixando expressamente as condições nos termos das quais determinadas questões de
inconstitucionalidade podem ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional. Uma
dessas condições radica na limitação do objecto da fiscalização da
constitucionalidade às normas jurídicas (artigo 277º, n.º 1, da CRP) e nunca às
próprias decisões jurisdicionais. Outra dessas condições assenta na necessidade
de os recorrente terem invocado a inconstitucionalidade normativa, na instância
recorrida, nos precisos termos em que aquela foi aplicada pelo tribunal
recorrido (artigo 72º, n.º 2 da LTC).
Ora, a reclamante reduz a sua reclamação à alegação de que o § 18. das suas
conclusões de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça seria bastante para
que fosse dado por preenchido o requisito da prévia e adequada suscitação.
Porém, mais não resta do que corroborar integralmente a mais desenvolvida
fundamentação ínsita na decisão reclamada. Com efeito, no referido § 18. das
conclusões, o ora reclamante nunca fez qualquer alusão ao carácter de presunção
inilidível resultante da alínea i) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE.
E nem se diga, como procurou fazer a reclamante, que a aplicação daquela
interpretação normativa constituiu uma “decisão-surpresa”, por só ser
“angariável após o conhecimento da decisão exposta no Acórdão prolatado em
revista pelo STJustiça, da inilidíbilidade de tal resolução autorizada pelo art°
350.°, n.º 2 do Código Civil”. E que, assim, aquela beneficiava de dispensa do
ónus de suscitação perante o Supremo Tribunal de Justiça da questão de
inconstitucionalidade normativa que constitui agora objecto do presente recurso.
É que, na realidade, aquela interpretação normativa já havia sido aplicada pelo
Tribunal da Relação do Porto, pelo que é desprovida de qualquer fundamento a
alegação de que a sua aplicação, pelo tribunal recorrida, foi insólita ou
imprevisível.
Com efeito, através de acórdão proferido em 16 de Março de 2009, o Tribunal da
Relação do Porto julgou, expressamente, o seguinte:
«Voltando-nos, agora, para o caso em apreço, o que a recorrente parece pretender
dizer é que, ao estabelecer-se nas várias alíneas do art.121º, nº1, do CIRE,
presunções inilidíveis de prejudicialidade, por um lado, e a resolubilidade dos
respectivos actos, “sem dependência de quaisquer outros requisitos”, por outro,
está a ser violado o seu direito de contraditório: não pode demonstrar que,
apesar verificação da respectiva previsão, como foi o caso, não se verificou
prejuízo para a massa insolvente. Daí a sua inconstitucionalidade.
Pensamos que não lhe assiste razão.
As presunções “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido
para firmar um facto desconhecido” – art.349º do C.Civil.
E podem qualificar-se em legais ou judiciais – art.s 350º e 351º do C.Civil.
Quanto às presunções legais, ainda se distinguem em presunções “iuris et de
iure”, ou seja, absolutas, irrefutáveis; e “iuris tantum”, relativas,
refutáveis, que admitem prova do contrário.
A força probatória das presunções legais resulta, essencialmente, de uma “sólida
observação da realidade” – A. VARELA in RLJ, 122º-218. A normalidade das coisas
permite concluir, com alguma segurança, que o facto que serve de base à
presunção e o facto presumido andam associados entre si.
E, por vezes, aquela associação é de tal modo consistente que não se admite,
sequer, prova do contrário – são as presunções legais inilidíveis.
(…)
Ora, do disposto nas várias alíneas do art.121º, nº1, conjugado com o disposto
no art.120º, nº3, ambos do CIRE, o que resulta é que, provados os respectivos
factos integradores, presume-se, sem admissão de prova em contrário, que tais
actos são prejudiciais para a massa insolvente; e que são, por isso, resolúveis,
sem necessidade de prova de mais requisitos.» (com sublinhado nosso).
Daqui resulta – para que dúvidas não restem – que a ora reclamante não poderia
ter deixado de antever a aplicação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, da
interpretação normativa que elegeu para objecto do presente recurso. Assim é
porque, antes de ter interposto recurso para aquele tribunal, já o tribunal
(então) recorrido – ou seja, o Tribunal da Relação do Porto – havia interpretado
a norma extraída da alínea i) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE como consagradora
de uma presunção inilidível de que o pagamento de suprimentos suportados pelos
sócios é prejudicial à massa falida.
Daqui decorre que nem a recorrente invocou expressamente a inconstitucionalidade
da norma objecto do presente recurso, assim concebida e aplicada pelo tribunal
recorrido, como não se pode considerar dispensado da sua invocação, com
fundamento na natureza surpreendente ou imprevisível da decisão recorrido.
Assim, conclui-se – tal como já feito pela decisão reclamada – pelo não
cumprimento do ónus processual decorrente do n.º 2 do artigo 72º da LTC, pelo
que não subsiste qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 12 de Abril de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão