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Processo n.º 496/2010
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., B., C. e mulher D. e E., S. A., intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, por apenso aos autos de insolvência de F., Limitada, acção com processo na forma ordinária contra Massa Insolvente de F., Limitada, pedindo:
a) - que fosse esta condenada a pagar-lhes as quantias que discriminam, que correspondiam ao dobro do sinal que entregaram a “F.” em contrato promessa com ela outorgado, bem como que fosse declarado que têm direito de retenção sobre as fracções que a dita F. lhes prometera vender;
a assim se não se entendesse
b) - que fosse declarada transmitida para cada um dos demandantes a propriedade das fracções objecto da promessa, em execução específica da obrigação:
a assim se não se entendesse
c) - que fossem declarados verificados e reconhecidos os créditos que enunciam.
Foi proferida sentença que julgou todos os pedidos improcedentes.
Os Autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.
Os Autores recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que negou a revista, confirmando a decisão recorrida.
Os Autores interpuseram então recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, pedindo que fosse apreciada a inconstitucionalidade do disposto nos artigos 106.º, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 1 do CIRE, por violarem o disposto nos artigos 2.º, 3.º, d) 13.º, 18.º, n.º 2, 81.º, e), e 62.º da Constituição.
Por despacho do Conselheiro Relator este recurso não foi recebido, com a seguinte fundamentação:
“Conforme resulta do acórdão recorrido, as disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas invocadas pelos recorrentes não tiveram qualquer influência no resultado desta acção, pelo que não faz sentido falar da sua eventual inconstitucionalidade.
Assim, não pode o recurso interposto pelos recorrentes para o Tribunal Constitucional ser recebido – cf. art. 70º da Lei 28/82, de 15.11.”
Os Autores reclamaram desta decisão, com os seguintes argumentos:
“O Supremo Tribunal de Justiça não reconheceu a existência do direito de recurso para o Tribunal Constitucional, porque “as disposições invocadas pelos recorrentes não tiveram qualquer influência no resultado desta acção”.
Os Recorrentes puseram em causa o disposto nos art.ºs 106.º, 104.º e 102.º do CIRE que foram amparo, pelo menos, das decisões proferidas nos Tribunais de 1ª Instância e de Relação.
Por isso, no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional os Recorrentes disseram:
“1. Na presente acção, os Recorrentes/Demandantes fundam as suas pretensões em contratos-promessa de compra e venda de fracções urbanas, nos quais figuram como promitentes compradores, enquanto a sociedade insolvente neles figura como promitente vendedora.
E, com base nesses contratos, formularam os pedidos seguintes:
A- Condenar-se a Dda. a pagar ao demandante A. a quantia de 52.373,78 €, ao demandante B. a quantia de 177.253,50 €, ao demandante C. a quantia de 52.373,78 €, à demandante “E., SA” a quantia de 50.000,00 €, declarando-se que cada um dos Dtes. têm direito de retenção sobre a fracção ou fracções que prometeu comprar, e condenar-se a Dda. a reconhecer este direitos de retenção;
Sem prescindir; e se assim se não entender; mas sem conceder:
B- Declarar-se transmitida para cada um dos Dtes. o direito de propriedade sobre a fracção ou fracções que cada um deles comprar, declarando-se assim produzidas as declarações negociais em falta, condenando-se a Dda. a reconhecer aquelas transmissões do direito de propriedade, bem como a de executar as obras necessárias à conclusão das fracções que a sociedade insolvente prometeu vender aos Dtes.;
2. Não tivera sido declarada insolvente a promitente vendedora, e pressupondo-se provados os factos alegados na petição, a acção teria procedido.
1ª. Os Recorrentes alegaram que celebraram, por escrito, com a sociedade insolvente, os contratos-promessa que juntaram à petição, nos termos dos quais prometeram comparar àquela sociedade, que lhes prometem vender; as fracções urbanas indicadas nesses contratos, tendo constituído os sinais também aí referidos. Alegaram ainda que tinham a posse dessas fracções e que a sociedade não cumpriu esses contratos. Com base nesses factos, pediram que a Recorrida fosse condenada a restituir os sinais constituídos, em dobro, e declarado e reconhecido o direito de retenção sobre essas fracções urbanas. Subsidiariamente, pediram o cumprimento ou execução específica desses contratos e a verificação e reconhecimento dos créditos resultantes dos sinais constituídos. Fundaram os dois primeiros pedidos na lei comum que instituiu o regime de contrato-promessa, porque, no seu entender; as normas do art.ºs 106.º, 104.º, 5, 102.º 1 do CIRE, em que as decisões recorridas se fundam, violam o disposta nos art.ºs 2.º, 9º, d, 13.º,18.º, 2,, 81.º, e) e 62.º da Constituição.
2.ª Na verdade, as disposições dos art.ºs 106.º, 104.º, 5 e 102.º, 1 do CIRE derrogam as normas do regime comum do contrato-promessa, que asseguram a restituição em dobro do sinal constituído pelo promitente comprador de imóveis, bem como o direito de retenção do promitente comprador para que aquele direito seja assegurado, e o direito à execução específica. Ora, as normas do regime comum foram instituídas, como o comprovam as suas sucessivas alterações, para fazer prevalecer os interesses dos promitentes vendedores e dos financiadores de empreendimentos imobiliários.
3.ª Ora, foi a pressão dos financiadores de empreendimentos imobiliários que levou o legislador a derrogar esse regime comum, através do disposto nos referidos art.º 106.º, 104.º, 5 e 102.º, 1 do CIRE, para que os interesses dos financiadores se sobrepusessem aos dos promitentes compradores, economicamente mais frágeis, e sem gozarem do confronto que o Estado dá aos financiadores, como “o tempo que passa” o mostra, em todo o seu explendor.
4.ª Como tal prática, o legislador, através das referidas normas da lei da insolvência, violou as invocadas normas constitucionais, ferindo os princípios de direito e da democracia económica e social; subestimou o bem estar e a efectivação dos direitos económicos e sociais dos promitentes compradores de imóveis a empresas que venham a ser declaradas insolventes em relação a financiadores e a outros promitentes compradores; restringiu, sem justo ou razoável fundamento, o direito real de aquisição cio direito de propriedade por parte desses sujeitos.
3. As instâncias – 1.ª Instância e Tribunal da Relação de Guimarães - julgaram a acção improcedente, porque, as entenderam que às situações da espécie não se aplica o regime decorrente do disposto nos art.ºs 410.º, 442º, 830.º, 754.º e 751º, 1, f) daquele diploma, por força do disposto nos art.ºs 106.º, 104.º, 5 e 102.º, 1 do CIRE.
4. Contra esse entendimento os Recorrentes foram invocando a inconstitucionalidade das normas que o sustentam, nas pertinentes alegações, nomeadamente nas de revista, onde concluíram assim:
5. Os Recorrentes pretendem que seja apreciada a inconstitucionalidade do disposto nos art.ºs 106.º, 104.º, 5 e 102.º, 1 do CIRE, porque violam o disposto nos artºs 2.º, 3º, d) 13.º, 18.º, 2, 81.º, e) e 62.º da Constituição.
6. Este recurso é interposto ao abrigo da al. b), do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15.11.
7. Essas inconstitucionalidades foram suscitadas nas alegações de apelação e revista.”
As pretensões formuladas pelos Recorrentes, caso não existissem os referidas normas do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, eram pretensões viáveis, em abstracto, quer com base no direito de retenção quer com base no direito de execução específica, ambas com natureza real – respectivamente de garantia e aquisição.
Essa viabilidade resultaria das do direito privado geral ou comum, nomeadamente do disposto nos art.ºs 442.º, 2 e 3, 755.º, 1, e 830.º do CC, que as invocadas normas do CIRE afastam, em violação das normas constitucionais invocadas pelos Recorrentes (salvo o devido respeito melhor opinião).
Por estas razões os Recorrentes entendem que há lugar a recurso para o Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento desta reclamação.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Os recorrentes pediram que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 106.º, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 1, do CIRE.
Ora, a própria decisão recorrida foi peremptória em dizer que o disposto nesses artigos não teve qualquer influência no desfecho do processo, pelo que não há qualquer dúvida que o seu conteúdo não fundamentou essa decisão.
É certo que depois de enunciar essa posição a própria decisão recorrida abordou a questão da constitucionalidade das normas contidas nesses preceitos, afastando a existência de qualquer violação da Constituição.
Contudo, fê-lo claramente como um obicter dictum, não integrando esse discurso a ratio decidendi da decisão recorrida que se bastou com a constatação que o disposto nos referidos preceitos não tinha qualquer interesse para a decisão da causa.
Assim sendo, revela-se correcta a decisão de não conhecimento do recurso interposto, uma vez que não integrando o disposto nos preceitos impugnados a ratio decidendi do acórdão recorrido, não há qualquer utilidade na apreciação da questão de constitucionalidade colocada, uma vez que uma eventual pronúncia nessa matéria não teria qualquer efeito no desfecho do processo.
Por esta razão deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação deduzida por A., B., C. e mulher D. e E., S. A.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.