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Processo n.º 426/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e Filhos, Lda., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte fundamento:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Já nos termos do disposto na alínea g) do mesmo, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Já quando interposto o recurso ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o único pressuposto processual a controlar é o de ter a norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, i. é exige-se que haja identidade de objecto entre a norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional e a norma que tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Compulsados os autos, verifica-se que a norma contida na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), na redacção introduzida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março, que foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 490/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, não foi efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Com efeito, nesta última afirma-se o seguinte (fls. 186-188):
3.1 Do falecimento do regime das contra - ordenações com a entrada em vigor do novo Código do Trabalho
Pretende a arguida que a entrada em vigor em 12.02.2009 do Código do Trabalho fez falecer o regime das contra-ordenações suporte de decisão de que se recorre.
Vejamos se a arguida está certa com o que afirma.
Para isso, traçar-se-á um breve esboço, do que tem sido a problemática decorrente da entrada em vigor da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro (que aprovou o Código do Trabalho), no que toca a contra-ordenações.
O art.º 12.º, da referida Lei 7/2009, que tem como epígrafe, “Norma revogatória”, veio no n.º 1, alínea a), prescrever que são revogados, “A Lei 99/2003, de 27 de Agosto, na redacção dada pela lei 9/2006, de 20 de Março, pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro e pela Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro;
Estabeleceu-se ainda no n.º 3, desse normativo que “ A revogação dos preceitos a seguir referidos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria: Artigos 272.º a 312.º sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais na parte referida na actual redacção do Código (alínea a));
Por seu turno, através da Declaração de Rectificação 21/2009, publicada no DR, 1.ª Série, n.º 54, de 18 de Março de 2009, declarou-se que a “Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicado no Diário da República, 1.ª Série n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009, saiu com as seguintes inexactidões, que assim, se rectificam:
Na alínea a) do n.º3 do art.º 12.º, «Norma revogatória», onde se lê:
«a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;»
deve ler-se:
«Artigos 272.º a 280.º e 671.º sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, na parte não referida na actual redacção do Código».
No n.º 6 do referido art. 12.º estipulou-se ainda que:
“A revogação dos preceitos a seguir referidos da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março e pelo Decreto-Lei n.º 164/2007,de 3 de Maio, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
…
m) Artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho;
É sabido que, por via do teor destas normas, se passou nomeadamente a entender, para o que aqui foi suscitado, que o legislador operou uma revogação das contra-ordenações em matéria de higiene, saúde e segurança no trabalho, já que, argumentava-se, o novo Código do Trabalho, não ressalvara da revogação “condicional” (porque dependente da entrada em vigor do diploma que regulava essa matéria), o preceituado no art.º 671.º onde se qualificavam as referidas infracções em função da sua gravidade.
Também se entendeu que a aplicação da citada Declaração de Rectificação 21/2009 devia ser afastada, por se considerar que a mesma não consubstanciava numa verdadeira declaração de rectificação, pois, como resulta do art.º 5.º, n.º 1, da Lei 74/89, de 11 de Novembro (que regula a publicação, identificação e formulários dos diplomas), “As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto … publicado …”, e tal não se verificava.
Por via disso, invocou-se a ilegalidade da sobredita Declaração de Rectificação, bem como a sua inconstitucionalidade.
E o próprio Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 490/09, de 28.9.2009, veio a declarar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica inerente ao modelo de Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da CRP, a norma constante da alínea a) do n.º 3, do art. 12.º do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março de 2009.
Ora, no presente caso, a situação não é enquadrável em qualquer daquelas hipóteses. Desde logo porque à arguida não foi imputada a violação das regras gerais sobre saúde, higiene e segurança no trabalho, tendo, antes a mesma, sido acusada e julgada, no que toca à contra-ordenação prevista e punida no art.º 67.º do DL 44 821, de 11 de Agosto de 1965, conjugado com o art.º 8.º do DL 441/91, de 15 de Novembro, art.º 25.º do DL 273/2003, de 29 de Outubro e artigos 620.º, n.º 4 alínea b) e art.º 625.º, ambos do Código do Trabalho aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto.
Ora, no que toca ao segmento do tipo contra-ordenacional contemplado nos referidos artigos 67.º, 8.º e 25.º, pertencentes, respectivamente, aos ditos DL 44 821, de 11 de Agosto de 1965, DL 441/91, de 15 de Novembro e DL 273/2003, de 29 de Outubro, não operou aquele art.º 12.º da Lei 7/2009, qualquer expressa revogação, como claramente resulta do seu teor.
(…)
Assim, não se verifica, in casu, o pressuposto processual de efectiva aplicação na decisão recorrida da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pressuposto esse sem a verificação do qual, como já se disse, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso, tenha este sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) ou antes ao abrigo do disposto na alínea g), qualquer delas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2. Notificada dessa decisão, A. e Filhos, Lda. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
1. Nos autos de recurso supra mencionados, foi proferida decisão sumária nos termos do artigo 78-A, n.° 1 da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Ora, salvo o devido respeito, tal decisão olvidou diversos aspectos e argumentos do recurso apresentado pela Recorrente.
3. A aqui Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento nas alíneas b) e g) do artigo 70 da Lei 28/82 de 15 de Novembro,
4. Tendo por objecto a apreciação da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009, considerada, de forma incorrecta, na decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional no acórdão n.° 490/2009, de 28 de Setembro.
5. Reitera-se que a supra referida norma, foi já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.° 490/09 e 608/09, por violação do principio da segurança jurídica, inerente ao principio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2 da Constituição.
6. Todavia, entendeu esse Tribunal Constitucional, na decisão sumária de que se reclama, que tal norma não foi aplicada na decisão recorrida.
7. Ora, tal entendimento, meramente linear, não estará, em nosso entender, correcto, senão vejamos,
8. A aqui Recorrente foi condenada em coima por violação de normas sobre higiene, segurança e saúde no trabalho,
9. mais concretamente, por ter violado o disposto no art.° 67 do DL n.° 41.821 de Agosto de 1965, conjugado com o n.° 1 do art.° 8 do DL n.° 441/91 de 15 de Novembro, o que constitui contra ordenação muito grave nos termos do DL 273/2003, conjugado com o art.° 620, n.° 4 alínea b) e art. 622 do Código de Trabalho.
10. Ora a norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009, e cuja inconstitucionalidade se suscitou e suscita, prevê a revogação do preceituado nos artigos 272 a 280 e 671, sobre segurança, higiene e saúde nos trabalho, na parte não referida na actual redacção do código, ou seja,
11. Revoga grande parte do preceituado relativamente aos princípios gerais sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, aos serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho, à inspecção, aos acidentes de trabalho,
12. E, com extrema relevância para o caso sub Júdice, revoga o artigo 671 do antigo código de trabalho que estipulava a responsabilidade contra ordenacional nos casos de segurança, higiene e saúde no trabalho.
13. Tudo isto a significar que se deve entender, sem dúvida, que a entrada em vigor do Código de trabalho, mormente da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009 fez falecer, por completo, a contra ordenação que foi aplicada à aqui Recorrente.
14. Todavia, e ao invés disso, foi considerada vigente em relação à aqui Recorrente aquele art.° 12 e, consequentemente, aplicada contra ordenação à aqui Recorrente, daí que, após o esgotamento dos recursos ordinários, interpusesse recurso para o Tribunal Constitucional, por haver, assim, manifesta inconstitucionalidade na consideração do art.° 12.
15. Na verdade, com a interpretação feita pelo Tribunal da Relação foi posta, manifestamente em causa o princípio da segurança jurídica, constitucionalmente consagrado.
16. O princípio da segurança jurídica assume-se como princípio classificador do Estado de Direito Democrático, e implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas, a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica.
17. Por outro lado, acresce que uma das decorrências do princípio da legalidade é que não há crime/contra ordenação sem uma lei anterior ao momento da prática do facto que declare esse comportamento como crime ou contra ordenação, e estabeleça para ele a correspondente sanção.
18. Em Direito Penal e contra ordenacional vigora, portanto, a lei do momento da prática do facto, donde o princípio geral nesta matéria é de que as leis penais mais favoráveis aplicam-se sempre retroactivamente.
19. Deste modo, tendo sido revogado o regime contra ordenacional sobre as regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, através da entrada em vigor da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009,
20. Há manifesta inconstitucionalidade daquela quando se interpreta e aplica em sentido contrário, como aconteceu no caso sub judice, aplicando coima à Recorrente.
21. Tal preceito nunca poderia ter sido aplicado à aqui Recorrente pura e simplesmente porque o legislador entendeu, com a entrada em vigor daquele preceito legal, que tais factos não mereciam sanção.
22. Acresce que o ordenamento jurídico português é visto como um todo, constituído por um conjunto de normas jurídicas plasmadas em decretos lei, regulamentos, lei, portarias....
23. Deste modo, falecendo com a revogação da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 2 1/2009, de 18 de Março de 2009, o regime das contra ordenações sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho,
24. Necessariamente cai por terra todo o demais preceituado sobre esta questão,
25. Pelo que não faz sentido e é inconstitucional o fundamento de facto e de direito com que a aqui Recorrente é condenada.
26. É inconstitucional, assim se devendo declarar, a norma do art.° 12 quando interpretada como erradamente se fez na decisão, no sentido de que não revogou o regime contra ordenacional em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho.
27. Deste modo, deve conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
3. Notificado da reclamação, o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional veio pugnar pelo seu indeferimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamante vem reclamar da decisão sumária por discordar do fundamento nela oferecido para o não conhecimento do objecto do recurso por si interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – o da falta de efectiva aplicação da norma cuja conformidade com a Constituição a recorrente pretende ver apreciada e que, segundo ela, havia já sido julgada inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 490/09 e 608/09.
Entende a reclamante que tal entendimento é meramente linear e incorrecto.
Simplesmente, resulta do teor da sua argumentação que, em rigor, o que a reclamante contesta é, não propriamente o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade – o da falta de efectiva aplicação da norma cuja conformidade com a Constituição a recorrente pretende ver apreciada –, mas antes o facto de o tribunal a quo ter considerado que, face à concreta contra-ordenação cometida, a norma em causa não era aplicável.
Ora, o Tribunal Constitucional é incompetente para tomar posição sobre a correcção da interpretação do direito infra-constitucional efectuada pelos tribunais, pelo que não pode senão partir do já – e definitivamente – decidido relativamente à questão da aplicabilidade da norma contida na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), na redacção introduzida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
Tendo o tribunal a quo determinado a inaplicabilidade da mesma ao caso dos autos – juízo esse que, como se disse, é insindicável pelo Tribunal Constitucional – não se verifica o pressuposto processual de admissibilidade do recurso de constitucionalidade indicado na decisão sumária reclamada.
Assim, confirma-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do objecto do recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.