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Processo n.º 998/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora do despacho proferido pelo juiz
de primeira instância que lhe indeferiu a reabertura da audiência nos termos do
artigo 371º-A do Código de Processo Penal, para o efeito da aplicação
retroactiva de lei penal mais favorável resultante da nova redacção dos artigos
50º e 58º do Código Penal, alegando que a interpretação efectuada dessa referida
disposição afronta as garantias constitucionais de defesa do arguido.
Por acórdão de 3 de Novembro de 2009, o Tribunal da Relação de Évora negou
provimento ao recurso, invocando, em síntese, o seguinte:
[…]
Assim, entendemos que não se mostra preenchido um requisito fundamental para a
reabertura da audiência estabelecido no citado artigo 371º-A, do CPP, pois que,
o acórdão é proferido, em sede de recurso, após a entrada em vigor de regimes
legais sucessivos, tendo analisado a sucessão de leis no tempo na condenação a
proferir.
A titulo complementar adianta-se que não se vislumbra que as novas leis penais
sejam mais favoráveis ao condenado, e, sejam abstractamente aplicáveis ao caso
do condenado, tendo em consideração a medida concreta da pena que lhe foi
aplicada pela decisão transitada em julgado. Desde logo, o crime de homicídio
negligente era previsto e punido pelo artigo 137°, n.° 1, do Código Penal, com
uma moldura penal máxima abstractamente aplicável não superior a três anos de
prisão, manteve-se na nova redacção do Código.
[…]
Pelos motivos e fundamentos expostos não tem qualquer fundamento a afirmação de
que com a prolação do despacho recorrido foram violadas as garantias
constitucionais de defesa do arguido da aplicação retroactiva, das leis penais
de conteúdo mais favorável ao arguido e o principio da igualdade, previstos,
respectivamente, no art.° 32°, n°s. 1 e 5, no art. 29°, n.° 4, e no art. 13° da
Constituição da República Portuguesa, porquanto ao arguido foi coarctado o
direito de invocar a aplicação de lei posterior mais favorável (...).
Deste acórdão recorreu A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a
apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 371º-A do Código de
Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é possível a reabertura da
audiência, caso a decisão de recurso pendente da sentença do tribunal de 1ª
instância venha a ser proferida após a entrada em vigor da lei penal mais
favorável.
Por decisão sumária de fls. 676 e seguintes, proferida ao abrigo do disposto no
artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não se conheceu do
objecto do recurso de constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
“Para que se pudesse tomar conhecimento do objecto do presente recurso, seria
necessário que a decisão deste apresentasse utilidade para o recorrente, ou
seja, que essa decisão fosse susceptível de influir no sentido da decisão
recorrida.
Sucede, porém, que a decisão do presente recurso nenhuma utilidade apresenta
para o recorrente, pois que mesmo que este Tribunal decidisse no sentido da
procedência da questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente, sempre
se manteria a decisão recorrida que entendeu não estarem preenchidos os
pressupostos de aplicação do artigo 371º-A do Código de Processo Penal.
Com efeito, e como resulta da leitura do texto do correspondente acórdão, o
tribunal recorrido entendeu, a título complementar, que as novas leis penais que
o recorrente pretendia que lhe fossem aplicadas não eram mais favoráveis ao
condenado nem eram abstractamente aplicáveis ao caso do condenado, sendo que
estes são também – na perspectiva do tribunal recorrido, que ao Tribunal
Constitucional não compete agora sindicar – pressupostos de aplicação do regime
do artigo 371º-A do Código de Processo Penal, a par do pressuposto que o
recorrente censura (o da entrada em vigor de novas leis penais após a prolação
de decisão transitada em julgado).
Dito de outro modo: mesmo que o Tribunal Constitucional viesse a entender que o
pressuposto que o recorrente censura assenta numa interpretação inconstitucional
da norma do artigo 371º-A do Código de Processo Penal, sempre não estaria
verificado outro pressuposto de aplicação deste preceito, mantendo-se, como tal,
o sentido da decisão ora recorrida, que considerou não haver lugar à reabertura
da audiência.
Termos em que, por falta de interesse processual do recorrente, se não conhece
do objecto do presente recurso de constitucionalidade.”.
O recorrente vem agora reclamar a conferência, sustentando o seguinte (fls. 684
e seguintes):
“[…]
4. 4. Antes de mais, cumpre salientar que, nos termos do art. 371°-A do CPP, o
Tribunal competente para conhecer o pedido de reabertura da audiência para
aplicação de lei penal mais favorável é o Tribunal de primeira instância.
5. Na realidade, tem sido pacífica a recente jurisprudência do STJ que se vem
pronunciando sobre a aplicação do art. 371°-A do CPP, no sentido de competir ao
Tribunal de 1ª instância, e não ao Tribunal de recurso, o julgamento do
incidente de reabertura da audiência, v.g. ac. STJ de 30/04/2008, Proc. 4723/07
da 3ª Secção, relator Raul Borges, in www.dgsi.pt acórdãos do STJ.
6. E, na situação dos presentes autos, a decisão do tribunal de primeira
instância que indeferiu o pedido de reabertura da audiência requerido pelo ora
recorrente assentou exclusivamente na interpretação formal, cuja
inconstitucionalidade se invoca e constitui o objecto do presente recurso, de
pretensamente faltar o primeiro pressuposto de aplicação do art. 371°-A do CPP.
7. Isto é, como resulta do D. despacho do Tribunal de primeira instância, como a
condenação do arguido no D. acórdão do Tribunal da Relação de Évora ocorreu já
após a entrada em vigor do novo regime legal que pretende ver-lhe aplicado,
falha o pressuposto de aplicação daquela norma consistente em a decisão que
condenou o arguido ter transitado em julgado antes da entrada em vigor da lei
mais favorável.
8. Para tanto, o tribunal de primeira instância fundamenta-se numa presunção
juridicamente inadmissível (e inconstitucional, conforme o recorrente sempre
invocou nos autos) de a decisão que é proferida após a entrada em vigor de
regimes legais sucessivos ter já em linha de conta a sucessão de leis no tempo
na condenação a proferir (quer se trate de decisão proferida em primeira
instância ou nas instâncias superiores), ainda que, como resulta manifestamente
da fundamentação do D. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ser a mesma
totalmente omissa quanto à aplicação do novo regime legal resultante das
alterações de 2007 aos Códigos Penal e de Processo Penal.
9. Verifica-se, assim, que a decisão do Tribunal de primeira instância sobre a
reabertura da audiência que foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação de
Évora (e subsequentemente para esse Venerando Tribunal Constitucional) nunca se
pronunciou sobre a questão de o novo regime penal ser ou não mais favorável, a
qual serve de fundamento à decisão sumária objecto da presente reclamação de não
conhecimento do presente recurso por pretensa e putativa falta de interesse
processual do recorrente.
10. Com efeito, é no D. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que julgou o
recurso da decisão de indeferimento do pedido de reabertura da audiência, que
vem introduzida (a título complementar, como bem refere o Exmo, Conselheiro
Relator na D. decisão sumária de que ora se reclama) a questão de as leis novas
não serem mais favoráveis ao condenado nem serem abstractamente aplicáveis ao
caso do condenado.
11. Acontece que, tal interpretação e aplicação do direito não vincula os
restantes tribunais, designadamente o Tribunal de primeira instância a quem
cumpre conhecer a questão da reabertura da audiência nos presentes autos.
12. Aliás, salvo o devido respeito, a alusão pelo tribunal da Relação de Évora à
questão de as leis novas não serem mais favoráveis ao condenado nem serem
abstractamente aplicáveis ao caso do condenado mais não parece do que uma
justificação para o facto de o anterior acórdão daquele Tribunal Superior que
condenou o ora recorrente a uma pena de prisão ser totalmente omisso na sua
fundamentação quanto à aplicação do novo regime legal em vigor a partir de 15 de
Setembro de 2007.
13. Contudo, e porque a decisão do Tribunal de primeira instância que indeferiu
o pedido de reabertura da audiência não se debruçou sobre aquela questão de as
leis novas serem, ou não, mais favoráveis ao condenado, verifica-se um excesso
de pronúncia pelo Tribunal da Relação de Évora, pois extravasou os poderes de
conhecimento que lhe advinham do recurso daquela decisão da primeira instância.
14. Acresce que, salvo o devido respeito, a interpretação e aplicação do direito
perfilhadas pelo Tribunal da Relação de Évora no sentido de as leis novas não
serem mais favoráveis ao condenado nem serem abstractamente aplicáveis ao caso
do condenado carece em absoluto de qualquer fundamento, até por contradizer a D.
jurisprudência desse Venerando ‘Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de
Justiça.
15. Com efeito, no sentido de a alteração legislativa efectivamente tratar-se de
um caso de aplicação retroactiva de lei penal mais favorável, já se pronunciou
esse Venerando Tribunal Constitucional, no acórdão n.° 164/2008, publicado na 2ª
Série do Diário da República, de 10 de Abril de 2008, em que decidiu:
“a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 371º-A do Código de
Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para
aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a
considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da
liberdade;”
16. Sendo certo que também é esse o entendimento unânime do Supremo Tribunal de
Justiça sobre a questão, razão pela qual, não deve vingar a posição do Exmo.
Conselheiro Relator, perfilhada na D. decisão sumária de que se reclama, de não
competir a esse Venerando Tribunal Constitucional sindicar a perspectiva do
Tribunal da Relação de Évora de não aplicação do novo regime legal, sob pena de
permitir-se uma aplicação do direito claramente violadora dos princípios
constitucionais em matéria penal.
17. Por conseguinte, na situação dos presentes autos, a decisão sob recurso,
cuja inconstitucionalidade o recorrente sempre invocou, é tão-só a interpretação
e aplicação do direito perfilhadas de não ser possível a reabertura da audiência
caso a decisão de recurso pendente da sentença do Tribunal de primeira instância
vier a ser proferida após a entrada em vigor da lei penal mais favorável, não
tendo o arguido/recorrente tido a possibilidade de se pronunciar nos autos sobre
a aplicação da lei nova mais favorável, assim devendo ser admitida a
possibilidade de para o efeito, requerer a reabertura da audiência para o
Tribunal se pronunciar expressamente sobre a questão.
18. Porquanto, conforme se demonstrou, a questão suscitada no D. acórdão do
Tribunal da Relação de Évora de as leis novas não serem mais favoráveis ao
condenado nem serem abstractamente aplicáveis ao caso do condenado não vincula o
Tribunal de primeira instância, a quem compete conhecer do pedido de reabertura
da audiência.
19. Em consequência fica demonstrado o inequívoco interesse processual do
recorrente resultante da utilidade que retirará da requerida declaração de
inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do direito perfilhadas nos
presentes autos.
20. Porquanto, em resultado do esperado provimento do presente recurso, deverá o
Tribunal da Relação de Évora proceder à reforma do D. acórdão que manteve o
indeferimento do pedido de reabertura da audiência, no sentido de:
- ordenar a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, fim de conhecer a
questão em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que venha a ser
proferido e sem estar vinculado à interpretação e aplicação do direito quanto à
questão de as leis novas não serem mais favoráveis ao condenado nem serem
abstractamente aplicáveis ao caso do condenado;
- ser produzida prova específica sobre os pressupostos da aplicação da lei nova
no que respeita ao alargado regime da suspensão da execução da pena de prisão e
da prestação de trabalho a favor da comunidade e o Tribunal pronunciar-se
expressamente sobre a aplicação da lei nova.
21. Pois, se assim não fosse, e vingasse a tese de o Tribunal da Relação poder
desde logo determinar se o novo regime legal é ou não mais favorável ao
condenado, estar-se-ia a preterir a regra da competência do Tribunal de primeira
instância para o conhecimento da questão da reabertura da audiência e a coarctar
uma instância de recurso dessa decisão do Tribunal de primeira instância, em
clara violação dos princípios constitucionais invocados no presente recurso.
22. Com efeito, sustentado na vasta e pacífica jurisprudência desse Venerando
Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça que se debruçou sobre a
aplicação do art. 371°-A do CPP, tem o ora recorrente reiteradamente invocado
nos presentes autos a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do
direito perfilhadas nas decisões recorridas sobre a reabertura da audiência para
aplicação de lei penal mais favorável ao condenado, com os seguintes fundamentos
que se sintetizam:
23. “(…) a questão da reabertura da audiência, nos termos do art. 371°-A do CPP,
não pode (…) deixar de ser conhecida e julgada pelo Tribunal de 1ª instância,
sob pena de estar a impedir-se um meio de defesa do arguido contra a condenação
que lhe foi aplicada e um grau de recurso da decisão de mérito que vier a ser
tomada nesse meio de defesa (leia-se a aplicação retroactiva de lei penal mais
favorável). Neste sentido de competir ao Tribunal de 1ª instância, e não ao
Tribunal de recurso, o julgamento do incidente de reabertura da audiência, tem
sido pacífica a recente jurisprudência do S1J que se vem pronunciando sobre a
aplicação do art. 371°-A do CPP, v.g. ac. STJ de 30/04/2008, Proc. 4723/07 da 3ª
Secção, relator Raul Borges, in www.dgsi.pt acórdãos do STJ”
24. “Da jurisprudência pacífica do STJ, reproduzida neste aresto, resulta
inequivocamente que não pode merecer acolhimento a tese perfilhada na decisão
recorrida, assente no errado pressuposto e na errada presunção de, necessária e
implicitamente, para efeitos de aplicação do art. 371°-A do CPP, o Tribunal de
recurso ter “já em linha de conta a sucessão de leis no tempo na condenação a
proferir”, pois é pacífica a necessidade de produção de prova específica sobre a
verificação dos pressupostos da lei mais favorável, a realizar em audiência
própria junto do Tribunal de 1ª instância, e não perante o Tribunal de recurso.”
25. Ora, conforme se referiu, na situação dos presentes autos, o Tribunal de
recurso não só não ordenou a produção de prova específica sobre a verificação
dos pressupostos da lei nova, como, inclusivamente, omitiu na fundamentação do
acórdão qualquer alusão ao novo regime legal e à ponderação da sua eventual
aplicação in casu.
26. “As Secções Criminais do S1J convergiram para uma aplicação uniforme do
direito relativamente questão controversa da definição do momento relevante do
ponto de vista do titular do direito ao recurso, fixando-o pacificamente no
momento em que é proferida a decisão de que se pretende recorrer, pois é esta
que contém e fixa os elementos determinantes para a formulação do juízo do
interessado sobre o direito e o exercício do direito de recorrer — neste
sentido, ac. STJ de 22/10/2008, Proc. 3376/08 da 3 Secção, relator Pires da
Graça, in www.dgsi.pt acórdãos do STJ”
27. “Com efeito, como sucede in casu, o arguido veio invocar a aplicação de lei
mais favorável no sentido lato que tem sido perfilhado jurisprudencialmente,
isto é, “(...) que é ponto assente que é lei mais favorável não só aquela que
conduz à aplicação de uma pena, qualitativa ou quantitativamente, menor, como a
que por qualquer meio substantivo influi na pena antes aplicada”, vg. a
substituição da pena de prisão aplicada pela suspensão da sua execução ou por
trabalho a favor da comunidade, atentos os novos regimes legais mais favoráveis,
o que pressupõe a produção de prova sobre matéria de facto (personalidade do
arguido) a realizar no tribunal da condenação e não perante o tribunal de
recurso. (…)”
28. “(...) por dever de patrocínio, não pode deixar de contestar-se o
entendimento perfilhado no acórdão recorrido de que ‘(…) não se vislumbra que as
novas leis penais sejam mais favoráveis ao condenado, e, sejam abstractamente
aplicáveis ao caso do condenado, tendo em consideração a medida concreta da pena
que lhe foi aplicada pela decisão transitada em julgado.”
29. “Salvo o devido respeito, tal entendimento improcede, pois é inequívoco e
inquestionável que as alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 59/2007,
de 4 de Setembro consubstanciaram um regime penal mais favorável anteriormente
vigente, com aplicação à situação do ora recorrente.”
30. “Com efeito, ao ter alargado de 3 para 5 anos o limite da pena de prisão,
cuja execução é susceptível de suspensão (art. 50° do CP na nova redacção), o
legislador veio ampliar a aplicação do regime da suspensão da execução da pena
de prisão aplicada em condenações por crimes mais graves, inclusivamente
dolosos, que antes não beneficiavam desta possibilidade.”
31. “Aliás, corroborando a tese desta alteração legislativa efectivamente
tratar-se de um caso de aplicação retroactiva de lei penal mais favorável, o
Tribunal Constitucional, no acórdão n.° 164/2008, publicado na 2ª Série do
Diário da República, de 10 de Abril de 2008, decidiu:
“a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 371.º -A do Código
de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto,
quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para
aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a
considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da
liberdade;”
32. “Por outro lado, também a nova redacção do art. 58° do CP consubstancia
inequivocamente um regime penal mais favorável, pois o legislador ampliou de 1
para 2 anos o limite da pena de prisão susceptível de ser substituída por
trabalho a favor da comunidade.”
33. “Ora, a pena aplicada ao recorrente foi precisamente reduzida para 2 anos de
prisão pelo D. acórdão desse Venerando Tribunal da Relação proferido nos
presentes autos,”
34. “Resulta, assim, evidente que se impõe agora ponderar a aplicação do art.
58° do CP, anteriormente prejudicada em virtude de a pena aplicada ao recorrente
exceder o anterior limite legal, sob pena de violação dos princípios da
necessidade e proporcionalidade das penas.”
35. “Em consequência, estando em causa uma questão de sucessão de leis penais no
tempo e atento o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido (que
prevalece sobre o caso julgado), a qual deve expressamente constar da
fundamentação das decisões judiciais, a interpretação do art. 371°-A do CPP,
compatível com o espírito do legislador, com os elementos sistemáticos e
teleológicos e que não afronta a letra da lei, deverá ser no sentido de só não
ser possível requerer a reabertura da audiência nas situações em que o arguido
tenha tido a possibilidade de invocar na alegação de recurso da sentença do
tribunal de 1ª instância a aplicação da lei penal mais favorável que, entretanto
entrou em vigor, assim permitindo ao tribunal de recurso pronunciar-se
expressamente sobre a questão e, eventualmente, se necessário, remeter os autos
ao tribunal da condenação para produção de prova necessária para o efeito, como
sucedeu nas várias decisões do STJ supra citadas”.
36. “Verifica-se, assim, que na situação em apreço no presente recurso
discute-se a interpretação do art. 371º-A do CPP no sentido da admissibilidade,
ou não, da aplicação da nova lei mais favorável sem que o arguido tenha o
direito de expressamente se pronunciar sobre a questão ou de vir a requerer a
reabertura da audiência com esse fundamento.”
37. “Entende o recorrente, sustentado na Jurisprudência pacífica do STJ que
invocou nos autos, dever sempre o arguido/condenado ter o direito de invocar a
aplicação de lei penal mais favorável.”
38. “Com efeito, no sentido de competir ao Tribunal de 1ª instância, e não ao
Tribunal de recurso o julgamento do incidente de reabertura da audiência, tem
sido pacífica a recente jurisprudência do STJ que se vem pronunciando sobre a
aplicação do art. 371º-A do CPP”
39. Assim como, também tem sido pacífico o entendimento do STJ quanto à
necessidade de produção de prova específica sobre a verificação dos pressupostos
da lei mais favorável, a realizar em audiência própria junto do Tribunal de
primeira instância, e não perante o Tribunal de recurso.”
40. “Face ao exposto, como corolário da posição defendida no presente recurso de
constitucionalidade, o Tribunal que deverá conhecer da questão da aplicação da
lei nova mais favorável será, consoante os casos:
- ou o Tribunal de recurso, caso o arguido tenha tido a oportunidade de suscitar
a questão da aplicação da lei nova mais favorável na motivação e nas conclusões
do recurso, devendo ser ordenada a baixa do processo para produção da prova
necessária perante o Tribunal de primeira instância;
- ou o tribunal de primeira instância, caso a questão da aplicação da lei nova
mais favorável apenas possa vir a ser suscitada pelo arguido/condenado em sede
de pedido de reabertura da audiência, mediante a produção de prova especifica
que venha a ser requerida para o efeito, assim se garantido uma instância de
recurso da decisão que vier a ser tomada sobre a aplicação da lei penal mais
favorável.”
41. “Face ao exposto, reputam-se violados pelo Acórdão recorrido:
- as garantias constitucionais de defesa do arguido, incluindo o direito ao
recurso, previstas no art. 32°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa,
nomeadamente ao atribuir ao Tribunal de segunda instância a primeira e única
decisão sobre a aplicação de lei mais favorável;
- o princípio do contraditório, previsto no art. 32°, nº 5 da Constituição da
República Portuguesa, nomeadamente ao não permitir ao arguido/condenado o
direito de expressamente invocar e fundamentar nos autos a aplicação de lei
penal mais favorável, ficando à mercê da eventual ponderação da questão pelo
Tribunal de recurso, apesar de não ter sido alegada ou constar das conclusões do
recurso;
- o princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais
favorável ao arguido, previsto no art. 29º, nº 4, da Constituição da República
Portuguesa;
- e o princípio da igualdade, previsto no art. 13° da Constituição da República
Portuguesa, porquanto ao arguido foi coarctado o direito de invocar a aplicação
de lei posterior mais favorável, em clara discriminação relativamente aos demais
que, apenas por uma questão temporal, viram as decisões dos recursos que haviam
interposto das sentenças condenatórias serem proferidas antes de 15 de Setembro
de 2007 (data da entrada em vigor da lei mais favorável), e já puderam requerer
a reabertura da audiência com esse fundamento.”
42. Fica, assim, demonstrada a pertinência do conhecimento da questão de
constitucionalidade subjacente ao presente recurso, atento o inerente e
manifesto interesse processual do recorrente, consubstanciado na utilidade que
lhe advirá do esperado provimento do recurso, em resultado do qual deverão os
autos baixar ao Tribunal de primeira instância para conhecimento da questão da
reabertura da audiência, sem estar vinculado à interpretação perfilhada pelo
Tribunal da Relação de Évora quanto à questão de as leis novas não serem mais
favoráveis ao condenado ou não serem abstractamente aplicáveis ao caso do
condenado.
Nestes termos, e nos mais de direito, sempre com o Douto suprimento de Vossas
Excelências, deve ser admitida a presente reclamação da Douta decisão sumária do
Exmo. Relator que decidiu não conhecer do recurso, substituindo-se a mesma por
acórdão que determine o conhecimento do objecto do recurso, e, em consequência,
ordene o prosseguimento dos autos e a notificação do recorrente para apresentar
alegações, nos termos e para os efeitos do n.° 5 do art. 78°-A da Lei n.° 28/82,
de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, com as legais consequências”.
Notificado da reclamação, respondeu o representante do Ministério Público junto
do Tribunal Constitucional nos seguintes termos (fls. 698 e seguintes):
“1º Na Decisão Sumária de fls. 676 a 682, entendeu-se que a questão de
inconstitucionalidade que o recorrente pretendia ver apreciada era a da norma do
artigo 371º-A do CPP, na interpretação de que não era possível a reabertura de
audiência, caso a decisão de recurso pendente da sentença do tribunal de 1ª
instância viesse a ser proferida após a entrada em vigor da lei penal mais
favorável.
2º Porém, decidiu-se não conhecer do recurso por falta de interesse processual,
porque o acórdão recorrido “a título complementar” tinha decidido que, no caso,
as novas leis não eram mais favoráveis ao condenado, nem eram abstractamente,
aplicáveis, pelo que, independentemente do sentido da decisão que o Tribunal
Constitucional viesse a proferir quanto à primeira questão, ela revelar-se-ia
processualmente inútil, porque a decisão se manteria por força deste segundo
fundamento, ou seja, em última análise, não haveria lugar à reabertura de
audiência, prevista no artigo 371º-A do CPP.
3º A Decisão Sumária só poderia ser posta em causa se o recorrente invocasse uma
inconstitucionalidade que estivesse relacionada com este segundo fundamento, o
que levou a concluir pela falta de interesse processual.
4º Ora, embora tal questão venha referida no requerimento de interposição do
recurso e no posteriormente apresentado, nunca é aí tratada de forma autónoma,
nem vem equacionada como uma questão de inconstitucionalidade normativa, única
que podia constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
5º Por outro lado, como esse “novo” fundamento não constava da decisão da 1ª
instância, poderia colocar-se a questão de o recorrente não ter tido
oportunidade de, anteriormente, invocar a referida inconstitucionalidade.
6º Ora, nos casos em que o recorrente está dispensado do ónus de suscitação
prévia, sobre ele recai outro ónus: o de explicar minimamente porque é que a
interpretação é surpreendente, inesperada, imprevisível ou insólita (vd. Acórdão
nº 213/2004).
7º Pelo que consta do requerimento de interposição do recurso, daquele que foi
apresentado posteriormente e até do teor da reclamação para a Conferência,
conclui-se, claramente, que não foi dado cumprimento àquele ónus.
8º Por último, acrescentamos que, ainda no que diz respeito ao segundo
fundamento, a interpretação acolhida no acórdão recorrido, apesar de não constar
da decisão da 1ª instância, não era sequer uma novidade no processo.
9º Bastará atentar que a resposta do Ministério Público, na 1ª instância, ao
pedido de reabertura de audiência, aborda exclusivamente esta questão - de a lei
nova não se mostrar, no caso, mais favorável -, concluindo-se, aí, pelo
indeferimento do pedido, com base nesse fundamento (fls.170 a 174).
10º Essa resposta foi notificada ao recorrente (fls 177), pelo que, embora a
Senhora Juíza da 1ª instância indeferisse o pedido com base noutro fundamento,
não se pode minimamente afirmar que a interpretação acolhida pela Relação fosse
anómala ou sequer inesperada, de forma a dispensar o recorrente do ónus da
suscitação prévia.
11º Por tudo o exposto, deve a reclamação ser indeferida”.
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
A decisão sumária reclamada, baseando-se no carácter meramente instrumental do
recurso de constitucionalidade, entendeu ser de não conhecer do objecto do
recurso, por inutilidade, por considerar que a decisão recorrida se tinha
fundado não apenas na interpretação normativa que se pretende estar ferida de
inconstitucionalidade (baseada no pressuposto de que a reabertura da audiência
prevista no artigo 371º-A do CPP não tem lugar quando o acórdão condenatório for
proferido após a entrada em vigor do novo regime legal), mas também numa outra
consideração, invocada a título complementar, segundo a qual as novas leis
penais não são mais favoráveis nem abstractamente aplicáveis ao arguido, em
função da medida concreta da pena que lhe foi aplicada.
Pretende agora o recorrente que só o tribunal de primeira instância era
competente para conhecer do pedido de reabertura da audiência e que esse
tribunal, ao indeferir o pedido, não tomou qualquer posição sobre aplicabilidade
ou o carácter mais favorável da lei nova, pelo que o acórdão da Relação, ao
invocar aquele segundo fundamento, cometeu excesso de pronúncia. Alega ainda que
a interpretação perfilhada pelo Tribunal da Relação, nesse conspecto, não tem
fundamento legal e é contrária à jurisprudência do Tribunal Constitucional e do
Supremo Tribunal de Justiça e não vincula o tribunal de primeira instância.
Vindo a concluir que o recurso de constitucionalidade mantém a sua utilidade,
visto que, a ser procedente, implicará que o processo baixe à primeira instância
para ser reapreciada a decisão de indeferimento da reabertura da audiência à luz
do juízo de inconstitucionalidade que tiver sido formulado.
O certo é que o Tribunal Constitucional não tem competência para verificar a
invocada nulidade por excesso de pronúncia, nem pode emitir qualquer juízo de
mérito sobre a validade dos argumentos que tenham sido utilizados pelo tribunal
recorrido no plano da aplicação do direito ordinário.
Nada permite concluir, por outro lado, que a segunda ordem de considerações em
que o tribunal recorrido fundou o seu julgamento de improcedência do recurso
tenha sido invocada a título de mero obter dictum. Na verdade, a Relação não se
limitou a aludir à possibilidade de o arguido não poder beneficiar do regime
decorrente da lei nova, antes afirmou esse entendimento, por considerar que a
nova lei não é mais favorável nem abstractamente aplicável ao condenado, e
procurou demonstrar de forma desenvolvida e fundamentada essa asserção, acabando
por concluir no sentido da improcedência do recurso com base nos «motivos e
fundamentos expostos» e, portanto, como tudo indica, com base também no
fundamento que foi apresentado e desenvolvido a título complementar.
Neste condicionalismo, o recurso de constitucionalidade não tem utilidade, tendo
em conta que apenas incidiu sobre um dos aspectos que foi analisado e serviu de
fundamento à decisão recorrida. Isso porque, contrariamente ao que vem afirmado
pelo reclamante, mesmo que seja julgado procedente o recurso e haja lugar à
reforma do julgado em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que
venha a ser formulado, subsiste um outro motivo para se mantenha o sentido da
decisão recorrida, que não foi objecto de impugnação, e que o Tribunal
Constitucional não tem competência para invalidar.
Ou seja, perante um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a única
questão que vem suscitada, caso o recurso prosseguisse, não poderia o Tribunal
Constitucional determinar que a Relação ignorasse o fundamento alternativo que
invocou para decidir, para que a reforma do acórdão pudesse ter o efeito útil
que o reclamante lhe pretende atribuir.
Assim sendo, não é de conhecer do recurso, por inutilidade, tal como se
considerou na decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 25 de Março de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão