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Processo n.º 678/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., condenado na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual
período, pela prática de vários crimes (explosão, detenção de arma proibida,
detenção ilegal de arma de fogo e detenção de munições proibidas), recorre do
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Junho de 2009, que confirmou
a decisão do tribunal de 1ª instância, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC).
Pretende que se aprecie a constitucionalidade da norma do n.º 4 do
artigo 345.º , conjugado com os artigos 133.º, 126.º e 344.º do Código de
Processo Penal, quando interpretados no sentido de permitir a valoração das
declarações de um arguido em desfavor do co-arguido que, ao abrigo da alínea d)
do n.º 1 do artigo 61.º do mesmo Código, entenda não prestar declarações sobre
o objecto do processo.
2. Prosseguindo o processo para alegações, o recorrente conclui nos
termos seguintes:
“1) O artigo 32º da Constituição da República consagra as garantias do processo
criminal e o artigo 203º da Lei Fundamental consagra a independência dos
tribunais.
2) O nº 1 do artigo 32º da CRP consagra uma cláusula geral que aglutina e
abrange todas as garantias de defesa, mormente as constantes do artigo 61º do
CPP.
3) O nº 8 do artigo 32º da CRP proíbe também a utilização de provas obtidas
“mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa,
abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas
telecomunicações.”
4) O direito ao silêncio dos arguidos no que tange aos factos pelos quais estão
acusados é um direito “fundamental” de todo e qualquer acusado que não pode ser
afectado por qualquer forma.
5) Os arguidos e co-arguidos não podem depor como testemunhas no âmbito de um
processo criminal (cfr. alínea a) do nº 1 do artigo 133º do CPP), reconhecendo
assim a lei ordinária a inexistente credibilidade das referidas declarações.
6) O nº 4 do artigo 345º, conj. com os artigos 133º, 126º e 344º, todos do CPP,
conj. com os nºs l e 8 do artigo 32º e artigo 203º, ambos da CRP, impede a
valoração das declarações de co-arguido quando as mesmas são objectivamente
prejudiciais ao co-arguido que, no uso do direito que a Constituição e a Lei
garantem, se remeteu ao silêncio.
7) As instâncias valoraram as declarações do co-arguido B. em prejuízo do
co-arguido A., que legalmente se remeteu ao silêncio.
8) É inconstitucional toda e qualquer interpretação que permita valorar as
declarações de um co-arguido para efeitos de incriminação de outros co-arguidos
que, no uso do direito previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 61º do CPP e no
nº 1 do artigo 32º da Constituição, se recusem a prestar declarações sobre o
objecto do processo. Inconstitucionalidade que expressamente se reitera e invoca
para todos os legais e devidos efeitos.
9) A entender-se de forma contrária, estar-se-á a pressionar/coagir o arguido
que se remeteu ao silêncio a falar sobre os factos pelos quais está acusado e
esta situação não deixa de estar proibida pelo nº 8 do artigo 32º da CRP e pelo
próprio artigo 126º do CPP.
Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente
declarar-se inconstitucional a interpretação que as instâncias realizaram do nº
4 do artigo 345º, conj. com os artigos 133º, 126º e 344º, todos do CPP, na
medida em que valoraram as declarações de um co-arguido em prejuízo do
recorrente que se remeteu ao silêncio, e consequentemente, ordenar-se a baixa do
processo para prolação de nova decisão na qual não se valoram as referidas
declarações.”
O Ministério Público sustenta o seguinte:
“25º
Por todo o exposto, e na linha do anteriormente decidido por este Tribunal
Constitucional, cuja jurisprudência se julga de manter, crê-se de negar
provimento ao presente recurso.
Com efeito, como se procurou salientar ao longo das presentes alegações, no caso
dos presentes autos, o que está em causa é o facto de um dos arguidos ter
proferido declarações, em prejuízo de outros co- arguidos.
No entanto, o mesmo arguido não se recusou a responder, posteriormente, a
qualquer questão que lhe tivesse sido colocada, quer pelos Juízes que conduziram
o julgamento, quer pelo Ministério Público, quer pelos próprios advogados dos
restantes co-arguidos.
26º
Não há, assim, aqui, ao contrário do alegado pelo recorrente, nenhuma violação
de qualquer das garantias de defesa em processo penal, consagradas no artigo 32º
da Constituição da República, tendo-se preservado o due process of law.
Com efeito, os restantes arguidos tiveram sempre o poder de contraditar toda a
prova contra si produzida no processo (crossexamination), tendo, no entanto,
preferido manter-se em silêncio, o que é um direito que, naturalmente, lhes
assiste.
Não há, pois, nos presentes autos, muito pelo contrário, nenhuma violação do
princípio do contraditório.
27º
Por outro lado, também se não atingiu, de forma intolerável, desproporcionada ou
manifestamente opressiva, o direito de defesa dos restantes co-arguidos, que, se
entenderam de se remeter ao silêncio sobre o objecto do processo, o fizeram
livre e esclarecidamente.
E salvaguardou-se, acima de tudo, o imperativo da realização da justiça
material, característica indelével de um Estado de Direito Democrático.
28º
Por todas as razões invocadas, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá,
no âmbito do presente recurso:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação do nº 4 do artigo 345º, conjugado
com os arts. 133º, 126º e 344º, todos do Código do Processo Penal, no sentido de
permitir valorar as declarações de um co-arguido, para efeitos de incriminação
de outros co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do nº 1 do
art. 61º do Código de Processo Penal, não prestem declarações sobre o objecto do
processo;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão
recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.”
3. O acórdão recorrido é, na parte que mais directamente interessa
ao presente recurso, do seguinte teor:
“(…)
Os recorrentes A. e C. alegam que as declarações do co-arguido D. remetem para
duas problemáticas: a delimitação do impedimento do co-arguido depor como
testemunha; e o problema da valoração do conhecimento probatório do co-arguido.
Quanto à primeira das questões, defendem que o art.133.º, n.º l do C.P.P. impede
de depor como testemunhas o arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em
processos conexos, porquanto existe incompatibilidade entre a posição do
arguido, que dispõe de um direito ao silêncio, e a testemunha, que presta
juramento e está obrigada a responder às perguntas formuladas com verdade.
No que tange ao segundo tema, face ao acórdão n.º 525/97 do T.C., o n.º 4 do
art. 345.º do C.P.P, aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, veio eleger
expressamente uma nova proibição de prova: as declarações de um co-arguido em
prejuízo de outro co-arguido. A segunda parte do n.º 4 do art.345.º do C.P.P.
apenas servirá para reforçar o disposto na al. a) do n.º 3 do art.344.º do mesmo
Código.
É inconstitucional a interpretação que permita valorar as declarações de um
co-arguido para efeitos de incriminação de outros co-arguidos que, no uso do
direito previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 61.º do CPP, não prestem
declarações sobre o objecto do processo.
A admitir-se a posição contrária estar-se-ia de forma indirecta a pressionar os
co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a perguntas objecto do
processo, o que é defeso pelo n.º 1 do art.126.º do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Tal como se menciona na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida,
a posição do STJ, pode considerar-se uniforme no sentido da possibilidade de
valoração das declarações do co-arguido contra outro co-arguido, quer em face do
Código de Processo Penal vigente à data dos factos, quer perante a nova redacção
introduzida ao mesmo Código pela Lei n.º 48/2007, de 29/8. – cfr. entre outros,
os acórdãos do STJ de 4 de Maio de 1994, in CJ., ASTJ, ano II, 2.º, pág. 201, de
17 de Outubro de 1996 , in BMJ n.º 460 , pág. 399 e de 12 de Março de 2008 , in
CJ., ASTJ, ano XVI, 1.º, pág. 255.
Também a maioria da doutrina nacional aponta no mesmo sentido – cfr.
designadamente, Dr. Medina de Seica, “O Conhecimento Probatório do Co-Arguido”,
in Coimbra Editora, Stvdia Ivridica 42; Prof.ª Teresa Beleza, in Rev. MP, Ano
19º, nº 74, 39 e segs.; Prof. Germano Marques da Silva, in Processo Penal, II,
2002, pág. 191 e segs; Prof. Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de
Processo Penal”; e parecer do Prof. Figueiredo Dias, que terá sido junto ao
processo mencionado na fundamentação da sentença.
O Tribunal da Relação de Coimbra integra-se convictamente nesta posição, pelas
razões sucintas que se passam a expor.
O art. 125.º do Código de Processo Penal consagra entre nós o princípio da
legalidade, nos termos do qual «São admissíveis as provas que não forem
proibidas por lei.».
Entre os meios de prova que o Livro III do Código de Processo Penal autonomiza
encontram-se, entre outros, a prova testemunhal (artigos 128.º a 139.º) e as
declarações do arguido (artigos 140.º a 145.º).
Nem naquele Livro III, nem em outro local do C.P.P., a lei proíbe as declarações
dos co-arguidos como meio de prova, sendo mesmo admitida a sua valoração e
relevância ao permitir-se a acareação entre co-arguidos, no art.146.º, n.º1,
deste Código.
O art.133.º, n.º 1 do Código de Processo Penal estatui, designadamente, que
estão impedidos de depor como testemunhas «a) O arguido e os co-arguidos no
mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade».
Resulta deste preceito que não pode depor como testemunha a pessoa que no
processo foi constituída como arguida, quer quanto a factos que lhe são
imputados a si em exclusivo, quer quanto a factos que são imputados a si e aos
seus co-arguidos, o mesmo acontecendo relativamente a processos conexos.
O que visa este preceito é a protecção do próprio arguido, como tal constituído,
que assim fica excluído da obrigação de depor como testemunha se como tal for
indicado, e liberto ainda dos deveres de prestação de depoimento e de o fazer
com verdade sob pena de ser sancionado criminalmente.
O conteúdo deste preceito, de modo algum, nega a possibilidade de valoração das
declarações de um arguido contra o seu co-arguido.
Também o art.344.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Penal, que os
arguidos invocam na defesa do seu ponto de vista e que estatui que se exceptuam
do regime do n.º 2 – efeitos da confissão integral e sem reservas – os casos em
que «houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e
coerente de todos eles», não afasta todo e qualquer valor probatório das
declarações de um arguido contra o seu co-arguido.
Apenas afasta a força probatória pleníssima da confissão integral e sem reservas
e, assim, «existindo co-arguidos que não confessaram integralmente e sem
reservas, as declarações de um arguido constituem um meio de prova válido, a
apreciar livremente pelo tribunal – acórdão STJ, de 19 de Dezembro de 1996, CJ,
ASTJ, ano v, 3.º, pág. 214.
A invocação pelos recorrentes do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/97 –
por lapso mencionam o n.º 525/97 – e do n.º 4 do art. 345.º do C.P.P, aditado
pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, situa-se já noutro plano: a das limitações a
introduzir na prova feita por um co-arguido contra outro co-arguido.
O acórdão n.º 524/97, do Tribunal Constitucional, decidiu «Julgar
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, a norma extraída com referência aos artigos 133.º, 343.º e
345.º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às
declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando,
a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no
exercício do direito ao silêncio.».
O que estava ali em causa é o exercício do contraditório pelo co-arguido que se
remeteu ao silêncio em relação àquele que pretendeu colaborar com o Tribunal.
O n.º 4, do art. 345.º do C.P.P, aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, ao
passar a estatuir que «Não podem valer como meio de prova as declarações de um
co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a
responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2», mais não consagrou
que a jurisprudência acórdão n.º 524/97 do Tribunal Constitucional.
Por fim, defendem os recorrentes que a admitir-se a valoração das declarações de
um co-arguido contra o outro co-arguido esta seria uma forma indirecta a
pressionar os co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a perguntas
objecto do processo, o que é defeso pelo n.º 1 do art.126.º do Código de
Processo Penal. Seria assim inconstitucional a interpretação que permita valorar
as declarações de um co-arguido para efeitos de incriminação de outros
co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 61.º
do CPP, não prestem declarações sobre o objecto do processo.
Cremos que também nesta parte não assiste razão aos recorrentes.
Atento o disposto no art.61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, o
arguido goza do direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer
entidade, sobre os factos que dele forem imputados e sobre o conteúdo das
declarações que acerca deles prestar.
O direito ao silêncio – que não pode ser quebrado por qualquer das formas
previstas no art.126.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sob pena das provas
assim obtidas serem nulas, não podendo ser utilizadas –, não pode repercutir-se
na prova obtida e produzida através de meio legal, em termos de impedir a sua
valoração quando demonstre a responsabilização criminal do arguido.
Não só as declarações de co-arguido contra outro co-arguido, como qualquer outro
meio de prova produzida em audiência de julgamento, colocam o co-arguido não
declarante, que se remeteu ao silêncio, na situação de exercer ou não o
contraditório.
A produção da prova em audiência de julgamento, designadamente através de
prestação de declarações de co-arguido contra outro co-arguido, não é uma forma
indirecta a pressionar os co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a
perguntas objecto do processo, mas sim a forma de realização de justiça própria
de um Estado de Direito Democrático.
Ainda no âmbito das limitações às declarações de co-arguido contra outro
co-arguido, a doutrina e jurisprudência citadas estão de acordo em que a
apreciação do valor probatório daquelas declarações exige especiais cautelas
porquanto o declarante pode agir impulsionado por interesse em se desculpar
mediante a incriminação do co-arguido se resta em silêncio ou por outro motivo.
A doutrina citada e a jurisprudência maioritária exige que a sentença não
alicerce os factos provados exclusivamente nas declarações de co-arguido contra
outro co-arguido; é necessária uma corroboração probatória das declarações de
co-arguido contra outro co-arguido.
Já o citado acórdão do STJ de 12 de Março de 2008 defende que «dizer em
abstracto e genericamente que o depoimento do co-arguido só é válido se for
acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras de produção de
prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei.».
Este Tribunal da Relação entende, tal como o Tribunal a quo, que a doutrina da
corroboração deve aqui desempenhar um papel, pois não estando o co-arguido
sujeito a juramento, nem ao dever de verdade com cominação de sanção criminal,
deve exigir-se alguma prova no sentido da comprovação das declarações do
co-arguido.
Com esta interpretação acabada de enunciar entendemos que não se viola nenhuma
das normas processuais penais invocadas pelos recorrentes nas conclusões da
motivação, nem qualquer norma constitucional – sendo aqui de anotar que os
recorrentes não alegam em concreto uma norma da Constituição que teria sido
violada pelo Tribunal a quo.
No caso em apreciação os arguidos/recorrentes quiseram exercer e exerceram o
direito ao silêncio relativamente aos factos da explosão em causa que lhe eram
imputados.
Por sua vez, o co-arguido D. prestou declarações em que envolveu os co-arguidos
na viagem e acontecimentos da noite em causa – nos termos que se irão apurar.
O co-arguido D. não se recusou, porém, a responder às perguntas formuladas pelos
Juízes, nem suscitadas pelo Ministério Público ou pelos advogados presentes,
designadamente dos co-arguidos ora recorrentes.
Deste modo, improcede esta questão.”
(…).”
II – Fundamentos
4. Está em apreciação neste recurso a constitucionalidade da norma que permite a
valoração das declarações de um arguido em desfavor de outro arguido que, no
mesmo processo, tenha optado por não prestar declarações sobre os factos de que
é acusado. O recorrente pretende que o Tribunal decida que o aproveitamento de
declarações de um arguido para dar como provados factos desfavoráveis a um
co-arguido (por um mesmo crime ou por um crime conexo) viola o disposto nos n.ºs
1 e 8 do artigo 32.º e no artigo 203.º da Constituição.
O acórdão recorrido dá boa nota do estado da questão da relevância
probatória das declarações de um arguido como meio de prova de factos
desfavoráveis ao co-arguido no nosso direito processual penal. Como aí se
refere, a jurisprudência e a generalidade da doutrina dão resposta afirmativa à
questão de saber se as declarações de um arguido podem ser valoradas como meio
de prova de factos desfavoráveis a outro arguido (cfr., por mais recente,
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Novembro de 2009, P.
97/06.0JRLSB.S1). É minoritário o entendimento de que as declarações de um
arguido apenas pode ser fundamento de condenação para si, não devendo servir
para condenar o co-arguido (Rodrigo Santiago, “Reflexões sobre as «declarações
do arguido» como meio de prova no Código de Processo Penal de 1987” in Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, 1994, 27-62).
Sem recusar a admissibilidade e a idoneidade probatória de tal meio
de prova, de acordo com a regra da não taxatividade ou não tipicidade dos meios
de prova (artigo 125.º do CPP), deparam-se, contudo, entendimentos diferenciados
quanto ao seu modo de valoração, ou seja, quanto à aplicação do princípio da
livre apreciação a este tipo de prova.
Não tem faltado quem sustente que a prova por essa via obtida,
padece de uma debilidade congénita. Sustenta-se que, ainda que não se trate de
um meio de prova em abstracto proibido, é uma prova de diminuída credibilidade,
que merece reservas e cuidados muito especiais de admissibilidade e valoração
(p. ex. Teresa Beleza, “«Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do
depoimento do co-arguido no processo penal português”). À genérica subordinação
da prova por declarações do co-arguido ao princípio da livre apreciação pelo
julgador, opor-se-iam por um lado, “as variadas e turvas razões” que podem mover
um arguido a declarar a comprometer outros, e que podem ir desde o desejo de
vingança até à satisfação de vê-los arrastados para a sua mesma desgraça, do
afastamento da própria responsabilidade até à esperança de uma pena reduzida
pela colaboração. A estas razões intrínsecas de suspeição relativamente a esse
meio de prova acrescenta-se o que pode considerar-se uma razão extrínseca: a
circunstância de o arguido declarante não estar sujeito a juramento e ao
constrangimento para falar verdade inerente à ameaça penal para as falsas
declarações.
Por força disso, tem-se subordinado a valoração das declarações desfavoráveis do
co-arguido a várias cautelas, uma das quais é a chamada técnica da corroboração
perfilhada pelo acórdão recorrido. Na falta de dois meios de prova independentes
tendo por objecto a demonstração da existência ou inexistência do mesmo facto
(“verificação cruzada”), exigem-se elementos que, embora não tendo por objecto o
conteúdo da declaração probatória, consintam a verificação da sua veracidade
(elementi di riscontro). Trata-se de adquirir por outro meio a prova de factos
que, embora não coincidindo com aquele cuja demonstração está directamente em
causa, permite deduzir que o sujeito que afirmou a realidade deste outro facto
disse sobre ele a verdade. Nesta orientação, as declarações do co-arguido só
podem fundamentar a prova de um facto criminalmente relevante quando existe
“alguma prova adicional a tornar provável que a história do co-arguido é
verdadeira e que é razoavelmente seguro decidir com base nas suas declarações”,
como se diz no acórdão recorrido
Não importa qualificar esta exigência acrescida para saber se ela significa um
desvio (qualitativo) ao princípio da livre apreciação da prova ou se, afinal,
não é senão a concretização de regras de experiência para a correcta realização
da livre apreciação, em ordem a que esta se não apresente como arbítrio do
julgador, antes consubstancie o resultado de uma actividade susceptível de se
credenciar racionalmente perante o auditório de pessoas prudentes, experientes
das coisas da vida e de recta intenção. Como também não é indispensável decidir
se a existência de elementos de corroboração das declarações de um arguido
desfavoráveis a outro, face às garantias constitucionais do processo penal,
constitui complemento integrador sine qua non da sua atendibilidade. No caso, o
entendimento normativo adoptado foi o de que “… a doutrina da corroboração deve
aqui desempenhar um papel, pois não estando o co-arguido sujeito a juramento,
nem ao dever de verdade com cominação de sanção criminal, deve exigir-se alguma
prova no sentido da comprovação das declarações do co-arguido”, pelo que é sobre
ele que vai exercer-se o juízo de conformidade constitucional.
5. Como o Ministério Público põe em evidência, a jurisprudência do Tribunal a
propósito de outras variantes do problema do conhecimento probatório do
co-arguido conduz a uma resposta seguramente negativa à pretensão do recorrente.
No acórdão n.º 524/97, disponível, como os demais citados em
www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação
do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República, a norma extraída com
referência aos artigos 133.º, 343.º e 345.º do Código de Processo Penal, no
sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um
co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro
co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao
silêncio.
Não se negou valor probatório às declarações do co-arguido. O que motivou o
julgamento de inconstitucionalidade foi a violação do contraditório, não a falta
ou deficiência de aptidão probatória de tais declarações. Apenas se afastaram em
função do seu modo de produção, considerando-se contrário às garantias do
arguido em processo penal que o arguido não possa contraditar toda a prova
contra si produzida, como sucede quando o co-arguido se recusa a responder, no
exercício do seu direito ao silêncio, às perguntas que a defesa do arguido
prejudicado pelas suas declarações anteriores entende colocar-lhe. Note-se que a
redacção do n.º 4 do artigo 345.º do Código, introduzido pela Lei n.º 48/2007,
reflecte já este julgamento e foi este que foi aplicado ao caso.
Embora essa não fosse a questão directamente colocada, está pressuposta na
resposta dada no acórdão n.º 524/97 a possibilidade de valoração das declarações
do co-arguido, desde que respeitado o contraditório. Ora, a hipótese que no
presente recurso se aprecia distancia-se daquela, precisamente, quanto ao
aspecto que motivou o julgamento de inconstitucionalidade. Não integra a
dimensão normativa em apreciação que o co-arguido que prestou as declarações
desfavoráveis se tenha recusado a responder às perguntas formuladas pelo
defensor do arguido prejudicado.
Também do acórdão n.º 304/2004 só pode retirar-se argumento
contrário à pretensão do recorrente.
Neste acórdão começa por reconhecer-se que a superação de um modelo
inquisitorial do processo e a consagração basilar do processo penal de estrutura
acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à
prossecução da verdade em processo penal. Limites que, no tocante à aquisição
dos factos penalmente relevantes, se traduzem no conceito e regime das
proibições de prova. Costa Andrade, citando Gössel, afirma que “às proibições de
prova cabe a importante tarefa de “prevenir que o imperativo da realização da
justiça material que dimana do Estado de Direito redunde precisamente no seu
contrário”. (...) “É que, precisa GÖSSEL “do princípio do Estado de Direito
decorre o dever de averiguar a verdade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa
averiguação”” (cfr. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra
Editora, 1992, págs. 117 a 119).
E continua o acórdão:
“Segundo Medina de Seiça, a norma constante do artigo 133.º do CPP – impedimento
para depor como testemunha – representa “uma das regras que caracterizam em
maior medida a actual disciplina da prova testemunhal” e “constitui o vértice da
concepção global sobre a função ou posição processual que ao co-arguido se deve
reconhecer no quadro do direito probatório” (cfr. ob., cit., pág. 17).
A consagração de um impedimento em sede de obtenção/produção de prova implica
forçosamente uma limitação à aquisição de material probatório.
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como
fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência
da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez
referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o
também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa
Andrade, ob. cit., pág. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos
mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão
do privilégio contra a auto-incriminação.
O alargamento do impedimento – alargamento do direito do arguido ao silêncio –
ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a
auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a
exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através
do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa sua própria posição
processual, auto-incriminando-se (cfr. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit.,
págs. 36 e 37).
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à “colaboração
forçada” na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma
investigação.
O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133.º, n.º 2 do CPP,
pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do
co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a
garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao
constrangimento característico da prova testemunhal.
Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o
impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (ainda neste sentido Costa
Andrade, ob. cit. pág. 121 e Medina de Seiça ob. cit. pág. 123) [ ...]
5. O que se deixa dito permite-nos agora abordar, directamente, e com a
limitação dos poderes de cognição deste Tribunal (no caso, aceitando que o
co-arguido não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo
separado e que não consentiu, expressamente, em depor como testemunha), a
questão de constitucionalidade em causa: saber se a admissão e valoração do
referido meio de prova contra o arguido no processo em que é prestado o
depoimento, tal como resulta da interpretação feita pelo acórdão recorrido da
norma do artigo 132.º n.º 2 do CPP, ofende a Constituição.
E, desde logo, a de saber se se verifica a violação do artigo 32.º n.º 1 da CRP.
Ora, o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento
relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto
tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não
auto-incriminar.
Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento
cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer
forma por que o procedimento criminal se pode extinguir.
E, por outro lado, faz relevar o facto de o consentimento expresso do mesmo
co-arguido ser suficiente para a legalidade deste meio de prova.
O que significa, por outras palavras, que o arguido, no processo onde o
depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito
infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à
inquirição do co-arguido como testemunha.
Mas, sendo assim – como é – não pode, desde logo, conceber-se que a eventual
ofensa do disposto no artigo 133.º n.º 2 do CPP, por o co-arguido não ter
expressado o seu consentimento – implique a violação das garantias de defesa,
constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo
onde o depoimento é prestado.”
Aqui, como no acórdão n.º 181/2005, entendeu-se que as cautelas de
que se rodeia a admissibilidade do depoimento do co-arguido são impostas pela
protecção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestá-lo e
não daquele contra o qual é valorado.
Com efeito, no acórdão n.º 181/2005, o Tribunal decidiu não julgar
inconstitucional o artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como
testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já
objecto de decisão transitada em julgado. Entendeu-se não ser incompatível com
as garantias processuais penais o entendimento de que o n.º 2 do artigo 133.º do
Código de Processo Penal visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa
do co-arguido em processo penal (designadamente, no processo separado),
garantindo o seu direito de se não auto-incriminar.
6. Como nestes acórdãos se põe em evidência, o arguido, cada
arguido, é senhor da decisão, que deve ser inteiramente livre e esclarecida, de
prestar ou não prestar declarações. E isso quer os factos lhe sejam imputados
apenas a si, quer respeitem também a outros arguidos. Cada arguido decide, como
melhor lhe convier, se presta ou não declarações. E se as prestar serão
valoradas, quanto a todos os factos sobre que versem, de acordo com o princípio
da liberdade objectiva do juízo de prova.
De modo algum, a circunstância de as declarações de um dos arguidos
poderem ser valoradas contra os demais afecta a livre decisão destes de optarem
pelo silêncio. Pode é a estratégia destes revelar-se menos adequada, mas isso é
inerente à normal evolução da produção de prova. Pode suceder com esse ou com
qualquer outro meio de prova, que os arguidos que exercem o direito ao silêncio
acabem por ver-se na necessidade ou conveniência de modificar essa opção face à
evolução da produção da prova.
Afirmar isto não significa que não deva o juiz encarar com cautelas
adicionais as declarações de um arguido em desfavor de outro. Como diz Medina De
Seiça, loc. cit., pág. 206, “apesar de legitimamente valorável e assumir
diversas vezes um significado precioso para a descoberta da verdade, constitui
uma máxima da experiência (nesse sentido naturalmente fundada) que a
informação probatória dos co-arguidos, na parte em que se refere aos outros,
há-de rodear-se de particular dúvida”. Ora, o acórdão recorrido não perfilhou um
entendimento que tenha simplesmente nivelado valorativamente as declarações do
co-arguido às declarações de uma testemunha. Perfilhou, como se disse, a chamada
teoria da corroboração, contrastando as declarações do arguido com outros
elementos que, mesmo sem versarem directamente sobre os factos por elas
narrados, conferiam credibilidade a essa narrativa.
Seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e
fundamentação acrescidas, as declarações do co-arguido são meio probatório
idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal
destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável
negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em
discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos
arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio
particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua
correspondência à realidade.
Decisivo é que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas
valer não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório, como resulta do
acórdão n.º 194/97, mas disso não há suspeita na dimensão normativa em
apreciação.
Não pode, pois, dizer-se que tenha sido aplicado um entendimento normativo
contrário à garantia do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
7. Invoca, ainda, o recorrente a violação do artigo 32.º, n.º 8 e do artigo
203.º da Constituição.
Mas também sem razão.
Com efeito, como se referiu no citado acórdão n.º 304/2004, no
âmbito do artigo 32.º, n.º 8 da CRP, só está compreendida a nulidade de
determinados meios de obtenção de prova, ali especificados ('tortura, coacção,
ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na visa
privada, no domicílio, na correspondência ou nas comunicações').
Ora, em nenhum destes casos se pode integrar a prestação de declarações por um
arguido quando outro ou outros se remeteram ao silêncio e a correspondente
valoração dessa declaração como meio de prova dos factos em discussão. O
recorrente exerceu, como livremente entendeu, o seu direito ao silêncio. O facto
de essa sua estratégia de defesa sair debilitada ou, porventura, não surtir o
mesmo efeito que teria se o arguido que prestou declarações tivesse igualmente
optado pelo silêncio sobre os factos deixa intacta aquela livre opção do
recorrente por não prestar declarações. O arguido tem o direito a não se
auto-incriminar; não a que não seja produzida prova contra si ou que os demais
arguidos conjuguem com a sua a estratégia de defesa deles. A prestação de
declarações pelo seu co-arguido e a sua valoração como demonstração da realidade
dos factos que a acusação imputou ao recorrente será um acontecimento
desagradável para si, mas não constitui ameaça de um mal dirigido a demovê-lo da
atitude que escolheu assumir.
Finalmente, é manifestamente destituído de fundamento afirmar que a
interpretação normativa questionada viole o princípio da independência dos
tribunais. É afirmação que os recorrentes não desenvolvem e que, num plano de
argumentação racional, é absolutamente estranho à questão que se discute. A
circunstância de deverem valorar determinado meio de prova não torna os juízes
mais ou menos livres perante quaisquer ordens ou instruções de quaisquer
autoridades, nem melindra qualquer dos factores componentes dessa independência.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o
recorrente nas custas com 25 (vinte e cinco) UCs de taxa de justiça.
Lx., 14/04/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão