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Processo n.º 164/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. reclama da decisão do Tribunal Judicial de Valongo que indeferiu o seu
requerimento de recurso para este Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 76.º,
n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional. Vejamos os termos da Reclamação:
“1 No processo acima referido foi intentada uma execução contra o Requerente, na
qual lhe é exigido o pagamento da quantia de 136.318,24 €, pelo Banco B..
2 O Requerente deduziu oposição a essa execução, não tendo feito o pagamento da
taxa de justiça devida, porque, nessa altura, tinha pedido protecção jurídica ao
ISS na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, através de
pertinente requerimento, do qual juntou cópia à petição de oposição.
3 O Requerente fundou o seu pedido de protecção jurídica no facto de estar
desempregado e não ter quaisquer rendimentos, nomeadamente subsídio de
desemprego, a que não tem direito por ter sido gerente de uma sociedade
comercial em situação de insolvência, e ainda ter um filho menor a seu cargo.
4 Algum tempo após a apresentação daquele requerimento, em face de interpelações
do ISS, que pretendia que ele demonstrasse as fontes da sua subsistência, e que
para o efeito apresentasse cópia da declaração de IRS, o Requerente entregou ao
ISS uma declaração do Serviço de Finanças comprovativa de que ele não
apresentara essa declaração (porque não tivera rendimentos), e comunicou-lhe
que, com seu filho, vivia às custas dos seus pais (que até são reformados).
5 Em nova investida, o ISS solicitou-lhe uma cópia da declaração de IRS de seus
pais, tendo ele cumprido essa exigência, da qual consta que o rendimento líquido
anual dos pais do Requerente, é de 16.040.00 €.
6 Com base nesta declaração – de rendimentos de seus pais! -, o ISS concedeu-lhe
protecção jurídica, com pagamento em prestações mensais de 96,04 €.
7 Inconformado com tal decisão, o Requerente impugnou aquela decisão para o
Tribunal ora recorrido, na qual, entre outros aspectos que agora não estão em
causa, impugnava este fundamento, ou seja, o fundamento de ter de pagar custas
com base em rendimentos de terceiros.
8 (Importa aqui dizer que, nessa face processual, nem passou pela cabeça do
subscritor que a decisão impugnada não passava de um humano equívoco...).
9 Aquela decisão foi confirmada pelo Tribunal recorrido, nomeadamente na parte
que ora está em causa.
10 Mais uma vez o Reqte. (ou seja o subscritor) pensou que o Tribunal laborava
em equívoco, nomeadamente na parte em que discorreu sobre o conceito de agregado
familiar, sem ter especificado a norma legal no discurso em que fundava a
decisão, nem a especificando no próprio dispositivo.
11 E por isso o Recorrente requereu a declaração de nulidade da decisão, com
base no disposto no art.° 668. °, 1 do CPC, enquanto que, admitindo que este
conceito estava consagrado no art.° 8. °-A da lei n. ° 34/2004, alegou que esta
norma, ao conter tão alargado conceito de agregado familiar, violava o disposto
nos art.°s 20. °, 1 e 18. °, 2 da Constituição.
12 O Tribunal recorrido indeferiu aquele requerimento, dizendo que a ‘decisão
proferida (...) não padece de erros, inexactidões ou lapsos’, mas não se
pronunciou sobre a nulidade invocada pelo Requerente.
13 O Requerente interpôs, assim, recurso para este Tribunal Constitucional, o
qual foi indeferido com o argumento de que, ‘nem durante o processo, nem agora
em sede de recurso o recorrente alegou a inconstitucionalidade da norma
aplicada’, quando em bom rigor, no texto remetido pelo ISS, junto à carta por
que foi remetido (do 23-07-2009), donde consta a parte decisória (folha 3 desse
documento), o referido art.° 8. °-A não é invocado, o mesmo acontecendo, na
decisão do Tribunal, ou seja no ponto 6 desta decisão (ora recorrida).
Pois bem:
14 O requerente alegou essa inconstitucionalidade no requerimento por que arguiu
a nulidade da decisão que julgou improcede a impugnação, no qual também pediu a
aclaração dessa decisão, sendo certo que, na impugnação já dissera que a decisão
do ISS violava o art.° 20. °, 1 da Constituição, que consagra um direito
fundamental do cidadão, norma que se aplica directamente (art.° 18.°, 1 da
Constituição).
15 Ora, esse requerimento é uma intervenção processual legítima, com especial
relevância nos casos em que a decisão não é passível de recurso ordinário, e que
assim visa reparar decisões que, por qualquer humano erro, causem prejuízo ao
reclamante, como se revela no caso dos autos, em que o Tribunal não especificou
a norma com base na qual decidiu, na parte que aqui se põe em causa, sendo certo
que esse requerimento se inclui na categoria genérica – peça – referida no art.°
75. ° -A da Lei n. ° 28/82.
16 Com toda a lealdade (e mau será quando a ‘manha’, o ‘faz de conta’, se
transformar em valor jurídico) o Requerente manifestou, na reclamação ora
referida, o entendimento de que, mais que uma inconstitucionalidade, havia um
equívoco de interpretação do disposto no famigerado art.° 8. °-A, quando
impugnou a decisão do ISS, e que possivelmente, o Tribunal fora induzido em
erro, quanto ao titular do rendimento do agregado familiar, embora já admitindo
que houvesse quem entendesse que, afinal, o art.° 8. °-A compreendia o conceito
de agregado que o tribunal sufragou.
17 Por isso, no art.° 10 (pelo menos) do requerimento em que arguiu a nulidade
da decisão do Tribunal, bem como nela pediu aclaração, o Requerente colocou a
questão da ilegalidade da norma em causa – art.° 8. °-A da Lei n. ° 34/2004 -
ou, então, a sua inconstitucionalidade, em função do disposto nos art.°s 18. °
n.º 2 e 20. °, 1 da Constituição, directamente aplicáveis por força do disposto
no art.° 18. °, 1 da Constituição, o que até significa, em si, a própria
inconstitucionalidade da decisão, passível por si, de ser objecto de impugnação,
pela via da inconstitucionalidade, por violar um direito fundamental – direito
ao direito –, como parece ser entendimento do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (O
Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, págs. 316 e segts.).
18 O Requerente talvez não tenha exposto as causas de modo inequívoco, pois
nunca lhe pareceu que fosse possível tão inaudita interpretação do disposto no
art.° 8. °-A referido. […]
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
“Veio o recorrente, a fls. 107 a 109, interpor recurso para o Tribunal
Constitucional alegando, em suma, que quer a interpretação feita em sede de
decisão proferida pela Segurança Social de que interpôs recurso, quer em sede de
decisão proferida por este tribunal, ‘do direito no n. ° 1 do art.° 8° da Lei
n.° 34/2004, de 29.07, não foi feita em conformidade com o disposto nos art.°s
20.°, 1, e 112.° n.º 3 da Constituição.’.
Notificada do despacho de fls. 111, ou seja, para ao abrigo do disposto no art.°
75-A, n.° 5, da Lei n.° 28/82, de 15-11, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.° 13-A/98, de 26-02, indicar ao abrigo de que alínea do n.° 1 do artigo 70.°
interpõe recurso veio, a fls. 114, esclarecer que é ao abrigo da alínea b).
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art.° 70, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 28/82, de 15-11, que ‘1 - Cabe
recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
(...)
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo;‘.
Ora, nem durante o processo, nem agora em sede de recurso o recorrente alegou a
inconstitucionalidade da norma aplicada.
Ao invés, alegou que o tribunal e a segurança social não interpretaram
correctamente o art.° 8, n.° 1, da Lei n.° 34/2004, de 29.07, o que é coisa
diversa.
Assim, por manifestamente infundado, não admito o recurso interposto a fls. 107
a 109, nos termos do disposto no art.° 76, n.° 2, da Lei n.° 28/82, de 15-11, na
redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 13-A/98, de 26-02.”
O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade dispõe o
seguinte:
“1.º Como o valor da presente acção é de 136.318, 24 euros, e como o executado
tem um filho a seu cargo e não tem quaisquer rendimentos, sobrevivendo com o seu
filho às custas dos seus pais que terão um rendimento anual de 16.046,00 euros
(provenientes das suas reformas). requereu apoio judiciário à autoridade
competente que lha ‘concedeu’ em forma de pagamento em prestações da taxa
devida.
2.º Tal decisão terá assentado, em termos legais, no absurdo conceito de que o
requerente é titular do agregado familiar que lhe foi considerado quando de
facto sobrevive às custas do agregado de outrem.
3.º A decisão em que se firmou semelhante conceito, não demonstra o juízo que
assim formulou para se invocar o art.° 8.° a) da Lei 34/2004 de 29 de Julho.
4.º Dessa decisão o Recorrente interpôs recurso para este Tribunal, alegando que
ela não estava fundamentada nos termos do n.°3 do art.°268.° da Constituição e
que violava o seu direito fundamental ao direito, consagrado este no n.°1 do
art.°20.° da referida Constituição.
5.º O tribunal recorrido julgou improcedente tal recurso nos termos que se
colhem dessa decisão.
6.º Como dessa decisão não é passível de recurso ordinário, o recorrente
apresentou reclamação dessa sentença, a qual foi indeferida nos termos
decorrentes de fls., indeferimento que, nos termos da lei, também integra a
decisão recorrida.
7.º Nos artigos 9,10,11 e 13 da reclamação da decisão que julgou improcedente o
recurso da decisão da autoridade administrativa, o Recorrente procurou
demonstrar que a interpretação feita, por essas duas instâncias, do direito no
n.°1 do art.° 8.° da Lei n.°34/2004, de 29.7, não foi feita em conformidade com
o disposto nos art.°s 20.º, 1, e 112.°, 3 da Constituição.
Tendo em conta o exposto da decisão recorrida interpõe recurso para o Tribunal
Constitucional, por da decisão recorrida não caber recurso ordinário, e que o
presente recurso se funda no art.° 80.°, n°2 da Lei n°28/82 de 15 /11.
Declara que as inconstitucionalidades suscitadas foram deduzidas no requerimento
de recurso e no requerimento de reclamação que julgou improcedente.”
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal
pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, dizendo:
“1. O recorrente impugnou judicialmente a decisão da Segurança Social que
indeferiu o seu pedido de apoio judiciário na modalidade que havia requerido,
deferindo-o na modalidade do pagamento faseado e fixando a prestação mensal em €
96,04.
2. Como o Senhor Juiz do Tribunal Judicial de Valongo negou provimento ao
recurso, o reclamante, após um pedido de aclaração, recorreu para o Tribunal
Constitucional e não tendo sido esse recurso admitido, dessa decisão reclamou
para este Tribunal.
3. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o
recorrente diz que na reclamação da sentença procurou demonstrar que a
interpretação feita pela Segurança Social e pelo tribunal ‘do direito no n. ° 1,
do artigo 8. ° da Lei n.° 34/2004, de 29.7, não foi feita em conformidade com o
disposto nos artigos 20.°, n.° 1 e 112.°, n.° 3, da Constituição’.
4. Em primeiro lugar, diremos que, sendo no requerimento de interposição do
recurso que se define o seu objecto, a fórmula utilizada pelo recorrente não nos
esclarece, minimamente, qual é esse objecto, desconhecendo-se qual a exacta
questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada.
Em segundo lugar, ao dizer que levantou a questão na reclamação da sentença,
significa que apenas a suscitou no pedido de aclaração da decisão recorrida. Não
sendo esse já o momento processualmente adequado para o fazer, como tem sido
entendimento uniforme do Tribunal Constitucional (vd. vg. Acórdãos n.°s 352/09 e
27/2010), teria de concluir-se que a questão não foi suscitada ‘durante o
processo’ (artigo 70.°, n.° 1, alínea b), da LTC).
5. O que o recorrente questiona do ponto de vista da constitucionalidade, é o
facto de na apreciação da sua situação de insuficiência económica, terem sido
levados em consideração os rendimentos do seu agregado familiar, mais
concretamente dos seus pais.
6. Como se diz na sentença e se pode ver pelo processo administrativo, foi o
próprio recorrente que disse qual era o seu agregado familiar e que forneceu os
elementos necessários para se apurar o rendimento desse agregado, designadamente
os respeitantes aos rendimentos dos seus pais, aí se incluindo a declaração do
IRS destes.
7. Na Proposta de Decisão, posteriormente confirmada, surge este último
rendimento como relevante, aí se citando os artigos 8.°. n.° 1, da Lei n.°
34/2004 e ao artigo 8.°-A do Anexo a essa Lei (na versão saída, das alterações
introduzidas pela Lei n.° 47/2007, de 28 de Agosto), tendo sido também essa o
entendimento perfilhado na sentença que negou provimento ao recurso.
8. Portanto, o recorrente quando impugnou a decisão administrativa podia
perfeitamente ter suscitado a questão da inconstitucionalidade daquelas normas,
na medida em que impusessem que o rendimento relevante para efeitos de concessão
do beneficio do apoio judiciário, fosse determinado a partir do rendimento do
agregado familiar, aí se incluindo os pais do requerente.
9. O recorrente, no recurso, critica e insurge-se contra a decisão da Segurança
Social, mas nunca o faz enunciando uma questão de inconstitucionalidade
normativa, antes dizendo que aquela decisão devia ser revogada porque violava o
artigo 20.º, n° 1, da Constituição.
10. Assim, não tendo o recorrente suscitado ‘durante o processo’ e de forma
adequada, uma questão de inconstitucionalidade normativa, não estando dispensado
desse ónus falta um dos requisitos de admissibilidade do recurso, devendo, em
consequência, indeferir-se a reclamação.”
Notificado desse parecer, o Reclamante veio responder reiterando a procedência
da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. A reclamação deduzida padece de manifesta falta de fundamento. Para que se
verificasse a respectiva procedência seria necessário concluir que o recurso de
constitucionalidade que o Reclamante pretendeu interpor fosse admissível. Tal
não sucede. O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, depende da prévia verificação
de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de
inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma
fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento
dos recursos ordinários.
3.1. Impõe-se assim, desde logo, que durante o processo, isto é, até à prolação
da decisão final, seja suscitada [em moldes processualmente adequados] a
inconstitucionalidade de uma norma ou dimensão normativa. O cumprimento deste
ónus só não se apresenta como mandatório nos casos em que o mesmo que se deva
ter por não exigível pelo facto de não ter assistido ao recorrente oportunidade
processual para lhe dar cumprimento. Nos autos, o Reclamante teve a devida
oportunidade para suscitar, perante o tribunal a quo, a questão de
constitucionalidade que pretendeu posteriormente configurar sob a forma de
recurso de constitucionalidade. A aplicação e aplicabilidade do artigo 8.º-A da
Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho foi logo patente na notificação para cumprimento
do dever de audiência prévia ainda em sede administrativa. Deste modo, o
Reclamante deveria ter suscitado a inconstitucionalidade da norma, na dimensão
contestada, no recurso judicial que interpôs da decisão administrativa. Não o
tendo feito, e não sendo esta decisão passível de ulterior recurso, a suscitação
de tal questão apenas em sede de requerimento de interposição do recurso de
fiscalização concreta surge como extemporânea.
3.2. Resta assim concluir pela improcedência da reclamação deduzida.
III – Decisão
4. Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam, em conferência, na 1.ª
secção do Tribunal Constitucional, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo Reclamante, sem prejuízo de qualquer apoio judiciário do qual possa
beneficiar, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) uc.
Lisboa 13 de Abril de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos