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Processo n.º 732/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 1706 a 1713, com
fundamento na recusa de aplicação das normas dos artigos 4.º, n.º 1, alínea h),
11.º, n.º 1, 15.º e 17.º, da Lei n.º 48/99, de 16 de Junho, e do artigo 4.º n.º
1, da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro, por violação da Lei n.º 142/85, de 18 de
Novembro (Lei Quadro da Criação de Municípios), que qualificou como lei de valor
reforçado.
2. A decisão recorrida manteve a condenação do Estado a pagar ao Município de
Santo Tirso a quantia de €4.942.718,00, na acção por este instaurada na
sequência da criação do Município da Trofa pela Lei n.º 83/98, de 14 de
Dezembro, com a seguinte fundamentação:
«(…)
Trata-se de acção instaurada nos tribunais comuns por um Município contra o
Estado em que se pretende efectivar responsabilidade civil do Estado decorrente
da sua actividade legislativa.
Refira-se, antes de mais, para melhor delimitar o âmbito do recurso, que as
instâncias conheceram da totalidade do pedido formulado no montante global de
72.923.268 contos de alegados prejuízos decorrentes da amputação da área que
passou a constituir o novo município da Trofa, ou seja, os que respeitam:
a) à perda de receitas relativas à contribuição autárquica, ao imposto sobre
veículos, à sisa, derrama e outra taxas de serviços pagos pelo sector produtivo;
b) à perda de transferência de capital (verbas provenientes do orçamento do
Estado) e de rendimentos não obtidos pela perda de investimentos e
oportunidades;
c) à menor capacidade de endividamento;
d) à perda de escolas, jardins de infância, feira de mercado e casa de cultura
da Trofa, parte da rede viária municipal e parte da rede de água, saneamento e
equipamento relacionado;
e) a perda de terrenos e diverso mobiliário urbano;
f) à manutenção dos custos da sobredimensão, designadamente, os respeitantes aos
funcionários afectos aos serviços municipais que se tornaram excedentários.
Só quanto aos prejuízos correspondentes à sobredimensão do quadro de pessoal
resultante da diminuição da área e população com a criação do novo município, é
que a acção procedeu e por um valor que representa, sensivelmente, 1/72 do
montante reclamado, ou seja, o Município de Santo Tirso logrou obter
indemnização que corresponde, apenas, a cerca de setenta vezes menos o valor que
reclamou.
Daí que na presente revista se deva ter em conta, somente, a parte em que o
recorrido decaiu que corresponde, naturalmente, à medida do vencimento do
recorrente.
O acórdão confirmou a muito douta sentença do tribunal da Comarca de Santo
Tirso,
Trata-se de acção fundada em responsabilidade civil do Estado resultante da
prática de acto pretensamente ilícito compreendido nas suas atribuições
legislativas através da Assembleia da República.
Isto é, seria a prática de acto de criação de legislação, ele próprio, violador
da ordem jurídica vigente.
Não se trata aqui de violação do ordenamento constitucional mas antes de
violação do ordenamento normativo comum o que só tem sentido se se admitir a
existência de uma certa hierarquia entre leis comuns.
Ou seja, existirão algumas leis com valor reforçado.
Admite-se sem, discrepância, tal categoria de leis desde logo nos casos de
autorização parlamentar para que o Governo discipline matérias de competência
reservada da Assembleia da República.
As leis de autorização legislativa estabelecem os parâmetros ou limites da
competência do Governo para a regulação da matéria em causa.
Se tais limites forem ultrapassados logo ocorrerá ilicitude do acto legislativo
do Governo.
Porém, neste caso, será mais rigoroso falar-se de inconstitucionalidade orgânica
pois se trata de invasão, pelo Governo, de área da competência legislativa
reservada da Assembleia da República
Mas, como bem referem as instâncias, outras situações existem em que um acto
legislativo que contrarie ordenamento anterior não deve ser tido, pura e
simplesmente, como revogação das normas que regulavam de modo diferente os casos
ou situações visadas.
É o caso dos diplomas legais que estabelecem, genericamente, e em abstracto,
critérios de criação de instituições como sucede, precisamente com a Lei 142/85
de 18/11 que é, justamente, a lei-quadro da criação de municípios.
São aquelas leis que Gomes Canotilho nas suas lições de Direito Constitucional
refere como apresentando um conteúdo de natureza paramétrica o qual serve de
pressuposto material a posterior disciplina normativa.
No caso - o da lei quadro da criação de municípios relativamente às leis que, em
concreto, criam novos municípios, - estamos perante uma relação de auto
vinculação pois uma e outra provêm do mesmo órgão.
É matéria reservada à Assembleia da República tanto no plano do estabelecimento
dum regime geral e abstracto – pressuposto normativo necessário - que deve ser
observado no acto da criação individual de cada novo município, como no acto
legislativo criador, em concreto, de cada nova realidade municipal.
O problema da existência de leis comuns com tal valor tem hoje consagração
constitucional no nº 2 do art. 115º da CRP – versão de 1989 – que expressamente
prevê a existência de leis com esse valor não apenas as leis orgânicas, mas
todas as que, nos termos constitucionais, sejam pressuposto normativo necessário
de outra leis ou que por outra devam ser respeitadas.
É o caso, claramente, da Lei 142/85 sendo indiscutível a sua diferenciação
qualitativa relativamente à Lei 83/98 de 14/12 que criou o município da Trofa
inteiramente destacado do município de Santo Tirso.
Da extensa matéria de facto provada que aqui se dá por inteiramente reproduzida,
há que destacar, com interesse directo para conhecimento do recurso, o seguinte:
À data da criação do Município da Trota – Dezembro de 1998 – o Município de
Santo Tirso tinha um universo funcional ajustado a 103.000 habitantes e a uma
área de 207 kms quadrados.
A criação do Município da Trofa fez com que a parte destacada corresponda a
cerca de 32% da população do Município de Santo Tirso tal como antes se
configurava e a 35% da área do mesmo concelho.,
Com custos de pessoal, no ano de 1998, o A despendeu 1.113.337 contos e, no ano
de 1999, não obstante a criação do município da Trofa, manteve esse custo.
Admitindo-se a responsabilidade civil do Estado decorrente da sua actividade
legislativa no pressuposto de que esta se traduziu numa ilicitude decorrente da
violação de normas com valor reforçado não pode deixar de concordar-se com o
entendimento das instâncias quanto à necessidade da existência de um nexo de
causalidade entre essa actividade legislativa ilícita e os prejuízos causados ao
município de origem.
Daí que, não obstante a inobservância de todos os pressupostos previstos na lei
quadro da criação de municípios – a referida Lei 142/85 – a quase totalidade dos
prejuízos invocados pelo A – perda de receitas provenientes de impostos e taxas
municipais, perda de transferência de capitais e de rendimentos não obtidos e de
oportunidades, menor capacidade de endividamento, e todo o equipamento social
ligado à área do novo município, bem como a perda de terrenos e mobiliário
urbano correspondente à mesma área – constituem diminuições patrimoniais que o
município de origem não deixaria de ter ainda que fossem rigorosamente
observados todos os requisitos que lei quadro impõe.
Já assim não sucede com os prejuízos que teve de suportar e foi suportando em
consequência do sobredimensionamento dos quadros de funcionários e serviços que
teve de manter, após a criação e instalação do município da Trofa não obstante a
substancial diminuição quer da população quer da área resultante da amputação
territorial e populacional que a criação do novo município implicou.
Tal prejuízo liga-se à inobservância, pelo Estado, através da Lei 83/98, dos
arts. 9º e 8º da Lei 142/85 que omitiu as menções constantes das als. e) e f)
daquele art. 8º que impunham a e) discriminação, em natureza, dos bens,
universalidades, direitos e obrigações do município de origem a transferir para
o novo município e f) a enunciação de critérios suficientemente precisos para
afectação e imputação ao novo município, de direitos e obrigações..
Como bem assinalam as instâncias, a Lei 83/98 pretendeu remediar tal omissão
através do art 4º que atribuiu à comissão instaladora prevista no seu art. 3º, a
competência para elaborar uma relação discriminada dos bens, universalidades de
direitos e obrigações do município de Santo Tirso a transferir para o novo
município.
Mas a solução prevista pela Lei 83/98 para além de brigar com a lei quadro que
não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um desfasamento
temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto legislativo, ou
seja, a lei quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer,
desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de
critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao novo
município.
Não o fez e daí resultou um elemento de ilicitude que – não afectando embora o
acto de criação do novo município, como de forma brilhante e com notável
profundidade conclui o douto julgador da primeira instância, com inteira
concordância da Relação – envolve responsabilidade civil do Estado a qual
decorre, como geralmente se vem entendendo, do art. 22º do CRP.
No recurso não é posto em causa o montante, apurado nas instâncias, do prejuízo
que a sobredimensão funcional causou ao A. Por isso e porque se trata de matéria
alheia ao objecto do recurso, nenhuma objecção se pode levantar a propósito.
De tudo decorre a falta de fundamento das conclusões do recurso.
Nestes termos, negam a revista sem custas por delas estar isento o recorrente.»
3. Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional foram as partes notificadas
para alegações, tendo o Ministério Público apresentado as que constam de fls.
1720 a 1724, nas quais, além do mais, delimita o objecto do recurso, nos
seguintes termos:
«O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público do acórdão, proferido
pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da acção indemnizatória movida ao
Estado Português pelo Município de Santo Tirso, com fundamento na “ilicitude” do
acto legislativo consubstanciador da criação do Município da Trofa, – a Lei nº
83/98 – alegadamente violador de preceitos constantes da Lei quadro de criação
de municípios – a Lei nº 142/85 – tida como dotada de “valor reforçado”
relativamente àquele primeiro acto normativo.
Fundando-se o recurso na alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82,
importa começar por verificar se o acórdão recorrido terá recusado aplicar
normas constantes de acto legislativo, alegadamente violados de “lei com valor
reforçado”, delimitando-lhe o objecto.
O acórdão proferido pelo Supremo – aderindo, no essencial, a precedentes
decisões das instâncias – não põe obviamente em causa a “validade” e a
“eficácia” do acto legislativo concreto de criação, pela Assembleia da
República, do município da Trofa: pelo contrário, configurando a referida Lei nº
142/85 como dotada de “valor reforçado” – e entendendo que determinados
procedimentos e condições por ela impostos, de forma geral e abstracta, à
criação parlamentar de cada município em concreto – conferiu plena validade ao
acto de instituição do município da Trofa, entendendo porém, que a
“ilegalidade”, decorrente da preterição de certas disposições da referida
lei-quadro, dotada (na óptica do Supremo) de valor paramétrico relativamente à
lei que, em concreto, institui inovatoriamente certo município, envolveria
responsabilidade civil com base no exercício ilegítimo da função legislativa –
sendo, nessa perspectiva, julgada parcialmente procedente a acção indemnizatória
movida pelo A.
O Supremo não rejeitou, deste modo, a validade e eficácia do acto legislativo de
concreta instituição do município da Trofa (decorrente do artigo 1º da Lei nº
83/98 – e que, aliás, não integra o objecto do presente recurso).
Tal como, a nosso ver, não recusou aplicar quaisquer disposições legais
constantes da Lei nº 98/99, de 16 de Junho, que alterou parcialmente o regime
constante da referida “lei-quadro” de criação de municípios.
Para além de se não vislumbrar no acórdão recorrido, qualquer linha
argumentativa que, de forma expressa ou implícita, pudesse envolver a
desaplicação de quaisquer preceitos constantes de tal diploma legal – aliás,
posterior à edição da Lei nº 83/98 – verifica-se que, do ponto de vista
lógico-jurídico, seria insustentável a qualificação da Lei nº 142/85 como lei de
“valor reforçado” relativamente às sucessivas e posteriores leis da Assembleia
da República que vieram alterar pontos do regime originariamente consagrado à
criação, em abstracto, de município.»
Posteriormente, após notificação para esse efeito, veio o recorrente completar
as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1º Os atributos de “pressuposto normativo necessário” e de “vinculatividade
material” relativamente a outras leis que caracterizam as leis com valor
reforçado têm de derivar directamente da Constituição, não bastando que uma das
leis se auto-proclame como pressuposto ou parâmetro de validade de outra para
que tal supremacia normativa deva ser reconhecida.
2º Não pode inferir-se tal valor – constitucionalmente – reforçado de um mero
princípio de congruência – lógico – jurídica, traduzido na conclusão de que as
leis-concretas ou leis-medida têm de respeitar integralmente a disciplina
normativa, delineada pelo mesmo legislador parlamentar no exercício da mesma
reserva de competência, em precedente “lei-quadro”, definidora, em abstracto, da
disciplina jurídica, plenamente actuada e concretizada pelo ulterior acto
legislativo.
3º Não pode inferir-se das normas constitucionais que submetem a criação ou
alteração das autarquias à “ reserva de lei”, inserindo na competência reservada
da Assembleia da República, quer a definição do regime-quadro, quer a
concretização de tal regime no momento da instituição de uma nova autarquia,
qualquer valor paramétrico do primeiro sobre o segundo de tais actos normativos.
4º As normas constantes dos artigos 9º e 8º, alínea e) e f) do Decreto-Lei nº
142/85 não detêm valor constitucional reforçado sobre os preceitos normativos
que constam da Lei nº 83/98, pelo que o artigo 4º, nº 1, desta lei não padece do
vício de violação de lei reforçada, devendo, em consequência, proceder o
presente recurso.
Nas contra-alegações apresentadas o Município de Santo Tirso sustentou a
inadmissibilidade do recurso, invocando que o acórdão recorrido não desaplicou
as normas das Leis n.ºs 48/99 e 83/98, que constituíam o objecto do recurso, e
concluiu do seguinte modo:
A) O presente recurso foi interposto ao abrigo do art. 70.º alínea C) da Lei do
Tribunal Constitucional.
B) Definido o seu objecto, não pode ser ampliado nas Alegações.
C) Parece seguro que o Acórdão do S.T.J. analisa e critica as Leis 48/98 e
83/98.
D) Sempre tais Leis em si mesmas são ilegais.
E) Por uma razão ou outra, deve ser rejeitado o recurso.
F) A Lei 83/98 estava obrigada a respeitar os princípios enumerados na Lei
142/85, conforme o previsto no art.º 212º nº 3 da C.R.
G) Não há dúvida que Lei 83/98 foi aprovada com violação dos elementos
essenciais da Lei 142/85.
H) E a Lei 83/99 foi “feita à medida” e visando sanar o erro e o Ilícito da Lei
83/98.
I) Sempre se limitou a definir o processo da criação de novos municípios, sem
alterar a Lei 142/85 – que não foi revogada.
Em resposta veio o recorrente dizer o seguinte:
«b) relativamente às “questões prévias” doutamente suscitadas pelo município
recorrido, notar que se procedeu a uma delimitação do objecto do recurso (e não
obviamente à sua ampliação), por se afigurar, face ao teor do acórdão recorrido
(cfr. pg. 1712) que a norma efectivamente desaplicada – e que ditou o juízo de
“ilicitude”, decisivo para suportar a procedência da causa – foi a constante do
artigo 4º da Lei nº 83/98, que “delegou” na comissão instaladora prevista no
artigo 3° a competência para elaborar relação discriminada dos bens e relações
jurídicas a transferir para o novo município;
c) relativamente a tal objecto normativo, a argumentação expendida pelo Supremo
Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, traduz a nosso ver, uma desaplicação
fundada em violação de lei reforçada, integradora da alínea c) do artigo 70º, nº
1, da Lei do Tribunal Constitucional: como se afirma a p. 1712, “a solução
prevista pela Lei nº 83/98 [no citado artigo 4º] para além de brigar com a lei
quadro que não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um
desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto
legislativo, ou seja, a lei quadro impunha que fosse o acto criador do município
a estabelecer desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a
enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao
nosso município” — radicando precisamente nessa omissão o “elemento de
ilicitude” que ditou a responsabilidade civil do Estado.»
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
4. Delimitação do objecto do recurso
Nas contra-alegações o Município de Santo Tirso sustenta que o recurso deve ser
rejeitado, insurgindo-se contra o que qualifica como uma ampliação não permitida
do seu objecto por parte do recorrente.
A esta questão, o recorrente responde que, ao invés de ampliá-lo, procedeu à
redução do objecto do recurso, por se lhe afigurar, face ao teor do acórdão
recorrido, que a norma efectivamente desaplicada – e que ditou o juízo de
“ilicitude”, decisivo para suportar a procedência da causa – foi somente a
constante do artigo 4.º da Lei n.º 83/98, que “delegou” na comissão instaladora
prevista no artigo 3° a competência para elaborar a relação discriminada dos
bens e relações jurídicas a transferir para o novo município, e não todas as
demais indicadas no requerimento de interposição.
Conforme vem sendo afirmado pelo Tribunal, o requerimento de interposição de
recurso de constitucionalidade (ou ilegalidade) limita o seu objecto às normas
nele indicadas (cfr. artigo 684.º n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável
ex vi do artigo 69.º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º 1 do
artigo 75.º-A desta Lei), sem prejuízo da posterior restrição, expressa ou
tácita, do objecto assim delimitado (cfr. citado artigo 684.º, n.º 3). O
recorrente pode não restringir mas alterar ou ampliar o objecto do recurso antes
definido. (Neste sentido, cfr., entre muitos outros, os acórdãos n.ºs 71/92,
323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na IIª Série do Diário da
República de, 18/08/92, 22/10/92, 22/03/95, 02/05/96, 15/07/96 e 01/03/97,
respectivamente, e os acórdãos n.ºs 641/99, 205/2002 e 215/2002, inéditos, mas
todos disponíveis em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Sucede que os autos evidenciam que o Ministério Público não procedeu à alteração
ou ampliação do objecto do recurso definido no requerimento inicial. Ao invés,
das alegações resulta uma redução desse objecto, ficando o recurso restrito à
questão da ilegalidade da norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 83/98, de 14 de
Dezembro – que delegou na comissão instaladora do novo município, prevista no
artigo 3.º da mesma Lei, a competência para elaborar a relação discriminada de
bens e relações jurídicas a transferir –, excluindo do âmbito do recurso as
normas da Lei n.º 48/99, de 16 de Junho (artigos 4.º, n.º 1, alínea h), 11.º,
n.º 1, 15.º e 17.º).
Tal conclusão retira-se, desde logo, da aceitação pelo recorrente de que o
Supremo não recusou aplicar quaisquer disposições constantes da Lei nº 48/99, de
16 de Junho, quando afirma “não vislumbrar no acórdão recorrido qualquer linha
argumentativa que, de forma expressa ou implícita, pudesse envolver a
desaplicação de quaisquer preceitos constantes de tal diploma legal”. E, se
dúvidas houvesse, essa redução é expressamente assumida no requerimento de
resposta às questões prévias suscitadas pelo requerido, em que reafirma aquele
seu entendimento.
Deste modo, considera-se o objecto do recurso restrito à referida norma do
artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro, cuja aplicação foi
recusada, com fundamento em violação da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro, tida
como “lei com valor reforçado”
5. Admissibilidade do recurso
5.1. O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma acção indemnizatória
movida ao Estado Português pelo Município de Santo Tirso, fundada na existência
de danos imputados ao ilícito legislativo consubstanciado na emissão da Lei n.º
83/98, de 14 de Dezembro de 1998, que criou o Município da Trofa, com violação
de preceitos constantes da Lei n.º 142/85 (Lei Quadro de Criação de Municípios),
considerada lei de valor reforçado relativamente ao acto legislativo de criação
concreta de autarquias locais.
Neste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça, aderindo, no essencial, às
decisões das instâncias [sentença do Tribunal da Comarca de Santo Tirso e
acórdão do Tribunal da Relação do Porto], entendeu que a Lei n.º 83/98, ao não
observar o disposto nos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 142/85, omitindo as menções
constantes das alíneas e) e f) daquele artigo 8.º, causou prejuízos que o
Município de Santo Tirso “teve de suportar e foi suportando em consequência do
sobredimensionamento dos quadros de funcionários e serviços que teve de manter,
após a criação e instalação do município da Trofa não obstante a substancial
diminuição quer da população quer da área resultante da amputação territorial e
populacional que a criação do novo município implicou”.
Para o acórdão recorrido, a solução prevista no artigo 4.º pela Lei n.º 83/98 de
atribuir à comissão instaladora prevista no seu artigo 3.º a competência para
elaborar uma relação discriminada dos bens, universalidades de direitos e
obrigações do Município de Santo Tirso a transferir para o novo município, além
de não ter apoio na “Lei Quadro” que não previa a delegação de competência nessa
matéria, comportava um desfasamento temporal de consequências lesivas por
deferir soluções que já deveriam constar desse acto legislativo, ou seja, “a lei
quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer, desde logo,
a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios
tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao novo município”. Assim,
concluiu, que – não afectando embora o acto de criação do novo município – essa
desconformidade “envolve responsabilidade civil do Estado a qual decorre, como
geralmente se vem entendendo, do artigo 22.º do CRP”.
Em síntese, o acórdão recorrido dá como assente a ilegalidade do artigo 4.º, n.º
1 da Lei n.º 83/98, por violação de lei com valor reforçado – a Lei n.º 142/85
–, e é com base na ocorrência dessa desconformidade com a lei de valor
paramétrico que tem por verificado um dos pressupostos de que depende a
efectivação da responsabilidade civil do Estado no exercício da actividade
legislativa.
Em face desta decisão, é pertinente a dúvida quanto ao preenchimento dos
pressupostos do tipo de recurso em presença, justificando a questão prévia
suscitada pelo recorrido nas suas contra-alegações, designadamente, quanto
afirma que nunca o Supremo Tribunal de Justiça deixou de aplicar a Lei n.º
83/98, salientando que as denominadas “falsas recusas” de aplicação de normas
jurídicas não são recorríveis. Esta posição do recorrente é desenvolvida em
parecer jurídico junto aos autos, onde se suscitam reservas sobre se poderá
considerar-se que o acórdão recorrido recusou a aplicação de quaisquer
disposições constantes da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro [refere-se ali também
a Lei n.º 48/99, de 16 de Junho, o que já não nos interessa face à delimitação
do objecto do recurso acima operada].
No essencial, argumenta-se que o acórdão do Supremo e as decisões que este
confirmou não recusaram a plena eficácia do disposto no n.º 1 do artigo 4.º da
Lei n.º 83/89 durante todo o tempo em que cumpriu aplicá-lo. A comissão
instaladora foi constituída e exerceu funções com as competências que a norma em
causa lhe conferiu, não pondo os tribunais judiciais em dúvida, na acção de
responsabilidade civil extracontratual do Estado intentada pelo Município de
Santo Tirso, o resultado desse exercício. O que os tribunais judiciais
consideraram – e em última instância o que entendeu o Supremo, que é o que no
presente recurso imediatamente interessa – foi que o desfasamento temporal
ilegítimo na transferência de responsabilidades e encargos para o novo
município, que resulta de o legislador ter cometido à comissão instaladora o que
deveria ter feito directamente na lei criadora do novo Município, foi causa de
prejuízos. Mas as soluções estabelecidas na norma não deixaram de se impor no
ordenamento jurídico, não erguendo a decisão recorrida qualquer obstáculo à sua
plena operatividade. O juízo de ilegalidade formulado pelos tribunais não foi
aqui seguido da consequência típica que consiste em o tribunal, verificado o
vício da norma em causa, lhe negar eficácia reguladora e, em vez dela, resolver
o caso que lhe é submetido por aplicação das normas anteriores, por ela
revogadas ou substituídas.
Nesta perspectiva, a situação em causa não consubstanciaria um caso de
desaplicação de acto normativo com fundamento em violação de lei com valor
reforçado, integradora do fundamento do recurso previsto no artigo 280.º, n.º 2,
alínea a), da Constituição, e do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro.
Na resposta apresentada, o recorrente reitera o seu entendimento de que, a
argumentação expendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido,
traduz uma desaplicação fundada em violação de lei reforçada, integradora da
alínea c) do artigo 70.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, quando ali
se afirma que “a solução prevista pela Lei nº 83/98 [no citado artigo 4.º] para
além de brigar com a lei quadro que não prevê a delegação de competência nessa
matéria, comporta um desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam
estar nesse acto legislativo, ou seja, a lei quadro impunha que fosse o acto
criador do município a estabelecer desde logo, a discriminação dos bens e
direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua
afectação e imputação ao nosso município”, – radicando precisamente nessa
omissão o “elemento de ilicitude” que ditou a responsabilidade civil do Estado.
5.2. O recurso de ilegalidade, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pressupõe a recusa de aplicação pela decisão
recorrida de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua
ilegalidade por violação de lei com valor reforçado e que essa desaplicação
constitua sua ratio decidendi. Recusa que não tem de ser expressa, podendo ser
implícita, desde que possa extrair-se do texto da decisão recorrida – na lógica
interna da decisão e no contexto que a suscita – que a não aplicação dessa norma
teve por fundamento um juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade (cfr.
entre outros, acórdãos n.ºs 584/96, 25/2001 e 511/2008, tirados a respeito da
recusa de aplicação por inconstitucionalidade, cujos fundamentos são igualmente
válidos para o recurso por ilegalidade).
O problema que se coloca é o de saber se, no plano processual, o juízo de
ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (mutatis mutandis o juízo de
inconstitucionalidade, pelo que na exposição subsequente não haverá preocupações
de distinção), que integra necessariamente a decisão de procedência do pedido de
indemnização por ilícito legislativo com tal causa de pedir, pode ser
considerado, para este efeito, como decisão de “recusa de aplicação”.
5.3. O actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, no
capítulo respeitante à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício
da função político-legislativa, contém norma que prevê que a decisão do tribunal
que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurídica
ou sobre a sua desconformidade com convenção internacional – para os efeitos do
apuramento da responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas pelos
danos decorrentes do exercício da função político-legislativa –, “equivale, para
os devidos efeitos legais, a decisão de recusa de aplicação ou a decisão de
aplicação de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou desconformidade
com convenção internacional haja sido suscitada durante o processo, consoante o
caso” (cfr. artigo 15.º, n.º 2).
Deste preceito é possível extrair duas ilações. Em primeiro lugar, a instauração
da acção de indemnização não depende de um prévio juízo de inconstitucionalidade
ou de ilegalidade por parte do Tribunal Constitucional; é o tribunal competente
para conhecer da acção que irá verificar a existência do requisito de ilicitude
para efeito de considerar ou não procedente a acção. No entanto, o
reconhecimento ou não da existência de uma inconstitucionalidade ou ilegalidade,
ainda que represente uma apreciação meramente incidental para efeito de se tomar
posição quanto ao direito indemnizatório peticionado, é passível de recurso para
o Tribunal Constitucional, de acordo com os critérios gerais do artigo 280.º da
CRP e do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, uma vez que corresponde, para todos os
efeitos legais, a uma decisão positiva ou a uma decisão negativa de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade ou de desconformidade com o direito
internacional. Como acrescenta Carlos Cadilha (Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, 2008, p. 275 e
segs., nota 11):
“Isto é: não sendo exigível, como pressuposto processual da acção de
indemnização, a prévia declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de
norma, por parte do Tribunal Constitucional, a decisão que venha a ser adoptada
pelo juiz do processo quanto à existência ou não existência de ilícito
legislativo, é susceptível de recurso de constitucionalidade ou de recurso de
legalidade, consoante os casos, permitindo-se que o tribunal competente para
proferir a decisão definitiva em questões jurídico-constitucionais se pronuncie,
confirmando ou revogando o juízo que tenha sido formulado na ordem jurisdicional
administrativa.
Naturalmente que tudo o que vem de dizer-se não obsta a que o requisito de
ilicitude possa considerar-se pré-definido por via da declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, quando haja
lugar à intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo de
fiscalização abstracta a que se refere o artigo 281.º da CRP. O que sucede é que
a iniciativa desse processo pertence apenas às entidades mencionadas nesse
dispositivo constitucional; mas desde que tenha sido suscitado o controlo
abstracto da norma e o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado no sentido
da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com força obrigatória geral, essa
declaração vincula todos os tribunais e autoridades administrativas e, nessa
medida, pode ser invocada pelo interessado numa acção de responsabilidade civil
que tenha em vista o ressarcimento de prejuízos que tenham resultado do ilícito
legislativo.
(…)”
Ora, não obstante o ordenamento jurídico não conter anteriormente norma expressa
de teor idêntico ao que passou a constar do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º
67/2007, de 31 de Dezembro, há boas razões para que se considere que a hipótese
em exame, embora não constitua a situação típica de desaplicação normativa com
fundamento em ilegalidade, não pode ter-se como excluída do âmbito da previsão
do artigo 280.º, n.º 2 alínea a), da Constituição, e do artigo 70.º, n.º 1,
alínea c), da Lei n.º 8/82, de 15 de Novembro.
Na verdade, interposta a acção de responsabilidade com fundamento em ilícito
legislativo sem que tenha ocorrido prévia declaração de inconstitucionalidade ou
de ilegalidade com força obrigatória geral, a demonstração da ilegalidade da
norma produtora de efeitos lesivos é condição necessária da procedência do
pedido. Se a ordem jurídica conferir aos interessados acção de indemnização
(defesa jurídica secundária por contraposição à defesa jurídica primária que
consiste na discussão contenciosa, ainda que a título incidental, da própria
validade do acto legislativo) contra lesões provocadas por leis
independentemente da prévia declaração de ilegalidade (ou inconstitucionalidade)
do acto normativo lesivo, é indispensável que se prove, na acção de condenação,
o valor jurídico negativo do acto legislativo gerador do prejuízo decorrente da
violação de uma norma dotada de valor paramétrico (no nosso sistema jurídico, a
Constituição ou uma lei de valor reforçado). O problema da responsabilidade
civil do Estado por prejuízos causados por leis e o problema da invalidade ou
validade da lei mesma aparecem como questões inextricavelmente imbricadas:
afinal de contas, a existência de responsabilidade depende da ocorrência da
invalidade (Maria Lúcia Amaral, “Dever de legislar e dever de indemnizar. A
propósito do caso “Aquaparque do Restelo”, Themis, n.º 1, Vol. I, T. 2 (2000),
pág. 75).
Embora em ordem a diferentes resultados ou como passo necessário de diferentes
modos de protecção jurídica através dos tribunais contra actos do legislador que
violem a Constituição ou uma lei com valor reforçado, há uma substancial
identidade problemática e de significado jurídico-político entre a recusa de
aplicação de uma norma a título incidental no uso dos poderes de fiscalização
judicial difusa e o reconhecimento da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade
como integrante de um dos elementos da causa de pedir da acção de indemnização.
A tarefa cometida ao tribunal da causa é idêntica, exige a realização das mesmas
operações e ponderações valorativas acerca do conteúdo, da forma, ou do
procedimento adoptados pelo legislador face às vinculações decorrentes da
Constituição, quer esse tribunal seja colocado perante uma questão incidental de
inconstitucionalidade ou ilegalidade reforçada no âmbito de um qualquer litígio
que devesse resolver por aplicação da norma questionada, quer seja chamado a
estabelecer a ilicitude como pressuposto da acção de indemnização e, para tanto,
a ajuizar da inconstitucionalidade ou ilegalidade integrante da causa de pedir.
O tribunal extrai do juízo instrumental que faz, através desses mesmos passos de
actividade judicante incidente sobre a conformidade de uma dada norma, constante
de acto legislativo, com os parâmetros constitucionais ou legais a que devia
observância, diferentes consequências decisórias – num caso vai à procura da
norma que há-de regular o caso sujeito (artigos 204.º e 282.º, n.º 1, da
Constituição); no outro, passa à determinação dos efeitos lesivos e aos termos
do seu ressarcimento –, mas isso é já actividade que se desenvolve num momento
posterior (na lógica do processo decisório) à apreciação da
inconstitucionalidade ou ilegalidade a que anteriormente procedeu.
Em qualquer das hipóteses, o juiz “dos restantes tribunais”, quando responde
positivamente à questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade (ou a inversa,
mas a situação que interessa é a decisão positiva) nega ao acto legislativo a
sua idoneidade para produzir validamente os efeitos que o legislador democrático
quis que ele produzisse, pelas mesmas razões jurídicas e mediante o mesmo
processo ponderativo e de confronto paramétrico de que se serve quando é chamado
a resolver o caso sujeito por aplicação da norma (artigo 204.º da Constituição).
E tem esse poder pela mesma razão fundamental: a supremacia normativa da
Constituição e das leis a que esta atribua proeminência sobre os demais actos do
poder normativo público e uma concepção do sistema de garantia da Constituição
segundo o qual todos os tribunais são “juízes constitucionais”. A questão
sujeita a apreciação permanece invariável, com a especificidade conceptual e
metodológica própria das questões de inconstitucionalidade ou ilegalidade,
quando é fundamento de uma decisão (incidental) de recusa de aplicação ou
pressuposto da imputação de responsabilidade. E a decisão que os tribunais sobre
ela tomam tem o mesmo tipo de significação jurídico-política nas relações entre
o poder legislativo democrático e o poder judicial na arquitectura
constitucional do Estado numa e noutra hipótese.
Assim, todas as razões que, num sistema difuso de controlo da
constitucionalidade, justificam a existência de um recurso das decisões dos
(demais) tribunais para o Tribunal Constitucional – em certos casos, recurso
obrigatório para o Ministério Público – estão presentes perante decisões de
contencioso de responsabilidade fundado em ilícito legislativo.
Efectivamente, proferido um juízo de inconstitucionalidade ou ilegalidade sobre
determinada norma, como elemento sine qua non do requisito de ilicitude da
actuação do legislador geradora de responsabilidade, a não admissibilidade do
recurso para o Tribunal Constitucional permitiria que decisões dos demais
tribunais fundadas no tipo de ponderações que justificam as competências do
Tribunal Constitucional como órgão ao qual a Constituição confere a competência
para, em última instância, administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico-constitucional (artigo 221.º da CRP) lhe fossem subtraídas, o que é
contrário à teleologia da consagração do Tribunal Constitucional como órgão
superior da justiça constitucional, como tribunal especificamente dedicado a
ela. Com a consequência de, em matéria tão delicada e polémica no plano
constitucional e jurídico-político como é o da responsabilidade por acto da
função legislativa, se agravar o risco de subsistirem decisões desencontradas,
por falta de intervenção do órgão jurisdicional a que a Constituição reservou a
última palavra em tal domínio.
Assim, as competências traçadas no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º
da LTC não podem deixar de ser interpretadas em conformidade com a posição do
Tribunal Constitucional na arquitectura do sistema constitucional e de
abrangerem, por equivalerem em todos os aspectos relevantes a aplicação ou
recusa de aplicação, as decisões dos demais tribunais que se pronunciem sobre a
inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas jurídicas para os efeitos do
apuramento da responsabilidade civil do Estado por ilícito legislativo. O juízo
dos demais tribunais sobre a “relação de desvalor” da norma alegadamente lesiva
com a norma paramétrica deve ser sempre susceptível de controlo pelo órgão
constitucional de fiscalização concentrada da conformidade de actos normativos à
Constituição e a leis de valor reforçado (observadas, obviamente, as regras
processuais e de legitimidade).
Aliás, tais razões justificativas das competências do Tribunal Constitucional
parecem estar presentes, até de modo mais intenso, neste tipo de decisões. Não
se trata, apenas, de afastar uma norma da regulação de um caso sujeito a
apreciação jurisprudencial. Trata-se de fazer que o Estado responda civilmente
porque o órgão legislativo a adoptou. Essa realidade levou a que se tenha
chegado a conceber a intervenção do Tribunal Constitucional neste domínio não
apenas segundo o modelo ou os meios comuns de exercício da sua competência de
fiscalização concreta (no nosso sistema, intervenção a posteriori por via de
recurso), mas pela atribuição da competência primária para esta forma de tutela
contra actos violadores da Constituição (ou da lei de valor reforçado). É o que
parece ser opinião de Jorge Miranda (“Nos dez anos de funcionamento do Tribunal
Constitucional”, Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, pág. 102)
quando afirma que “[d]e jure condendo seria, no entanto mais adequado cometer o
seu conhecimento ao Tribunal Constitucional ( conforme chegou a ser preconizado
em 1987 no projecto de revisão do Partido Renovador Democrático para o artigo
21.º, n.º 1, alínea e)). Seria mais curial tendo em conta o laço estreito entre
a apreciação da constitucionalidade e das suas consequências”.
Refira-se, a terminar, que a favor da tese da admissibilidade do recurso, na
vigência do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, se pronunciou Rui
Medeiros (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos
Legislativos, 1992, pp. 174/175, e A responsabilidade civil por ilícito
legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.º 48 051, in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 27, pág. 25), adiantando que se justifica a
admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos
tribunais judiciais que concedem indemnizações, no âmbito das acções de
responsabilidade civil contra o Estado por danos resultantes de normas legais,
porque estas decisões dependem do reconhecimento da inconstitucionalidade ou
ilegalidade da lei e invocando, em reforço desta sua conclusão que o Tribunal
Constitucional tem julgado, frequentes vezes, no sentido de que cabe recurso das
decisões dos tribunais que implicitamente recusem a aplicação da norma
inconstitucional ao caso sub judice, e tem decidido, a propósito da
responsabilidade do Estado por privação da liberdade com base numa lei
inconstitucional, que o recurso de inconstitucionalidade constitui pressuposto
indispensável para a procedência de uma acção de indemnização [acórdãos n.ºs
90/84, 102/84, 237/86 e 339/87].
Em conclusão, neste tipo de decisões, ao apreciarem a inconstitucionalidade ou
ilegalidade dos actos legislativos alegadamente geradores de responsabilidade
por ilícito legislativo, os tribunais ainda estão a aplicá-los (ou a
desaplicá-los) como ratio decidendi da decisão que concede ou nega a
indemnização. Apreciam a sua (in)constitucionalidade ou (i)legalidade e é em
função disso que decidem. Deste modo, uma vez que determinada norma constante de
acto legislativo foi considerada violadora de lei de valor reforçado, fica
preenchida a previsão do artigo 280.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, e do
artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pelo que se
tomará conhecimento do objecto do recurso.
6. Do mérito do recurso de ilegalidade.
6.1. O presente recurso tem por objecto a norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º
83/98, de 14 de Dezembro, que se entendeu desconforme com o disposto nos artigos
8.º, alíneas e) e f), e 9.º, da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro (Lei Quadro de
Criação de Municípios), qualificada no aresto recorrido como lei com valor
reforçado.
Da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro, importa reter os seguintes preceitos
(destacados os incisos mais directamente pertinentes):
“Artigo 3.º
Comissão instaladora
1 – Com vista à instalação dos órgãos do município da Trofa é criada uma
comissão instaladora, que iniciará funções no 15º dia posterior à data de
publicação da presente lei.
2 – A comissão instaladora prevista no número anterior será composta por cinco
membros, designados pelo Governo, os quais serão escolhidos tendo em
consideração os resultados eleitorais globais obtidos pelas forças políticas nas
últimas eleições autárquicas realizadas para as assembleias de freguesia que
integram o novo município.
3 – O Governo indicará, de entre os cinco membros designados, aquele que
presidirá à comissão instaladora.
4 – A comissão instaladora receberá os apoios técnico e financeiro do Governo
necessários à sua actividade.”
“Artigo 4.º
Competências da comissão instaladora
1 – Compete à comissão instaladora elaborar um relatório donde constem, tendo em
vista o disposto na lei, a discriminação dos bens, universalidades e quaisquer
direitos e obrigações do município de Santo Tirso que se transferem para o
município da Trofa.
2 – A relação discriminada dos bens, universalidades e direitos, elaborada nos
termos do número anterior, será homologada pelos membros do Governo competentes
e publicada na 2ª série do Diário da República.
3 – A transmissão dos bens, universalidades, direitos e obrigações referidos nos
números anteriores efectua-se por força da lei, dependendo o respectivo registo
de simples requerimento.
4 – Compete assim à comissão instaladora promover as acções necessárias à
instalação dos órgãos do novo município e assegurar a gestão corrente da
autarquia.”
Por sua vez, os artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro,
prescrevem o seguinte [em destaque as normas consideradas violadas]:
“Artigo 8.º
(Elementos essenciais do processo)
1 – O relatório referido no n.º 2 do artigo anterior incidirá, nomeadamente,
sobre os seguintes aspectos:
a) Viabilidade do novo município e do município ou municípios de origem;
b) Delimitação territorial do novo município, acompanhada de representação
cartográfica com planta à escala de 1:25 000;
c) Alterações a introduzir no território do município ou municípios de origem,
acompanhadas de representação cartográfica em escala adequada;
d) Indicação da denominação, sede e categoria administrativa do futuro
município, bem como do distrito em que ficará integrado;
e) Discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações
do município ou municípios de origem a transferir para o novo município;
f) Enunciação de critérios suficientemente precisos para a afectação e imputação
ao novo município de direitos e obrigações, respectivamente.
2 – O relatório será ainda instruído com cópias autenticadas das actas dos
órgãos das autarquias locais envolvidas, ouvidos nos termos do artigo 5.º desta
lei.”
“Artigo 9.º
(Menções legais obrigatórias)
A lei criadora do novo município deverá:
a) Determinar as freguesias que o constituem e conter, em anexo, um mapa à
escala de 1:25 000, com a delimitação da área dos municípios de origem;
b) Incluir os elementos referenciados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo
anterior;
c) Consagrar a possibilidade de nos 2 anos seguintes à criação do município
poderem os trabalhadores dos demais municípios, com preferência para os dos
municípios de origem, requerer a transferência para lugares, não de direcção ou
chefia, do quadro do novo município até ao limite de dois terços das respectivas
dotações;
d) Definir a composição da comissão instaladora;
e) Estabelecer o processo eleitoral.”
6.2. Antes de mais, cumpre clarificar o conceito constitucional de “lei com
valor reforçado” para determinar se a Lei n.º 142/85 a ele se subsume e apurar
se a norma questionada desrespeita esta Lei.
No acórdão n.º 374/2004 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o
Tribunal sistematizou a jurisprudência e doutrina constitucionais sobre a figura
das leis com valor reforçado, nos seguintes termos:
«6. Foi a revisão constitucional de 1982 que explicitou a regra da equivalência
das leis e dos decretos-leis, mas logo excepcionando a posição de subordinação
dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos
decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos às
correspondentes leis de autorização e leis de bases (n.º 2 do artigo 115.º), e
que cometeu ao Tribunal Constitucional, então instituído, a par da sua
competência em sede de fiscalização da constitucionalidade, a fiscalização
(concreta e abstracta sucessiva) da legalidade, mas circunscrita ao âmbito
regional (ilegalidade de normas constantes de diplomas regionais por violação do
estatuto da região ou de lei geral da República e ilegalidade de norma constante
de diploma emanado de órgão de soberania por violação do estatuto de uma região
autónoma – artigos 280.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), e 281.º, n.º 1, alíneas b)
e c)).
No entanto, a doutrina já vinha enunciando outras situações de supra-ordenação
de actos legislativos, fazendo apelo a variados critérios para a determinação
dessas “leis reforçadas”: o da parametricidade (aferido por um processo judicial
de fiscalização), o do fundamento material de validade normativa, o da
capacidade derrogatória, o da forma e especificidade procedimental, o da
diferenciação de funções, o da proeminência não hierárquica (cf. Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade Constitucional do Estado,
2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs. 348-349, com extensas
referências bibliográficas).
A revisão constitucional de 1989, embora não tivesse acolhido a proposta de
consagração das “leis paraconstitucionais”, instituiu a figura das “leis
orgânicas”, a que o n.º 2 do artigo 115.º atribuiu explicitamente “valor
reforçado”. Nos termos do artigo 169.º, n.º 2, revestiam a forma de lei orgânica
os actos previstos nas alíneas a) e e) do artigo 167.º, isto é, as leis da
Assembleia da República que incidissem sobre as seguintes matérias, todas elas
incluídas no âmbito da sua reserva absoluta de competência legislativa: a)
eleições dos titulares dos órgãos de soberania; b) regime do referendo; c)
organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional; d) organização
da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da
organização, do funcionamento e da disciplina das Forças Armadas; e e) regimes
do estado de sítio e do estado de emergência. As leis orgânicas, para além de
serem obrigatoriamente votadas na especialidade pelo Plenário da Assembleia da
República (característica, que, porém, não era exclusiva delas – cf. artigo
171.º, n.º 4), careciam ainda de aprovação, na votação final global, por maioria
absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigo 171.º, n.º 5).
A mesma revisão constitucional de 1989 alargou a competência do Tribunal
Constitucional, na fiscalização concreta e abstracta sucessiva da ilegalidade,
até então confinada ao “âmbito regional”, a todas as situações de “ilegalidade
de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de
lei com valor reforçado” (artigos 280.º, n.º 2, alínea a), e 281.º, n.º 1,
alínea b)). A ausência de uma definição constitucional do conceito de “lei com
valor reforçado”, que obviamente não se cingia às leis orgânicas, originou
assinaláveis divergências doutrinárias, desde a tentativa de reconduzir o
critério de atribuição desse qualificativo ao mesmo que operava nas leis
orgânicas (integração na reserva legislativa absoluta do Parlamento e sujeição a
um procedimento agravado de aprovação parlamentar), passando por uma posição
“monista” centrada na proeminência material de certas leis sobre outras, e até à
posição “dualista”, que considerava reforçadas tanto as leis sujeitas a um
procedimento agravado, como as leis paramétricas do conteúdo de outras (cf.,
relativamente à versão da CRP de 1989, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 1993, págs. 503-508 e 1022-1023; J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, págs. 873-876; Carlos
Blanco de Morais, As Leis Reforçadas – As Leis Reforçadas pelo Procedimento no
Âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativos,
Coimbra Editora, Coimbra, 1998; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional,
Tomo II – Constituição e Inconstitucionalidade, 3.ª edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 1991, págs. 327-328; Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990,
págs. 290-301; e “Apreciação da Dissertação de Doutoramento de Carlos Blanco de
Morais”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol.
XXXVIII, n.º 2, 1997, págs. 595-603; J. J. Teixeira Ribeiro, “As últimas
alterações à Constituição no domínio das finanças públicas”, Boletim de Ciências
Económicas, vol. XXXIII, 1990, pág. 201, n.º 8; António Vitorino, “Prefácio” à
Constituição da República Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de
Direito de Lisboa, Lisboa, 1989, págs. LXX-LXXII; José Magalhães, Dicionário da
Revisão Constitucional, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989, pág. 71;
José Luís R. Moreira da Silva, Da Lei Orgânica na Constituição da República
Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa,
1991; Lino Torgal, “Da Lei-Quadro na Constituição Portuguesa de 1976”, em Jorge
Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, págs. 907-962; e Paulo Castro
Rangel, “A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a
propósito da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de
Novembro)”, Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 23,
Outubro/Dezembro de 1998, págs. 5-38).
Face à redacção de 1989 da Constituição, a jurisprudência constitucional teve
oportunidade de se debruçar por diversas vezes sobre a temática das leis de
valor reforçado, densificando este conceito. Destacam-se, a este propósito, os
Acórdãos n.ºs 71/90, 358/92 e 365/96, publicados em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 15.º, pág. 7, vol. 23.º, pág. 109, vol. 33.º, pág. 513,
respectivamente, e no Diário da República, II Série, n.º 164, de 18 de Julho de
1990, pág. 7989, I Série-A, n.º 21, de 26 de Janeiro de 1993, pág. 297, e II
Série, n.º 108, de 9 de Maio de 1996, pág. 6185, também respectivamente).
No primeiro dos arestos citados (Acórdão n.º 71/90), tendo em conta as
alterações introduzidas pela 2.ª revisão constitucional, o Tribunal
pronunciou-se sobre o valor reforçado da lei quadro das reprivatizações, nos
seguintes termos:
“(...) à face do disposto na Constituição, esta lei quadro das reprivatizações é
concebida como uma norma sobre a produção normativa (à semelhança do que sucede
com as leis de autorização legislativa, com as denominadas «leis de
enquadramento» – caso da referente ao Orçamento do Estado – e mesmo com algumas
leis de bases), destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que
constitui pressuposto da prática pelo Governo dos actos normativos de
reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de
transformação das empresas em causa em sociedades anónimas (artigo 4.º do
Decreto) e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições
finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização
(artigo 14.º do Decreto)] e dotada de uma primariedade material e hierárquica
(porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e
outros naturalmente prevalecente, não só em função da sua específica função
hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de
competências entre os órgãos de soberania – já que versando matéria sobre a qual
primariamente só o Parlamento detém competência legislativa).”
O segundo acórdão mencionado (Acórdão n.º 358/92), também no âmbito da 2.ª
revisão constitucional, analisou a Lei das Finanças Locais, tendo concluído que
não se tratava de lei de valor reforçado. Sobre este conceito, importa reter o
seguinte trecho do acórdão:
“(...) na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de
decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência
funcional enquanto fundamento material da validade normativa de outros actos e o
da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face
aos efeitos derrogatórios produzidos por lei posterior. Um e outro critério
deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria
Constituição.”
Por seu turno, o mencionado Acórdão n.º 365/96, em que estavam em causa normas
contidas no Tratado de Roma, qualificado pelo recorrente como lei de valor
reforçado, pronunciou-se no seguinte sentido:
“(...) quer se assente o traço característico das «leis com valor reforçado» na
posição de proeminência de natureza funcional traduzida numa específica força
formal ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da
produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além
de certas exigências procedimentais na sua aprovação, dispõem de uma
«superioridade relativa» em face de outros actos legislativos, derivada do seu
conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a
publicar na sua directa dependência.”
Finalmente, a revisão constitucional de 1997, na redacção dada ao artigo 112.º
(correspondente ao anterior artigo 115.º), repôs, no n.º 2, a versão de 1982
(“As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às
correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização
legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos”), e
aditou um novo n.º 3, do seguinte teor:
“Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem da aprovação
por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição,
sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou por outras devam ser
respeitadas.”
Esta definição constitucional de leis com valor reforçado, corresponde, como
reconhece Carlos Blanco de Morais (Justiça Constitucional, Tomo I – Garantia da
Constituição e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2002,
págs. 410-433, em especial pág. 416, n.º 339), ao acolhimento da posição
“dualista” que, já face à revisão de 1989, considerava que o valor reforçado das
leis podia advir quer da sujeição a um procedimento agravado, quer da atribuição
de uma função paramétrica (“leis interpostas”).
Resulta, com efeito, da actual redacção do n.º 3 do artigo 112.º da CRP que se
prevêem quatro espécies de leis com valor reforçado, as duas primeiras tendo na
base critérios “formais ou procedimentais” e as duas últimas assentando em
critérios “materiais”:
1) as leis orgânicas, isto é, nos termos do artigo 166.º, n.º 2, as leis da
Assembleia da República que versem sobre: eleições dos titulares dos órgãos de
soberania; regimes dos referendos; organização, funcionamento e processo do
Tribunal Constitucional; organização da defesa nacional, definição dos deveres
dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento, do
reequipamento e da disciplina das Forças Armadas; regimes do estado de sítio e
do estado de emergência; aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade
portuguesa; associações e partidos políticos; eleições dos deputados às
Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira; eleições dos
titulares dos órgãos do poder local; regime do sistema de informações da
República e do segredo de Estado; regime de finanças das regiões autónomas; e
criação de regiões administrativas;
2) as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, isto é, nos
termos do artigo 168.º, n.º 6: a lei que regula o exercício do direito de voto
para a eleição para Presidente da República dos cidadãos portugueses residentes
no estrangeiro; as disposições das leis que regulam a composição da Assembleia
da República e os círculos eleitorais; as disposições das leis que regulam as
restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos
quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e
forças de segurança; e as leis relativas ao sistema e método de eleição dos
órgãos executivos colegiais das autarquias locais;
3) as leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo
necessário de outras leis; e
4) as leis que, por força da Constituição, devam ser respeitadas por outras
leis.
Nestes dois últimos casos, a Constituição prevê uma relação de pressuposição e
de parametricidade entre normas, que constitui excepção face à regra geral,
instituída no n.º 2 do artigo 112.º, do igual valor entre as leis e os
decretos-leis.
Também esta nova formulação tem originado entendimentos não inteiramente
coincidentes por parte da doutrina (cf. as “Opiniões” de Carlos Blanco de
Morais, J. J. Gomes Canotilho, Jorge Bacelar Gouveia, Jorge Miranda, Manuel
Afonso Vaz, Maria Lúcia Amaral e Paulo Otero, em Legislação – Cadernos de
Ciência de Legislação, n.º 19/20, Abril/Dezembro de 1997, págs. 9-147, em
especial págs. 23-30, 42-43, 59-61, 70-81, 98-100, 111-114 e 129-132,
respectivamente; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 781-785; Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade Constitucional do Estado,
2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs. 349-369, e “Sobre os actos
legislativos em Portugal após a revisão constitucional de 1997”, em Seminário
Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, vol. I, Associação
Jurídica de Braga / Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho,
1999, págs. 5-33, em especial págs. 21-24; José Magalhães, Dicionário da Revisão
Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, pág. 141; Marcelo Rebelo de
Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa
Comentada, Lex, Lisboa, 2000, págs. 227-228; Alexandre Sousa Pinheiro e Mário
João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação
Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 277-300, em
especial págs. 292-300; e, por último, Florence Cruz, L’Acte Législatif en Droit
Comparé Franco-Portugais, Presses Universitaires d’Aix-Marseille / Economica,
2004, págs. 652-681).
Na citada “Opinião” (Legislação, n.ºs 19/20, pág. 42), J. J. Gomes Canotilho
refere:
“Perante a indeterminação do conceito de leis reforçadas introduzida pela 2.ª
revisão da Constituição, a Lei Constitucional n.º 1/97 pretendeu eliminar
algumas dúvidas através da densificação jurídico-constitucional de tal conceito.
(...) No artigo 112.º, n.º 3, recortam-se quatro categorias de leis reforçadas
articulando critérios muito heterogéneos para a sua caracterização. Por um lado,
recorre-se a critérios funcionais-formais para identificar como leis reforçadas
as leis orgânicas e as leis que carecem de aprovação por uma maioria de dois
terços. Por outro lado, apela-se a “critérios-represa” para captar as restantes
leis reforçadas. São eles critérios da parametricidade específica (leis que são
pressupostos normativos necessários de outras leis) e critérios da
parametricidade geral (leis que devem ser respeitadas por outras leis).”
O mesmo autor (em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, págs.
783-785) dá como exemplos de aplicação do critério da parametricidade
específica: as leis de bases (que estabelecem parâmetros materiais vinculativos
dos decretos-leis ou dos decretos legislativos regionais de desenvolvimento –
artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea c), e 227.º, n.º 1, alínea c)), as
leis de autorização (que prescrevem critérios materiais obrigatoriamente
observados pelos decretos-leis ou pelos decretos legislativos regionais
autorizados – artigos 112.º, n.º 2, 165.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea b), e
227.º, n.º 1, alínea b)), e a lei de enquadramento do orçamento (que estabelece
princípios inderrogáveis pela lei anual dos orçamentos do Estado e das Regiões
Autónomas – artigos 106.º, n.º 1, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1, alínea r), e
232.º, n.º 1); e como exemplos de aplicação do critério da parametricidade
geral: a lei das grandes opções dos planos de desenvolvimento económico e social
(artigo 105.º, n.º 2), a lei quadro das privatizações (artigo 296.º), os
estatutos das regiões autónomas (artigo 226.º) e a lei das finanças regionais
(artigos 229.º, n.º 3, e 164.º, alínea t)).
Por seu turno, Jorge Miranda (Manual ..., tomo V, citado, págs. 354-355) aponta
como leis reforçadas (das duas últimas espécies): a lei do regime do estado de
sítio e do estado de emergência (porque a declaração do estado de sítio, a sua
autorização ou a sua ratificação – actos materialmente legislativos ou, pelo
menos, actos com força afim da força de lei – devem obediência a esta lei:
artigos 19.º, n.ºs 5 e 7, 164.º, alínea e), e 275.º, n.º 7); o Orçamento do
Estado (porque, durante o ano económico, nenhuma lei que não seja de alteração
do próprio Orçamento o pode afectar: artigos 105.º, 106.º, 161.º, alínea g), e
165.º, n.º 5); a lei do regime dos planos de desenvolvimento económico e social
(porque estes planos são elaborados de acordo com as suas regras enquanto
complementares das normas constitucionais: artigos 91.º e 165.º, n.º 1, alínea
m)); a lei relativa às condições de recurso ao crédito público (porque as leis
de autorização de empréstimos têm de a respeitar: artigos 105.º, n.º 4, 161.º,
alínea h), e 166.º, n.º 3); as leis de enquadramento orçamental (porque o
orçamento do Estado e os das Regiões Autónomas são elaborados, organizados e
executados de acordo com elas: artigos 106.º, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1,
alínea p), e 232.º, n.º 1); as leis de autorização legislativa (porque os
decretos-leis e os decretos legislativos regionais autorizados têm de respeitar
o sentido fixado nas correspondentes leis de autorização: artigos 112.º, n.º 2,
161.º, alíneas d) e e), 165.º, n.ºs 2 e 5, 169.º, n.ºs 2 e 3, 198.º, n.ºs 1,
alínea b), e 3, e 227.º, n.ºs 1, alínea b), 2, 3 e 4); as leis de bases (porque
os decretos-leis e os decretos legislativos regionais de desenvolvimento têm de
se mover no âmbito preceptivo das bases: artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.ºs 1,
alínea c), e 3, e 227.º, n.º 1, alínea c)); as leis dos regimes dos referendos
(porque a realização dos referendos – do referendo em geral e do referendo sobre
as regiões administrativas – e a determinação dos seus efeitos constituem
objecto dessas leis: artigos 115.º, 164.º, alínea b), 223.º, n.º 2, alínea f),
232.º, n.º 2, e 256.º, n.º 3); os estatutos político-administrativos das regiões
autónomas (porque nenhum diploma pode contrariar as suas disposições
específicas: artigos 161.º, alínea b), 226.º, 227.º, n.º 1, alínea e), 231.º,
n.º 6, 232.º, n.º 3, 280.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 281.º, n.ºs 1, alíneas c)
e d), e 2); a lei do regime de criação, extinção e modificação territorial das
autarquias locais (porque a divisão administrativa do território, que é feita
por lei, depende desse regime: artigos 164.º, alínea n), 227.º, n.º 1, alínea
l), e 236.º, n.º 4); a lei quadro de adaptação do sistema fiscal nacional às
especificidades regionais (porque o poder das regiões autónomas de proceder a
essa adaptação pressupõe tal lei: artigo 227.º, n.º 1, alínea i)); os orçamentos
das regiões autónomas (por razões idênticas às do orçamento do Estado: artigos
227.º, n.º 1, alínea p), e 232.º, n.º 1); a lei de criação das regiões
administrativas (porque a criação em concreto de cada região depende desta lei:
artigos 255.º e 256.º); e a lei quadro das reprivatizações (porque qualquer acto
de reprivatização deve respeitar as suas regras materiais e procedimentais:
artigo 296.º da CRP, como todos os anteriormente citados sem menção de diploma).
Para efeito da densificação do conceito constitucional de lei com valor
reforçado a que, neste ponto do presente acórdão, se procurou proceder, não é
necessário apreciar a correcção das enumerações feitas pelos autores acabados de
citar.
O que importa salientar é que – como, aliás, resulta da formulação literal do
n.º 3 do artigo 112.º da CRP – os atributos de pressuposto normativo necessário
e de vinculatividade material relativamente a outras leis que caracterizam as
leis com valor reforçado têm de derivar directamente da Constituição; isto é,
não basta que uma lei se autoproclame como pressuposto ou parâmetro de validade
de outras leis para, sem mais, se transformar em lei com valor reforçado.
A necessidade de aqueles requisitos resultarem directamente da Constituição tem
sido reiteradamente sublinhada pela generalidade da doutrina.
Assim, Jorge Miranda (Manual ..., tomo V, citado, pág. 351) afirma:
“Na medida em que a força específica da lei decorre de normas constitucionais, a
infracção de lei de valor reforçado envolve inconstitucionalidade. Mas trata-se
de inconstitucionalidade indirecta (...). Quer dizer: a lei contrária a lei de
valor reforçado vem a ser inconstitucional, não porque ofenda uma norma
constitucional de fundo, mas porque agride uma norma interposta
constitucionalmente garantida. E, precisamente, o critério para se reconhecer se
uma lei é reforçada ou não está em saber se se verifica ou não tal ocorrência;
está em saber se a inconstitucionalidade surge imediatamente ou se é
consequência da ilegalidade.”
E mais adiante (pág. 365):
“A qualificação de uma lei como reforçada não depende da designação que o
legislador lhe confira. Depende da verificação dos requisitos de qualificação
constitucionalmente fixados, os quais têm que ver essencialmente com o objecto
da lei, com as matérias sobre que versa, com a função que pretende exercer e, em
alguns casos, complementarmente, com o respectivo procedimento.”
Manuel Afonso Vaz (“Opinião”, em Legislação, n.ºs 19/20, págs. 99-100) refere:
“O que queremos com isto salientar – e é este o segundo aspecto a nosso ver
clarificador – é que não há leis com valor reforçado que dependam da vontade do
órgão legislativo, antes é «por força da Constituição» que a lei se afirma com
valor reforçado. Terá sempre de se invocar um preceito constitucional específico
que faça daquele acto legislativo ou a forma, ou o pressuposto, ou o parâmetro,
limitadores de outros actos legislativos. O problema continua assim a ser, como
já o era, um problema de interpretação constitucional.»
Por outro lado, e como é óbvio, não basta incidir sobre matéria colocada sob
reserva de lei para que a lei emitida assuma valor reforçado: é necessário –
repete-se – que resulte da própria Constituição que a lei em causa é pressuposto
normativo necessário de outras leis ou por elas tenha de ser respeitada.»
Em resumo, o artigo 112.º, n.º 3, da Constituição prevê quatro espécies de leis
com valor reforçado, as duas primeiras tendo na base critérios formais ou
procedimentais e as duas últimas assentando em critérios materiais: (i) as leis
orgânicas, isto é, as leis da Assembleia da República que versem sobre as
matérias mencionadas no artigo 166.º, n.º 2; (ii) as leis que carecem de
aprovação por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que
superiores à maioria absoluta dos deputados em exercício efectivo de funções,
nos termos do artigo 168.º, n.º 6; (iii) as leis que, por força da Constituição,
sejam pressuposto normativo necessário de outras leis; e (iiii) as leis que, por
força da Constituição, devam ser respeitadas por outras leis.
O processo de “positivação” da qualificação, que começou por ser doutrinária,
das leis de valor reforçado a que se assistiu desde a Revisão Constitucional de
1989 “teve a explicá-lo uma evidente preocupação garantística: era preciso
deixar claro que, em todas as circunstâncias já identificadas pela doutrina em
que leis vinculassem outras leis, o parâmetro da legalidade era para cumprir,
cabendo a sindicância do seu incumprimento ao Tribunal Constitucional ou a todos
os tribunais nos mesmos termos em que lhes caberia o controlo da
constitucionalidade” (Maria Lúcia Amaral, Legislação – Cadernos de Ciência de
Legislação, n.º 19/20, p. 111).
Pode estabelecer-se uma relação constitucional de desvalor entre
actos normativos sem que isso signifique o estabelecimento de uma hierarquia
formal entre eles. Como diz Joaquim Freitas Rocha, Constituição, Ordenamento e
Conflitos Normativos, pág. 575, pode acontecer que um acto pré-existente e
equi-ordenado (quanto ao título de valência formal na hierarquia dos actos
normativos) defina o regime jurídico a que ficam sujeitos actos subsequentes. E
é possível identificar leis ordinárias que vinculam outras leis ordinárias em
razão de uma habilitação constitucional conferida para o efeito, através de
elementos tão diversos como o da competência, da função directiva ou do
procedimento específico. O valor reforçado coloca a lei assim qualificável numa
relação de proeminência não hierárquica e vincula, nesse domínio específico, o
próprio órgão legislativo, de que promana (e não apenas os demais órgãos dotados
de poder legislativo, em defesa da competência legislativa reservada do
parlamento) que não pode afastar-se dela nos actos legislativos singulares
compreendidos no espaço de eficácia reforçada. A lei posterior que singularmente
se afaste do regime estabelecido pela lei de valor reforçado não a derroga,
infringe o nela estabelecido.
Cumpre, por último, salientar que a Revisão Constitucional de 1997, ao
introduzir o preceito do actual artigo 112.º, n.º 3, não teve o propósito de
inovar, introduzindo uma nova categoria de actos legislativos a produzir a
partir desse momento, mas um propósito de clarificar o sentido de um conceito a
que, já desde a revisão de 1989, a Constituição fazia referência expressa e que,
mesmo antes disso, já era identificado pela doutrina e jurisprudência, que
reconheciam a existência de relações de prevalência funcional entre actos
legislativos colocados no mesmo plano hierárquico, com as consequências daí
advenientes.
6.3. Esclarecidos o sentido e alcance do conceito constitucional de
lei com valor reforçado, cumpre agora apurar se nele é subsumível a Lei n.º
142/85, de 18 de Novembro, que teve por objecto o estabelecimento do regime da
criação de municípios, na sequência dos princípios constantes da Lei n.º 11/82,
de 2 de Junho, sobre o regime de criação e extinção das autarquias locais e de
determinação da categoria das povoações (cfr. artigo 1.º), enunciando um
conjunto de requisitos de que depende a criação dos novos municípios e impõe
exigências a observar no procedimento de elaboração das leis que venham a
determinar tal criação.
Segundo o disposto no artigo 164.º, alínea n), da Constituição, é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a “criação,
extinção e modificação de autarquias locais e respectivo regime, sem prejuízo
dos poderes das regiões autónomas”.
A actual redacção deste preceito resultou da Revisão Constitucional de 1997
(operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro). Na redacção
anterior, o preceito correspondente, do artigo 167.º, n.º 1, alínea n),
reservava apenas à Assembleia da República a competência para definir o “regime
de criação, extinção e modificação territorial de autarquias locais” [norma
idêntica já constava do artigo 167.º, alínea j) do preceito aditado pela Revisão
Constitucional de 1982].
Como assinalavam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o que [na versão anterior à
Revisão de 1997] estava exclusivamente reservado à Assembleia da República, era
o regime que havia de disciplinar a criação, a extinção ou a modificação
territorial das autarquias locais, e não estes mesmos actos. A criação concreta,
bem como a extinção ou modificação poderiam, depois, na base dessa lei, ser
efectuadas por outro acto legislativo da própria Assembleia da República, do
Governo ou das assembleias legislativas das regiões autónomas, conforme os
casos.
Com a Revisão de 1997, o legislador constituinte estendeu a reserva
de competência absoluta da Assembleia da República à criação concreta, assim
como à extinção ou modificação de autarquias locais, que, desse modo, passou a
ficar vedada ao Governo – salvaguardando os poderes das regiões autónomas sobre
a matéria, para os efeitos do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea 1), que
confere a estas entidades o poder de “criar e extinguir autarquias locais, bem
como modificar a respectiva área, nos termos da lei” –, continuando a
Constituição, como resulta, tanto do teor da alínea n) do n.º 1 do artigo 164.º,
como do inciso final da alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º, a prever a
existência de uma lei geral sobre o regime de criação, extinção e modificação
das autarquias locais.
O artigo 164.º, n.º 1, alínea n), da Constituição atribui, pois, dois tipos
distintos de competência à Assembleia da República: (i) por um lado, a
competência para criar, extinguir e modificar autarquias locais, sem prejuízo
dos poderes das regiões autónomas; (ii) por outro lado, e tal como já sucedia
antes da Revisão de 1997, a competência para definir “o respectivo regime”, isto
é, para definir o regime de criação, extinção e modificação de autarquias
locais, mediante lei, que já era entendida na doutrina como, “um caso típico de
lei-quadro ou lei de enquadramento, que vincula as leis que lhe dão execução”
(Cfr., Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa,
Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, p. 667), tidas como leis com valor
reforçado. Há aqui uma dupla reserva: uma para a fixação do regime geral; outra
para a lei-medida que, embora correspondendo também a uma volição política
primária, institua (modifique ou extinga) cada autarquia.
Na verdade, as leis de enquadramento ou leis-quadro pertencem àquela categoria
de leis que, na nossa ordem jurídico-constitucional, têm sido qualificadas como
leis com valor reforçado (cfr. artigo 112.º, n.º 3, da Constituição), pelo facto
de serem actos legislativos com um valor paramétrico em relação a outros actos
legislativos, que os devem respeitar e para os quais eles funcionam como um
marco de aferição da respectiva validade material. Entre a lei-quadro e as leis
que venham a ser emanadas dentro do respectivo âmbito de aplicação, existe uma
relação de prevalência funcional, por força da qual serão inválidas as
disposições contidas nas leis que, devendo fazê-lo por se reportarem a matéria
por ela regulada, não se conformem com os parâmetros de validade decorrentes da
lei-quadro. Com explica Jorge Bacelar Gouveia, em situações deste tipo não há
uma relação de hierarquia formal entre os actos, que nesse plano, se encontram
em posição de igualdade: a prevalência de uns sobre os outros funda-se, antes,
numa razão de ordem funcional, decorrente do papel que os primeiros são chamados
a desempenhar (Cfr. Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Coimbra 2005, p.
1216 e 1222).
Prevendo a Constituição a existência de uma lei destinada a definir, em
abstracto, o regime que outras leis deverão observar quando, em concreto,
procederem à criação de cada autarquia local, não pode deixar de reconhecer-se
que ela tem em vista a existência, neste domínio, de uma lei com valor
paramétrico, ou seja, dotada de valor reforçado em relação às leis que
concretizem o exercício dessa competência. Neste sentido, de que a lei do regime
de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais é uma lei
com valor reforçado (porque a divisão administrativa do território, que é feita
por lei, depende desse regime: artigos 164.º, alínea n), 227.º, n.º 1, alínea
l), e 236.º, n.º 4) pronuncia-se, ainda, ainda Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, tomo V, 3ª ed., pp. 360-361. Idêntica opinião manifesta JOAQUIM
FREITAS ROCHA (loc. cit, pág. 578) que, referindo-se às razões da atribuição de
valor reforçado, inclui as finalidades relacionadas com o equilíbrio territorial
e exemplifica com as leis criadoras, modificativas ou extintivas de autarquias
locais ou de regiões administrativas.
Pretende-se, com a subordinação da matéria a uma lei de enquadramento, que a
vontade política manifestada nas leis de criação, modificação ou extinção
concreta não resulte em soluções discrepantes entre si. Efectivamente, a
existência de um regime de enquadramento, num domínio onde, com frequência,
surgem tensões obnubiladoras de uma perspectiva global ou conflitos
precipitantes de decisões políticas condicionadas por conjunturas temporais ou
locais desgarradas, introduz no processo decisório de criação de autarquias um
resguardo do decisor político contra pretensões casuísticas que afectem a
racionalidade e equilíbrio da organização administrativa do território.
Note-se, por último, que à qualificação da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro
como lei reforçada não obsta o facto de ela ser anterior à emergência
constitucional do conceito, seja qual for o entendimento que se tenha sobre o
seu valor positivo anteriormente à revisão Constitucional de 1989. A força
paramétrica das leis que são pressuposto necessário de outras leis ou que por
estas devam ser respeitadas depende de aquelas regularem a matéria em razão da
qual a Constituição lhes reconhece proeminência funcional. Se elas traduzem o
exercício da competência para preencher esse domínio de regulação, passam a
ocupar esse domínio do ordenamento e impõem-se ao exercício posterior do poder
legislativo, independentemente do momento em que foram emitidas.
6.4. A Lei nº 142/85 tem, pois, uma função disciplinadora do exercício concreto
da competência legislativa de criação de municípios, vinculando o legislador no
exercício dessa competência quanto a aspectos como o dos requisitos de que
depende tal criação, do procedimento a seguir na elaboração das leis que a
venham a determinar e dos aspectos essenciais a disciplinar através do diploma
legal de criação ou modificação da autarquia.
Assim, nos termos da Lei n.º 142/85, a decisão da Assembleia da
República de criar um novo município tem de se apoiar num relatório (cfr. artigo
7.º) que, entre outros aspectos, deve proceder à “discriminação, em natureza,
dos bens, universalidades, direitos e obrigações do município ou municípios de
origem a transferir para o novo município” e à “enunciação de critérios
suficientemente precisos para a afectação e imputação ao novo município de
direitos e obrigações, respectivamente” (cfr. alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo
8.º). Os critérios materiais orientadores para a partilha de patrimónios e a
determinação de direito e responsabilidades, a ter em conta na elaboração do
relatório e pela comissão parlamentar na instrução e feitura da lei de criação,
são os estabelecidos pelo artigo 12.º da “Lei Quadro”.
E, embora não esteja vinculada pelo relatório, a lei criadora do
novo município tem de fazer obrigatória menção a estes aspectos, introduzindo um
mínimo de definição a seu respeito, como resulta do artigo 9º. Estão em causa
elementos que, pela sua importância, são tidos por essenciais no processo de
constituição do novo município e que justificam a exigência legal da sua menção
no acto criador do mesmo.
Ora, a Lei n.º 83/98, não procedeu às discriminações e à definição
dos critérios que haviam de presidir às transferências patrimoniais e de
responsabilidades a realizar entre os municípios envolvidos e à repartição entre
eles dos direitos e encargos que deveriam corresponder a cada um. Deferiu essa
competência para a comissão instaladora prevista no artigo 3.º, que incumbiu de
“elaborar um relatório donde constem, tendo em vista o disposto na lei, a
discriminação dos bens, universalidades e quaisquer direitos e obrigações do
município de Santo Tirso que se transferem para o município da Trofa”, em clara
desconformidade com o disposto nos artigos 8.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 9.º,
alínea b), da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro.
Foi esse evidente desvio da lei instituidora do novo município ao
programa da “Lei Quadro” respectiva que o acórdão recorrido qualificou como
ilícito legislativo e a que reconheceu nexo causal com o sobredimensionamento
dos custos com pessoal no município do origem em que se fundou a condenação do
Estado.
6.5. Para concluir pela confirmação ou não deste juízo no que
respeita à violação do pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 83/98 da alínea b) do
artigo 9.º, com referência às alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 8.º, da Lei n.º
142/85, de 18 de Novembro – a única questão que é da competência deste Tribunal,
não lhe cabendo saber se tal basta para estabelecer os demais pressupostos da
responsabilidade, designadamente a ilicitude relevante e o nexo de causalidade
com os prejuízos cuja indemnização se reclama – há uma última questão a
resolver. É ela a de saber se as normas da “Lei Quadro” com as quais o diploma
instituidor se mostra desconforme são aplicáveis ao caso.
Efectivamente, embora não discutida pelo recorrente – porventura por coerência
estrita com o entendimento de que a “Lei Quadro” não tem valor reforçado – essa
matéria é da competência do Tribunal porque se trata de estabelecer o parâmetro
de controlo. Na fiscalização concreta de constitucionalidade ou ilegalidade a
norma (o sentido normativo) objecto de controlo é um dado para o Tribunal. Mas
já não assim quanto à lei de valor reforçado alegadamente violada. A
determinação e a fixação do conteúdo da norma infraconstitucional paramétrica é
sempre tarefa do Tribunal (é a sua função primordial neste tipo de recurso), do
mesmo modo que o são a determinação e interpretação das normas e princípios
constitucionais pertinentes quando o confronto que se lhe pede é com a
Constituição.
Aliás, a questão foi colocada ao longo do processo perante os tribunais da causa
e é desenvolvidamente versada nas contra-alegações do recorrido e no parecer
jurídico que as apoia, pelo que, também no plano processual, não há obstáculo a
que se passe à sua consideração.
Ora, posteriormente à publicação da Lei n.º 83/98, que criou o
Município da Trofa, foi publicada a Lei n.º 48/99, de 16 de Junho que estabelece
o regime de instalação de novos municípios. Lei esta que, segundo o respectivo
artigo 20.º produz efeitos a partir de 15 de Setembro de 1998, apesar de entrar
em vigor em 17 de Junho de 1999. Tem portanto efeitos retroactivos.
Sucede que esta Lei veio estabelecer (artigo 11.º) que, para efeitos
de transmissão de bens, direitos e obrigações do novo município, a câmara
municipal de cada um dos municípios de origem e a comissão instaladora do novo
município devem elaborar, no prazo de três meses, relatórios discriminando, por
categorias, as universalidades, os direitos e as obrigações que, no seu
entender, devem ser objecto de transmissão. Compete a uma comissão constituída
por um representante do Ministro do Equipamento, do Planeamento e da
Administração do Território que preside, pelo presidente da câmara municipal do
município de origem e pelo presidente da comissão instaladora do novo município
a elaboração da proposta final, com respeito pelos disposto nos artigos 10.º e
12.º da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro. Essa proposta é submetida a aprovação
da câmara municipal do município de origem e da comissão instaladora do novo
município. A falta de aprovação por qualquer das partes envolvidas será suprida
por despacho ministerial.
Além disso, a Lei 48/99 comete à comissão instaladora a elaboração e
aprovação do mapa com a dotação de pessoal que se prevê necessária para o
funcionamento dos serviços do novo município, a ratificar por despacho
ministerial (artigo 14.º). E estabelece que a integração nesse mapa de pessoal é
feita prioritariamente com recurso aos trabalhadores do município de origem, em
termos a acordar entre os municípios envolvidos. Para a falta de acordo, o n.º 2
do artigo 14.º dispõe que é aplicável o critério da proporcionalidade do número
de funcionários do município de origem relativamente à população residente em
cada um dos municípios.
É manifesto que os conteúdos normativos impostos à lei instituidora
e que esta transferiu para a comissão instaladora, com isso dando azo, segundo a
decisão recorrida, aos prejuízos que o Estado foi condenado a indemnizar,
passaram a integrar-se na competência própria deste órgão no novo figurino legal
relativo à instalação dos municípios. Melhor dizendo, passaram a ser regulados
por actos administrativos complexos, preferencialmente de concertação entre os
municípios interessados.
Face a tal evolução legislativa e ao facto de a lei se atribuir eficácia
retroactiva, coloca-se a questão de saber se o vício, a ilegalidade do n.º 1 do
artigo 4.º da Lei n.º 83/98 ao fazer algo que então não podia fazer mas cujos
efeitos correspondem, essencialmente, ao que passou a resultar do novo regime
legal da instalação de novos municípios, se encontra sanado e em que extensão.
O que implica responder sucessivamente a três perguntas: 1.ª – Se a
Lei n.º 48/99 (regime de instalação de novos municípios) tem efeito revogatório
ou derrogatório das disposições da Lei n.º 142/85 (Lei Quadro de Criação de
Municípios) que a Lei n.º 83/98 (criação do Município da Trofa) não respeitou;
2.ª – Se a Lei n.º 48/99 podia atribuir-se eficácia retroactiva; 3.ª - Qual o
alcance sobre a ilegalidade de uma lei da posterior alteração, em sentido
concordante ou sanatório, da lei de valor reforçado que aquela violara.
6.6. A Lei n.º 48/99 contém disciplina material que à primeira
análise parece dificilmente compaginável com a exigência de que o diploma legal
que cria o município proceda ele próprio à discriminação, em natureza, dos bens,
universalidades, direitos e obrigações do municípios ou municípios de origem a
transferir para o novo município, nomeadamente na dimensão que interessa ao
presente recurso de fiscalização concreta que é o que respeita à repartição dos
recursos humanos e consequente responsabilidade financeira.
Efectivamente, uma das enunciações que deveriam constar da lei de
criação, nos termos das disposições conjugadas do artigo 8.º, n.º 1, alíneas e)
e f), artigo 9.º, alínea b) e artigo 12.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3, da Lei n.º
142/85, era a respeitante aos critérios de transferência para o novo município
do pessoal adstrito a serviços em actividade na sua área e ainda daqueles que
passavam a caber-lhe. Ora – e a esta dimensão do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º
83/98 se confina o objecto do recurso - os critérios de elaboração do quadro de
pessoal e de repartição dos recursos humanos entre os municípios de origem e o
novo município, nos aspectos material, procedimental e competencial, estão
desenvolvidos com minúcia no novo regime de instalação definido pelos artigos
14.º e 15.º da Lei n.º 48/99. É actividade a levar a cabo posteriormente à
criação do novo município, privilegiando a concertação entre os municípios
interessados. Dir-se-ia que se quer aliviar o diploma de criação de municípios
de uma exigência conteudística que é pesada para o legislador e seguramente mais
fácil de cumprir ao correr da fase de instalação.
Vejamos.
A diversidade de objecto fundamental das duas leis, num caso
trata-se de estabelecer o regime geral de criação, no outro de definir o regime
de instalação de novos municípios, não constitui obstáculo a que se considere
parcialmente revogada ou derrogada a “Lei Quadro”. Trata-se de leis igualmente
provindas da Assembleia da República, para que a Constituição estabelece o mesmo
procedimento especial de votação – obrigatoriamente votadas na especialidade
pelo Plenário, por força do n.º 4 do artigo 168.º da Constituição, procedimento
que foi respeitado quanto à Lei n.º 48/99 – e sem outra resistência passiva
relativamente a outras leis, salvo a que é inerente à natureza reforçada da
“Lei-Quadro” relativamente aos actos de criação de novos municípios. De modo
que, ao menos no aspecto de competência, procedimento e forma, nada obstaria a
que o legislador subtraísse, por essa via, do regime relativo ao momento da
criação o que entende caber melhor no momento da instalação. Aliás, criação e
instalação das autarquias não são domínios de regulação estanques. São os actos
e operações de instalação que dão execução ao acto criador e concretizam a
definição do novo centro de poder autárquico e a respectiva esfera de direitos e
obrigações, quase necessariamente por subtracção à esfera de um qualquer outro
município, porque o território está todo dividido em municípios. Daí que haja
aspectos cuja pertença a um ou outro dos domínios normativos seja duvidoso. A
relação de complementaridade entre uma e outra fases da emergência do novo ente
autárquico torna fluidas as fronteiras entre o que deve ser conteúdo do regime
de criação e o que pode estar contido no regime de instalação. Aliás, a Lei n.º
142/85 disciplinava aspectos indiscutivelmente respeitantes à fase de instalação
(cfr. artigos 10.º e 13.º)
Assim, o que poderia discutir-se é se esta específica matéria
integra o conteúdo constitucionalmente necessário da lei de enquadramento da
criação de autarquias, de modo que a sua remissão para um plano que passa a ser
o de decisão administrativa a descaracteriza, equivalendo a uma deslegalização
proibida, ou se, pelo contrário, a mesma Assembleia, exclusivamente competente
para definir esse regime, pode discricionariamente incluir ou subtrair esta
matéria à “Lei Quadro”, sem a descaracterizar.
Mas não é necessário entrar na análise desse problema porque há
argumentos que inclinam a favor do entendimento da não revogação ou derrogação
da “Lei-Quadro”, neste aspecto, pela Lei que estabelece o regime de instalação.
Em primeiro lugar, o intérprete é confrontado com o facto de a Lei
n.º 48/99 conter uma norma revogatória, onde figuram expressamente como
revogadas outras disposições da Lei n.º 142/85 (os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 10.º
e os n.ºs 1 e 2 do artigo 13.º) e não aquelas que agora estão em consideração. A
afirmação expressa pelo legislador da revogação destes preceitos não pode deixar
de significar, suposto que o legislador soube exprimir o seu pensamento em
termos adequados, que da “Lei Quadro” só estes quis atingir. Seria difícil
entender a razão pela qual o legislador, revogando expressamente vários
preceitos de um dado diploma legal, omitiria a referência a outros que
igualmente queria revogar do mesmo diploma, versando sobre aspectos autónomos, e
que só poderiam ser considerados ao abrigo da forma genérica do mesmo artigo
19.º que considera revogadas “as demais disposições legais que contrariem o
disposto no presente diploma”.
Ainda no plano do argumento literal e sistemático de interpretação
pode invocar-se a circunstância de o n.º 6 do artigo 11.º da Lei n.º 48/99
continuar a estabelecer, como estabelecia o n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º
142/85, que a transmissão dos bens, universalidades, direitos e obrigações se
efectua por força da lei, não se vendo que outra lei possa essa ser se não a que
cria o município, porque esse efeito legal supõe uma suficiente individualização
dos bens e direitos transmitidos, que só essa, e não outra que se limite a
estabelecer critérios gerais e abstractos, pode conter.
De modo que se impõe uma compatibilização entre o que o novo regime
de instalação dispõe sobre a transferência de responsabilidades e encargos, que
parece dispensar uma opção primária do legislador expressa no acto de criação do
município, e as exigências da “Lei Quadro” quanto a que esse acto especifique os
critérios de transferência de direitos obrigações e responsabilidades.
A criação de um município é um acto de opção política (de volição
política primária) expressa mediante acto legislativo. Como pessoa colectiva de
população e território, há elementos que não podem deixar de estar contidos na
lei de criação de cada município, como é o caso da delimitação da área que
abrange e a indicação da respectiva denominação e sede, bem como da
circunscrição supra-municipal em que se integre, pelo que não é concebível a sua
relegação para outra entidade ou outro momento. Estes são elementos mínimos de
identificação do novo ente autárquico ou da nova circunscrição administrativa
sem os quais o acto de instituição dificilmente teria objecto inteligível
Mas, embora não se impondo com a mesma evidência como conteúdo necessário do
acto de instituição de nova autarquia, os elementos agora em consideração são
também essenciais para que a finalidade da lei de enquadramento se cumpra.
Obrigando a lei de enquadramento, por um lado, a que a instituição de cada nova
autarquia satisfaça parâmetros mínimos de racionalidade organizatória, de
viabilidade administrativa e financeira e de dotação de equipamentos públicos ou
de uso público – o que reflexamente implica que o município de origem não seja
privado dos mesmos atributos – e sabendo-se, por outro lado, que todo o
território está “municipalizado”, com infra-estruturas, edifícios, equipamentos,
serviços e pessoal em função da divisão administrativa existente, seria pouco
compreensível que o acto de criação do novo município não estivesse sujeito ao
imperativo de traçar os critérios a observar na concreta repartição entre os
municípios interessados, do património, direitos e encargos, em ordem a
assegurar a continuidade da prestação do serviço público a cargo da
administração local autónoma. Esta indicação ainda pertence à opção política de
(re)organizar o território, sendo a necessidade de dispor de um relatório que
permita conhecer a realidade e as suas consequências e de os reflectir (e de os
ponderar) no conteúdo do acto de criação um forte elemento de racionalização da
respectiva decisão. Acresce que, na falta de fixação suficientemente densificada
dos critérios de repartição de bens, obrigações e encargos pelo legislador no
acto concreto de criação do novo município, além de se transferir para a fase de
instalação a resposta a um problema que aí terá mais elevado potencial de
conflitualidade que predispõe a um penoso arrastamento da solução final, com
custos na eficiência da actuação das autarquias envolvidas, uma decisão que
comporta fortes reflexos políticos porque afecta a definição dos meios e da
capacidade operacional de cada autarquia, ficaria, em último termo, relegada
para uma decisão administrativa.
Nesta perspectiva, os poderes atribuídos à comissão instaladora do
novo município e às câmaras municipais do município ou municípios de origem pela
Lei n.º 48/99, embora conferindo alguma autonomia na individualização das
situações e de mecanismos de resolução de situações inapreensíveis pelo
legislador, cuja presença pode ser interpretada, numa visão global do sistema,
no sentido de relativizar ou suavizar as exigências a este impostas na fase de
criação, não dispensam a fixação de parâmetros e critérios suficientemente
densificados de imputação de bens, direitos, obrigações e encargos logo no acto
de criação do novo município.
Deste modo, o elemento teleológico de interpretação da lei corrobora
o elemento literal e sistemático, levando à conclusão de que não devem
interpretar-se os artigos 11.º e 15.º da Lei n.º 48/99 como revogando
tacitamente (ou através da fórmula genérica da parte final do artigo 19.º) as
exigências de conteúdo da lei de criação de cada novo município que são impostas
pela alínea b) do artigo 9.º da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro.
Não podendo considerar-se revogadas as normas paramétricas
consideradas violadas, desaparece o substrato das demais questões hipotéticas
acima enunciadas (legalização superveniente e retroactiva da Lei n.º 83/98).
Conclui-se, portanto, no sentido da ilegalidade da norma do n.º 1 do
artigo 4.º da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro, que criou o município da Trofa,
por violação da alínea b) do artigo 9.º, com referência às alíneas e) e f) do
n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro – lei com valor
reforçado. Consequentemente, o recurso improcede.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se o juízo
de ilegalidade formulado na decisão recorrida.
Sem custas.
Lx., 14/4/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei, sem nenhuma dúvida, a resposta que neste caso foi dada ao problema de
saber se o Tribunal deveria conhecer do recurso interposto pelo Ministério
Público.
Subscrevi sem hesitação o raciocínio seguido, quanto a este ponto, pelo Acórdão,
segundo o qual “todas as razões que, num sistema difuso de controlo da
constitucionalidade, justificam a existência de um recurso das decisões dos
(demais) tribunais para o Tribunal Constitucional (…) estão presentes perante
decisões de contencioso de responsabilidade fundado em ilícito legislativo”.
No entanto, não posso deixar de exprimir reservas quanto à afirmação segundo a
qual existirá uma equivalência de natureza ou de substância entre a decisão
judicial que não aplica norma com fundamento em inconstitucionalidade ou
ilegalidade (ou a decisão judicial que a aplica, não obstante a questão de
constitucionalidade ou de legalidade ter sido suscitada durante o processo) e a
decisão judicial que condena o Estado ao pagamento de uma indemnização por
prejuízos causados por actos legislativos que sejam “ilícitos”. A afirmação
ocupa, no percurso argumentativo do Tribunal, um lugar de relevo, visto que é
por causa dela que se conclui que os recursos interpostos para o Tribunal de
decisões relativas ao contencioso da responsabilidade – quer de decisões que
condenem o Estado, por nelas se ter dado como verificado o pressuposto da
“ilicitude” da lei; quer de decisões que o absolvam, por nelas se não ter dado
como perfeito tal pressuposto – já se incluem, “substancial” ou “naturalmente”,
nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 280.º da Constituição, e nas alíneas a) e
b) do nº 1 do artigo 7.º da Lei do Tribunal Constitucional. Duvido que assim
seja.
É para mim evidente que sendo, no contencioso de responsabilidade do Estado, a
invalidade do acto legislativo pressuposto do dever público de indemnizar, a
condenação do Estado (ou a sua absolvição) pressuporá um juízo prévio que, por
“natureza” ou “substância”, pertencerá sempre ao núcleo de competências próprias
do Tribunal Constitucional. Como decidir sobre a “ilicitude” de uma lei – ou
seja, julgar a sua constitucionalidade ou legalidade – é, sempre, administrar a
justiça em matérias jurídico-constitucionais, nada legitimaria que este tipo de
decisões, quando tomadas em acções de responsabilidade, se furtassem ao controlo
do Tribunal ao qual compete especificamente realizar a justiça constitucional.
Porém, o modelo de recursos que a Constituição da República desenha – e que a
Lei do Tribunal Constitucional replica – funda-se em princípios claros, que
resultam da conjugação dos artigos 3.º, nº 3 e 204.º. Como não são válidas as
normas contrárias à Constituição (artigo 3º, nº 3), o juiz, que conhece o
Direito, não pode (não deve) aplicá-las nos feitos submetidos a julgamento
(artigo 204.º). É dessa decisão, que pressupõe a composição de um certo litígio
de acordo com uma norma de cuja constitucionalidade se duvida, que cabe recurso
para o Tribunal.
Não me parece que o juízo sobre a “ilicitude” de uma lei, feita em acção de
responsabilidade do Estado, possa ser tido simplesmente como um continuum dos
recursos para o Tribunal desenhados, pelas razões que acabei de expor, no nº 1
do artigo 280.º da CRP. No meu entender, ele é outra coisa, dado que se não
traduz na composição de um litígio com fundamento em norma de cuja
constitucionalidade se duvida. Nas situações do artigo 280.º, o tema a decidir
não é a censura do poder legislativo. Tal censura aparece, como bem se sabe,
incrustada incidentalmente na questão principal, de direito infraconstitucional,
que tem que ser decidida. Nas acções de responsabilidade por ilícito legislativo
o thema decidendum é a censura do legislador. E uma censura ainda mais intensa
do que aquela que é feita em sede de controlo puro de constitucionalidade, visto
que se não destina apenas a accertare a invalidade de uma escolha do poder
legislativo. Partindo dessa invalidade, a acção de responsabilidade (por ilícito
legislativo) destina-se a eventualmente repartir os custos da escolha
legislativa censurável por toda a comunidade política, de modo a ressarcir o
“prejudicado”. O tema é, pois, a censura do legislador, e uma censura que, no
seu significado constitucional e jurídico-político, ganha contornos de gravidade
ou de intensidade que não são compartilhados pelos juízos de
inconstitucionalidade de normas, formulados em processos de fiscalização
concreta. É por tudo isto que a decisão de inconstitucionalidade que é tomada,
pelo tribunal comum, em acção de responsabilidade, não equivale, a meu ver,
àquela outra que é tomada pelo mesmo tribunal em processo de fiscalização
concreta. Não estamos aqui perante coisas idênticas. Estamos perante algo (na
acção de responsabilidade) que é um plus face ao já existente, e que, em última
análise, se traduzirá em um novo modo de acesso directo dos particulares à
justiça constitucional.
Maria Lúcia Amaral