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Processo n.º 244/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão de 2 de Março de 2010, proferido no processo n.º 10/08.0PEPTG.EI, decidiu o Tribunal da Relação de Évora «não aplicar o artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação preconizada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2008, por a mesma violar o princípio da legalidade (artigo 29.º da CRP) e, como tal, não se mostrar conforme à Constituição da República Portuguesa», confirmando, deste modo, a sentença recorrida que assim havia decidido.
O Ministério Público dele interpôs o presente recurso de constitucionalidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 75.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da «inconstitucionalidade da norma do art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação restritiva do art. 28.º da Lei n.º 30/2000, feita pelo [citado] Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (…), tendo em conta o disposto no art. 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».
Admitido o recurso, pelo Tribunal recorrido, prosseguiram os autos com a apresentação de alegações pelo Ministério Público, junto deste Tribunal Constitucional, nas quais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do presente recurso por estar em causa decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e não ter sido previamente interposto para esta última instância o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP), como imposto pelo n.º 5 do artigo 70.º da LTC, considerado aplicável.
O arguido, notificado para o efeito, não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Da admissibilidade do presente recurso
Cumpre preliminarmente decidir a questão de saber se é possível recorrer directamente para o Tribunal Constitucional de decisão que, com fundamento em inconstitucionalidade, recusa a aplicação de dada norma, na interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de uniformização de jurisprudência, ou se deve ser previamente instaurado o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º, nºs. 1 e 2, do CPP, como defende o Ministério Público nas suas alegações.
Como é sabido, estando em causa um juízo positivo de inconstitucionalidade formulado pelas instâncias jurisdicionais e consequente recusa de aplicação de norma, com tal fundamento, a lei não impõe, como condição de conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, a prévia exaustão das vias ordinárias de recurso (artigo 70.º, n.º 2, a contrario sensu, da LTC).
Nestes casos, é admissível, em regra, a directa interposição de recurso de constitucionalidade, o qual interromperá os prazos para interposição de outros que caibam da decisão recorrida (artigo 75.º, n.º 1, da LTC).
Assim, julgada pelo Tribunal Constitucional, por decisão transitada, a questão de inconstitucionalidade, seja no sentido da procedência, seja no sentido da improcedência, as partes, querendo, poderão accionar as vias normais de recurso ou ver desencadeados os recursos ordinários antes interpostos, sendo certo que, relativamente a tal questão, a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional faz caso julgado formal (artigo 80.º, n.º 1, da LTC), pelo que nunca poderá ser reapreciada pelas instâncias ordinárias de recurso posteriormente chamadas a intervir.
Contudo, prevendo a lei processual aplicável, para determinada categoria de decisões judiciais, a interposição de recurso ordinário obrigatório, apenas é admissível o recurso para o Tribunal Constitucional da decisão final que, após a sua instauração, vier a ser proferida pela última instância de recurso (artigo 70.º, n.º 5, da LTC).
Pretende-se, deste modo, em harmonia com os interesses de ordem pública que a lei quis garantir ao impor, para certas decisões judiciais, a via obrigatória do recurso, restringir a intervenção do Tribunal Constitucional à reapreciação da decisão final que, em matéria de constitucionalidade, tiver sido tomada pela última instância ordinária de recurso, ainda que estejam em causa, por necessariamente precárias ou transitórias, decisões de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
É que, de outro modo, estar-se-ia a esvaziar de conteúdo a prévia reapreciação, imposta por lei, de determinadas decisões judiciais pelo tribunal superior, reconhecendo-se eficácia autónoma e definitiva a decisões que, nos termos da respectiva lei processual, estão sujeitas, também no que concerne ao juízo de inconstitucionalidade que formulam a propósito das normas aplicáveis, a recurso obrigatório.
Com efeito, como sublinhado no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 281/01 e reiterado pela jurisprudência que se lhe seguiu (cf., entre outros, Acórdãos nºs. 282/01, 322/01, 323/01, 334/01, 335/01, 93/02, 412/03, 470/03, 480/03, 503/03, 545/03, 558/03, 559/03, 3/04, 17/04, 28/04, 31/04, 49/04, 57/04, 58/04, 73/04, 309/04, 506/04 e 688/04, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), a circunstância de a decisão do recurso de constitucionalidade fazer caso julgado no processo, quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada, limita os poderes cognitivos do tribunal superior em matéria de reapreciação da decisão tomada, sobre a matéria, pelo tribunal a quo, comprometendo, deste modo, a própria lógica e razão de ser do recurso obrigatório.
Assim se compreende a regra da precedência expressamente prevista no n.º 5 do artigo 70.º da LTC para as decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório.
Ora, se é esta a razão de ser de tal regra, afigura-se, na linha do que igualmente vem sendo defendido por este Tribunal Constitucional, face à actual redacção da norma do artigo 446.º do CPP, ser a mesma aplicável às decisões judiciais proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, também sujeitas, por expressa previsão legal, a recurso obrigatório, a interpor pelo Ministério Público (cf. Acórdãos nºs. 621/07, 622/07, 76/08, 200/08 e Decisões Sumárias nºs. 571/07, 573/07, 574/07, 575/07, 640/07, 12/08, 59/08, 60/08, 76/08, 106/08, 112/08, 118/2008, 132/08, 133/08, 156/08 e 543/08, esta última tendo precisamente por objecto a interpretação normativa sufragada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, ora recusada pela decisão recorrida, disponíveis no mesmo sítio).
É que, apesar de processualmente configurado como recurso extraordinário obrigatório – pelo menos, desde a reforma processual penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 19 de Agosto –, a verdade é que o facto de ter necessariamente por objecto decisão transitada em julgado em nada altera a sua substância, como recurso obrigatório, e a natureza dos interesses subjacentes a este instituto.
Com efeito, também aqui se pretende garantir que dada decisão judicial, pela circunstância particular de ser desconforme com jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, seja reapreciada por este tribunal superior, com o objectivo específico de garantir a eficácia uniformizadora de uma tal jurisprudência ou, se ultrapassada, viabilizar o seu reexame.
Ora, tal propósito de reapreciação ou reponderação de dada decisão judicial por um Tribunal Superior – comum a todos os casos de recurso obrigatório – e os interesses que, deste modo, se pretendem tutelar, ficariam comprometidos, na parte atinente ao juízo fundamental de inconstitucionalidade, caso se permitisse, como é a regra imperante nos casos de recusa de aplicação de norma, com tal fundamento, o recurso directo para o Tribunal Constitucional.
De facto, atenta a regra de caso julgado consagrada no citado n.º 1 do artigo 80.º da LTC, ficaria o Supremo Tribunal de Justiça, nesse caso, impossibilitado de efectivamente reapreciar a valia argumentativa da decisão proferida contra a jurisprudência fixada, em tal aspecto nuclear, em ordem a fazê-la imperar ou proceder ao seu reexame, como previsto pela norma do artigo 446.º, nºs. 1 e 2, do CPP.
É, pois, de concluir, pelas razões aduzidas e pacificamente reiteradas pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional, no sentido de que, estando em causa decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, se impõe, como condição de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, a prévia instauração do recurso obrigatório previsto no citado artigo 446.º, nºs. 1 e 2, do CPP.
Ora, não tendo sido, no caso, interposto tal recurso obrigatório, como imposto pelo n.º 5 do artigo 70.º da LTC, não é possível conhecer do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
3. Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.