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Processo nº 513/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é
recorrente A., S.A. e recorrida a Câmara Municipal de Palmela, foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 21 de Abril de 2009.
2. No âmbito de vários processos contraordenacionais, a Câmara Municipal de
Palmela aplicou a A., S.A., a coima única no valor de €30.000, face ao disposto
no artigo 98º, nºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de
Dezembro (Regime Jurídico da Edificação e da Urbanização).
Esta decisão foi impugnada judicialmente, mas o 3º Juízo Criminal de Setúbal
julgou a impugnação improcedente. Foi então interposto recurso para o Tribunal
da Relação de Évora, que pelo acórdão agora recorrido julgou o mesmo
improcedente. Para o que importa apreciar e decidir transcreve-se desta decisão
o seguinte:
«13. Terá o tribunal “a quo”, ao decidir que ao caso subjudice não é aplicável a
Lei n.º 60/2007, por força do art. 6.º n.º1 da mesma, que prevê um regime
transitório, aplicado incorrectamente o referido normativo e violado o art. 3.º
n.º2 do Decreto-Lei n.º 433/82, e o art. 2.º n.º2, do Código Penal-
(…)
Flui do transcrito que o tribunal recorrido considerou como não aplicável ao
caso em apreço o novo regime introduzido pela Lei n.º 60/2007, uma vez que esta
no art. 6.º n.ºl determina que, entre outros, às obras de edificação cujo
processo de licenciamento decorra na respectiva Câmara Municipal à data da
entrada em vigor daquela Lei, ou seja, em 3 de Março de 2008, é ainda aplicável
o regime anterior.
Entende a recorrente que tal norma transitória não é aplicável ao seu caso,
pois, em seu entender, o legislador, ao estabelecer um regime transitório, tinha
em mente regular a aplicação das leis no tempo apenas no que respeita aos
procedimentos administrativos propriamente ditos, mas não pretendeu regular a
aplicação no tempo das normas de natureza contra-ordenacional, nem afastar o
princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável.
No domínio da sucessão de leis no tempo é importante a marcação do antes e do
depois da aquisição de validade da fonte normativa, não bastando o princípio
fundamental de que a fonte nova revoga a antiga porque a lei nova entronca num
momento de um incessante processo social. Há sempre situações juridicamente
relevantes que, tendo origem no passado, tendem a prolongar-se para futuro: nem
tudo terminou já, e nem tudo vai começar de novo.
Particularmente no domínio das situações jurídicas duradouras, decorrentes de
posições jurídicas susceptíveis de gerar novos direitos e vinculações, o
legislador recorre ao direito transitório fixando por seu intermédio a solução
dos casos que iniciados no domínio da lei revogada tendem a prolongar os seus
efeitos no domínio da nova lei, criando a disciplina própria (direito
transitório material) ou remetendo para uma das leis aplicáveis (direito
transitório formal).
Cabe chamar à colação para interpretação do art. 6.º da Lei n.º 60/2007, de 4 de
Setembro, o art. 9.º do Código Civil, que genericamente regula a matéria da
interpretação da lei, estabelecendo, como principal linha de rumo, que tal
interpretação deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo,
tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a
lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
(…)
De facto, a Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, baseada na Proposta de lei n.º
149/X, pautada pelo princípio da agilização dos procedimentos, introduziu
alterações significativas no RJUE.
A figura da autorização como mecanismo de controlo prévio apenas se manteve para
a utilização, ou sua alteração, de edifícios ou fracções (cf art. 4.º n.º 4 e
62.º e ss).
O diploma estabelece como mecanismos de controlo prévio a licença e a
comunicação prévia, tendo esta última sofrido uma profunda modificação face ao
conceito anterior, assumindo uma tramitação mais complexa que a quase extinta
figura da autorização.
As operações urbanísticas foram redistribuídas pela licença e pelas disposições
que regulam as isenções de licença, nas quais se incluem as comunicações
prévias. (…)
Por via da nova subordinação do procedimento de comunicação prévia ao pagamento
de taxas, o RJUE vem determinar que, na falta de rejeição da comunicação prévia,
o interessado deve efectuar, previamente ao início das obras e dos trabalhos, o
pagamento das taxas devidas através de autoliquidação (conforme resulta da
conjugação do n.º 2 do art. 80.º, com o n.º2 do art. 36-A).
Por outro lado, também impõe a informação – até cinco dias – sobre o início dos
trabalhos, bem como a identificação do responsável pela respectiva execução.
O RJUE, com as alterações introduzidas pela referida Lei, aplica-se para o
futuro a todas e quaisquer operações urbanísticas, cujos processos tenham o
respectivo início após a respectiva entrada em vigor.
O princípio da legalidade está, como é óbvio, associado ao princípio de não
retroactividade, na medida em que, exigindo a lei uma prévia definição dos
conteúdos com relevância contra-ordenacional ou criminal e das respectivas
censuras, proclama necessariamente que a previsão legal apenas se volva para as
situações futuras e nunca para as situações passadas.
Todavia, entendeu o legislador fazer retroagir os referidos efeitos a todos e
quaisquer processos pendentes nas câmaras municipais relativamente a obras de
edificação, operações de loteamento, obras de urbanização e trabalhos de
remodelação de terrenos, sob a condição de os interessados requererem a sujeição
desses mesmos processos ao novo regime jurídico (cf. art. 6.º n.º1 e 2).
As alterações decorrentes da lei n.º 60/2007 não são aplicáveis aos processos
referentes aos lotes que, à data da entrada em vigor daquela se encontravam com
o alvará de construção emitido. A esses e aos processos 467/GTCO/04 e
468/GTCO/04, então pendentes, é aplicável o regime anterior na sua globalidade,
quer em termos de procedimento, quer em termos sancionatórios por violação das
regras estabelecidas.
É esse o entendimento que se colhe da letra da lei, pois da Proposta de lei
acima citada não se colhem quaisquer elementos no sentido de que o legislador
tenha querido deixar sem qualquer sanção as situações já consolidadas
decorrentes da violação da lei modificada.
Uma interpretação do regime transitório estabelecido no artigo 6.º da Lei n.º
60/2007 no sentido de uma vacatio legis (dilatada no tempo mas subjectivamente
restrita) é a mais conforme aos princípios da segurança jurídica e da protecção
da confiança: se o legislador quisesse estabelecer um quadro normativo seja de
aplicação simultânea dos dois regimes quer de aplicação em parte do novo regime
então, por ali, não teria revogado aquele e, por aqui, sempre teria estabelecido
em “termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios” quais
as condutas susceptíveis de consubstanciar ilícito contra-ordenacional no
período da transição.
Ao fim e ao cabo, o legislador quis salvaguardar a aplicação do regime anterior,
quer em termos de tramitação de procedimentos quer de consequências pela sua
violação, às situações já constituídas, a menos que o interessado requeresse e
obtivesse do presidente da câmara municipal autorização para aplicação do novo
regime aos procedimentos em curso (cf n.º 2 do citado art. 6.º da Lei n.º
60/2007).
Daí que o legislador tenha querido conferir uma ultraactividade ao regime
anterior, evitando as consequências de uma sucessão de regimes para situações já
constituídas, pois o procedimento de comunicação prévia não pode ser equiparado
ao procedimento de autorização. Aliás, o procedimento de comunicação prévia,
apesar de manter a mesma designação do regime pré-existente apresenta uma
tramitação muito mais complexa, conforme se pode constatar da leitura dos art. 9
a 36-A e 61.º, 67.º, 68.º, 72.º, 73.º, 80.º n.º2 e 1 16.º. Por outro lado, as
coimas aplicáveis às contra-ordenações previstas no n.º l do art. 98.º sofreram
um substancial agravamento quando o acto ilícito seja praticado no âmbito de
operações urbanísticas objecto de comunicação prévia.
Não se pode, por conseguinte, analisar a conduta da recorrente à luz do regime
da comunicação prévia que lhe era inaplicável à data da prática dos factos, mas
tão somente face ao regime anterior, pelo que, com o devido respeito pelo
exarado na decisão recorrida, entendemos que a situação fáctica em apreço foi
descategorizada e não integra no novo regime a contra-ordenação, p.e p. pela
alin. r) do n.º1 do art. 98.º».
3. Deste acórdão foi interposto o presente recurso, mediante requerimento onde
se lê o seguinte:
«O presente recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º,
do supra citado diploma, devendo o Tribunal Constitucional apreciar a
inconstitucionalidade, por violação do art. 29.º, n.º 4, última parte, da
Constituição da República Portuguesa, do art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007 de
4 de Setembro, quando interpretado no sentido de que se aplica também às
disposições de natureza contra-ordenacional ou de Direito público sancionatório
(e que portanto é possível, após a entrada em vigor da Lei n.º 60/2007 e por
causa do seu art. 6.º, n.º 1, punir como contra-ordenação a realização de
operações urbanísticas sem alvará de autorização administrativa, apesar deste
facto ter deixado de ser punível nos termos do novo regime).
A Recorrente suscitou esta questão de inconstitucionalidade normativa durante o
processo, nomeadamente no ponto II.1. da motivação do recurso interposto da
sentença proferida pelo 3.º Juízo Criminal de Setúbal, recurso esse que foi
julgado improcedente pelo acórdão ora proferido, do qual já não cabe recurso
ordinário.
Fê-lo ao longo de várias páginas, tendo referido, designadamente, no n.º 25 da
referida motivação do recurso, o seguinte:
“A interpretação do art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007, feita pelo Tribunal a
quo, no sentido de que a referida disposição se aplica também às disposições de
natureza contra-ordenacional ou de Direito público sancionatório, viola o art.
29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa”.
Esta questão é retomada no n.º 28, alínea h), e no n.º 56 da motivação de
recurso, bem como, ainda, nas respectivas conclusões 1.ª a 4.ª dizendo-se
expressamente, nas conclusões 1.ª e 2.ª:
“1.ª - O Tribunal a quo, ao decidir que ao caso sub judice não é aplicável a Lei
n.º 60/2007, por força do art. 6.º, n.º 1, da mesma, que prevê um regime
transitório, aplicou incorrectamente o referido normativo e violou o art. 3.º,
n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, e o art. 2.º, n.º 2, do Código Penal.
2.ª - O Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do art. 6.º, n.º 1, da
Lei n.º 60/2007, interpretação essa que viola o princípio da retroactividade da
lei sancionatória mais favorável (quando o facto deixa de ser punível),
consagrado no art. 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, pelo
que é inconstitucional, o que desde já fica arguido para todos os efeitos.”».
4. Notificada para alegar, a recorrente apresenta as seguintes conclusões:
«1.ª
A regra da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, contida no artigo
29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, é igualmente aplicável aos
ilícitos de mera ordenação social (seja ou não por via analógica), e essa
aplicabilidade, como parece ter entendido o Tribunal a quo, não pode ser
afastada por lei ordinária, de valor infraconstitucional, como é o caso do art.
6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007.
2.ª
A Lei n.º 60/2007 alterou o artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º
555/99, no sentido de se ter deixado de prever a punibilidade da realização de
operações urbanísticas sem que se ache emitido o alvará da autorização
administrativa.
3 .ª
Assim sendo, é inconstitucional, por violar o estipulado no artigo 29.º, n.º 4,
da Constituição da República Portuguesa, o disposto no artigo 6.º, n.º 1, da Lei
n.º 60/2007, quando interpretado no sentido de que o mesmo se aplica também às
disposições de natureza contra-ordenacional do Decreto-Lei n.º 555/99 (e não só
às disposições que regulam o procedimento administrativo do regime da
urbanização e da edificação) - e que portanto é possível, após a entrada em
vigor da Lei n.º 60/2007 e por causa do seu artigo 6.º, n.º 1, punir como
contra-ordenação a realização de operações urbanísticas (em área abrangida por
alvará de loteamento) sem alvará de autorização administrativa -, na medida em
que tal interpretação do aludido artigo 6.º, n.º 1, tem como efeito directo a
não aplicação retroactiva da lei sancionatória mais favorável (quando o facto
deixa de ser punível)».
5. Notificada para contra-alegar, a recorrida concluiu que devia ser negado
provimento ao recurso.
6. Por despacho de 20 de Janeiro de 2010, a recorrente e a recorrida foram
notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade de vir a ser
proferida decisão de não conhecimento do objecto do recurso, “uma vez que a este
Tribunal não compete a apreciação da conformidade constitucional das decisões
judiciais”. O despacho tem o teor seguinte:
«É configurável que o Tribunal venha a entender que a recorrente não colocou uma
questão de inconstitucionalidade normativa, quando requereu, ao abrigo da alínea
b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da inconstitucionalidade da
interpretação do artigo 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro, no
sentido de que esta disposição se aplica também às disposições de natureza
contra-ordenacional ou de direito público sancionatório, por violação do artigo
29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
O que a recorrente questiona, verdadeiramente, é a decisão judicial tomada de
harmonia com o disposto no artigo 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro,
no sentido de ainda ser aplicável ao caso dos autos o regime anteriormente
vigente, quer em termos de tramitação de procedimentos quer de consequências
pela sua violação. A decisão segundo a qual, naquela disposição sobre o regime
transitório, são subsumíveis situações já constituídas decorrentes da violação
da lei modificada, às quais correspondia um procedimento (autorização prévia)
que não pode ser equiparado ao previsto na lei nova (comunicação prévia)».
7. A recorrida respondeu que “nada tem a obstar, sobre a possibilidade de vir a
ser proferida decisão de não conhecimento do objecto de recurso”.
A recorrente respondeu nos seguintes termos:
«I. Breve introdução:
1. Salvo o devido respeito, não se aplica, ao caso sub judice, a douta
jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual não lhe compete “[…] a
apreciação da conformidade constitucional das decisões judiciais [...]”.
2. Essa aplicação, a este caso, acarretaria, além de tudo, uma excessiva (e
inadmissível) limitação do acesso à jurisdição desse referido Alto Tribunal,
aqui com base não em questões jurídicas de fundo (correctamente ponderadas) mas
sim, na realidade, quase que só semânticas.
3. É que ainda que a Recorrente efectivamente se refira, em algumas passagens, à
interpretação (que subjaz ao douto acórdão do Tribunal da Relação e Évora) do
artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007 de 4 de Setembro, o que é facto é que a
utilização dessa expressão não permite que daí se extraia ter-se posto em causa
a “[...] conformidade constitucional das decisões judiciais”: a Recorrente
sempre se centrou na questão da inconstitucionalidade da própria norma (ainda
que num determinado sentido que é aquele que o Tribunal a quo lhe deu).
(…)
7. O facto, já acima referido, de por vezes se aludir à “interpretação” do
artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007 decorre do facto de esta norma, pelo menos
em sentido literal, permitir que dela se extraia a leitura feita pelo Tribunal a
quo.
8. Se essa leitura fosse literalmente absurda, não tendo na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, é evidente que o Tribunal a quo a não teria
feito.
9. O “problema” da norma em questão (o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007) é
precisamente esse: o seu texto permite que dela se faça uma leitura desconforme
à Constituição da República Portuguesa (tal como efectivamente foi feita, e que
pode ser retomada noutros casos análogos) que, no entanto, se fosse correcta,
implicaria a inconstitucionalidade do preceito em apreço.
10. É por isso que urge que o Tribunal Constitucional se pronuncie acerca deste
artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007 (e não sobre a conformidade constitucional
do próprio douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora).
II. Apreciação:
11. A Recorrente não pode de facto concordar com a leitura considerada possível
no douto despacho em apreço, segundo a qual não se colocou uma questão de
inconstitucionalidade normativa, pois, como melhor se explica infra, o objecto
do presente recurso realmente não consiste na apreciação da conformidade
constitucional do douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora (ou, melhor
dito, da aplicação que este Tribunal a quo fez do direito aos factos - exercício
exegético que se reconhece que não pode ser sindicado perante esse Alto
Tribunal), mas sim, ao invés, na interpretação (rectius: o resultado da mesma) -
que se reputa de inconstitucional feita pelo mencionado Tribunal, a qual o mesmo
usou para fundamentar a sua decisão da causa.
12. O Tribunal Constitucional tem entendido, aliás em sintonia com grande parte
da doutrina nacional, que se encontra compreendida na sua competência conhecer,
no âmbito da fiscalização concreta, do sentido dado a determinada norma pelos
órgãos jurisdicionais, ou seja, do resultado da interpretação da mesma.
(…)
16. É verdade que a fronteira entre a sindicância de certa interpretação de uma
norma - ou, para usar do termo mais comummente utilizado, uma interpretação
normativa - e a sindicância da própria decisão judicial, nos termos supra
vistos, é relativamente ténue e, por vezes, nebulosa, mas existe e tem de ser
respeitada.
17. Assim, como bem decidiu esse Alto Tribunal no seu douto acórdão n.º 332/2009
(2.ª Secção, processo n.º 466/09, consultado em www.tribunalconstitucional.pt):
(…)
18. Ora, no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de que ora se
recorre, está, indubitavelmente, em causa uma interpretação normativa da norma
em causa (artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007), já que a mesma é feita com
carácter geral e abstracto, e por isso susceptível de ser aplicável, não só aos
concretos factos que fundam a acção em causa, mas a uma multiplicidade incerta
de factos da vida real.
19. Na verdade, a interpretação que o Tribunal a quo fez da aludida norma em
causa - a qual criou um regime transitório de aplicação no tempo das alterações
introduzidas, pela mesma Lei n.º 60/2007, no regime jurídico da urbanização e da
edificação (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro) -, segundo
a qual também as disposições de natureza contra-ordenacional não se aplicariam
aos processos já iniciados, é passível, de ser “transplantada” para outros
processos semelhantes ao que ora se discute, iniciados antes da entrada em vigor
da referida Lei n.º 60/2007.
20. Assim, a referida interpretação do Tribunal a quo tem um carácter genérico -
o que verdadeiramente se discute é a (in)constitucionalidade do artigo 6.º, n.º
1, da Lei n.º 60/2007.
21. Esta disposição foi aplicada dentro da sua esfera de aplicação normal (tendo
em conta o seu texto e os seus vários sentidos possíveis), pelo que não está
manifestamente em causa um qualquer processo de integração de lacunas, que
implique um qualquer processo prévio de obtenção da regra aplicável, em relação
ao qual se discute se pode ou não haver fiscalização da constitucionalidade pelo
Tribunal Constitucional - v., a propósito desta problemática, RUI MEDEIROS, em
‘A Decisão da Inconstitucionalidade’, Universidade Católica Editora, 1999, pág.
340 e segs..
22. Não se pretende, assim, com o presente recurso, que seja apreciada a
actividade exegética do Tribunal a quo de subsunção dos factos à norma (o que
extravasaria a competência desse Alto Tribunal), mas, ao invés, o resultado da
actividade prévia, pressuposto dessa segunda actividade, consistente na
determinação do sentido da norma (o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 60/2007) que
será aplicada aos factos.
23. Uma vez que essa norma, pelo menos num determinado sentido (o sentido
adoptado pelo Tribunal a quo), é, no entendimento da Recorrente,
inconstitucional.
24. Ou seja, não se questiona a actividade de subsunção, enquanto enquadramento
da premissa menor (factos) na premissa maior (comando normativo extraído da
lei), mas a determinação do sentido da premissa maior.
(…)
27. Resulta, pois, do que se deixou escrito que se encontra dentro da
competência desse Alto Tribunal conhecer do objecto do presente recurso».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Nos presentes autos é requerida a apreciação do “art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º
60/2007 de 4 de Setembro, quando interpretado no sentido de que se aplica também
às disposições de natureza contra-ordenacional ou de Direito público
sancionatório”.
O artigo 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro – diploma que procede à
sexta alteração ao Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, que estabelece o
regime jurídico da urbanização e edificação – tem a seguinte redacção, sob a
epígrafe “Regime transitório”:
«Às obras de edificação e às operações de loteamento, obras de urbanização e
trabalhos de remodelação de terrenos cujo processo de licenciamento decorra na
respectiva câmara municipal à data da entrada em vigor do presente diploma é
aplicável o regime anteriormente vigente, sem prejuízo do disposto no número
seguinte».
2. Interpretando esta disposição legal, o tribunal recorrido entendeu que a
expressão “regime anteriormente vigente” significa “regime anterior na sua
globalidade, quer em termos de procedimento, quer em termos sancionatórios por
violação das regras estabelecidas”. Aplicou, por isso, a disposição do regime
transitório contida no artigo 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007 nos autos que deram
origem ao presente recurso, onde se discutia a responsabilidade
contraordenacional da recorrente, por violação de regras estabelecidas em
matéria de operações urbanísticas (cf. artigos 4º e 98º, nº 1, alínea a), do
Decreto-Lei nº 555/99, entretanto alterado, os quais integram “disposições de
natureza contra-ordenacional ou de Direito público sancionatório”).
Sucede, porém, que a recorrente não requer a este Tribunal a apreciação daquela
interpretação. O que a recorrente questiona é a decisão de aplicar aquela
disposição legal, por dela decorrer que é aplicável ao caso dos autos o regime
anteriormente vigente e não o introduzido pela Lei nº 60/2007. Daí que ao
indicar a “norma” cuja apreciação pretende refira expressamente a aplicação do
artigo 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007 às disposições de natureza
contra-ordenacional, é dizer, ao caso sob julgamento; bem como o que decorre de
tal aplicação – “punir como contra-ordenação a realização de operações
urbanísticas sem alvará de autorização administrativa, apesar deste facto ter
deixado de ser punível nos termos do novo regime”. O que mantém nas alegações
produzidas neste Tribunal.
3. O que acaba de ser dito em nada contende – ao contrário do que sustenta a
recorrente (cf. ponto 7. do Relatório) com o que é jurisprudência constante e
reiterada quanto ao âmbito do objecto do recurso de constitucionalidade: o
Tribunal Constitucional conhece a norma na sua totalidade, em determinado
segmento ou segundo certa interpretação (cf., entre muitos outros, Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 232/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt). A questão está, precisamente, em a recorrente
não ter identificado qualquer interpretação normativa enquanto objecto do
recurso de constitucionalidade interposto, qualquer critério normativo, com
carácter de generalidade (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 332/2009,
citado pela recorrente). Sendo certo que não há norma (naquele sentido amplo) só
porque se junta a determinada disposição legal a expressão “quando interpretada
no sentido de que”. A doutrina e a jurisprudência deste Tribunal não deixam de
advertir que importa “prevenir os casos de abuso ou ficção do conceito de
interpretação normativa” (Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de
fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3,
p. 8).
4. Como a recorrente não requereu a apreciação de uma norma e este Tribunal é um
órgão jurisdicional de controlo normativo, importa concluir pelo não
conhecimento do objecto do recurso interposto.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de
conta.
Lisboa, 13 de Abril de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da
declaração de voto junta.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei da tese que fez vencimento, para a qual o recorrente não teria
requerido a este Tribunal a apreciação de uma norma, antes sindicando “a decisão
de aplicar [uma] disposição legal”. A decisão de não conhecimento
justificar-se-ia assim por o recorrente não ter colocado ao Tribunal uma questão
de inconstitucionalidade normativa.
Nos autos, o 3º Juízo Criminal de Setúbal julgou improcedente o recurso da
decisão do Vereador da Câmara Municipal de Palmela que aplicara uma coima à
recorrente. Para tal decidir, este tribunal fez aplicação do regime constante do
Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, na versão anterior à decorrente da Lei
nº 60/2007, versão que considerou a aplicável por força do artigo 6º, nº 1 desta
última lei, no qual viu a salvaguarda da aplicação daquele regime às obras e
operações cujo processo de licenciamento decorresse na câmara municipal à data
da entrada em vigor daquele diploma. Considerando que tal ressalva não poderia
valer, sob pena de violação do artigo 29, nº 4 da Constituição, para as
disposições de natureza contra-ordenacional ou de direito público sancionatário,
o recorrente (nº 25 da respectiva motivação do recurso - fls. 453) suscitou a
inconstitucionalidade da “interpretação do art. 6º, nº 1, da Lei nº 60/2007 (…)
no sentido de que a referida disposição se aplica também às disposições de
natureza contra-ordenacional ou de direito público sancionatório”. E, não tendo
o seu ponto de vista sido atendido, trouxe esta mesma questão a este Tribunal.
É para mim meridiano tratar-se no caso de uma verdadeira e autêntica
interpretação normativa, no caso correspondente ao sentido linguístico que em
termos puramente enunciativos dá um alcance mais pleno à fórmula do preceito
legal. A recorrente entende que tal sentido é violador da Constituição, apenas
sendo respeitador desta aquele que da formulação legal (que mantém a aplicação
da versão anterior do regime aos processos pendentes) exceptuasse as disposições
de natureza contra-ordenacional ou de direito público que o integram.
Diferentemente do que se afirma no acórdão, não se pretende aqui qualquer
apreciação da conformidade constitucional de decisões judiciais, mas antes, como
o recorrente teve ocasião de o referir no ponto 11 da sua resposta ao despacho
em que era solicitado a pronunciar-se sobre a possibilidade de o recurso não ser
conhecido (fls.723), da interpretação feita pelo tribunal recorrido e que este
usou para fundamentar a decisão da causa.
O acórdão (ponto 2 da fundamentação) pretende, contra o que me parece ser de
toda a evidência, que o recorrente não requer ao Tribunal Constitucional a
apreciação da interpretação assumida pelo tribunal recorrido (e por aquele
correctamente enunciada) mas antes da decisão de aplicar o preceito legal a que
aquela é reconduzida, como se um tal momento volitivo pudesse ser concebido com
independência de um dado sentido interpretativo.
Sendo assim manifesto que se acha enunciado um critério normativo com carácter
de generalidade (vide o primeiro parágrafo do requerimento presente a este
Tribunal – fls 637) o recurso deveria ter sido conhecido, sendo por isso de todo
impertinente a referência que no acórdão é feita, a este propósito, a eventuais
casos de abuso ou ficção do conceito de interpretação normativa.
Rui Manuel Moura Ramos