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Processo nº 29/10
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é
recorrente A. e é recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Tribunal de 21 de Outubro de 2009.
2. Em 10 de Fevereiro de 2010, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do
disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu não tomar
conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«Decorre do requerimento de interposição de recurso que o recorrente pretende a
apreciação da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de
Dezembro, e do artigo 15º do Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de Junho – “em
conjugação com a atribuição que é feita pelo mesmo diploma da competência da
ASAE para realizar actividades de prevenção e reprimir certos crimes”, tendo por
referência os artigos 164º, alínea u), 165º, nº 1, alínea b), e 272º, nº 2, da
Constituição da República Portuguesa.
1. A alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC estabelece que cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal da Relação do Porto não aplicou, como ratio decidendi, qualquer norma
extraída do Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro. As referências a este
diploma têm a ver, estritamente, com o enquadramento da Autoridade de Segurança
Alimentar e Económica (ASAE), por referência ao momento em que foi criada. De
resto, este diploma legal foi revogado, com efeitos a partir de 1 de Agosto de
2007, pelo Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de Julho (cf. artigos 18º e 19º).
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto,
justifica-se, nesta parte, a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1,
da LTC).
2. Segundo a alínea b) do nº 1 do artigo 70º e do nº 2 do artigo 72º da LTC,
cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que
apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer.
Durante o processo, perante o Tribunal da Relação do Porto, o recorrente
questionou a constitucionalidade do artigo 15º do Decreto-Lei nº 274/2007, nos
termos do qual a ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
Não questionou, porém, a constitucionalidade deste artigo 15º, “em conjugação
com a atribuição que é feita pelo mesmo diploma da competência da ASAE para
realizar actividades de prevenção e reprimir certos crimes”.
Se o Tribunal Constitucional apreciasse a norma cuja apreciação é requerida –
norma que é distinta da que foi questionada durante o processo – iria conhecer
ex novo da questão de constitucionalidade colocada. É, de resto, evidente que o
que o acórdão recorrido decidiu foi a questão de saber se o Decreto-Lei nº
274/2007, ao conceder à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, através
do seu artigo 15º, “poderes de autoridade”, tal como outros órgãos de
autoridade, a GNR, PSP e PJ, viola os termos da alínea u) do artigo 164º da CRP;
bem como a de saber se o Decreto-Lei nº 274/2007, ao considerar a Autoridade de
Segurança Alimentar e Económica, através do seu artigo 15º, órgão de polícia
criminal, viola o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea b), da CRP (cf. ponto 2.
da decisão recorrida).
A não verificação daquele requisito do recurso de constitucionalidade obsta ao
conhecimento do objecto do recurso, justificando-se a prolação da presente
decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Notificado desta decisão, o recorrente vem agora reclamar, ao abrigo do nº 3
do artigo 78º-A da LTC, com a seguinte fundamentação:
«Como se pode verificar nas alegações e conclusões do recurso interposto para o
Tribunal da Relação do Porto, o recorrente invoca (como invocou em sede de
audiência de discussão e julgamento em 1º Instância) a inconstitucionalidade da
actuação da ASAE, sob duas perspectivas; (Vide fls. 35. dos autos)
- o D.L. no 247/2007 de 30 de Junho, ao conceder à Autoridade de Segurança
Alimentar e Económica, através do seu artigo 15, “poderes de autoridade”, tal
como outros órgãos de autoridade a GNR, PSP e PJ (criados por lei), viola os
termos da alínea u), do artigo 164 da C.R.P. onde refere” regime de forças de
segurança”, pois legitima extrair o entendimento segundo o qual, quer os regimes
especiais correspondentes a cada força de segurança, devem integrar a reserva
absoluta da competência parlamentar.
- o D.L. nº 274/2007 de 30 de Junho, ao considerar a Autoridade de Segurança
Alimentar e Económica através do seu artigo 15, órgão de policia criminal, viola
o disposto no artigo 165 da C.R.P., que estipula que é de exclusiva competência
da Assembleia da Republica, legislar sobre as seguintes matérias, salvo
autorização ao governo:
(...)
b) direitos, liberdades e garantias.
Invocado que está a questão da constitucionalidade pelo recorrente, admitida a
fls 35 do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, cabe agora decidir se houve a
aplicação daquela norma cuja constitucionalidade foi invocada como ratio
decidendi. Ora, está em crise o artigo 15 do D.L. nº 274/2007 de 30 de Junho que
concede poderes a ASAE o estatuto de órgão de polícia criminal, que in casu
permitiu agir materialmente e processualmente ofendendo direitos e liberdades e
garantias do arguido aqui recorrente. Os actos de detenção, constituição de
arguido, de libertação e processualmente o julgamento em processo sumário é
típico da actuação de um órgão de polícia criminal, legitimamente autorizado por
Lei nos termos do artigo 165 da C.R.P..
O Venerando Tribunal da Relação do Porto aprecia a inconstitucionalidade
invocada de tal diploma em duas vertentes. Para o efeito não só faz uma
retrospectiva jurisprudencial como invoca vários diplomas legais e a lei
fundamental para justificar que a constitucionalidade do artigo 15º do D.L. nº
274/2007 de 30 de Junho e a consequente legalidade da conduta da ASAE nos autos
em apreço (Vide páginas 353 a 363 do Acórdão da relação do Porto)
Transcreva-se por isso a Veneranda decisão para melhor enquadramento da questão,
da pertinência do recurso e da fundada reclamação;
Ponto 7. do Acórdão do T.R.P., página 362 in fine;
São estes no essencial, os fundamentos por que pugnamos em não considerar a
actuação da ASAE, nos presentes autos, como ferida de inconstitucionalidade nos
termos peticionados pelo recorrente, pois que a mesma agiu enquanto órgão de
polícia criminal, criado por acto legislativo emanado de órgão de soberania
competente para o efeito e, como órgão de policia criminal, pode, na situação
concreta, praticar todos os actos que praticou; deter o infractor, elaborar auto
de notícia e apresentá-lo em Tribunal para julgamento em processo Sumário, ou
notificá-lo para o efeito, conforme as regras processuais aplicáveis.
Em resumo os Venerando Juízes Desembargadores apreciaram a inconstitucionalidade
invocada do artigo 15 do D.L nº 274/2007 de 30 de Junho (Vide inclusive pág. 358
do Venerando Acórdão do Tribunal da Relação do Porto), bem como justificaram e
fundamentaram a sua aplicação ao caso concreto, julgando a actuação da ASAE
legítima no caso concreto em apreço.
Pelo que não se pode concordar a “tout court” com a decisão sumária da Juíza
Relatora, por violar expressamente o direito constitucional de acesso à justiça
na apreciação do caso concreto.
Relativamente ao segundo ponto que justifica a prolação da decisão;
Mais uma vez se verifica que só por mero lapso ou erro na apreciação dos autos
se poderá aceitar a decisão em crise. Bastaria mais uma vez transcrever a
decisão do Acórdão do T.R.P., pagina 362 in fine, ponto 7, que se reitera;
“São estes no essencial, os fundamentos por que pugnamos em não considerar a
actuação da ASAE, nos presentes autos, como ferida de inconstitucionalidade nos
termos peticionados pelo recorrente, pois que a mesma agiu enquanto órgão de
polícia criminal, criado por acto legislativo emanado de órgão de soberania
competente para o efeito e, como órgão de policia criminal, pode, na situação
concreta, praticar todos os actos que praticou; deter o infractor, elaborar o
auto de notícia e apresentá-lo em Tribunal para julgamento em processo Sumário,
ou notificá-lo para o efeito, conforme as regras processuais aplicáveis.”
Ou seja, a apreciação da constitucionalidade pelo TRP e pelo Tribunal de 1ª
Instância, para além de ser a mesma questão, esta é sempre vista no prisma da
actuação da ASAE. As actividades de prevenção e repreensão criminal referidas
como a detenção, constituição de arguido, apresentação para processo sumário,
etc... foram alegadas pelo recorrente e apreciadas quer, me sede de 1ª Instância
quer em sede de recurso para o Venerando Tribunal da Relação do Porto. E falso
por isso que o recorrente nunca tivesse questionado a constitucionalidade do
artigo 15º do D.L. 274/2007, à luz da competência das actividades realizadas,
aliás o presente e o anterior recurso nunca teria base de fundamentação se não
tivesse em causa a competência da ASAE para realizar as actividades que
realizou. Nunca é demais transcrever o que foi alegado para o Tribunal da
Relação do Porto pelo aqui recorrente;
“Como consta dos autos o acusado foi detido e constituído arguido pela
Autoridade de Segurança Alimentar e Económica pelos poderes que lhe foram
conferidos pelo D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e D.L. 274/2007 de 30 de Junho.
A constituição de arguido e a notificação de detido foi efectuada pelos agentes
da mesma autoridade em 10 de Janeiro de 2008, pelas 16h e 30m.
Tais actos processuais implicam a restrição de direitos, liberdades e garantias,
e consubstanciam uma excepção ao regime geral consagrado no artigo 27 da C.R.P.
Ora, como já foi referido a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica foi
criada pelo D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e atribuída, diga-se acrescidas,
certas competências através do D.L. 274/2007 de 30 de Junho. Este ultimo
diploma, através do seu artigo 15, vem conceder à Autoridade de Segurança
Alimentar e Económica “poderes de autoridade” e de “órgão de policia criminal”,
ou seja, tal como outros órgãos de autoridade, a GNR, PSP e PJ.
Ou seja, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica passou a ser
considerada uma polícia criminal fazendo apreensões, detenções, escutas
telefónicas, etc, tudo nos termos da lei penal e processual penal, á semelhança
das outras forças policiais.
Nos termos do da alínea u), do artigo 164 da C.R.P onde refere que “regime das
forças de segurança”, legítima extrair o entendimento segundo o qual, quer o
regime geral, quer os regimes especiais correspondentes a cada força de
segurança, devem integrar a reserva absoluta da competência parlamentar.”
Face a isto não se entende nem se vislumbra “que questão nova vai ser apreciada”
que não seja a (in)constitucionalidade do artigo 15º do D.L. 274/2007, os
poderes que lhe foram conferidos por este decreto-lei (violando o artigo 164,
al. u) e 165, nº 1, al. b) da CRP) e exercidos “in casu”».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público respondeu, em peça processual
da qual importa transcrever o seguinte:
«18º
Ora, hesita-se quanto ao primeiro fundamento invocado, pela Ilustre Conselheira
Relatora, para apreciar a argumentação do reclamante.
Com efeito, muito embora se concorde com o facto de o tribunal a quo (Tribunal
da Relação do Porto) não ter utilizado, como ratio decidendi, nenhuma norma
específica extraída do Decreto-Lei nº 237/2005, fez referência à várias
disposições deste diploma (preâmbulo, arts. 2 e 5), para enquadrar a sua decisão
sobre o recurso do interessado (cfr. supra nºs 13 e segs. da presente resposta).
O mesmo aconteceu, também, relativamente ao outro diploma referido pelo ora
reclamante, o Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de Julho, tendo o acórdão recorrido
feito, assim, uma referência expressa aos arts. 1 a 3 e 15 deste diploma.
19º
Por outro lado, o recorrente suscitou devidamente a questão ao longo do
processo, como se referiu mais acima (cfr. supra nº 6 da presente resposta).
Pelo menos formalmente, parece, pois, que estará tal situação contemplada no
art. 70º, nº 1, alínea b) da LTC e não deveria, assim, tal fundamento
constituir, só por si, motivo de não conhecimento do objecto do recurso
interposto.
(…)
21º
Relativamente a esta segunda parte da argumentação da Ilustre Conselheira
Relatora, também se hesita em segui-la na exacta formulação empregue.
Com efeito, julga-se que falar, como faz o recorrente, na atribuição à ASAE,
pelo art. 15 do Decreto-Lei 274/2007, de competência para realizar actividades
de prevenção e repressão de certos crimes, naturalmente no âmbito da segurança
alimentar e económica, não é, para o ora reclamante, substancialmente diferente
de dizer que esta entidade detém poderes de autoridade e ser órgão de polícia
criminal.
Com efeito, os órgãos de polícia criminal, justamente por deterem poderes de
autoridade, realizam, frequentemente, actividades de prevenção e repressão
criminal, embora sujeitos ao controlo das autoridades judiciárias.
E, no caso da ASAE, como referido, tais acções prender-se-ão, necessariamente,
com o exercício específico da sua actividade no âmbito da segurança alimentar e
económica (cfr. por exemplo o art. 3, nº 2, alíneas h), m), n), o), p), q), t),
z) e ab), bem como o art. 15 do Decreto-Lei 274/2007).
22º
Por todas as razões invocadas, julga-se que a reclamação do interessado deverá
ser atendida, procedendo-se à apreciação do mérito do anterior recurso por ele
interposto perante este Tribunal.
E, na apreciação do mesmo recurso, deverá, tudo indica, concluir-se pela sua
improcedência, nos termos atrás apontados, na linha, aliás, do já decidido por
este Tribunal Constitucional, no Acórdão 84/2010, de 3 de Março último».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso,
face à não aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de qualquer
norma extraída do Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro, e por não ter sido
questionada perante o tribunal recorrido, a constitucionalidade do artigo 15º do
Decreto-Lei nº 274/2007 “em conjugação com a atribuição que é feita pelo mesmo
diploma da competência da ASAE para realizar actividades de prevenção e reprimir
certos crimes”.
1. No que respeita ao primeiro fundamento, verifica-se que o reclamante em nada
contraria a decisão reclamada, uma vez que se limita a sustentar que o tribunal
recorrido aplicou, como razão de decidir, o artigo 15º do Decreto-Lei nº
274/2007, quando a decisão sumária tinha concluído pela não aplicação de
qualquer norma extraída do Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro. Este
diploma é mencionado no acórdão recorrido com o objectivo de enquadrar a
Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), sem que isso signifique,
de todo, que foi aplicada, como ratio decidendi, norma nele contida.
2. Face à argumentação do reclamante e do recorrido, importa começar por
reiterar, relativamente ao segundo fundamento da decisão sumária, que a norma
cuja constitucionalidade foi questionada durante o processo – o artigo 15º do
Decreto-Lei nº 274/2007, nos termos do qual a ASAE detém poderes de autoridade e
é órgão de polícia criminal – é diferente da que foi indicada no requerimento de
interposição de recurso – o artigo 15º do Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de
Julho, “em conjugação com a atribuição que é feita pelo mesmo diploma da
competência da ASAE para realizar actividades de prevenção e reprimir certos
crimes”. É, desde logo, manifesto que o segundo enunciado remete para outros
preceitos do Decreto-Lei nº 247/2007.
Por outro lado, a norma cuja apreciação foi requerida não foi suscitada durante
o processo, como bem comprova a transcrição que o reclamante faz do que foi
“alegado para o Tribunal da Relação do Porto” (cf. supra ponto 3. do Relatório).
Importa, pois, confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Março de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão