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Processo n.º 192/2010
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República requereu, ao abrigo dos n.ºs 1 e 3 do
artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), do n.º 1 do artigo
51.º e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), em
processo de fiscalização preventiva, a apreciação da constitucionalidade das
normas do artigo 1.º, do artigo 2.º – este na medida em que altera a redacção
dos artigos 1577.º, 1591.º e 1690.º, n.º 1, do Código Civil –, do artigo 4.º e
do artigo 5.º, todos do Decreto n.º 9/XI da Assembleia da República, que permite
o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, recebido para promulgação.
É o seguinte o teor integral do diploma:
“Artigo 1.º
Objecto
A presente lei permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Artigo 2.º
Alterações ao regime do casamento
Os artigos 1577.º, 1591.º e 1690.º do Código Civil, passam a ter a seguinte
redacção:
Artigo 1577.º
[...]
Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir
família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste
Código.
Artigo 1591.º
[...]
O contrato pelo qual, a título de esponsais, desposórios ou qualquer outro, duas
pessoas se comprometem a contrair matrimónio não dá direito a exigir a
celebração do casamento, nem a reclamar, na falta de cumprimento, outras
indemnizações que não sejam as previstas no artigo 1594.º, mesmo quando
resultantes de cláusula penal
Artigo 1690.º
[...]
1 - Qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o
consentimento do outro.
2 - …………………………………………………………………”.
Artigo 3.º
Adopção
1 – As alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade
legal da adopção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com
cônjuge do mesmo sexo.
2 – Nenhuma disposição legal em matéria de adopção pode ser interpretada em
sentido contrário ao disposto no número anterior.
Artigo 4.º
Norma revogatória
É revogada a alínea e) do artigo 1628.º do Código Civil.
Artigo 5.º
Disposição final
Todas as disposições legais relativas ao casamento e seus efeitos devem ser
interpretadas à luz da presente lei, independentemente do género dos cônjuges,
sem prejuízo do disposto no artigo 3.º.”
2. O pedido vem acompanhado de um parecer jurídico e tem os seguintes
fundamentos:
“[ …]
6º
O presente pedido de fiscalização da constitucionalidade tem por objecto e
circunscreve-se às normas, e só estas, do artigo 1º, do artigo 2º, na medida em
que altera a redacção dos artigos 1577º, 1591º e 1690º, nº 1 do Código Civil, do
artigo 4º e do artigo 5º do Decreto nº 9/XI, da Assembleia da República.
7º
Importa sublinhar, antes de mais, que a aprovação dos normativos cuja apreciação
preventiva da constitucionalidade se requer não decorre de uma imposição
constitucional de igualdade, pois que, como o Tribunal Constitucional já teve
ocasião de concluir, no Acórdão nº 359/2009, a norma do artigo 1577º do Código
Civil, na redacção em vigor, não afronta o nº 2 do artigo 13º da Lei
Fundamental.
8º
Se acaso se concluísse pela existência de uma imposição constitucional de
legislar decorrente do princípio da igualdade seria obrigatória a consagração de
um regime de casamento entre pessoas do mesmo sexo em tudo idêntico ao regime do
casamento entre pessoas de sexo diferente, impedindo o acolhimento de um regime
diferenciador ou de soluções juridicamente distintas.
9º
Tal opção de diferenciação foi seguida na maioria dos Estados em cuja cultura
jurídica Portugal se insere, tendo-se, em alguns deles, acolhido diferentes
designações e regimes diferenciados.
10º
A opção pela união civil com registo foi considerada, de resto, pela
jurisprudência constitucional alemã como uma decorrência do princípio da
igualdade: tratando-se de realidades distintas importaria consagrar regimes
diferentes, casamento para pessoas de sexo diferente; união civil com registo
para pessoas do mesmo sexo.
11º
O princípio da igualdade pode, aliás, ser invocado para sustentar a
inconstitucionalidade das normas objecto do pedido. Tudo está em saber se, ao
tratar de forma igual realidades substancialmente diferentes, não está o
legislador a violar uma obrigação de diferenciação que decorre da Lei
Fundamental.
12º
Conclui-se, assim, que, de acordo com a jurisprudência constitucional
portuguesa, firmada no Acórdão nº 359/2009, a Constituição não obriga à
consagração legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo legítimas quer
a sua proibição pura e simples, quer a previsão de regimes diferenciados – de
que é exemplo, entre muitos outros, o regime alemão.
13º
Solução diversa constituiria um inaceitável condicionamento à liberdade de
conformação do legislador, na medida em que imporia não só a ampliação do regime
do casamento civil a pessoas do mesmo sexo como o faria em toda a sua extensão,
com todo o seu feixe de direitos e obrigações.
14º
De resto, para concluir pela existência, neste domínio, de uma imposição ditada
pelo nº 2 do artigo 13º da Lei Fundamental seria necessário densificar
previamente o conceito constitucional de «orientação sexual». Com efeito, só
esta densificação permitiria saber, com segurança, se a configuração agora dada
ao instituto do casamento pelo Decreto nº 9/XI não implicaria, porventura, a
violação do princípio da igualdade, ao não conferir idêntico tratamento a outras
formas possíveis de orientação sexual, do mesmo modo que sempre se poderia
questionar a legitimidade constitucional do artigo 3º do citado Decreto, que
parece vedar a possibilidade de adopção por pessoa casada com cônjuge do mesmo
sexo.
15º
A diferenciação introduzida no mencionado artigo 3º do Decreto corresponde,
aliás, ao reconhecimento por parte do legislador de que as realidades em causa
são substancialmente distintas, permitindo a Constituição – ou mesmo reclamando
–, por isso, um tratamento diferenciado.
16º
Esta necessidade de densificação do conceito de «orientação sexual» torna-se
ainda mais patente quanto o regime do artigo 1577º do Código Civil e de outras
disposições do mesmo Código, exige, na sua literalidade, a diferença de sexo dos
nubentes, mas não uma específica orientação sexual. É, pois, essencial saber em
que consiste «orientação sexual» para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 13º
da Constituição.
17º
Afastada a existência de uma imposição constitucional de legislar nos termos em
que o fez o Decreto nº 9/XI, coloca-se, então, a questão de saber se as normas
que integram o objecto do presente pedido são conformes à norma constitucional
do artigo 36º, nº 1, que dispõe: «Todos têm o direito de constituir família e de
contrair casamento em condições de plena igualdade».
18º
Pelo Decreto nº 9/XI, a Assembleia da República conferiu uma nova redacção à
norma do artigo 1577º do Código Civil, a qual determina, sob a epígrafe «Noção
de casamento», que «[C]asamento é o contrato celebrado entre pessoas de sexo
diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida,
nos termos das disposições deste Código».
19º
O legislador eliminou o inciso «pessoas de sexo diferente», substituindo-o pela
expressão «duas pessoas», o que implicou uma alteração significativa dos
elementos definidores do conceito de casamento acolhido no Código Civil, que
são: (a) a celebração de um contrato; (b) entre pessoas de sexo diferente; (c)
que pretendem constituir família; (d) mediante uma plena comunhão de vida.
20º
Torna-se, pois, necessário indagar se a alteração ora pretendida introduzir no
nosso ordenamento jurídico se mostra conforme ao conceito constitucional de
casamento – e, reflexamente, ao conceito constitucional de família – acolhido no
nº 1 do artigo 36º da Lei Fundamental.
21º
Torna-se, ainda, necessário saber se esta alteração se conforma com o conceito
de casamento acolhido na Declaração Universal dos Direitos do Homem que, no n.º
1 do seu artigo 16º estabelece o seguinte: «A partir da idade núbil, o homem e a
mulher têm o direito de casar e de constituir família (…)». Sendo esta
referência ao género dos titulares do direito caso isolado na Declaração
Universal, é imperioso concluir que, à luz deste texto, o conceito de casamento
deve ser interpretado como respeitante à união entre um homem e uma mulher.
22º
Ora, dispondo a Constituição portuguesa, no n.º 2 do artigo 16º, que «os
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem», isto significa que a interpretação dos preceitos constitucionais
sobre direitos fundamentais não deve ser feita, exclusivamente, com base na sua
letra e no espírito da nossa Constituição. O que a norma constitucional
portuguesa impõe ao intérprete é, pois, uma interpretação conforme com a
Declaração.
23º
Mesmo reconhecendo que o legislador possui, neste domínio, de liberdade de
conformação na definição dos elementos característicos do conceito legal de
casamento, sempre deverá ter-se presente que essa discricionariedade legislativa
não pode ser exercida de tal modo que desfigure a noção constitucional desse
instituto.
24º
A existência constitucional do casamento enquanto instituição é expressamente
reconhecida pela jurisprudência constitucional, designadamente pelo citado
acórdão nº 359/2009, tendo o Tribunal, no acórdão n.º 590/2004, afirmado mesmo
tratar-se de «uma verdadeira norma de garantia institucional».
No acórdão acabado de citar, declarou o Tribunal Constitucional:
«Importa, desde já, precisar o sentido da norma constitucional invocada. O
artigo 36º reconhece e garante diversos direitos relativos à família, ao
casamento e à filiação. Seguindo de perto o ensinamento de J. J. Gomes Canotilho
e Vital Moreira […]:
São de quatro ordens esses direitos: a) direito das pessoas a constituírem
família e a casarem-se (nº 1 e nº 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito
familiar e extrafamiliar (nº 3); c) direitos dos pais, em relação aos filhos (nº
2, in fine, e nºs 5 e 6); d) direitos dos filhos (nºs 4 e 5, 2ª parte).
Interessam-nos em particular os direitos mencionados na alínea a). Quanto ao
direito a casar, pode dizer-se que este comporta duas dimensões. Por um lado,
consagra um direito fundamental, por outro, é uma verdadeira norma de garantia
institucional. Como explicam Pereira Coelho e Guilherme Oliveira (Curso de
Direito da Família, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2001, pág. 137):
Merece referência (...) a questão de saber se o artigo 36º, nº 1, 2ª parte,
concede apenas um direito fundamental a contrair casamento ou, mais do que isso,
é uma norma de garantia institucional. Embora a Constituição não formule de modo
explícito um princípio de “protecção do casamento” (só a família é protegida no
artigo 67º), temos entendido que a instituição do casamento está
constitucionalmente garantida, pois não faria sentido que a Constituição
concedesse o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permitisse ao
legislador suprimir a instituição ou desfigurar o seu “núcleo essencial”.
[…] Aquilo que a Constituição garante é a liberdade individual de constituir
família e de contrair casamento, bem como a existência da figura jurídica do
casamento. Ou seja, a norma invocada como parâmetro prescreve apenas que o
Estado deve garantir a existência do instituto jurídico do casamento e, ao mesmo
tempo, abster-se de quaisquer comportamentos que impeçam ou dificultem o
exercício dos referidos direitos por parte dos cidadãos».
25º
Independentemente da natureza da protecção constitucional ao casamento, importa,
pois, determinar o conteúdo mínimo do conceito constitucional de casamento.
26º
Na verdade, a maleabilidade dos conceitos constitucionais não pode ser
irrestrita, tendo limites que decorrem da própria noção, semântica e
institucional, que a Lei Fundamental acolheu, sob pena de, a não ser assim, a
força normativa do texto constitucional ser irremediavelmente posta em causa.
27º
Assim, não será constitucionalmente admissível que o legislador, no uso da sua
liberdade de conformação e tendo por objecto um conceito «aberto», suprima,
altere ou introduza novos elementos nesse conceito que o descaracterizem naquilo
que representa o seu núcleo essencial. De facto, como o Tribunal deixou bem
claro no acórdão n.º 590/2004, não basta afirmar que o legislador goza, neste
domínio, de uma ampla margem de conformação. É necessário explicitar o sentido e
os limites dessa liberdade de conformação, sob pena de o seu exercício postergar
o alcance da garantia institucional contida no nº 1 do artigo 36º da
Constituição. Trata-se precisamente da explicitação do sentido e limites da
liberdade de conformação do legislador neste domínio que, pelo presente pedido,
se solicita seja realizada pelo Tribunal Constitucional.
28º
Com efeito, a liberdade de conformação do legislador não pode permitir a
desfiguração do conceito constitucional de casamento nem, tão pouco, constituir
um «cheque em branco» ao legislador que lhe permita amputar alguma das suas
características essenciais.
29º
No caso em apreço, do que se trata, na verdade, não é de uma mera alteração
vocabular ou terminológica, mas da eliminação de um dos elementos do instituto
do casamento, o que sempre implica que o Tribunal Constitucional determine que
características definidas no artigo 1577º do Código Civil são, ou não, passíveis
de supressão, sob pena de desfiguração do instituto em apreço. É essa
determinação que, pelo presente pedido, se solicita que o Tribunal realize.
30º
A Constituição fornece, de resto, um adequado enquadramento da noção de
casamento, no contexto da família, que vincula o intérprete, no âmbito de uma
interpretação actualista mas também sistemática cujo resultado não pode
abstrair, em absoluto, da literalidade da norma do artigo 36º.
31º
É o caso do disposto nas normas constitucionais do n.º 1 do artigo 67º, nºs 1 a
4 do artigo 68º e n.º 2 do artigo 71º. Em todos eles a referência à família se
encontra associada à filiação, cujo papel se afigura central na instituição
familiar, tal como consagrada na Constituição, devendo destacar-se, pelo seu
conteúdo preceptivo, a salvaguarda dessa instituição prevista no artigo 36º.
32º
Não quer isto significar, naturalmente, que a Constituição estabeleça uma
conexão necessária entre casamento e filiação. O regime jurídico do casamento
actualmente em vigor desmente-o. Mas já será iniludível que a Constituição
protege a instituição casamento num contexto muito determinado.
33º
Por outro lado, é indesmentível que o conceito constitucional de casamento
impregnou a ordem jurídica portuguesa com a sua força irradiante.
34º
É visível essa impregnação no artigo 1577º do Código Civil, nos artigos 1601º a
1604º, relativos aos impedimentos matrimoniais, em especial, aos impedimentos
dirimentes absolutos e relativos, obstando ao casamento da pessoa a quem
respeitam, entre outros, o casamento anterior não dissolvido, o parentesco na
linha recta ou no segundo grau da linha colateral, ou na incriminação da
bigamia, prevista e punida pelo artigo 247º do Código Penal.
35º
Ali deixou claro o legislador, e tal não seria possível sem arrimo
constitucional, as características essenciais do casamento à luz do ordenamento
jurídico português.
36º
Não existindo uma definição constitucional expressa do conceito de casamento, é
forçoso concluir que a Lei Fundamental procedeu a uma recepção do «conceito
histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente» (J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Vol. I, 4ª edição, 2007, p. 568), ou seja, recortando este conceito como
exigindo a diferenciação do sexo dos nubentes, mas sendo omisso quanto à sua
orientação sexual.
37º
Independentemente de determinar a partir de que fonte ou fontes foi recebido na
Constituição o conceito de casamento, e abstraindo até da questão de saber se
essa recepção não teve por objecto um conceito pré ou metajurídico, coloca-se,
pois, ao Tribunal Constitucional a questão de saber se a diferenciação do sexo
dos nubentes não corresponde ao conceito de casamento – e, reflexamente, de
família – acolhido na Lei Fundamental, desde a sua versão originária.
38º
Tal não significa, como está bem de ver, sustentar que o conceito constitucional
de casamento se encontra «petrificado» ou tem de corresponder necessariamente ao
conceito de casamento que o Código Civil recebeu, o que, no limite, tornaria
inconstitucionais todas e quaisquer alterações introduzidas neste Código.
39º
O que deve ser clarificado é, isso sim, que elemento ou elementos do conceito de
casamento integram – e têm de integrar – a noção de casamento, à luz da
Constituição.
40º
Daí decorre também a interrogação, que se coloca ao Tribunal Constitucional,
sobre o conteúdo e o alcance da noção constitucional de família, igualmente
acolhida no artigo 36º, nº 1, de modo a indagar-se, agora numa outra vertente,
da conformidade à Lei Fundamental da opção do legislador plasmada na nova
redacção do artigo 1577º do Código Civil.
41º
As considerações acima expendidas aplicam-se, mutatis mutandis, às demais normas
que integram o objecto do pedido, ou seja, o artigo 1º e o artigo 2º do Decreto
nº 9/XI, este na medida em que confere nova redacção ao artigo 1591º do Código
Civil, bem como os artigos 4º e 5º do mesmo Decreto, sem prejuízo de se
reconhecer a margem de liberdade conformativa do legislador na modulação do
desvalor do casamento celebrado entre pessoas do mesmo sexo [artigo 1628º,
alínea e), do Código Civil] e, igualmente, sem prejuízo de se reconhecer a
natureza meramente acessória, instrumental e interpretativa do artigo 5º do
Decreto nº 9/XI.
42º
Conclui-se, pois, que existem fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade
material das normas objecto do pedido, por violação do conteúdo essencial da
garantia institucional ínsita no conceito de casamento acolhido pela
Constituição.
Ante o exposto, requer-se, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição da
República, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, a fiscalização preventiva de constitucionalidade das
normas dos artigos 1.º, 2.º, na medida em que altera a redacção dos artigos
1577.º, 1591.º e 1690.º, n.º 1 do Código Civil, 4.º e 5.º do Decreto n.º 9/XI,
por violação do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição.'
3. Notificado para se pronunciar sobre o pedido, nos termos do
artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o
merecimento dos autos.
II. Fundamentação
4. Contendo o Decreto remetido à Presidência da República para
promulgação um preceito relativo à adopção (o artigo 3.º do Decreto) e aludindo
o discurso fundamentador (cfr., n.º 14 do requerimento) à sua eventual
inconstitucionalidade, o requerimento sublinha, porém, que só as restantes
normas do Decreto são objecto do pedido de fiscalização preventiva (n.º 6.º e
42.º). Está, pois, fora do objecto de apreciação pelo Tribunal o artigo 3.º do
Decreto n.º 9/XI da Assembleia da República, bem como a parte final do artigo
5.º que ressalva o disposto naquele outro preceito.
Por outro lado, embora o objecto do pedido de fiscalização
preventiva seja constituído por diversas normas, só uma (ou só um efeito
normativo) está verdadeiramente em discussão: o artigo 1.º, ao permitir o
casamento entre pessoas do mesmo sexo. O mais é a reflexão desta opção
legislativa nos indicados preceitos do Código Civil e uma norma integrativa da
ordem jurídica, mandando interpretar todas as disposições legais relativas ao
casamento e seus efeitos (com excepção das que respeitem à matéria da adopção) à
luz da nova solução normativa.
Importa, ainda, notar que objecto da nova regulação é o “casamento
civil” e não o casamento católico ou o casamento celebrado segundo os ritos de
outra religião, tendo em conta a Lei de Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de
22 de Junho) e as alterações introduzidas no Código de Registo Civil pelo
Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de Setembro. Sem que importe agora caracterizar
o nosso sistema matrimonial quanto a saber se o casamento católico é admitido no
direito português como outra forma de celebração ou, mais do que isso, como um
instituto diferente (cfr., sobre a questão, com posições contrastadas, Francisco
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, Vol. I, 4ª
ed., págs. 186 e segs. e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pág. 563).
5. Refere-se o pedido a uma hipotética violação do princípio da igualdade que
poderia resultar de a configuração agora dada ao instituto do casamento pelo
Decreto 9/XI contemplar o relacionamento homossexual e não conferir idêntico
tratamento a outras formas possíveis de orientação sexual. Não vindo esta
argumentação desenvolvida e não se vislumbrando que concretas formas de
orientação sexual se tem em vista e que possam assumir foros de relevância no
espaço público em ordem a justificar a consideração pelo legislador, não estão
reunidas condições para que o Tribunal aprecie este argumento. O ponto fulcral
da alteração legislativa que justifica a interrogação de constitucionalidade é a
identidade ou diversidade do sexo dos cônjuges. A esta questão de
constitucionalidade não interessam todas as diferenças e variações que possam
existir nas manifestações hetero e homossexuais e respectivas consequências
jurídicas, mas tão somente que duas pessoas do mesmo sexo possam desposar-se.
Por outro lado, não se torna necessário proceder à explicitação ou densificação
do conceito de “orientação sexual”, nomeadamente enquanto “categoria suspeita”
para efeito da proibição contida no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição. A
orientação sexual que releva no contexto da norma em causa é a inclinação para a
união com uma pessoa do mesmo sexo biológico ou genético. No contexto da opção
normativa em apreciação, a componente morfológica, psicológica e social da
identidade sexual e da consequente determinação jurídica do género perde
relevância problemática. Para efeito de aplicação das normas em causa (i.e., da
existência ou validade do casamento e só para esse aspecto, mas só isso aqui
releva), não interessa saber como devem ser encaradas as situações de
transexualidade, designadamente a qual das identidades deve atender-se em caso
de desconformidade entre a identidade genética e o género constante do registo,
porque essa determinação do sexo dos nubentes deixa de influir no direito de
contrair determinado casamento. Todavia, note-se que, para quem considerar que,
após a intervenção médico-cirúrgica de conversão sexual, é possível fazer
reconhecer judicialmente a nova identidade de género com as consequências
inerentes, já hoje a lei consentiria o casamento entre pessoas do mesmo sexo
biológico, salvo se, também para este efeito, se introduzisse uma restrição à
relevância da mudança de sexo (cfr., acórdão Christine Goodwin c. Reino Unido,
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem).
6. A alteração legislativa submetida a fiscalização vai incidir
imediatamente sobre o conceito de casamento, actualmente definido pelo artigo
1577.º do Código Civil como “o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida,
nos termos das disposições deste Código”. De outras disposições do Código se
infere que a “plena comunhão de vida” se caracteriza pela recíproca vinculação
dos cônjuges aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e
assistência (artigo 1672.º do Código Civil), pela exclusividade (artigo 1601.º,
alínea c) do Código Civil) e pelo carácter tendencial ou presuntivamente
perpétuo, sem prejuízo da possibilidade de divórcio (artigos 1618.º, n.º 2, e
1773.º do Código Civil).
No regime jurídico vigente, a diversidade de sexo entre os nubentes
(e, consequentemente, entre os cônjuges) constitui um pressuposto necessário e
um requisito essencial do casamento. Se os cônjuges forem do mesmo sexo, o
casamento é juridicamente inexistente (artigo 1628.º, alínea e), do Código
Civil). É esta característica da diversidade de sexos entre os cônjuges, a
exigência insuperável de que o matrimónio se celebre entre um homem e uma
mulher, desde sempre vigente na ordem jurídica portuguesa e, com alguns
abandonos recentes que adiante se mencionarão, na generalidade das ordens
jurídicas do mesmo espaço civilizacional, que a iniciativa legislativa
questionada veio afastar.
Face à Constituição da República Portuguesa, três alternativas de
resposta são conjecturáveis e têm tido efectivo curso doutrinário acerca da
possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo contraírem entre si casamento (cfr.,
com indicação dos diversos autores nacionais que sustentam cada uma delas,
Duarte Santos, Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Casamentos, O casamento entre
Pessoas do mesmo Sexo e o Direito Português, págs. 283 e segs.): a) o casamento
entre pessoas do mesmo sexo é uma exigência constitucional; b) o casamento entre
pessoas do mesmo sexo está constitucionalmente proibido; c) o casamento entre
pessoas do mesmo sexo pode ser reconhecido pelo legislador ordinário.
No pedido sustenta-se o entendimento enunciado em segundo lugar,
dando a primeira hipótese por arredada de acordo com a jurisprudência firmada no
acórdão n.º 359/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que
interpreta no sentido de que a Constituição não obriga à consagração legal do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo legítimas quer a sua proibição pura
e simples, quer a previsão de regimes diferenciados.
É apenas este entendimento de que o artigo 36.º da Constituição não
permite que o legislador ordinário consagre a possibilidade de casamento entre
duas pessoas do mesmo sexo cuja sustentação importa averiguar, para com ele
confrontar as normas que constituem objecto do pedido, se essa interpretação
merecer acolhimento.
7. As questões dos modos e âmbito de protecção, reconhecimento e
legitimação das situações de vida em comum entre pessoas do mesmo sexo
irromperam nas últimas três ou quatro décadas, com premência crescente, tanto na
ordem jurídica portuguesa como noutros lugares do mesmo espaço de civilização e
cultura jurídica e em instâncias supra-nacionais que Portugal integra, e
encontraram cambiantes e alternativas de resposta de que é útil dar nota
sintética. Com efeito, não há dúvida de que em matérias que se ligam a problemas
humanos tão universais como os relacionados com a pretensão de tutela jurídica
do relacionamento homossexual poderá ter interesse saber o que sucede no âmbito
de outras experiências jurídicas e (sem perda do sentido de autonomia de cada
sistema jurídico) tirar daí porventura conclusões, em especial quando seja
possível induzir princípios jurídicos comuns de tais experiências (sobre a
importância do direito comparado no domínio da jurisdição constitucional,
veja-se Romano Orrú, La giustizia costituzionale in azione e il paradigma
comparato: l' esperienza portoghese, Napoli, 2006).
Neste aspecto, importa essencialmente retomar o que muito
recentemente o Tribunal disse no acórdão n.º 359/2009, em que enfrentou, pela
primeira vez, a questão constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
embora incidindo sobre a solução normativa oposta àquela que agora se aprecia.
8. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa foi pioneira na defesa da
situação jurídica dos homossexuais: na Resolução 756 (1981), de 1 de Outubro de
1981, convidou a Organização Mundial de Saúde a suprimir do seu catálogo de
doenças a homossexualidade, e na Recomendação 924 (1981), da mesma data,
recomendou ao Comité de Ministros que exortasse os Estados-membros onde os actos
homossexuais consentidos entre adultos eram passíveis de perseguição penal a
abolirem essas leis e práticas e a aplicar a mesma idade mínima para o
consentimento de actos sexuais homossexuais e heterossexuais, e que convidasse
os Estados-membros: a ordenar a destruição de ficheiros especiais existentes
sobre homossexuais e abolir a prática de elaborar tais ficheiros; a assegurar a
igualdade de tratamento dos homossexuais em matéria de emprego, remuneração e
segurança no emprego, designadamente no sector público; a reclamar a interrupção
de todo o tratamento ou investigação médica obrigatória destinada a modificar as
inclinações sexuais dos adultos; a assegurar que a guarda, o direito de visita,
e o acolhimento em casa das crianças pelos pais não sejam limitadas por causa da
inclinação homossexual de um deles; a reclamar dos direitos prisionais e de
outras autoridades a vigilância contra o risco de violações, actos de violência
e delitos sexuais dentro das prisões (cfr., Resolução 756 (1981), e Recomendação
924 (1981), disponíveis, como as demais citadas em http://assembly.coe.int/).
Directamente relacionadas com a união entre pessoas do mesmo sexo, emitiu duas
importantes Recomendações : A Recomendação 1470 (2000), de 30 de Junho e a
Recomendação 1974 (2000), de 26 de Setembro. Na Recomendação 1470, preocupada
com o facto de as políticas de imigração da maior parte dos Estados-membros do
Conselho da Europa serem discriminatórias relativamente aos homossexuais,
recomendou ao Comité de Ministros que exigisse aos Estados-membros: «a revisão
das respectivas políticas em matéria de direitos sociais e protecção dos
migrantes de maneira a que os casais e as famílias homossexuais sejam tratadas
da mesma forma que os casais e as famílias heterossexuais; a adopção das medidas
necessárias para que os casais homossexuais binacionais beneficiem dos mesmos
direitos em matéria de residência que os casais heterossexuais binacionais; a
criação de organizações não governamentais de defesa dos direitos dos
refugiados, dos migrantes e dos casais homossexuais binacionais (...)»; Na
Recomendação 1974, recomenda ao Conselho de Ministros «o aditamento da
orientação sexual ao conjunto de factores de discriminação proibidos pela CEDH,
tal como a Assembleia Parlamentar tinha feito no seu Parecer n.º 216 (2000)
(...) e convida os Estados-membros: a incluir a orientação sexual entre os
motivos de discriminação proibidos pelas respectivas legislações; (...) a
adoptar legislação consagradora da «união registada» (...)» Na resposta, em 19
de Setembro de 2001, o Comité de Ministros pronunciou-se contra a inclusão da
expressão orientação sexual na CEDH, mas aceitou todas as outras medidas.
Já em 2007, na Resolução 1547 (2007), de 18 de Abril, sobre «A situação dos
direitos do homem e da democracia na Europa», a Assembleia Parlamentar do
Conselho da Europa convida os Estados-membros a lutar eficazmente contra todas
as formas de discriminação fundadas no género ou na orientação sexual e, nesse
contexto, a aprovar legislação anti-discriminatória, designadamente, o
reconhecimento legal de uniões entre pessoas do mesmo sexo.
9. Nos termos do artigo 12.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4
de Abril de 1950, «A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de
se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o
exercício deste direito». Em matéria de igualdade, estabelece o artigo 14.º da
Convenção que «O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente
Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no
sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem
nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento
ou qualquer outra situação».
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem assente numerosa jurisprudência no
sentido de remover discriminações em razão da orientação sexual: nos casos
Dudgeon v. Reino Unido, Acórdão de 22.10.1981, Norris v. Irlanda, Acórdão de
26.10.1988, Modinos v. Chipre, Acórdão de 22.04.1993, e A.D.T. v. Reino Unido,
de 31.07.2000 (todos disponíveis, como os demais citados em:
http://cmiskp.echr.coe.int/), o Tribunal considerou que a penalização de
práticas homossexuais livremente consentida entre adultos viola o direito à vida
privada consagrado no artigo 8.º da CEDH e constitui uma violação do princípio
da não discriminação previsto no artigo 14.º da mesma Convenção (no caso A.D.T.
v. Reino Unido, o TEDH absteve-se de conhecer a violação do artigo 14.º,
limitando a sua análise ao artigo 8.º); nos casos Smith e Grady v. Reino Unido e
Lustig-Preen e Beckett v. Reino Unido, Acórdãos de 27.09.1999, foram julgadas
atentatórias do direito à reserva da vida privada consagrado no artigo 8.º da
CEDH normas constantes de códigos de justiça militar britânicos que penalizavam
práticas homossexuais entre militares; no caso Salgueiro da Silva Mouta v.
Portugal, Acórdão de 21.12.1999, o Tribunal declarou que a negação de um
tribunal português em conferir a custódia da sua filha a um pai homossexual, por
causa dessa condição, viola os direitos à vida privada e familiar (cfr., artigo
8.º da CEDH) e o princípio da igualdade e da não discriminação (cfr., artigo
14.º da CEDH); nos casos L. e V. v. Áustria e S. e L. v. Áustria, ambos de
09.01.2003, reconheceu-se a falta de qualquer justificação objectiva e racional
para a manutenção de uma idade superior relativa ao consentimento para actos
homossexuais quando comparados a actos heterossexuais, considerando violadoras
do artigo 14.º da CEDH as condenações que tiveram lugar ao abrigo do § 209 do
Código Penal austríaco; no caso Baczkowski e outros v. Polónia, Acórdão de
03.05.2007, a propósito do indeferimento de pedidos de autorização de
manifestações LGBT por parte das autoridades municipais de Varsóvia, o Tribunal
entendeu, face às circunstâncias do caso concreto, que se verificou uma situação
de discriminação em função da orientação sexual (cfr., artigo 14.º da CEDH) em
conjugação com a violação das liberdades de manifestação e reunião previstas no
artigo 11.º da Convenção; no caso E.B. v. França, Acórdão de 22.01.2008, o
Tribunal decidiu que a recusa das autoridades de um Estado-membro (no caso
concreto, a França) em aceitar a candidatura de um homossexual (no caso, uma
mulher) a um processo de adopção singular por causa dessa condição comporta uma
discriminação em função da orientação sexual (cfr., artigos 8.º e 14.º da CEDH).
O direito a casar e a formar família vem reconhecido no artigo 12.º da CEDH,
sendo que o TEDH tem interpretado o casamento como uma união entre um homem e
uma mulher, embora esta definição nem sempre tenha sido constante.
Assim, no caso Rees c. Reino Unido, de 10 de Outubro de 1986, o Tribunal afirmou
que «ao garantir o direito de casar, o artigo 12.º [da CEDH] tem em vista o
casamento entre duas pessoas de sexo biológico diferente. O seu teor confirma-o:
resulta deste artigo que o seu objectivo consiste essencialmente em proteger o
casamento enquanto fundamento da família» (cfr., § 49). Este entendimento viria
a ser confirmado nos casos Cossey c. Reino Unido, de 27 de Setembro de 1990
(cfr., § 43), e Sheffield e Horsham c. Reino Unido, de 30 de Julho de 1998
(cfr., § 60).
Esta jurisprudência conheceu posteriormente um distinguo, em matéria
de transexualidade, com o caso Christine Goodwin c. Reino Unido, de 11 de Julho
de 2002. Nesta decisão, o THDU não manteve a referência à diferença de sexo
biológico para definir o casamento, afirmando o seguinte: «Reexaminando a
situação em 2002, o Tribunal fez notar que no artigo 12.º se encontra garantido
o direito fundamental, para um homem e uma mulher, de casar e de fundar uma
família. Todavia, o segundo aspecto não é uma condição do primeiro, e a
incapacidade de um casal conceber ou criar uma criança não seria em si
suficiente para o privar do direito visado pela primeira parte da disposição em
causa» (cfr., § 98). O Tribunal afirmou ainda que «desde a adopção da Convenção,
a instituição do casamento foi profundamente afectada pela evolução da
sociedade, e os progressos da medicina e da ciência levaram a mudanças radicais
no domínio da transexualidade. (…) Outros factores devem ser tidos em conta: o
reconhecimento pela comunidade médica e as autoridades sanitárias nos Estados
contratantes do estado médico de perturbação da identidade sexual, a
disponibilização de tratamentos, incluindo intervenções cirúrgicas, destinadas a
permitir à pessoa em causa de se aproximar tanto quanto possível do sexo a que
sentem pertencer, a adopção por esta do papel social do seu novo sexo. O
Tribunal nota igualmente que o texto do artigo 9.º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia adoptada recentemente se afasta – e isso não pode
deixar de ter sido deliberado – do texto do artigo 12.º da Convenção, na medida
em que exclui a referência ao homem e à mulher» (cfr., § 100).
Por outro lado, na decisão de rejeição de 10 de Maio de 2001,
proferida no caso Mata Estevez c. Espanha, o Tribunal afirmou que «de acordo com
a jurisprudência constante dos órgãos da Convenção, as relações homossexuais
duradouras entre dois homens não relevam do direito ao respeito da vida familiar
protegida pelo artigo 8.º da Convenção (cfr., n.º 9369/81, dec. 3.5.1983, DR 32,
p. 220; n.º 11716/85, dec. 14.5.1986, DR 47, p. 274). O Tribunal considera que
apesar da evolução verificada em diversos Estados europeus tendendo ao
reconhecimento legal e jurídico das uniões de facto estáveis entre homossexuais,
trata-se de um domínio em que os Estados contratantes, na ausência de um
denominador comum amplamente partilhado, gozam ainda de uma ampla margem de
apreciação (cfr., mutatis mutandis, os casos Cossey c. Reino Unido, de 27 de
Setembro de 1990, série n.º 184, p. 16, § 40 e, a contrario, Smyth e Grady c.
Reino Unido, n.ºs 33985/96 e 33986/96, § 104, CEDH 1999-VI). Em consequência, a
ligação do requerente com o seu parceiro, hoje falecido, não releva do artigo
8.º na medida em que esta disposição protege o direito ao respeito da vida
familiar».
No caso Karner c. Áustria, de 24 de Julho de 2003, o Tribunal entendeu que «o
objectivo consistente em proteger a família no sentido tradicional do termo é
suficientemente abstracto e uma grande variedade de medidas concretas pode ser
utilizada para o realizar. Quando a margem de apreciação deixada aos Estados é
estreita, por exemplo no caso de uma diferença de tratamento fundada no sexo ou
na orientação sexual, não só o princípio da proporcionalidade exige que a medida
adoptada seja normalmente de natureza a permitir a realização do objectivo
pretendido, mas obriga também a demonstrar que era necessário, para atingir tal
fim, excluir certas pessoas – no caso os indivíduos vivendo uma relação
homossexual – do campo de aplicação da medida em causa – o artigo 14.º da lei
sobre os arrendamentos. O Tribunal verifica que o Governo não apresentou
argumentos que permitissem chegar a uma tal conclusão» (cfr., § 41).
10. A primeira vez que um órgão comunitário se pronunciou sobre direitos dos
homossexuais foi através da Resolução do Parlamento Europeu, de 13 de Março de
1984, relativa a discriminações sexuais no local de trabalho, na qual manifestou
preocupações idênticas às referidas pela Assembleia Parlamentar do Conselho da
Europa na Recomendação 924 (1981) (JO C 104, de 16/04/1984, págs. 6 e segs.).
Em 1993, numa Resolução sobre o respeito dos direitos humanos na Comunidade
Europeia o Parlamento Europeu exprimiu a sua preocupação face a discriminações
ou manifestações de marginalização dirigidas contra pessoas que apresentam
formas de diferença, em especial as que pertencem a uma minoria sexual (JO C
115, de 26/04/1993, págs. 178 e segs.)
Em 1994, na sequência de um Relatório sobre a igualdade de direitos dos homens e
das mulheres na Comunidade Europeia (Relatório Roth), exarado pela Comissão de
Liberdades e dos Assuntos Internos do Parlamento Europeu, foi aprovada por este
órgão a Resolução de 8 de Fevereiro de 1994, defendendo a igualdade de
tratamento entre todos os cidadãos independentemente da sua orientação sexual e,
considerando incumbência da Comunidade Europeia promover essa igualdade, o
Parlamento Europeu exorta os Estados-membros a agirem no sentido de porem termo
a tratamentos discriminatórios e a promoverem a integração dos homens e mulheres
homossexuais na sociedade e insta a Comissão das Comunidades Europeias a
apresentar um projecto de recomendação onde se deveria, pelo menos, pôr termo à
«exclusão de pares homossexuais da instituição do casamento ou de um
enquadramento jurídico equivalente, devendo igualmente salvaguardar todos os
direitos e benefícios do casamento, incluindo a possibilidade de registo de
uniões» e a «todas e quaisquer restrições impostas aos direitos que assistem aos
homens e mulheres homossexuais à paternidade, à adopção ou à educação de
crianças» (JO C 61, de 28/02/1994, págs. 40 e segs.)
Em 1997, o Parlamento Europeu adoptou nova Resolução, insistindo na ideia de que
«o não reconhecimento legal dos casais do mesmo sexo no conjunto da União
constitui uma discriminação, nomeadamente à luz do direito à livre circulação e
do direito ao reagrupamento familiar» (JO C 132, de 28/04/1997, págs. 31 e
segs., ponto 137).
Merecem, ainda, destaque as Resoluções: – de 1998, em que o Parlamento Europeu
convida todos os Estados-membros a reconhecerem a legalidade dos direitos dos
homossexuais, nomeadamente através da instauração, nos países em que ainda não
tenham sido adoptados, de contratos de união civil, tendo em vista suprimir
todas as formas de discriminação de que ainda são vítimas os homossexuais,
nomeadamente em matéria de direito fiscal, regimes patrimoniais, de direitos
sociais, etc. (cfr., Resolução sobre o respeito dos Direitos do Homem na União
Europeia (1996), de 17/02/1998, in JO C 80, de 16/03/1998, pág. 50, pontos
67-68); – de 2000, em que incita os Estados-membros a adoptarem políticas de
equiparação entre uniões heterossexuais e homossexuais, designadamente, a
garantirem às famílias monoparentais, aos casais não unidos pelo matrimónio e
aos do mesmo sexo a igualdade de direitos relativamente aos casais e famílias
tradicionais, nomeadamente no que se refere a fiscalidade, regimes patrimoniais
e direitos sociais, e exorta todos os Estados nos quais não exista ainda esse
reconhecimento jurídico a alterarem a sua legislação no sentido do
reconhecimento jurídico das uniões sem laços matrimoniais independentemente do
sexo dos intervenientes, entendendo ser necessário conseguir rapidamente
progressos quanto ao reconhecimento mútuo na União Europeia destas diversas
formas legais de uniões de facto e de matrimónios entre pessoas do mesmo sexo
(cfr., Resolução sobre o respeito pelos Direitos do Homem na União Europeia
(1998-1999), de 16/03/2000, in JO C 377, de 29/12/2000, págs. 344 e segs.,
pontos 56-57); e – de 2001 e de 2003, sobre a situação dos direitos fundamentais
na União Europeia (in: JO C 65 E, de 14/03/2002, e JO C 38 E, de 12/02/2004), no
sentido de recomendarem aos Estados-membros que modifiquem a sua legislação com
vista ao reconhecimento da uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo ou de
sexos diferentes e lhes atribuam direitos iguais. [Para uma descrição mais
detalhada desta matéria ver, entre outros, Duarte Santos, ob. cit., págs. 99 a
121].
11. Podem, ainda, referir-se com utilidade para a compreensão global
do problema, apesar de a matéria do direito de família não ser da competência da
União Europeia, as seguintes decisões do Tribunal de Justiça:
No acórdão de 17 de Fevereiro de 1998 (proferido no processo n.º C-249/96, Lisa
Jacqueline Grant contra South-West Trains Ltd.), considerou que «a recusa de uma
entidade patronal de conceder uma redução no preço dos transportes a favor da
pessoa, do mesmo sexo, com a qual o trabalhador mantém uma relação estável,
quando essa redução é concedida a favor do cônjuge do trabalhador ou à pessoa,
do sexo oposto, com qual este mantém uma relação estável sem ser casado, não
constitui uma discriminação proibida pelo artigo 119.º do Tratado nem pela
Directiva 75/117». O TJCE considerou que «no seu estado actual, o direito
comunitário não abrange uma discriminação baseada na orientação sexual, como a
que constitui objecto do litígio no processo principal», mas admitiu que após a
entrada em vigor do Tratado de Amesterdão será possível ao Conselho, nas
condições previstas no artigo 6.º-A do Tratado CE, a adopção das medidas
necessárias à eliminação de diferentes formas de discriminação, nomeadamente as
baseadas na orientação sexual.
No acórdão de 31 de Maio de 2001 (proferido nos processos apensos C-122/99 P e
C-125/99 P; Reino da Suécia e outros contra Conselho da União Europeia),
apreciou a questão de saber se a decisão privando um funcionário sueco de um
abono a que tinham direito os seus colegas casados, com fundamento apenas na
circunstância de o parceiro com quem vivia ser do mesmo sexo, constitui uma
discriminação em razão do sexo contrária ao artigo 119.º do Tratado. Segundo o
Tribunal, «o princípio da igualdade de tratamento só pode aplicar-se a pessoas
que estejam em situações comparáveis, e importa, portanto, examinar se a
situação de um funcionário que registou uma união de facto entre pessoas do
mesmo sexo, como a união de facto de direito sueco contraída pelo recorrente, é
comparável à de um funcionário casado». Para proceder a tal análise, o Tribunal
considerou que, enquanto «órgão jurisdicional comunitário», não podia abstrair
«das concepções dominantes no conjunto da Comunidade». Considerando a grande
heterogeneidade das legislações e a falta de equiparação geral ao casamento das
outras formas de união legal, o Tribunal «considerou que o fundamento relativo à
violação da igualdade de tratamento e a uma discriminação em razão do sexo não
pode ser acolhido».
No acórdão de 1 de Abril de 2008, proferido no caso Tadao Maruko v. Caixa de
pensões dos trabalhadores alemães de teatro (Processo C-267/06), no pedido de
decisão prejudicial suscitada pelo Bayerisches Verwaltungsgericht München, a
propósito da recusa da Caixa de Pensões em conceder uma prestação de
sobrevivência ao parceiro sobrevivo de uma união registada constituída ao abrigo
da Lebenspartnerschaftgesetz (LPartG), de 16 de Fevereiro de 2001, com
fundamento no disposto na convenção colectiva dos teatros alemães, segundo a
qual só o cônjuge sobrevivo tem direito a esse benefício, o Tribunal de Justiça
considerou que as disposições conjugadas dos artigos 1.º e 2.º da Directiva
2000/78/CE do Conselho, de 27/11/2000 – que estabelece um quadro geral de
igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional (JO L 303, de
02/12/2000, págs. 16 e segs.) – opõem-se a uma legislação por força da qual,
após a morte do seu parceiro, o parceiro sobrevivo não recebe uma prestação de
sobrevivência equivalente à concedida a um cônjuge sobrevivo, apesar de, segundo
o direito nacional, a união de facto colocar as pessoas do mesmo sexo numa
situação comparável à dos cônjuges no que respeita à referida prestação de
sobrevivência. Contudo, em consonância com anteriores decisões (cfr., Acórdãos
Grant e D e Reino da Suécia) o Tribunal entendeu que incumbe ao órgão
jurisdicional de reenvio verificar se um parceiro sobrevivo está numa situação
comparável à de um cônjuge beneficiário da prestação de sobrevivência prevista
pelo regime socioprofissional de pensões gerido pela caixa de pensões de reforma
em causa.
12. No âmbito do direito da União Europeia importa ainda reter:
– Que o n.º 1 do artigo 19.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
dispõe que «Sem prejuízo das demais disposições do presente Tratado e dentro dos
limites das competências que este confere à União, o Conselho, deliberando por
unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu,
pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do
sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou
orientação sexual».
– Que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE – publicada,
com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12/12/2007, no JO C 303, de
14/12/2007) estabelece, no seu artigo 9.º, sob a epigrafe “Direito de contrair
casamento e constituir família”, «O direito de contrair casamento e o direito de
constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o
respectivo exercício».
Além disso, o n.º 1 do artigo 21.º da Carta proíbe toda a «discriminação em
razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social,
características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou
outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade
ou orientação sexual».
13. Diversos são os países da Europa que adoptaram medidas legislativas de
reconhecimento e tutela jurídica das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Em
alguns deles, essa intervenção consistiu na consagração de um regime de “união
civil” entre pessoas do mesmo sexo ou parcerias de vida registada, envolvendo o
reconhecimento de grande parte dos direitos e deveres do casamento. Noutros,
procedeu-se à própria redefinição do conceito de casamento, de modo a abranger
as uniões de pessoas do mesmo sexo, como sucedeu na Holanda, em 2001, na
Bélgica, em 2003, na Espanha, em 2005 e, mais recentemente, na Noruega e na
Suécia.
Assim:
13. 1. Países com união civil registada
O primeiro país a consagrar um regime de união civil entre pessoas do mesmo
sexo, com efeitos substancialmente análogos aos do casamento, foi a Dinamarca,
em 1989 (Lov om registeret partneska n.º 372, de 07/06/1989).
O «modelo escandinavo», assim conhecido porque veio a ser adoptado por outros
países nórdicos – a Noruega em 1993, a Suécia em 1994, a Islândia em 1996, e a
Finlândia em 2001 – reserva exclusivamente aos casais homossexuais o acesso à
união registada.
Trata-se da instituição de um regime jurídico especificamente dirigido a regular
as uniões duradouras entre pessoas do mesmo sexo que apresenta semelhanças com o
casamento, designadamente quanto aos requisitos de capacidade e impedimentos,
aos trâmites do processo preliminar, à exigência de registo do acto, ao direito
ao nome, à previsão da obrigação de alimentos, à responsabilidade por dívidas
contraídas no decurso da relação, ao regime de bens, ao poder paternal, à
dissolução da relação em vida e aos direitos sucessórios, assim como nas
matérias relativas ao direito de residência e aquisição da nacionalidade, à
segurança social e direitos laborais, entre outros.
A Alemanha também não permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tendo
adoptado o regime da união registada, mediante a Lebenspartnerschaftgesetz
(LPartG), de 16 de Fevereiro de 2001, aberta apenas a uniões entre duas pessoas
do mesmo sexo e coincidindo em larga medida com as soluções do «modelo
escandinavo». É de salientar que a LPartG foi submetida a apreciação de
constitucionalidade, por violação do artigo 6, § 1, da Lei Fundamental, que
garante o direito de constituir família e contrair casamento, assim como uma
possível violação do princípio da igualdade. O Tribunal Constitucional Federal,
em decisão datada de 17 de Julho de 2002, pronunciou-se pela não
inconstitucionalidade da lei, como adiante se dará nota mais desenvolvida.
Também o Reino Unido consagrou no seu ordenamento a figura da união registada,
por força da aprovação do Civil Partnership Act, de 17 de Novembro de 2004.
Devido às semelhanças que apresenta com o regime do casamento já se afirmou
tratar-se de «marriage in almost but the name», enquanto outrem disse não haver
«legal difference between a civil partnership and marriage», embora outra fonte,
questionada sobre a natureza da «civil partnership», tenha enfatizado que o
casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma «contradiction in terms» (as
declarações e os seus autores podem ser conferidos em Stephen Cretney, Same Sex
Relationships: From ‘Odious Crime’ to ‘Gay Marriage’, págs. 16 e 19).
A Suíça, com a lei – Loi fédérale sur le partenariat enregistré entre personnes
du même sexe (LPart) – aprovada em 18 de Junho de 2004 pelas duas Câmaras do
Parlamento Federal, ratificada em referendo nacional no dia 5 de Junho de 2005,
e em vigor desde 1 de Janeiro de 2007, criou um estatuto próprio para as uniões
entre pessoas do mesmo sexo.
A França adoptou o Pacte Civil de Solidarité (PACS) – Lei n.º 99-944, de 15 de
Novembro – contrato cuja disciplina se encontra fundamentalmente regulada no
Título XII do Livro I do Code civil, artigos 515-1 a 515-7. O regime assenta em
regras próprias, de natureza contratual, que visam estabelecer uma «comunhão de
vida à margem do casamento», abrangendo uniões homossexuais e uniões
heterossexuais (cfr., artigo 515-1). O PACS pretende conferir aos parceiros um
estatuto que, sem se confundir com o do casamento, visa assegurar alguns dos
direitos decorrentes da união matrimonial. Para que tenha efeitos jurídicos e
seja oponível a terceiros, as partes devem declarar na secretaria do tribunal
d’instance do local de residência comum a sua vontade de celebrar o PACS,
procedendo o funcionário ao respectivo registo.
13.2. Casamento entre pessoas do mesmo sexo
A Holanda foi o primeiro país a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, por força da Lei de 21 de Dezembro de 2000, que entrou em vigor no dia 1
de Abril de 2001, passando o respectivo Código Civil a estabelecer que «o
casamento pode ser celebrado por duas pessoas de sexo diferente ou do mesmo
sexo». A mudança foi justificada, na proposta de lei, com base no princípio da
igualdade de tratamento – o casamento é um símbolo com especial significado,
constituindo uma forma fundamental de comprometimento entre duas pessoas.
A Bélgica, que incluía já no seu ordenamento a figura da «cohabitation légale»,
abriu as portas ao casamento de pessoas do mesmo sexo com a Lei de 13 de
Fevereiro de 2003. O novo artigo 143, alínea 1, do Código Civil determina o
seguinte: «Deux personnes de sexe différent ou de même sexe peuvent contracter
mariage». As normas relativas às condições de fundo, forma, dissolução, direitos
e obrigações passaram a aplicar-se a todos os casamentos, independentemente do
sexo dos cônjuges. Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de lei
enviada à Câmara dos Deputados, o Governo entendeu não haver justificação
suficiente para vedar a parceiros homossexuais o acesso a um instituto que
carrega consigo todo um simbolismo que se reflecte necessariamente na atribuição
de um conjunto de direitos e deveres e num reconhecimento social que não se
compadece com a exclusão de um determinado grupo.
No caso de Espanha, a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo
resulta da Lei n.º 13/2005, de 1 de Julho, que modificou o Código Civil em
matéria do direito a contrair matrimónio, consagrando o princípio de que o
casamento exige os mesmos requisitos e produz os mesmos efeitos, sejam os
contraentes do mesmo sexo, sejam de sexo diferente.
Finalmente, importa ainda referir que, em 2009, a Noruega e a Suécia, cujo
direito reconhecia a união civil registada, passaram a permitir o casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
[Para uma consulta mais detalhada dos regimes adoptados pelos países europeus
nesta matéria, com referência a locais de publicação e consulta, cfr., Duarte
Santos, ob. cit. págs. 123-176, e ainda, “Casamento e Outras Formas de Vida em
Comum entre Pessoas do mesmo Sexo”, Relatório elaborado pela Divisão de
Informação Legislativa da Assembleia da República em Maio de 2007, in Julgar,
n.º 4, 2008, págs. 223 e seguintes].
14. Noutros sistemas jurídicos o impulso para a institucionalização das uniões
entre pessoas do mesmo sexo foi protagonizado por decisões judiciais. Foi o que
sucedeu nos Estados Unidos da América, Canadá e África do Sul, como foi objecto
de referência mais detalhada no acórdão n.º 359/2009.
Da jurisprudência dos tribunais dos Estados Unidos da América, país em que
compete aos Estados definir os requisitos do casamento, parece oportuno
destacar, pela argumentação mobilizada, as seguintes decisões:
O Supremo Tribunal do Hawai, logo em 1993 (caso Baher v. Levin), considerou que
a Constituição do Estado apenas permitiria a restrição do casamento aos casais
heterossexuais se o Estado pudesse demonstrar interesses relevantes justificando
a exclusão dos homossexuais (compelling interest). Todavia, a constituição
estadual foi revista, permitindo ao legislador ordinário reservar o casamento
aos casais de sexo diferente (opposite-sex couple).
Posteriormente, o Supremo Tribunal do Vermont, numa decisão de 1999 (cfr., Baker
v. State, de 20 de Dezembro de 1999) considerou que o princípio da igualdade
proibia a exclusão de homossexuais dos benefícios e protecções associadas ao
matrimónio, sustentando também que as disposições legais sobre o casamento se
manteriam em vigor durante um período razoável de tempo, de modo a permitir que
o poder legislativo adoptasse um regime adequado. Nesta sequência, foi adoptado
um acto legislativo consagrando uma união civil que assegura a casais do mesmo
sexo a mesma protecção que o casamento atribui a casais de sexo diverso.
Num plano diferente coloca-se a decisão do Supremo Tribunal do Estado do
Massachusetts de 2003, sustentando que as garantias da igualdade e da liberdade
protegidas pela constituição estadual tornam inconstitucional o casamento apenas
entre homem e mulher, porque não existe uma «base racional» para o manter. Na
opinião da maioria, alcançada por quatro dos setes juízes que a votaram,
afirma-se o seguinte: «O casamento é uma instituição social vital. O compromisso
exclusivo de dois indivíduos entre si nutre o amor e o apoio mútuo; traz
estabilidade à nossa sociedade. Para aqueles que escolhem casar, e para os seus
filhos, o casamento propicia abundantes benefícios jurídicos, financeiros e
sociais. Em troca, impõe pesadas obrigações jurídicas, financeiras e sociais. A
questão que temos perante nós é a de saber se, em termos consistentes com a
Constituição do Massachusetts, a Comunidade pode negar as protecções, benefícios
e obrigações conferidos pelo casamento civil a dois indivíduos do mesmo sexo que
pretendam casar. Concluímos que não pode. A Constituição do Massachusetts afirma
a dignidade e igualdade de todos os indivíduos. Proíbe a criação de cidadãos de
segunda classe. Para chegar a esta conclusão tomámos em plena consideração os
argumentos avançados pela Comunidade. Mas esta falhou quanto a identificar
qualquer razão constitucionalmente adequada para negar o casamento civil aos
casais homossexuais».
Mais recentemente, o Supremo Tribunal da Califórnia, nos casos In re Marriage,
decididos em 15 de Maio de 2008, uma vez mais por uma maioria tangencial, veio
reconhecer, pela segunda vez nos Estados Unidos da América (depois da decisão no
caso Goodridge), o direito constitucional dos homossexuais a casar. A questão
que o Supremo Tribunal da Califórnia foi chamado a decidir, num Estado em que
aos homossexuais são assegurados, através de um contrato de união entre pessoas
do mesmo sexo designado «domestic partnership», essencialmente os mesmos
direitos que o casamento proporciona aos heterossexuais, consiste em saber se
«nestas circunstâncias, a não designação da relação oficial de um casal
homossexual como casamento viola a Constituição da Califórnia». Para responder a
esta questão o Tribunal apoia-se, por um lado, «na transformação fundamental e
dramática na compreensão e tratamento jurídico dos indivíduos e casais
homossexuais por parte deste Estado. A Califórnia repudiou as práticas e
políticas do passado baseadas numa perspectiva comum que denegria o carácter
geral e a moral dos indivíduos homossexuais e com base nas quais em dado momento
se chegou a caracterizar a homossexualidade como uma doença, em vez de muito
simplesmente uma das diversas variáveis da nossa comum e diversa humanidade».
Actualmente, pelo contrário, reconhece-se que os indivíduos homossexuais têm «os
mesmos direitos legais e o mesmo respeito e dignidade atribuídos a todos os
outros indivíduos e são protegidos de discriminação na base da sua orientação
sexual e, mais especificamente, reconhece[-se] que os indivíduos homossexuais
são totalmente capazes de entrar numa relação comprometida e duradoura fundada
no amor que pode servir como base de uma família e de tratar e educar
responsavelmente crianças».
Deve, todavia, notar-se que através de consulta popular, realizada em 4 de
Novembro de 2008, foi aprovada a “Proposition 8” que introduziu uma emenda à
Constituição do Estado da Califórnia no sentido de consagrar o carácter
heterossexual do casamento.
E deve salientar-se que, se houve Estados que aprovaram legislação que estende o
casamento civil às uniões entre duas pessoas do mesmo sexo, também se verificou
uma reacção política adversa ao sentido desta corrente jurisprudencial, seja a
nível federal, logo em 1996, com o Defense of Marriage Act (DOMA), através do
qual se pretendeu afirmar a natureza heterossexual do casamento e garantir aos
Estados a liberdade de regulação do matrimónio, seja através da alteração das
próprias Constituições em diversos Estados, por forma a proibir o casamento
entre pessoas do mesmo sexo bem como o reconhecimento de casamentos desse tipo
permitidos noutros Estados (cfr., DUARTE SANTOS, ob. cit., págs. 187-201).
No Canadá, o Governo colocou perante o Supremo Tribunal a questão da extensão do
casamento civil a pessoas do mesmo sexo, na sequência de decisões de tribunais
provinciais. Através da decisão Reference re Same-Sex Marriage, de 9 de Dezembro
de 2004, o Supremo Tribunal do Canadá considerou que a extensão do direito ao
casamento civil às pessoas do mesmo sexo não só era consistente com a Secção 15
da Carta de Direitos e Liberdades, mas dela resultava directamente. Referindo-se
ao caso Hyde v. Hyde, de 1866, segundo o qual o «casamento, como compreendido na
Cristandade, pode para este efeito ser definido como a união voluntária para a
vida de um homem e uma mulher, com a exclusão de todos os outros», o Tribunal
afirmou: «A referência à “Cristandade” é reveladora. Hyde dirigia-se a uma
sociedade de valores sociais partilhados em que se pensava que o casamento e a
religião eram inseparáveis. Este já não é o caso. O Canadá é uma sociedade
pluralista. O casamento, na perspectiva do Estado, é uma instituição civil. O
raciocínio dos “conceitos petrificados” é contrário a um dos mais fundamentais
princípios da interpretação constitucional canadiana: aquele segundo o qual a
nossa Constituição é uma árvore viva que, através de uma interpretação
progressiva, acomoda e se dirige às realidades da vida moderna».
Na sequência veio a ser aprovado o Civil Marriage Act, de 20 Julho de 2005, que
reformulou a definição do casamento civil, que passou a ser «a união legítima de
duas pessoas com a exclusão de quaisquer outras».
15. Entre as jurisdições congéneres, merecem destaque a decisão do Tribunal
Constitucional Federal alemão de 17 de Julho de 2002, relativa à
constitucionalidade da Lebenspartnerschaftgesetz e o acórdão n.º 159/2004 da
Cour d’arbitrage da Bélgica, de 20 de Outubro de 2004, relativa à
constitucionalidade da Lei de 13 de Fevereiro de 2003, permitindo o casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
Segundo a sentença do Tribunal Constitucional Alemão, «a Lei Fundamental não
contém em si mesma nenhuma definição do casamento, mas pressupõe-no enquanto
forma especial de vida humana em comum. A realização da protecção
jurídico-constitucional necessita, nessa medida, de um regime jurídico que
conforme e delimite a comunhão de vida que goza da protecção da Constituição
enquanto casamento. O legislador tem uma considerável margem de configuração
quanto a determinar a forma e o conteúdo do casamento (...). A Lei Fundamental
não garante o instituto do casamento em abstracto, mas na configuração que lhe
corresponde na visão dominante que obteve expressão no regime legal (...). De
todo o modo, deve o legislador ter em consideração, ao configurar o casamento,
os princípios estruturais que resultam, a partir do artigo 6.º, n.º 1, da Lei
Fundamental [de acordo com o qual «o casamento e a família encontram-se sob a
especial protecção da ordem do Estado»], na forma de vida encontrada em conexão
com o carácter de liberdade dos direitos fundamentais garantidos e outras normas
constitucionais (...). Faz parte da substância do casamento, tal como este é
protegido, independentemente da evolução social e das transformações daí
advenientes, e foi cunhado na Lei Fundamental, a sua definição como a união
entre um homem e uma mulher numa comunhão de vida duradoura, fundada numa livre
decisão com a colaboração do Estado (...), em que ao homem e à mulher pertencem
os mesmos direitos e em que podem decidir livremente sobre a conformação da sua
vida em comum» (§ 87). Ao mesmo tempo, afirma-se na decisão que da especial
protecção atribuída ao casamento pela Constituição não se pode inferir que o
casamento seja sempre de proteger em maior medida que outras formas de vida em
comum (§ 99).
Quanto à violação do princípio da igualdade, pela circunstância de
as pessoas homossexuais apenas poderem aceder às parcerias de vida, permanecendo
o casamento destinado aos heterossexuais, conclui não haver uma violação deste
princípio, por a lei, ao prever uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, «não
associa direitos e obrigações ao sexo de uma pessoa, mas antes associa à
combinação de sexos uma ligação pessoal que lhe concede o acesso à parceria de
vida. É às pessoas assim unidas que a lei atribui direitos e deveres. Tal como o
casamento, com a sua limitação a pessoas de sexo diferente, não discrimina os
casais homossexuais em razão da sua orientação sexual, também as uniões
homossexuais não discriminam os casais heterossexuais em razão da sua
orientação. Mulheres e homens podem casar com uma pessoa de sexo diferente, mas
não com uma pessoa do mesmo sexo; qualquer um pode entrar numa união civil com
uma pessoa do mesmo sexo, mas não com uma pessoa de sexo diferente» (cfr., §
106).
Para o Tribunal alemão, a diferença que permite distinguir deste modo as pessoas
homossexuais e as heterossexuais, quanto aos vínculos jurídicos que queiram dar
às comunhões de vida entre si, é a seguinte: «A diferença, consistente em de uma
relação de um homem e de uma mulher unidos por muito tempo poderem resultar
filhos em comum, o que não pode acontecer numa união de pessoas do mesmo sexo,
justifica que os pares de pessoas de sexo diferente sejam remetidos para o
casamento, quando queiram dar à sua comunhão de vida um vínculo jurídico
duradouro» (cfr., § 109).
A Cour d’arbitrage pronunciou-se sobre a Lei de 13 de Fevereiro de
2003, que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Considerou a
sentença que à luz da concepção de casamento como criação de uma comunidade de
vida duradoura entre duas pessoas “a diferença entre, por um lado, as pessoas
que desejam formar uma comunidade de vida com a pessoa de outro sexo e, por
outro, as pessoas que desejam formar tal comunidade com uma pessoa do mesmo sexo
não é de molde a fazer excluir para estas últimas a possibilidade de se casarem”
(fundamento B.4.7). Mais entendeu que as disposições convencionais invocadas
pelo requerente, nomeadamente o artigo 12.º da CEDH e o artigo 23.º do Pacto
Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos não podem ser
interpretados no sentido de que obrigam os Estados contratantes a considerar “a
dualidade sexual fundamental do género humano” como um fundamento da sua ordem
constitucional (fundamento B.5.8), não podendo ser interpretadas “no sentido de
impedirem os Estados que são parte nas referidas Convenções de atribuir o
direito garantido por essas disposições às pessoas que desejem exercer esse
direito com pessoas do mesmo sexo” (fundamento B.6.4). Mais considerou a Cour
d’arbitrage não se aperceberem razões para que a protecção relativa à família
possa considerar-se “enfraquecida pelas disposições atacadas, desde logo porque
a lei em causa não introduz nenhuma modificação material às disposições legais
que regem os efeitos do casamento civil de pessoas de sexo diferente”
(fundamento B.6.6).
Importa, finalmente, referir que a questão de constitucionalidade do
casamento entre pessoas do mesmo sexo está pendente nos Tribunais
Constitucionais de Espanha e de Itália. No primeiro, versando sobre a lei que
veio permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo; no segundo, como questão
relativa à não admissão desse casamento.
16. Em Portugal, as situações de “união de facto” entre pessoas do
mesmo sexo receberam reconhecimento e tutela legal com a Lei n.º 7/2001, de 11
de Maio, cuja finalidade foi a de equiparar a união de facto homossexual à união
de facto heterossexual. Revogando a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que definia
a união de facto como “a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que
vivem em união de facto há mais de dois anos”, a Lei n.º 7/2001 tornou a
protecção jurídica conferida às pessoas que vivam em união de facto há mais de
dois anos independente do sexo das pessoas em causa. A Lei n.º 7/2001 confere às
pessoas em união de facto, independentemente da identidade ou diversidade de
sexo, direitos no que respeita à casa de morada comum, relações laborais no
sector público e privado, imposto sobre o rendimento, segurança social,
protecção em caso de acidente de trabalho e pensões por serviços excepcionais e
relevantes prestados ao País (artigos 3.º, 4.º e 5.º).
Há, todavia, duas importantes diferenças a assinalar. A primeira é
que às pessoas de sexo diferente que vivam em união de facto se estendeu o
direito de adopção em condições análogas às previstas para os cônjuges no Código
Civil; os membros da união de facto entre pessoas do mesmo sexo ficaram
excluídos. A segunda consiste em que os membros da união de facto homossexual
não podem recorrer às técnicas de procriação medicamente assistida (artigo 6.º,
n.º 1, da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho).
Aliás, outras normas conferem direitos ou estabelecem consequências
jurídicas em decorrência de situações de união de facto, não distinguindo em
função da identidade ou diversidade de sexo e, portanto, abrangendo os casais
homossexuais. Podem destacar-se, sem preocupação de exaustão: o n.º 3 do artigo
3.º da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei
Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril); os n.ºs 1 e 5 do artigo 3.º da Lei n.º
37/2006, de 9 de Agosto, relativa ao exercício do direito de livre circulação e
residência dos cidadãos da União Europeia e dos membros das suas famílias no
território nacional; artigo 100.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que aprova
o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros
do território nacional; a alínea h) do artigo 2.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de
Junho, relativa às condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção
subsidiária.
Particular destaque, porque revelador da importância comunitária das
formas de vida em comum entre pessoas do mesmo sexo ao ponto de se lhes estender
o instrumento último de protecção de bens jurídicos que é o direito penal,
merecem as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal que
passaram a incluir a perífrase “pessoa de outro ou do mesmo sexo” para conferir
relevância penal a essas situações de vida a par da tutela da situação dos
cônjuges ou ex-cônjuges. É o que sucede, designadamente, nos artigos 68.º, n.º
1, alínea c), 134.º, n.º 1, alínea b) e 159.º, n.º 7, do Código de Processo
Penal e nos artigos 113.º, n.º 2, alínea a), 132.º, n.º 2, alínea b), 152.º, n.º
1, alínea b), 154.º, n.º 4, 364.º, alínea b) e 367.º, n.º 5, alínea b) do Código
Penal.
17. O Decreto n.º 9/XI da Assembleia da República resultou da
aprovação da Proposta de Lei n.º 7/XI (Diário da Assembleia da República, II
série A, n.º 18XI/1, de 22/12/2009) apresentada pelo Governo com o objectivo de
“remover as barreiras jurídicas à realização do casamento civil entre pessoas do
mesmo sexo”. Na “exposição de motivos” afirma-se o propósito de ' acima de tudo,
pôr fim a uma velha discriminação, longa e aprofundadamente debatida na
sociedade portuguesa [...] sem dúvida causadora de exclusão e sofrimento para
muitas pessoas – e que a evolução da consciência social torna hoje não apenas
desnecessária mas verdadeiramente inaceitável”. E invoca-se a jurisprudência do
acórdão n.º 359/2009 como significando que a Constituição, 'no conjunto dos seus
princípios e disposições relevantes, fornece um enquadramento
jurídico-constitucional aberto quanto à liberdade de conformação do legislador
em matéria de casamento entre pessoas do mesmo sexo'.
Incidindo sobre as mesmas disposições do Código Civil e com o mesmo
objectivo essencial de permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram
também apresentados os Projectos de Lei n.º 14/XI e n.º 24/XI, pelo Grupo
Parlamentar do “Bloco de Esquerda” e de “Os Verdes”, respectivamente.
Foi ainda apresentado o Projecto de Lei n.º 119/XI pelo Grupo Parlamentar do
Partido Social Democrata, pretendendo conferir protecção jurídica às pessoas do
mesmo sexo que vivam em condições análogas às dos cônjuges mediante a criação de
uma nova figura jurídica que seria a “união civil registada”, exclusivamente
acessível a pessoas do mesmo sexo, que permitisse a salvaguarda de parte da
protecção conferida pelo regime jurídico do casamento (cfr., o Parecer da
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e “notas
técnicas” in Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 23/XI, de
9/1/2010).
Estas iniciativas legislativas não obtiveram aprovação (Diário da
Assembleia da República, II série A, n.º 20/XI, de 9/1/2010).
Isto posto, passemos à directa apreciação do pedido.
18. Funda-se o pedido em que a eliminação do inciso “duas pessoas de sexo
diferente” no artigo 1577.º do Código Civil, substituindo-o pela expressão “duas
pessoas”, se mostra desconforme ao conceito constitucional de casamento e,
reflexamente, ao conceito constitucional de família, acolhido pelo n.º 1 do
artigo 36.º da Constituição.
Diz o artigo 36.º da Constituição:
“Artigo 36º
(Família, casamento e filiação)
1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em
condições de plena igualdade.
2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por
morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração.
3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e
política e à manutenção e educação dos filhos.
4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto
de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar
designações discriminatórias relativas à filiação.
5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os
seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
7. A adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer
formas céleres para a respectiva tramitação.”
São de quatro ordens os direitos relativos à família, ao casamento e à filiação
que neste artigo se reconhecem e garantem: a) direito a constituir família e a
contrair casamento (n.ºs 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito familiar e
extra-familiar (n.º 3); c) direitos e deveres dos pais em relação aos filhos
(n.ºs 5 e 6); d) direitos dos filhos (nºs 4 e 5 - 2ª parte).
Embora o pedido se centre na violação do n.º 1, o n.º 2 do artigo 36.º é também
directa e especialmente relevante para a questão posta. Com efeito, se o n.º 1
tem a estrutura típica de um direito fundamental (Todos têm o direito a ....), o
n.º 2 remete para a lei a regulação dos requisitos e dos efeitos do casamento.
Estes dois preceitos formam um todo incindível quando se trata de perguntar se
foi violada, pelos termos desse exercício do poder legislativo que incidiu sobre
um dos requisitos do casamento, a garantia institucional do casamento e,
reflexamente, da família.
Na verdade, a opção normativa sujeita a fiscalização de constitucionalidade não
tem por efeito denegar a qualquer pessoa ou restringir o direito fundamental a
contrair (ou a não contrair) casamento. O que pode estar em causa é a não
preservação do núcleo essencial da instituição matrimonial tal como deva
considerar-se que a Constituição a impõe, mediante a subtracção de um elemento
do conceito (a diversidade de sexos) que corresponde a um pressuposto de facto
da sociedade conjugal como o ordenamento jurídico tradicionalmente a concebe.
A redacção dos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º permanece inalterada desde o texto
originário da Constituição (o n.º 5 foi alterado na Revisão Constitucional de
1989 e o n.º 7, introduzido na Revisão Constitucional de 1982, foi alterado na
Revisão Constitucional de 1997, com acrescentamentos que de nenhum modo influem
na análise da questão agora em apreciação). No momento histórico em que a
Constituição foi escrita e começou a vigorar, entregando a disciplina dos
“requisitos” e “efeitos” do casamento ao legislador ordinário, o Código Civil já
dispunha, no seu artigo 1577.º, que o “casamento é o contrato celebrado entre
duas pessoas de sexo diferente”. Este preceito sofreu ligeiras alterações, que
não vêm ao caso, através do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, diploma
que, aliás, foi aprovado com o declarado propósito de “compatibilizar” o Código
Civil com a Constituição.
Não é possível deixar de atribuir relevância interpretativa a esta
circunstância, não porque o sentido da Constituição deva determinar-se de acordo
com o direito ordinário, mas porque, fazendo o texto constitucional presa na
realidade social e no contexto jurídico em que emergiu, o casamento era então o
que desde há séculos – e, seguramente, para nos limitarmos no tempo à fase de
secularização do casamento, a partir das codificações oitocentistas – tem sido
nos sistemas jurídicos que se inserem no mesmo espaço cultural do nosso: um
acordo entre um homem e uma mulher, feito segundo as determinações da lei e
dirigido ao estabelecimento de uma plena comunhão de vida entre eles.
Efectivamente, as tensões que ao tempo da elaboração e aprovação da Constituição
incidiam sobre a instituição matrimonial respeitavam a outros aspectos do
casamento e da família: a dissolubilidade por divórcio, a igualdade dos cônjuges
no seio da sociedade conjugal, os efeitos patrimoniais e pessoais, a eliminação
da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. A pretensão de admissibilidade
do casamento com identidade de género entre os cônjuges é fenómeno que ainda não
assumia expressão no espaço público, nem em Portugal nem, com expressão
significativa, noutros países. No que respeita à homossexualidade, o que então
se considerava desfasamento entre a realidade social e o enquadramento jurídico
eram os aspectos repressivos (ex. punição ou agravamento da punição no domínio
dos actos sexuais com pessoa do mesmo sexo), não a omissão de tutela para uniões
estáveis desse tipo. Tardou mais de uma década até que a progressiva integração
dos homossexuais na sociedade provocasse um “deslizamento” de posições de
contestação ao sistema para pretensões “conservadoras” de tomar parte nas
instituições, designadamente no matrimónio, como reconhecimento público da
orientação sexual em termos de estrita igualdade com os heterossexuais (cfr.,
Javier Seonae Prado, Matrimónio, Familia Y Constitución in Matrimónio y Adopción
por Personas del Mismo Sexo Cuadernos de Derecho Judicial XXVI).
Mas esta mesma evidência arrasta outra. Se pode, sem hesitação, dizer-se que o
casamento que a Constituição representou foi o casamento entre duas pessoas de
sexo diferente, também pode seguramente concluir-se que não houve qualquer opção
deliberada na matéria que agora nos ocupa no sentido de proibir a evolução da
instituição matrimonial. O problema era político-juridicamente desconhecido,
pelo que o elemento histórico deve ser mobilizado com cautelas ainda maiores do
que aquelas que geralmente já merece na interpretação do texto constitucional.
E o certo é que a Constituição remete para o legislador, além da determinação
dos “efeitos”, a fixação dos “requisitos” do casamento (n.º 2 do artigo 36.º),
poder este que não pode ser lido como restrito aos aspectos de mera regulação
formal, pelo que importa saber se, independentemente do que era o casamento no
contexto social e jurídico em que a norma do n.º 1 do artigo 36.º foi elaborada,
a inovação legislativa em análise, procurando responder ao que o legislador
entendeu constituir pretensão legítima de reconhecimento e tutela perante novas
necessidades sociais a que, como se referiu, já vêm sendo conferidas outras
formas de acolhimento jurídico, é de molde a infringir a garantia institucional
do casamento.
Efectivamente, pode considerar-se que o casamento está coberto pela chamada
“garantia de instituto”. Simultaneamente com o reconhecimento de direitos
individuais, o artigo 36.º reconhece e garante também a família e o casamento
como instituições em si mesmas, sendo repositório “de típicas garantias
institucionais, que por isso não podem ser legalmente suprimidas ou
desqualificadas” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 561). E o
Tribunal já o reconheceu, designadamente no acórdão n.º 590/2004, em que se
disse:
«Quanto ao direito a casar, pode dizer-se que este comporta duas dimensões. Por
um lado, consagra um direito fundamental, por outro, é uma verdadeira norma de
garantia institucional. Como explicam Pereira Coelho e Guilherme Oliveira (Curso
de Direito da Família, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2001, pág. 137):
“Merece referência (...) a questão de saber se o artigo 36º, nº 1, 2ª parte,
concede apenas um direito fundamental a contrair casamento ou, mais do que isso,
é uma norma de garantia institucional. Embora a Constituição não formule de modo
explícito um princípio de “protecção do casamento” (só a família é protegida no
artigo 67º), temos entendido que a instituição do casamento está
constitucionalmente garantida, pois não faria sentido que a Constituição
concedesse o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permitisse ao
legislador suprimir a instituição ou desfigurar o seu ‘núcleo essencial’.”»
Como diz Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, 4.ª ed., págs. 135-137, “a Constituição é, designadamente em domínios
básicos da vida social um newcomer que toma a liderança de um universo jurídico
onde encontra complexos normativos, por vezes com milhares de anos, alguns dos
quais têm uma lógica de sistema baseada nas ideias de auto-responsabilidade e de
autodesenvolvimento pessoal. Aí a Constituição pode optar por reconhecer e
garantir, nos seus lineamentos essenciais, esses complexos normativos de direito
ordinário, sem prejuízo de os redefinir e cunhar a nível constitucional. É o que
se passa com o reconhecimento da autonomia privada, em diversas manifestações,
individuais ou familiares, como a liberdade contratual, a propriedade, a
herança, o casamento, a família, a filiação, a responsabilidade familiar pela
manutenção e educação dos filhos e a adopção”. E, como adverte o mesmo Autor,
deve entender-se que as garantias institucionais se referem ao complexo
jurídico-normativo e não à realidade social em si, de modo que é com esse
alcance que vinculam o legislador, “admitindo um espaço, maior ou menor, de
liberdade de conformação legal, mas proibindo-lhe sempre a destruição ou a
desfiguração da instituição (do seu núcleo essencial)”.
19. Impõe-se, todavia, um prévio esclarecimento sobre o que pode significar,
naqueles domínios onde a Constituição consagra posições jurídicas subjectivas
individuais, como é o caso do direito fundamental ao casamento no n.º 1 do
artigo 36.º, a vinculação constitucional do legislador a conservar o núcleo
essencial do complexo jurídico de direito privado através do qual o direito
fundamental se concretiza: a chamada garantia de instituto, i.e. do complexo de
normas e de relações jurídicas unitariamente estruturadas e sedimentadas na
ordem jurídica infra-constitucional ao longo de um certo processo de
desenvolvimento histórico.
Efectivamente, é só nesta modalidade que pode fazer sentido a invocação de
garantia institucional que perpassa no pedido. Na verdade, o que a Constituição
directamente elege como objecto de protecção enquanto “elemento fundamental da
sociedade” é a família e não o casamento (lato sensu, a instituição matrimonial)
que é somente um dos modos de constituí-la (artigo 67.º). Como diz Rui Medeiros
(Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág. 689), enquanto “no artigo 36.º
avulta, sobretudo, quer a dimensão individual-subjectiva dos direitos dos
membros da família, incluindo, desde logo, o próprio direito de constituir
família e de contrair casamento, quer, no que respeita à família como um todo, a
dimensão de liberdade, o artigo 67.º, se bem que sem perder de vista o objectivo
da realização pessoal dos seus membros, tutela fundamentalmente a própria
família como instituição e impõe, em particular, ao Estado o dever de a proteger
positivamente”.
O conceito de garantia de instituto (modalidade da figura mais geral da
garantia institucional em sentido amplo, que abrange também as garantias
institucionais jurídico-públicas que podem exigir enfoque diverso e que aqui não
importa considerar) foi forjado na doutrina germânica, num quadro constitucional
(Constituição de Weimar) que desconhecia mecanismos efectivos de vinculação do
legislador à Constituição e de aplicabilidade directa dos direitos fundamentais,
em ordem a salvaguardar determinados sectores da ordem infra-constitucional
contra a acção do legislador ordinário. Na medida em que se proibia o legislador
de alterar o que fosse típico de um determinado instituto de direito privado,
garantia-se aos direitos fundamentais a correspondente protecção efectiva. Por
efeito da evolução do sistema constitucional de protecção dos direitos
fundamentais, da subordinação de todos os poderes do Estado à Constituição, da
directa aplicação e vinculação das entidades públicas e privadas pelos preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias e pela
instituição de mecanismos judiciários de garantia de constitucionalidade, a
construção perdeu essa sua função histórica e não pode manter-se com o mesmo
sentido.
O direito fundamental ao casamento compreende, além da liberdade individual de
casar ou não casar, a exigência de que para o efeito o Estado organize
procedimentos e mantenha estruturas oficiais (o procedimento preliminar, a
celebração, o registo público), mas ainda – como os demais direitos fundamentais
que se analisem em pretensões a estatutos – o de que a ordem jurídica comporte
normas reguladoras da constituição e extinção da situação jurídica
correspondente e dos seus efeitos pessoais e patrimoniais. Trata-se de um
direito subjectivo público que pressupõe conceptualmente a existência do
correspondente instituto jurídico de direito privado, cuja preexistência fornece
elementos de interpretação do âmbito normativo objectivo da norma constitucional
consagradora do direito fundamental. É, efectivamente, possível conceber os
direitos fundamentais como apresentando ou comportando um “lado” jurídico
individual, enquanto garantem aos seus titulares um direito subjectivo público,
e um “lado” institucional objectivo, enquanto garantias constitucionais de
âmbitos de vida juridicamente ordenados e conformados.
Mas não pode, a partir do pensamento institucionalístico, inverter-se o sentido
da garantia, impondo a conservação do instituto, tal como ele existe, contra
acções do legislador que não colidam com a determinação de sentido do direito
fundamental em causa no quadro axiológico do sistema de direitos fundamentais. O
que, aplicado à opção legislativa submetida a fiscalização, significa verificar
se os fins ou bens jurídicos individuais e comunitários a que o direito
fundamental ao casamento deva considerar-se constitucionalmente adscrito, no
quadro de um sistema de direitos fundamentais axialmente centrado na dignidade
da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição), sofrem compressão do seu núcleo
essencial de realização.
20. No pedido – e no parecer em que este se apoia –, reconhecendo-se a liberdade
de conformação outorgada ao legislador pelo n.º 2 do artigo 36.º da
Constituição, sustenta-se que a alteração legislativa em causa não respeitou
esses limites, violando o conceito de casamento operante no n.º 1 do mesmo
artigo 36.º, em síntese, por razões de duas ordens:
I – Pela sua origem histórica e numa interpretação sistemática, o conceito
constitucional de casamento, concatenado com a sua ligação ao conceito de
família e de filiação, aponta inequivocamente para o casamento como união entre
duas pessoas de sexo diferente;
II – O conceito de casamento deve ser interpretado, por imposição do n.º 2 do
artigo 16.º da Constituição, em conformidade com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (DUDH). E, nesta, o casamento que se prevê e protege e de que,
por força daquela norma constitucional, resulta um conceito vinculativo para
Portugal, é o casamento entre um homem e uma mulher.
21. Comecemos por esta última linha de argumentação.
A DUDH estabelece no seu n.º 1 do artigo 16.º que “a partir da idade núbil, o
homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família”. Sendo esta
referência ao género dos titulares do direito caso isolado na DUDH (“Todos os
seres humanos” – artigo 1.º e 2º – “Todo(s) o(s) indivíduo(s)” – artigos 3.º,
6.º, 15.º e 19.º; “Todos” – artigos 7.º, 23.º e 27.º; “Toda a pessoa” – artigos
8.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 17.º, 18.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º,
26.º, 27.º, 28.º; “Ninguém” – artigos 4.º, 5.º, 9.º, 11.º, 12.º, 17.º, 20.º) é
razoável concluir que o conceito de casamento objecto de protecção por este
texto de direito internacional respeita à união entre um homem e uma mulher
(neste sentido a interpretou a sentença do Tribunal Constitucional da África do
Sul no caso Minister of Home Affairs v. Fourie, embora salientando que é
“descritiva de uma realidade assumida, mais do que prescritiva de uma estrutura
normativa para todos os tempos”).
Admitida esta interpretação da DUDH e dispondo a Constituição, no n.º 2 do
artigo 16.º, que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos
fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem», sustenta-se que o n.º 1 do artigo 36.º teria
de ser interpretado como, do mesmo passo em que consagra o direito ao casamento
entre indivíduos de sexo diferente, proibindo a extensão do casamento a pessoas
do mesmo sexo.
Vejamos se assim é porque a questão de constitucionalidade poderia dar-se por
resolvida, se essa fosse a interpretação imperativa do texto constitucional.
Enunciando um princípio de interpretação conforme à Declaração Universal dos
Direitos do Homem, o alcance útil do n.º 2 do artigo 16.º da Constituição é o de
permitir recorrer à Declaração Universal para fixar o sentido de uma norma
constitucional de direitos fundamentais a que não possa atribuir-se um
significado unívoco, ou para densificar conceitos constitucionais indeterminados
referentes a direitos fundamentais (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit.,
págs. 367-368; Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 45). Aceita-se, pois, que o
artigo 16.º, n.º 2, da Constituição eleva a DUDH ao estatuto de critério de
interpretação e de integração das regras legais e mesmo constitucionais em
matéria de direitos fundamentais. Além da recepção da Declaração Universal dos
Direitos do Homem na ordem jurídica interna, constata-se pois que se reconhece a
este instrumento um lugar especial, quase supra-constitucional, a partir do
momento em que o concebemos como elemento de referência para a interpretação das
próprias regras constitucionais (Rui Moura Ramos, L' Intégration du droit
international et communautaire dans l' ordre juridique national, in «Da
Comunidade Internacional e do seu Direito», Coimbra, 1996, pág. 254).
Mas, sendo certas, quer a interpretação do n.º 1 do artigo 16.º da DUDH, quer a
existência do princípio da interpretação da Constituição em conformidade com
esse instrumento de direito internacional de que o pedido se socorre, há um
equívoco na invocação do argumento. O sentido da norma que confere esse relevo à
DUDH é o de alargar a cobertura constitucional dos direitos fundamentais e não o
de a restringir ou limitar, extensiva ou intensivamente. Vale por dizer que o
n.º 2 do artigo 16.º da Constituição funciona apenas do “lado”
jurídico-individual dos direitos fundamentais e quando não conduza a uma solução
menos favorável aos direitos fundamentais do que a interpretação “endógena” da
Constituição. Deve intervir aqui o princípio da preferência de aplicação das
normas consagradoras de um nível de protecção mais elevado, à semelhança do que
prescrevem os artigos 52.º, n.º 3 e 53.º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 368).
Assim, o n.º 2 do artigo 16.º não pode operar no sentido de impedir o legislador
ordinário, desde que com isso não restrinja ou limite o acesso ao casamento
heterossexual por homens ou mulheres em idade núbil ou lhe diminua o conteúdo
enquanto direito fundamental, de o permitir também a uma categoria de indivíduos
que não têm inclinação para o relacionamento afectivo e sexual duradouro com
pessoas do sexo oposto e que, consequentemente, não poderiam reclamar a
protecção da DUDH para casar em conformidade com essa sua orientação sexual.
Isto posto, não encontrando na DUDH limites interpretativos cogentes quanto à
extensão do direito de contrair casamento (casamento-acto) a pessoas do mesmo
sexo e ao consequente ingresso no estado de casados entre si, com o estatuto
emergente no âmbito das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges e
destes ou de cada um destes com terceiros (casamento-estado), devemos
interrogar-nos se a solução normativa em exame colide com a garantia
institucional do casamento, na dupla vertente de subjectivação da garantia por
nubentes (acto) ou cônjuges (estado matrimonial) de sexo diverso e da
prossecução dos valores comunitários constitucionalmente plasmados no instituto
do casamento e na instituição da família. Nesta segunda vertente, tratando-se de
uma afectação no plano intensivo ou de grau de realização do programa normativo
constitucional, o Tribunal só poderá censurar a opção legislativa ao nível da
evidência manifesta.
21. Sustenta-se, para vincular o conceito constitucional ao carácter imperativo
da diversidade de sexo entre os cônjuges, que a Constituição fornece um adequado
enquadramento da noção de casamento no contexto da família, que limita o
intérprete no âmbito de uma interpretação actualista, mas também sistemática,
cujo resultado não pode abstrair da literalidade da norma do artigo 36º.
Invoca-se, para tanto, o disposto no n.º 1 do artigo 67.º, nos n.ºs 1 a 4 do
artigo 68.º e no n.º 2 do artigo 71.º da Constituição. Em todos eles a
referência à família se encontraria associada à filiação, cujo papel se afigura
central na instituição familiar, tal como consagrada na Constituição, devendo
destacar-se, pelo seu conteúdo preceptivo, a salvaguarda dessa instituição
prevista no seu artigo 36.º. Resumindo, a diversidade de sexo entre os dois
cônjuges seria imposta para salvaguarda dos fins ou valores constitucionais de
protecção da família e da potencialidade procriativa do casamento, pelo que a
diversidade de sexos integraria a estrutura nuclear da garantia que, quanto a
essa instituição, da Constituição deve extrair-se.
É certo que a geração de filhos biologicamente comuns depende da diversidade de
sexo. E, consequentemente, que ao matrimónio entre cônjuges do mesmo sexo, não
podendo assegurar a geração de filhos comuns, não pode ser creditada a função
comunitária de contributo potencial para a reprodução da sociedade.
Porém, esta potencialidade não pode ser erigida numa finalidade absolutamente
essencial à garantia constitucional em causa porque não integra sequer o actual
conceito de casamento heterossexual. Apesar de proposta nesse sentido do
“Projecto Gomes da Silva”, inicialmente acolhida pelos “Anteprojectos” saídos da
1.ª e 2ª Revisões Ministeriais, foi abandonada na versão final do Código Civil
de 1966 (vid. os excertos destes trabalhos preparatórios em “Direito da Família
segundo o Código Civil de 1966”, vol. I, pág. 20, de Rodrigues Bastos). A
vontade inicial e constante dos cônjuges de não terem filhos não os impede de
contrair casamento e de se manterem casados. Como o não impedem ou invalidam a
esterilidade ou a impotência, por si mesmas. Aliás, como lembra Pedro Múrias,
“os casamentos em idades estéreis são frequentes e, pela sua relevância, têm
inclusive previsão legal (cfr., artigo 1720.º, n.º 1, alínea b), do Código
Civil)” (Casamento entre Pessoas do mesmo Sexo, págs. 40-41 [S]).
Não se nega que, sendo a maternidade e a paternidade valores sociais eminentes
(n.º 2 do artigo 68.º da Constituição), também para efeitos do estabelecimento
pelo legislador dos “requisitos” do casamento não é comunitariamente inócuo que
o casamento una duas pessoas capazes de assumirem “um projecto que, embora
susceptível de fracassar, é à partida dotado de uma intencionalidade que dá
algumas garantias de sucesso na “reprodução social”, isto é, na actividade que
possibilita a natural geração de cidadãos e a sua manutenção em actividade útil
para a sociedade – não só como indivíduos de uma espécie biológica concreta, mas
como cidadãos equilibrados, úteis e responsáveis” (parafraseando Rita Lobo
Xavier, embora a propósito do tema mais geral de protecção da família, apud
Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág.
690). Todavia, sem que com isto se abandone a ideia de que “não é forçoso
reduzir o casamento aos seus efeitos, e a Constituição distingue claramente, no
artigo 36.º, n.º 2, os requisitos e os efeitos do casamento. A conexão que é
possível estabelecer, com sentido, entre casamento e procriação opera ao nível
da consideração daquele como instituição social através da qual o Estado recorre
ao potencial do direito para difundir determinados valores na sociedade, no caso
os valores segundo os quais o casamento, por um lado, constitui um meio
específico de envolver uma geração na criação da que se lhe segue …” (acórdão
n.º 359/2009).
O que acaba de dizer-se pode constituir argumento para que não se entenda, no
quadro axiológico da Constituição, ser constitucionalmente imperiosa a
redefinição do conceito actual de casamento (hipótese da inconstitucionalidade
do regime actual que agora teria sido removida). Mas, não serve para que se
julgue que se desnaturou a instituição matrimonial pela inclusão na mesma
categoria jurídica, a par de casamentos entre pessoas de sexo diferente,
casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Nos domínios do casamento e da família a realidade social está em assinalável e
acelerada mudança, com os reflexos jurídicos e as variadas respostas, no
problema que nos ocupa, que as notas de direito internacional e comparado atrás
expostas procuraram espelhar. Sobre ela só poderá haver, numa sociedade aberta e
plural, uma “divergência razoável” a provocar remédios que se inserem na
discricionariedade legislativa cujo resultado excede, em larga medida, quando
não atinja a dimensão subjectiva dos direitos fundamentais, o domínio da
controlabilidade judicial.
22. É legítimo perguntar, então, o que é constitucionalmente essencial no
instituto do casamento se o não é um pressuposto cuja ausência, no actual regime
jurídico infra-constitucional, gera a total improdutividade do acto (cfr.,
quanto à doutrina da inexistência jurídica do casamento e razões que a
justificam, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., 4.ª ed.,
pág. 300). É interrogação a que ao Tribunal só cabe responder na medida do
necessário ao escrutínio da validade constitucional das normas que lhe são
sujeitas, ou seja, para saber se com ele colide a alteração da estrutura
subjectiva ou modal do casamento que consiste em passar a permitir-se que casem
entre si duas pessoas do mesmo sexo.
Da configuração do direito a contrair casamento como direito fundamental resulta
que o legislador não pode suprimir do ordenamento jurídico o casamento, enquanto
instituto jurídico destinado a regular as situações de comunhão de vida entre
duas pessoas, num reconhecimento da importância dessa forma básica de
organização social.
Mas a Constituição não define o perfil dos elementos constitutivos do instituto
a que o n.º 1 do artigo 36.º se refere, relegando no n.º 2 do mesmo preceito
para o legislador a incumbência de manter a necessária conexão entre Direito e
realidade social. O conceito constitucional de casamento é um conceito aberto,
que admite não só diversas conformações legislativas, mas também diversas
concepções políticas, éticas ou sociais, sendo confiada ao legislador ordinário
a tarefa de, em cada momento histórico, apreender e verter no ordenamento aquilo
que nesse momento corresponda às concepções dominantes nesta matéria (vid.,
neste sentido, Miguel Nogueira de Brito, em “Casamento entre Pessoas do mesmo
Sexo”, págs. 58-59 [N]).
É esta mesma leitura que já se encontra na fundamentação do Acórdão n.º
359/2009, quando nele se disse que “…não se aceita o entendimento segundo o qual
o casamento objecto de tutela constitucional envolve uma petrificação do
casamento tal como este é hoje definido na lei civil, excluindo o reconhecimento
jurídico de outras comunhões de vida entre pessoas.”
E, neste aspecto, a Constituição portuguesa é mais favorável à intervenção do
legislador no sentido agora questionado do que outras congéneres, na medida em
que coloca a essa interpretação menos obstáculos textuais. Quer porque no n.º 1
do artigo 36.º se designa a titularidade do direito mediante a palavra “Todos” e
não pela expressão “O homem e a mulher” que é geralmente invocada, perante
outros textos constitucionais ou de direitos fundamentais como argumento a favor
da heterossexualidade necessária do casamento. Quer, sobretudo, pela expressa
previsão do n.º 2 do mesmo artigo 36.º que já levou a que se escrevesse (Nicola
Pignatelli, “I livelli europei di tutela delle copie omosessuali tra
“istituzione” matrimoniale e “funzione” familiare”, Rivista di Diritto
Costituzionale, 2005, pág. 281):
“In realtà neppure negli altri Stati europei, in cui non vi è stata un’apertura
del matrimonio, le Costituzioni definiscono i profili costitutivi dell’istituto,
dovendo dedursi che il principio dell’eterosessualità non rappresenta una
soluzione necessaria ma, anche in questo caso, una scelta (possibile) dei
legislatore, per quanto inversa rispetto all’esperienza olandese, belga e
spagnola. Questa comune logica costituzionale, che presuppone un intervento
normativo, trova una sua chiara esplicitazione nell’art. 36 della Costituzione
portoghese, che dopo aver riconosciuto il diritto a contrarre matrimonio in
piena uguaglianza dispone che «la legge regola i requisiti e gli effetti del
matrimonio e del suo scioglimento per morte o per divorzio». Inoltre neppure
dalle Costituzioni in cui è sancita una tutela “speciale” per l’istituzione
matrimoniale, come in Italia, in Germania, in Irlanda, può desumersi
un’indicazione sulla illegittimità del coniugio omosessuale sul presupposto che
tale preferenza nulla dice sul sesso dei coniugi, potendo al contrario
argomentarsi, alla luce di tale favor, che lo Stato avrebbe il dovere di
assecondarne la diffusione e magari l’accesso (anche agli omosessuali)”.
Esta posição não significa que o casamento referido no artigo 36.º da
Constituição seja encarado como uma fórmula vazia de qualquer conteúdo, a
preencher livremente pelo legislador.
O casamento, sob pena de desfiguração do seu núcleo essencial e, portanto, do
próprio âmbito de protecção como direito (subjectivo) fundamental, deverá
contemplar o estabelecimento de uma relação de comunhão de vida entre duas
pessoas, estabelecida mediante um acto como tal designado, com efeitos
vinculativos legalmente fixados, livre, incondicional e inaprazável. Contrair
casamento (casamento in fieri) é aceder ao estado de casado (casamento in facto
esse) que se define em função dos efeitos jurídicos que o casamento opera. Como
dizem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 337, “uma
pessoa casa e, depois, é outra, é juridicamente outra. É outra a condição da sua
pessoa, como é outra a situação dos seus bens”. Na sua regulação, o legislador
ordinário está obrigado, não só a garantir o livre acesso a essa relação
jurídica em condições de plena igualdade, mas também a observar outros
parâmetros constitucionais, como o do respeito pelo étimo fundante da República
e do sistema de direitos fundamentais que é a dignidade da pessoa humana.
Limite do núcleo essencial que não é franqueado pelo abandono da regra da
diversidade de sexos entre os cônjuges.
Efectivamente, se o estabelecimento de uma situação de comunhão de vida entre
duas pessoas é elemento estruturante do conceito de casamento, sem o qual o
mesmo se descaracteriza, já o mesmo não pode dizer-se da diversidade sexual das
pessoas que pretendem envolver-se nessa comunhão e submetê-la às regras do
casamento. Essa diversidade de sexos seria apenas imprescindível para que a
comunhão no plano sexual pudesse levar à geração de filhos biologicamente
comuns, finalidade a que o casamento não está constitucional nem legalmente
adstrito.
Na verdade, a comunhão de vida entre duas pessoas, caracterizada pela partilha e
entreajuda, num percurso de vida comum juridicamente disciplinado, com carácter
tendencialmente perpétuo, também está naturalmente ao alcance de duas pessoas do
mesmo sexo que assim queiram vincular-se, uma para com a outra e perante o
Estado, e serem como tal reconhecidas pela comunidade. Por isso não está vedado
ao legislador conferir a esse modo de livre desenvolvimento da personalidade a
forma vigente para tutela das relações entre pessoas de sexo diferente,
permitindo aos interessados acolher-se à figura do casamento, sem que o
instituto se considere privado de elementos típicos essenciais à correspondente
função garantística.
23. Por outro lado, a extensão do casamento a cônjuges do mesmo sexo não
contende com o reconhecimento e protecção da família como “elemento fundamental
da sociedade” (artigo 67.º da Constituição).
Importa ter presente que a Constituição desvinculou a constituição da família do
casamento. O conceito de família que a Constituição acolhe como “elemento
fundamental da sociedade” é um conceito aberto e plural, adaptável às
necessidades e realidades sociais. A Constituição não definiu o que é a família,
dando protecção aos distintos modelos de família que existem na nossa realidade
social. Como o Tribunal disse no acórdão n.º 651/09, embora tendo como pano de
fundo as uniões de facto heterossexuais, a família que, nos termos do artigo
67.º da Constituição merece a protecção do Estado, “não é só aquela que se funda
no matrimónio; é também aquela outra que pressupõe uma comunidade auto-regulada
de afectos, vivida estável e duradouramente à margem da pluralidade de direitos
e deveres que, nos termos da lei civil, unem os cônjuges por força da celebração
do casamento. O direito a escolher viver em tal comunidade de afectos, modelada
por vontade própria à margem dos efeitos civis do casamento, tem por certo
assento constitucional – seja através da disjunção que o n.º 1 do artigo 36.º da
CRP estabelece entre o “direito de constituir família” e o “direito de contrair
casamento”, seja através da cláusula de liberdade geral de actuação que vai
inscrita no direito ao desenvolvimento da personalidade, contido no n.º 1 do
artigo 26.º.”
O casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas vai conduzir a que o espaço de
realização interpessoal, coabitação, mútua assistência e contribuição para as
necessidades comuns com vista à plena realização pessoal, em que a família
consiste, assuma, também para elas, a veste jurídica que resulta da sua
recíproca vinculação. Não há fundamento para ver nesse alargamento sacrifício,
nem sequer no plano de administração de recursos públicos escassos, para a
realização das tarefas que nesse domínio incumbem ao Estado (n.º 2 do artigo
67.º da Constituição).
Não se vê, pois, em que possa colidir o novo regime do casamento com os deveres
de protecção “da sociedade e do Estado” em relação à família, entendida como
categoria existencial ou fenómeno da vida, assumida pela Constituição como
instituição jurídica necessária.
24. Uma definição do casamento pela lei ordinária de modo a abranger o casamento
entre pessoas do mesmo sexo poderia suscitar objecções se, por si e
abstractamente, fosse susceptível de afectar outros direitos subjectivos
fundamentais, designadamente os respeitantes ao mesmo direito por parte de
pessoas de sexo diferente. Poder-se-ia, então sim, abrir campo para invocação do
valor interpretativo da DUDH em defesa do âmbito do direito de contrair
casamento, nos termos anteriormente referidos.
Parece, porém, manifesto que a atribuição do direito ao casamento a pessoas do
mesmo sexo não afecta a liberdade de contrair casamento por pessoas de sexo
diferente, nem altera os deveres e direitos que para estas daí resultam e a
representação ou imagem que elas ou a comunidade possam atribuir ao seu estado
matrimonial. Salvo, obviamente, se a perda de valor simbólico do casamento em
geral fosse atribuída à circunstância de esse estatuto passar a poder ser
compartilhado com casais de orientação homossexual. Concepção que se fundaria
num motivo constitucionalmente ilegítimo (artigo 13.º, n.º 2, da CRP), sendo,
por isso, insustentável.
Em resumo: o casamento entre pessoas de sexo diferente mantém-se intocado, nas
suas condições de realização, nos seus efeitos jurídicos, entre os cônjuges e
perante o Estado e terceiros, e no seu significado como fonte de relações
familiares e compromisso social.
25. No pedido, embora sem maiores desenvolvimentos e na parte em que se sustenta
a ideia de que a necessidade de tutela dos casais homossexuais obteria
satisfação cabal com um regime de “união civil registada” ou semelhante, faz-se
alusão a que também o princípio da igualdade poderia ser invocado para sustentar
a inconstitucionalidade da permissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O pedido não autonomiza as razões pelas quais a equiparação ou indiferenciação
produzida quanto ao casamento entre pessoas de sexo diferente e pessoas do mesmo
sexo viola o princípio da igualdade. A alegada violação do princípio da
igualdade e a alegação da violação da garantia institucional fundam-se na mesma
concepção de casamento. Se o casamento pressupõe duas pessoas de sexo diferente,
a sujeição a esse mesmo instituto da união entre pessoas do mesmo sexo trataria
por igual o que é diferente porque não cabe no grupo normativo de destinatários
a que o instituto é destinado. Assim, desde logo vale a propósito do princípio
da igualdade o que se disse quanto à garantia de instituto.
É certo, como o Tribunal tem abundantemente repetido, que o princípio da
igualdade, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República
Portuguesa, impõe ao legislador que dê tratamento igual ao que for
essencialmente igual e que trate diferentemente o que for essencialmente
diferente. Desta máxima decorre a proibição do arbítrio, que funciona como
princípio negativo de controlo das opções legislativas. O tratamento diferente
de situações de facto iguais, ou o tratamento igual de situações de facto
diversas viola o princípio da igualdade quando, para a diferenciação legal ou
para o tratamento legal igual, não for possível encontrar um motivo razoável,
que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja
compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada
como arbitrária. Todavia, como também é de uso repetir, a vinculação do
legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação
legislativa, cabendo-lhe identificar ou qualificar as situações de facto que
hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio
quando para a medida legislativa não é possível encontrar suporte material
(cfr., por todos, acórdão n.º 232/2003, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, com exaustiva indicação de jurisprudência e
doutrina).
Ora, sendo embora certo que, na perspectiva biológica, sociológica ou
antropológica, constituem realidades diversas a união duradoura entre duas
pessoas do mesmo sexo e duas pessoas de sexo diverso, no aspecto jurídico a
equiparação de tratamento não é destituída de fundamento material. Na verdade, é
razoável que o legislador possa privilegiar o efeito simbólico e optimizar o
efeito social antidiscriminatório do tratamento normativo, estendendo à tutela
dessas uniões o quadro unitário do casamento.
26. Tal como no acórdão n.º 359/2009, também agora, perante uma
alteração legislativa desta natureza, se afigura útil recordar o que o Tribunal
afirmou no Acórdão n.º 105/90:
«[...] se o conteúdo da ideia de dignidade da pessoa humana é algo que
necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente, já se vê que no
Estado moderno — e para além das projecções dessa ideia que encontrem logo
tradução ao nível constitucional em princípios específicos da lei fundamental
(maxime, os relativos ao reconhecimento e consagração dos direitos fundamentais)
— há-de caber primacialmente ao legislador essa concretização: especialmente
vocacionado, no quadro dos diferentes órgãos de soberania, para a “criação” e a
“dinamização” da ordem jurídica, e democraticamente legitimado para tanto, é ao
legislador que fica, por isso, confiada, em primeira linha, a tarefa ou o
encargo de, em cada momento histórico, “ler”, traduzir e verter no
correspondente ordenamento aquilo que nesse momento são as decorrências,
implicações ou exigências dos princípios “abertos” da Constituição (tal como,
justamente, o princípio da “dignidade da pessoa humana”). E daí que – indo agora
ao ponto – no controlo jurisdicional da constitucionalidade das soluções
jurídico-normativas a que o legislador tenha, desse modo, chegado (no controlo,
afinal, do modo como o legislador preencheu o espaço que a Constituição lhe
deixou, precisamente a ele, para preencher) haja de operar-se com uma particular
cautela e contenção. Decerto, assim, que só onde ocorrer uma real e inequívoca
incompatibilidade de tais soluções com o princípio regulativo constitucional que
esteja em causa — real e inequívoca, não segundo o critério subjectivo do juiz,
mas segundo um critério objectivo, como o será, p. ex. (e para usar aqui uma
fórmula doutrinária expressiva), o de «todos os que pensam recta e justamente»
–, só então, quando for indiscutível que o legislador, afinal, não
“concretizou”, e antes “subverteu”, a matriz axiológica constitucional por onde
devia orientar-se, será lícito aos tribunais (e ao Tribunal Constitucional em
particular) concluir pela inconstitucionalidade das mesmas soluções.
E, se estas considerações são em geral pertinentes, mais o serão ainda quando na
comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista
díspares e não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que dum
princípio «aberto» da Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou
para a solução de determinado problema jurídico. Nessa situação sobretudo – em
que haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo, na comunidade jurídica, um
“pluralismo” mundividencial ou de concepções – sem dúvida cumprirá ao legislador
(ao legislador democrático) optar e decidir.»
27. De todo o exposto resulta que devem ser julgadas improcedentes
as dúvidas de constitucionalidade que justificam o presente pedido de
fiscalização preventiva de inconstitucionalidade, não se considerando violado,
por qualquer das normas sujeitas a apreciação, o n.º 1 do artigo 36.º da
Constituição.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar
pela inconstitucionalidade das normas do artigo 1.º, do artigo 2.º – este na
medida em que altera a redacção dos artigos 1577.º, 1591.º e 1690.º, n.º 1 do
Código Civil – do artigo 4.º e do artigo 5.º do Decreto n.º 9/XI, da Assembleia
da República.
Lisboa, 8/4/2010
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Carlos Pamplona de Oliveira
Joaquim de Sousa Ribeiro
Ana Maria Guerra Martins (O meu voto não representa qualquer tomada de posição
quanto à questão de inconstitucionalidade que esteve em causa no acórdão n.º
359/09, ou seja, a da inconstitucionalidade da proibição do casamento entre
pessoas do mesmo sexo.)
Gil Galvão (Votei a decisão em coerência com a posição assumida no Acórdão n.º
359/09)
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Catarina Sarmento e Castro (com declaração)
Maria João Antunes (Votei a decisão, porque entendo, de harmonia com a
declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 359/2009, que a Constituição impõe que
duas pessoas do mesmo sexo possam contrair casamento).
João Cura Mariano (com declaração de voto que junto)
José Borges Soeiro (Vencido de harmonia com a declaração de voto que junto).
Benjamim Rodrigues (Vencido de acordo com a declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos (com a declaração junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votámos a decisão no entendimento de que a opção legislativa sujeita à
apreciação do Tribunal – a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo
celebrarem um contrato de casamento – não é desconforme com a Constituição, sem
que seja no entanto constitucionalmente imposta (como o Tribunal o julgou no
acórdão nº 359/2009).
Trata-se pois de uma escolha que, versando sobre matéria que não integra o
núcleo indisponível do instituto constitucionalmente protegido, se encontra no
âmago da liberdade de conformação politica do legislador democrático. Nestes
termos, é ela revisível por decisão soberana do mesmo legislador.
Não cabe a este Tribunal interferir no âmbito das decisões do legislador
democrático que, por opção constitucional, permanecem livres, nem mesmo nos
casos em que a comunidade jurídica implicada é coincidente com todo o género
humano e as matérias a decidir se revistam para a sua existência de inegável
centralidade. Tais circunstâncias, se não autorizam que o Tribunal abandone a
sua condição de legislador negativo, seguramente que se repercutem sobre a
responsabilidade que, perante a comunidade, detém o legislador positivo
democraticamente legitimado.
Maria Lúcia Amaral
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da não inconstitucionalidade das normas questionadas. Contudo,
diferentemente do Acórdão - que chega a tal decisão por entender que a solução
estabelecida no Decreto n.º 9/XI da Assembleia da República cabe na liberdade de
opção do legislador -, entendo que o legislador está obrigado, por imperativo
constitucional, a consagrar esta solução de igualdade.
O artigo 36.º, n.º 1, da CRP, que estabelece que todos têm o direito de contrair
casamento, não fornece uma noção de casamento e remete para a lei a regulação
dos seus requisitos, efeitos e dissolução. O direito subjectivo consagrado neste
artigo pressupõe a existência do correspondente instituto jurídico de direito
público privado, que lhe é preexistente, mas a leitura do que possa ser o
casamento deve realizar-se à luz da Constituição, i.e., dentro do programa
constitucional.
Do sistema constitucional fazem parte valores, princípios e direitos relevantes
para compreender a noção de casamento - interferindo aqueles com os contornos
fundamentais deste -, entre os quais se encontra a dignidade da pessoa humana
(art. 1.º da CRP), a igualdade, a liberdade ou o direito à identidade pessoal e
ao livre (e coerente) desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1, da
CRP). A meu ver, deles resulta, v.g., a liberdade de opção quanto à forma de
constituir a família nuclear (o que inclui todos poderem escolher o casamento),
ou a relevância da procura da realização pessoal através do casamento, incluindo
a realização afectiva/emocional/sexual, em ambos os casos sempre, também aqui,
balizadas pelo quadro constitucional.
Além destes aspectos individuais relativos ao casamento, a Constituição garante
o direito a constituir família, no mesmo art. 36.º, e protege-a de forma
especial. Sendo o casamento, como comunhão (íntima) de vida (e visão conjunta de
futuro), um dos modos de constituir aquele elemento fundamental da sociedade
(que deve ser constitucionalmente entendido como «1+1=2» e não, necessariamente,
como «1+1-3»), a CRP obriga, a meu ver, a que o legislador modele o instituto do
casamento de modo a salvaguardar (no mínimo) o ambiente afectivo familiar,
alguma estabilidade benéfica à família, e a protecção de um perante o outro em
resultado do compromisso assumido na opção por um percurso de vida comum
(assistência, cuidado, apoio, partilha e confiança devidos ao outro). A
protecção constitucional do direito ao casamento imporá ainda a protecção contra
terceiros e contra o próprio Estado.
Da Constituição resulta também que o casamento, enquanto um dos elementos
estruturantes da sociedade (como um dos instrumentos jurídicos de constituição
do núcleo familiar), é um vínculo jurídico cuja existência não pode deixar de
ser assegurada – sempre dentro dos moldes constitucionalmente admissíveis –,
devendo o legislador fixar-lhe os efeitos pessoais e patrimoniais, a sua
constituição e extinção. E sendo dotado de especial simbolismo, naquilo que em
si carrega de reconhecimento social ligado, quer ao próprio acto, quer ao estado
civil, sempre caberá ao legislador salvaguardar a sua denominação simbólica e
publicidade.
É esta estrutura da garantia constitucional do casamento (e legal, quando com
aquela constitucionalmente conforme, e no que, por referência a esta, possa ser
considerado nuclear à configuração constitucional do instituto) que é preciso
convocar quando se procura determinar a possibilidade (como faz o acórdão), mas
também, a meu ver, a imperatividade, da consagração do casamento entre pessoas
do mesmo sexo.
Estabelecendo o artigo 36.º, n.º 1, da CRP, que todos têm direito de contrair
casamento em condições de plena igualdade, e atendendo ao disposto no artigo
13.º, n.º 2, da CRP, que garante, nomeadamente, que ninguém pode ser prejudicado
ou privado de qualquer direito em razão de orientação sexual, seria preciso
encontrar fundamento material suficiente para a diferenciação.
Considerando as finalidades do casamento - individuais, como a salvaguarda da
realização pessoal no plano emocional e afectivo através da comunhão íntima de
vida; de protecção institucional do cuidado pelo outro, de estabilidade do
vínculo e simbolismo - e atendo aos seus efeitos decorrentes da lei
(patrimoniais e regime de bens, sucessórios, deveres de assistência, quanto à
segurança social, …) não se vê como poderia uma medida legislativa encontrar
suporte material bastante para fundamentar uma diferença de tratamento entre
pares do mesmo sexo e pares de sexo diferente que pretendessem casar, fosse a
diferença estabelecida quanto aos efeitos jurídicos vinculativos, ou, desde logo
e por maioria de razão, quanto à denominação simbólica do vínculo: as relações
de comunhão íntima de vida que se estabelecem entre pessoas do mesmo sexo são,
no essencial e no que constitucionalmente releva (e afastado que está o
entendimento de que a Constituição possa acolher um modelo de casamento baseado
na complementaridade de sexos potencialmente procriativa), iguais.
Deixar ao legislador a possibilidade de dizer que duas pessoas do mesmo sexo
apenas podem casar se não for uma com a outra, seria conceder-lhes um direito de
que usufruiriam contra a sua orientação sexual. Deixar ao legislador a opção de
negar o direito ao casamento quando a realização sexual do par acontece sendo
ambos do mesmo sexo mais não é do que tratar de maneira diferente afectos e
projectos de vida iguais.
À luz do conceito constitucional de casamento, das finalidades da protecção do
direito fundamental, e do que se deve considerar inscrito no actual estado de
pessoa casada (e apenas quanto ao que daí directamente decorra), não encontro
fundamento racional e razoável bastante para a diferença, devendo ser consagrada
a igualdade de tratamento que, no actual quadro constitucional, não admito que
possa ser reversível.
Assim sendo, considero que em virtude do disposto no artigo 13.º, n.º 2, e no
artigo 36.º, n.º 1, da CRP, o legislador não pode deixar de consagrar o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, sob pena de violação do princípio da
igualdade.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão na parte em que arrisca uma descrição pormenorizada do
núcleo essencial do conceito constitucional de casamento, optando por uma adesão
ao modelo actualmente consagrado na lei ordinária, com excepção da exigência da
diversidade sexual dos cônjuges.
Para a decisão da questão de constitucionalidade que foi colocada basta
verificar que a eliminação deste requisito apenas amplia, com fundamento
material bastante, o acesso ao actual modelo de casamento adoptado pela lei
ordinária, sem alterar o seu figurino, nem interferir no seu regime, pelo que
está afastada a hipótese desta alteração poder resultar numa descaracterização
ou supressão deste instituto.
Por isso me afasto da enunciação de uma problemática definição do núcleo
essencial do conceito constitucional de casamento, a qual condiciona
desnecessariamente a resolução de muitas outras questões de constitucionalidade,
cuja temática é estranha ao objecto deste recurso.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, face ao entendimento que perfilho e, que, sinteticamente
consigno:
A questão que o Tribunal Constitucional é agora chamado a apreciar prende-se, a
meu ver, única e exclusivamente com a interpretação do artigo 36.º, n.º 1 da
Constituição.
Afasto liminarmente o parâmetro contido no artigo 13.º, n.º 2 pois, como se
entendeu no Acórdão n.º 359/2009, que subscrevi, do que se tratou na revisão
constitucional de 2004 foi, tão-somente, do aditamento de uma outra “categoria
suspeita” aos fundamentos proibidos de discriminação expressamente elencados no
referido preceito. Transcrevendo o referido acórdão, aí se disse que
“E daí que — indo agora ao ponto — no controlo jurisdicional da
constitucionalidade das soluções jurídico-normativas a que o legislador tenha,
desse modo, chegado (no controlo, afinal, do modo como o legislador preencheu o
espaço que a Constituição lhe deixou, precisamente a ele, para preencher) haja
de operar-se com uma particular cautela e contenção. Decerto, assim, que só onde
ocorrer uma real e inequívoca incompatibilidade de tais soluções com o princípio
regulativo constitucional que esteja em causa — real e inequívoca, não segundo o
critério subjectivo do juiz, mas segundo um critério objectivo, como o será, p.
ex. (e para usar aqui uma fórmula doutrinária expressiva), o de «todos os que
pensam recta e justamente» —, só então, quando for indiscutível que o
legislador, afinal, não ‘concretizou’, e antes ‘subverteu’, a matriz axiológica
constitucional por onde devia orientar-se, será lícito aos tribunais (e ao
Tribunal Constitucional em particular) concluir pela inconstitucionalidade das
mesmas soluções.”
Mais à frente, transcrevendo o Acórdão n.º 105/90, afirma-se o seguinte:
“E, se estas considerações são em geral pertinentes, mais o serão ainda quando
na comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista
díspares e não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que dum
princípio «aberto» da Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou
para a solução de determinado problema jurídico. Nessa situação sobretudo — em
que haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo, na comunidade jurídica, um
‘pluralismo’ mundividencial ou de concepções — sem dúvida cumprirá ao legislador
(ao legislador democrático) optar e decidir.”
O mesmo é sustentado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, que afirmam que “a
recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas
pessoas de sexo diferente não permite retirar da Constituição um reconhecimento
directo e obrigatório do casamento entre pessoas do mesmo sexo (como querem
alguns a partir da nova redacção do artigo 13.º, n.º 2).” (Constituição da
República Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 568)
Do que importa tratar é da correcta interpretação do artigo 36.º, n.º 1, que
consagra o direito fundamental de todos ao casamento. Para além desta dimensão
subjectiva, o casamento apresenta-se também, como se pode ler na decisão,
coberto pela “garantia de instituto”. Não obstante poder concordar, em
princípio, com o papel residual que está reservado a esta figura no quadro do
constitucionalismo actual, não creio, contrariamente ao entendimento subscrito
pela maioria que uma eventual transmutação da figura (“ (…) a construção perdeu
essa sua função histórica e não pode manter-se com o mesmo sentido” ponto 19),
possa redundar na respectiva irrelevância, na presente sede, nomeadamente no que
se refere ao núcleo essencial do casamento e à inclusão nesse núcleo da
diferença de sexo dos cônjuges. Atente-se aliás no facto de que a decisão do
Tribunal Constitucional Federal alemão referida neste acórdão centrou a sua
análise, ao aferir a compatibilidade do regime das Parcerias Registadas com o
artigo 6.º, n.º 1 da Grundgesetz, na circunstância de que aquele regime não
afectava o conteúdo essencial da garantia de instituto (casamento)
constitucionalmente prevista e consagrada. Sendo certo que nessa decisão aquele
Tribunal debruçou-se sobre questão diversa da que integra o objecto dos
presentes autos – tendo então sido chamado a apreciar o regime especificamente
criado pelo legislador para tutelar uniões homossexuais, optando pela via das
Parcerias Registadas e negando-lhes o acesso ao casamento – e que, como é bem de
ver, o referido artigo 6.º, n.º 1 não apresenta integral identidade com o nosso
artigo 36.º, n.º 1, considero ainda assim bastante significativo que o Tribunal
Constitucional alemão não tenha enveredado pela via que se adopta na presente
decisão de relegar para um plano “secundário” a categoria dogmática da “garantia
de instituto”. Figura esta que, realce-se, tem génese germânica. O Tribunal
Constitucional alemão entendeu então que a diferença de sexos dos cônjuges se
integra no núcleo essencial do instituto casamento, sendo apenas passível de
alteração, enquanto princípio essencial estruturante do mesmo, por via de uma
revisão constitucional. Entendo que a mesma conclusão se imporia no quadro do
nosso ordenamento fundamental.
Embora a Constituição portuguesa não defina (aliás, tal como a Lei Fundamental
alemã) o que é o casamento, não significa isto que se trate de conceito
totalmente alheado de qualquer densificação constitucional. Desde logo, do
artigo 36.º resulta uma configuração constitucionalmente consagrada e protegida,
como garantia institucional, de acordo com a qual “se exige, em face das
intervenções limitativas do legislador a salvaguarda do «mínimo essencial»
(núcleo essencial) das instituições” (Cfr. Comes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 397).
Assim, ao “núcleo essencial” corresponderão as faculdades típicas que integram o
direito, tal como é definido na hipótese normativa, e, que correspondem à
protecção da ideia de dignidade humana individual na respectiva esfera da
realidade — abrangem aquela dimensão dos valores pessoais que a Constituição
visa em primeira linha proteger e que caracterizam e justificam a existência
autónoma daquele direito fundamental (cfr. José Carlos Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Almedina,
Coimbra, p. 176). Significa isto que “o casamento não é, pois, garantido como
uma realidade abstracta, completamente manipulável pelo legislador e susceptível
de livre conformação pela lei ordinária. Pelo contrário, não faz sentido que a
Constituição conceda o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permita á
lei ordinária suprimir a instituição ou desfigurar o seu núcleo essencial (...)
O legislador deve, em conformidade, respeitar a estrutura nuclear da garantia
institucional do casamento que se extrai da Constituição” (Jorge Miranda e Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. 1, p. 397). Também Francisco
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, sustentam que a “instituição do
casamento está constitucionalmente garantida, pois que não faria sentido que a
Constituição concedesse o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo,
permitisse ao legislador suprimir a instituição ou desfigurar o seu ‘núcleo
essencial’”.(cfr. Curso de Direito de Família, volume I, 3.ª ed., Coimbra
Editora, p. 160).
Resulta líquido, a meu ver, que o constituinte de 1976 tinha em mente o
casamento entre pessoas de sexo diferente quando redigiu o artigo 36.º. Não só
porque esse era o conceito que resultava então como dominante – e o diálogo com
a história e com a tradição é nota característica de qualquer acquis
constitucional – mas também porque se assim não fosse então ter-se-ia verificado
necessariamente, em 1977, a alteração dos preceitos relevantes do Código Civil
de modo a garantir que a legislação ordinária acomodava a nova concepção
constitucional. Isso foi o que sucedeu, aliás, com matérias relativas à filiação
e à igualdade entre os cônjuges. Esta conclusão sai reforçada em face da
integração do preceito no todo corpóreo do artigo 36.º. Com efeito, esta norma
constitucional consagra “no texto fundamental a ligação profunda entre casamento
e filiação”, como aliás resulta dos respectivos n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6 (cfr. Duarte
Santos, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Casamentos-”, p. 327 e seguintes).
Sendo certo que a diferença de sexo dos nubentes foi pressuposta pelo
constituinte de 1976 no papel atribuído ao casamento pela nova ordem
constitucional, poder-se-ia argumentar no sentido de uma “mutação
constitucional” que tenha tornado irrelevante para a Constituição a diferença de
sexos dos cônjuges. Esta mutação apenas se pode justificar por referência a uma
alteração do núcleo essencial da garantia consagrada no artigo 36.º, n.º 1 e já
não como decorrência da proibição de discriminação em função da orientação
sexual como referi anteriormente. Entendo que defender uma tal “mutação
constitucional” no sentido de comportar uma alteração do conceito de casamento
tal como recepcionado e acolhido pelo legislador constituinte de 1976 e mantido
pelas sucessivas revisões constitucionais – ordinárias e extraordinárias –
constitui resultado exegético ilegítimo. Os mecanismos de garantia de uma
Constituição – políticos e judiciais – e os respectivos arranjos institucionais
específicos podem assumir diversas modalidades e variáveis. E mesmo os
mecanismos que se apresentam como formalmente aparentes não podem deixar de ser
lidos e interpretados no contexto de cada sistema em que se localizam. Como
assinalou Robert Dahl, “as soluções específicas devem ser adaptadas às condições
e experiências históricas de cada país, à sua cultura política e às concretas
instituições políticas.” (Democracy and its Critics, Yale University Press, New
Haven, p. 192)
Não é possível escamotear o facto de que o desenvolvimento constitucional no
quadro dos mecanismos políticos e judiciais de garantia da Lei Fundamental se
apresenta com um pendor marcadamente textualista. Assim se explica a tendência
reiterada do legislador constituinte para incorporar e cristalizar a
hermenêutica da jurisprudência deste Tribunal Constitucional nos preceitos da
Lei Fundamental. Como escreveu Maria Lúcia Amaral, “Em Portugal (...)
textualiza-se a jurisprudência, isto é, procura-se assegurar a sua fixação em
norma constitucional escrita. Em vez de se admitir que ela não pode deixar de
integrar o corpus constitucional – aceitando-se também que parte desse corpus
terá necessariamente que ser móvel, evolutivo, sujeito à crítica pública e
gradualmente melhorado pelo que se vai aprendendo com a experiência dos casos
concretos – procede-se à sua rigidificação, integrando-a, por via de revisão, no
texto da própria Constituição.” (“Problemas da judicial review em Portugal”, in
Themis, ano VI, n.º 10, 2005, pp. 88-89)
Sendo este estado de coisas eventualmente passível de considerações críticas,
não me parece que o mesmo possa, no entanto, ser ignorado pelo juiz
constitucional. Uma das funções que assiste à jurisdição constitucional –
qualquer que seja a sua localização – é a de zelar pela integridade da
Constituição mesmo que contra a vontade da maioria parlamentar do momento. Este
pendor contra-maioritário ou anti-maioritário permite proteger a Constituição –
e a legitimidade popular que lhe subjaz – da actuação de maiorias parlamentares
ocasionais. Trata-se, como bem se sabe e agora me limito a invocar, ainda da
protecção da ordem democrática: neste caso, protege-se a soberania popular que
presidiu à outorga da Constituição de eventuais actuações democráticas as quais,
ainda que assentes numa maioria parlamentar, estão em dissonância com aquela
soberania popular expressa nas leis fundamentais de um país.
Entendo, portanto, que não é legítimo aferir qualquer “mutação constitucional”
nesta matéria que prescinda de uma opção expressa, prévia e assumida do
legislador constituinte. Com efeito, e como salientam Gomes Canotilho e Vital
Moreira, a Constituição procedeu a uma recepção do “conceito histórico de
casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente” (cfr. ob. cit., p.
586). Deste modo, sendo o instituto casamento acolhido e garantido enquanto
união entre pessoas de sexo distinto, e não se verificando alterações – no plano
constitucional – que legitimem a conclusão de que terá ocorrido, neste campo,
uma “mutação constitucional”, a mesma apenas poderá ser prosseguida pelo
legislador ordinário perante prévia opção expressa do legislador constituinte.
Como salienta o parecer junto pelo pedido, “tal postulado levaria, (…) a uma
interpretação actualista, cujos requisitos se fundam que o novo sentido a
imputar à lei (constitucional) vigente possua um mínimo de correspondência
verbal no respectivo texto e que a interpretação ‘actualista’ seja uma extensão,
um prolongamento, uma ampliação ou continuação do espírito da norma vigente – e
não a substituição desse espírito (…)”.
Ora, estando-se perante um conceito normativo, na medida “em que arrastam
consigo determinados regimes jurídicos gizados pela norma”, como seja o conjunto
de direitos e deveres dos pais em relação aos seus filhos, e pela função natural
de protecção e educação dos filhos, logo se conclui que o aludido conceito
normativo de casamento “não é aplicável, por interpretação actualizada, ao
casamento entre pessoas do mesmo sexo.”
Com efeito, o legislador constituinte não se confunde com o legislador ordinário
desde logo quanto à maioria necessária para aprovar uma alteração à Constituição
e aos trâmites processuais que tal processo deve observar. Saliente-se ainda o
facto de que a aprovação de uma alteração constitucional não reveste, entre nós,
exigências que a tornam um objectivo quase inalcançável. Isso reflecte-se,
aliás, no facto de que em 34 anos de vida da Constituição foram aprovadas sete
alterações ao respectivo conteúdo. Ora, quando o legislador constituinte, nas
sete revisões constitucionais que se seguiram a 1976, se manteve
sistematicamente silente nesta matéria, constatando-se, no entanto, que a mesma
não foi pura e simplesmente ignorada como se pode verificar pelas declarações de
voto apostas por vários deputados aquando da alteração do artigo 13.º, n.º 2 em
2004, não se pode deixar de relevar um tal comportamento como reiterando o
entendimento de que o conceito de casamento constitucionalmente acolhido e
tutelado é o casamento entre pessoas de sexo diverso. Aliás, como a própria
posição que fez vencimento reconhece, “as questões dos modos e âmbito de
protecção, reconhecimento e legitimação das situações de vida em comum de casais
homossexuais irromperam nas últimas três ou quatro décadas, com premência
crescente, tanto na ordem jurídica portuguesa como noutros lugares do mesmo
espaço de civilização e cultura jurídica que Portugal integra (…).” O apego à
literalidade que vem sendo demonstrado pelo legislador das várias revisões
constitucionais força a reconhecer um determinado sentido ao seu silêncio nesta
matéria do casamento – o sentido de que não foi por si (até agora) pretendida
uma qualquer alteração neste domínio, continuando, por conseguinte, a valer na
ordem constitucional de casamento o conceito que foi acolhido em 1976.
A posição que fez vencimento reconhece e aceita que a liberdade de conformação
do legislador ordinário em sede de regulação jurídica do casamento não é
absoluta. Não vejo no entanto como satisfatórios os argumentos que aduz no
sentido de que a diversidade de sexo dos nubentes não se situa, ao contrário de
outros aspectos, no âmbito do conteúdo essencial que, por esta via, escapa à
disponibilidade do legislador ordinário.
Concluo, assim, que o legislador ordinário – consubstanciado em determinada
maioria parlamentar ocasional – não pode afastar uma tal opção constitucional,
impondo um conceito de casamento que viola o núcleo essencial da garantia
plasmada na Lei Fundamental. Portanto, e porque a problemática do casamento
entre pessoas do mesmo sexo não é assunto ignorado pelo legislador constituinte,
em face do que vem sendo a matriz do paradigma constitucional nacional, entendo
que a possibilidade de introdução, por via legal, do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, carece de opção específica do legislador constituinte.
Como salienta Cristina Queiroz, “pelas funções que a Constituição desempenha,
não será possível passar por cima do direito constitucional escrito,
reclamando-se do direito constitucional não escrito. Neste sentido, não poderão
ocorrer entre nós mutações constitucionais de forma derrogatória face a um
objectivo normativo deixado claro pelo legislador constituinte. O processo de
revisão constitucional existe precisamente para ultrapassar as restrições às
normas constitucionais escritas feitas em nome do direito constitucional não
escrito.” (Interpretação constitucional e poder judicial – Sobre a epistemologia
da construção constitucional, Coimbra Editora, 2000, pp. 117-118).
Aceitar a alteração constante do projecto em análise que vem afastar o requisito
da diferença de sexos entre os nubentes equivale a uma alteração constitucional
por via de lei simples da Assembleia da República. As funções de garantia da
Constituição que impendem sobre este Tribunal imporiam, no meu entender, que o
mesmo se pronunciasse agora no sentido da inconstitucionalidade de tal solução.
São estas as razões que me levam a dissentir do acórdão que fez vencimento.
José Borges Soeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido por não poder acompanhar a solução que fez vencimento.
2 – Entendo, firmemente, que a solução sustentada no acórdão
corresponde a uma revisão ou uma mutação constitucional levadas a cabo em
matéria do casamento, pelo Tribunal Constitucional, com violação do princípio
constitucional da separação de poderes.
3 – Antes de mais, não posso deixar passar em branco o facto de, na
economia da questão a resolver dentro de uma Constituição de tipo “rígido”, não
se ver qualquer utilidade no percurso feito pelo acórdão no campo do direito
comparado dos países do common law.
Se algum sentido tinha a pesquisa feita nesse âmbito, ela apenas se
vislumbrava relativamente àqueles sistemas jurídicos onde o casamento tem
tratamento constitucional paralelo ou aproximado ao nosso, como seja, por
exemplo, o da Lei Fundamental alemã, cujo figurino não foi, porém, seguido pelo
nosso legislador.
4 – De qualquer modo – sumariamente e cingindo-nos ao ambiente
europeu – é de acentuar que tanto o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como
a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, como, finalmente, o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias nunca afirmaram que o casamento enquanto
instituição jurídica reservada apenas para as uniões heterossexuais constituísse
qualquer forma de discriminação ilegítima em face das uniões homossexuais, seja
à face das convenções internacionais que interpretaram (Convenção Europeia dos
Direitos do Homem ou Tratado da União Europeia), seja à face dos princípios
universalmente aceites como o da dignidade humana e o da igualdade de direitos.
E o mesmo se diga das Resoluções e Recomendações, identificadas no
acórdão, provindas da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e do
Parlamento Europeu.
O mais nelas alguma vez reivindicado foi o reconhecimento das uniões
de facto entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes (possível sob outros
institutos) e a atribuição de direitos iguais (onde a natureza os consinta).
Nunca se defendeu que o alargamento do conceito normativo do
casamento no sentido de abranger as uniões homossexuais e heterossexuais fosse a
única solução possível como modo de respeitar o princípio da dignidade humana, o
direito à privacidade, o direito à igualdade e o gozo dos direitos e liberdades
sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo ou na orientação sexual.
5 – O acórdão entendeu que “o conceito constitucional de casamento é
um conceito aberto, que admite não só diversas conformações legislativas, mas
também diversas concepções políticas, éticas e sociais, tendo sido confiada ao
legislador ordinário a tarefa de, em cada momento histórico, apreender e verter
no ordenamento aquilo que nesse momento corresponda às concepções dominantes
nesta matéria”.
Num sistema constitucional de tipo continental, rígido, cunhado
segundo a matriz ideológica da Revolução Francesa, como é o nosso, e tendo em
conta os pertinentes parâmetros jusfundamentais, não podemos estar mais em
desacordo.
6 – Para podermos admitir que o conceito de casamento seria, na
nossa Constituição, um conceito aberto, sujeito às variações do tempo, segundo a
vontade do legislador ordinário, teríamos de ver a expressão verbal “contrair
casamento” constante do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição da República
Portuguesa como sendo um conceito de tipo descritivo, um conceito de tipo
fáctico, ou um mero conceito com intenção proclamadora de um programa
constitucional a concretizar ao longo do tempo por parte do legislador
ordinário, intencionalidade esta sempre manifestada de forma clara através de
expressões como a “a lei regula…”, “nos termos da lei…”, “nos quadros definidos
pela lei…”, “é disciplinada por lei…”; etc.
Se fosse um destes tipos de conceito, decerto que estaria aberto a
absorver as novas formulações da realidade superveniente que postulassem a
protecção dos mesmos interesses.
Jamais vimos, porém, sustentada em parte alguma entre nós uma tal
natureza do conceito do direito a contrair casamento, nos vários séculos da
nossa história pátria até à década de 90!
Nunca como tal foi tido pelo povo, pela doutrina ou pela
jurisprudência!
À data da fixação do texto e da intencionalidade constitucional da
Constituição de 1976, o casamento era um complexo normativo bem precisado no
sistema jurídico de então como contrato que pressupunha a diversidade de sexo
dos cônjuges, através do qual se pretendia constituir família mediante uma plena
comunhão de vida, sendo a família considerada como elemento natural e
fundamental da sociedade, na medida em que assegurava a renovação das gerações:
quer na Constituição de 1933 (artigos 12.º a 14.º), mantida transitoriamente em
vigor pela Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, na parte que não contrariasse os
princípios expressos no Programa do Movimento das Forças Armadas, sendo
irrefutável que estas dimensões da instituição jurídica os não contrariava, quer
no Código Civil vigente, de 1966 (artigo 1577.º), quer em todo o resto do
sistema jurídico infraconstitucional.
À luz de todo o sistema jurídico ele tinha seguramente como seu
núcleo essencial: a celebração de um contrato entre duas pessoas de sexo
diferente e o escopo de, através desse contrato, essas pessoas de sexo diferente
pretenderem constituir família mediante uma plena comunhão de vida.
E essa plena comunhão de vida justificava a imposição, como instrumentos mínimos
da sua prossecução, de certos deveres estatutários (de estado de casado), como
os do respeito, coabitação, cooperação, assistência e fidelidade (artigo 1672.º
do Código Civil).
Não obstante a sua natureza de deveres legais, e como tais, configuráveis em
relação a outros tipos de contratos, certo é que a diferença de sexo dos
cônjuges emprestava uma especial natureza e razão de ser aos deveres de
coabitação e de fidelidade conjugais, bem diversa daquela que será possível
descortinar numa relação homossexual.
Foi o complexo normativo constituído por estes dois elementos
nucleares que o nosso legislador constitucional pretendeu assegurar a todos,
numa dupla dimensão de direito fundamental e de garantia institucional, ao
prescrever, no artigo 36.º, n.º 1, que “todos têm o direito de constituir
família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.
As expressões verbais “direito a constituir família e de contrair
casamento em condições de plena igualdade” não são usadas enquanto
reconhecimento de uma certa realidade social do tempo, mutável, na altura da
fixação do texto constitucional, mas enquanto “institutos” ou “instituições”
existentes no todo do ordenamento jurídico que a Constituição quis reconhecer e
“aos quais, em qualquer caso, pretende assegurar protecção especial na sua
essência ou nos seus traços característicos” (cf. José Carlos Vieira de Andrade,
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, p.
139).
E também não são usadas enquanto conceito descritivo, mas sim
normativo, envolvendo ponderações normativo-regulativas, no próprio texto
constitucional, como resulta de uma interpretação sistemática da Constituição,
esta só possível relativamente a normas.
Todo o artigo 36.º da Constituição está estruturado em torno do
pressuposto do casamento heterossexual, pois só relativamente a um casamento
concebido nesses termos é que se justifica que o legislador constitucional tenha
tido a necessidade de consagrar expressamente, no seu n.º 3, que “os cônjuges
têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à
manutenção e educação dos filhos” e, no n.º 4, que “os filhos nascidos fora do
casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a
lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias
relativas à filiação”.
Ao dispor que os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à
manutenção de educação dos filhos e ao proibir a existência de qualquer
discriminação entre os filhos nascidos dentro do casamento e fora do casamento,
o legislador constitucional deixa bem claro que os filhos a que se está a
referir são os filhos biológicos e que o casamento a que se refere é o casamento
entre pessoas de sexo diferente, pois só neste caso a hipótese é possível a
hipótese verificar-se segundo as leis da Natureza.
No casamento entre pessoas do mesmo sexo não cabe, como efeito
consequente admissível sob o ponto de vista da Natureza, qualquer previsão de
regulação das relações de ambos os cônjuges quanto “à manutenção e educação dos
filhos” nem a referida destrinça de hipóteses quanto aos filhos.
E dados os termos da sua formulação é seguro que os n.ºs 3 e 4 do
artigo 36.º não se referem aos filhos adoptivos, porquanto a previsão da
adopção, enquanto fórmula ou forma jurídica de estabelecimento da relação de
filiação contemplada naqueles números, apenas, numa dimensão biológica
(constituída dentro ou fora do casamento), só vem prevista depois de tais
preceitos, no n.º 7 do mesmo artigo, e como estatuto a “regular e a proteger nos
termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva
tramitação (questão que nunca se põe relativamente à filiação natural).
De notar que sempre que a Constituição de 1976 se quis afastar dos conceitos
normativos existentes no sistema (inclusive, constitucional anterior) em matéria
de família, de filiação e das relações entre os cônjuges, prescreveu-o
expressamente, não deixando lugar a dúvidas.
É o que decorre do seu artigo 36.º relativamente ao princípio da igualdade entre
os filhos nascidos do casamento ou fora do casamento ou dos direitos dos
cônjuges quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos
filhos, em manifesto contraste com o regime anterior (cf. artigos 6.º e 12.º a
14.º da Constituição de 1933).
Por outro lado, o casamento também não está assumido enquanto
conceito descritivo no todo do resto do nosso sistema jurídico.
Sempre que o legislador ordinário o relevou para lhe associar
quaisquer efeitos jurídicos, nos mais diversos domínios do direito, moveu-se
sempre no quadro de uma ponderação de atribuição de tais efeitos em função do
casamento enquanto envolvendo este um contrato entre pessoas de sexo diferente
que constituíram família mediante plena comunhão de vida.
O direito de contrair casamento que foi, pois, assumido pelo
legislador constituinte, por um lado, como direito fundamental reconhecido a
todos e, por outro lado, enquanto garantia institucional, foi o casamento
heterossexual.
7 – É claro que o acórdão, intentando justificar a sua tese, se
acoberta debaixo da literalidade do n.º 2 do artigo 36.º da Constituição, de
acordo com a qual “a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua
dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração”,
vendo compreendido no termo “requisitos” a possibilidade legislativa de opção
pela exigência ou não da heterossexualidade dos contraentes.
Todavia, o termo “requisitos” tem de considerar-se bem curto para
poder justificar uma total redefinição do casamento, dado que nunca foi
entendido, na linguagem do direito positivo, como dizendo respeito à noção
(substância) do contrato a que se refere quando esta é por ele expressamente
enunciada.
Sendo a heterossexualidade dos cônjuges, segundo o conceito
constitucional de casamento, elemento essencial do contrato, os requisitos
apenas poderão, assim, referir-se aos pressupostos exigidos para a celebração do
tipo de contrato em que os contraentes são homem e mulher que pretendem
constituir família mediante plena comunhão de vida.
Era assim, de resto, que a matéria se encontrava regulada no Código
Civil à data da Constituição originária (cf. artigos 1577.º e 1596.º e
seguintes) e continua, ainda hoje a estar, como era assim que a Constituição de
1933 a compreendia, no seu artigo 13.º, § 1.º, em termos, aliás, mais precisos.
O artigo 36.º, n.º 2, da Constituição remeteu para o legislador
ordinário a regulação dos pressupostos e dos efeitos do casamento e da sua
dissolução por morte ou por divórcio, mas dentro da sua concepção de contrato
entre pessoas de sexo diferente, sendo evidente existir, no campo material
remetido, uma discricionariedade normativo-constitutiva do legislador ordinário
muito ampla, conquanto não toque na “essência ou nos seus traços
característicos” do casamento tal como ele foi assumido pelo legislador
constitucional.
Ver nessa remissão para a lei ordinária a possibilidade de
conformação de um dos elementos essenciais constituintes da garantia
institucional do casamento, à data da Constituição originária, é despir o
conceito de casamento da qualidade de garantia institucional constitucional,
para valer apenas como direito fundamental de conteúdo não densificado
constitucionalmente e a densificar pelo legislador ordinário.
Bem entendido, o acórdão reduziu a dimensão de garantia de instituto
do casamento à obrigatoriedade, apenas, de o legislador ordinário ter de dispor,
sempre, em favor das pessoas, de um instituto que se denomine de casamento.
Deve notar-se, de resto, que o acórdão padece de evidente
incongruência científica quando afasta a determinação do conteúdo do direito
fundamental ao casamento pelo sentido normativo que o conceito tinha no sistema
jurídico, a quando da fixação do texto constitucional de 1976, mas,
simultaneamente, procede à definição do seu núcleo servindo-se do sistema
jurídico, fazendo-o equivaler a uma “comunhão de vida entre duas pessoas,
estabelecida mediante um acto como tal designado, juridicamente regulado, livre,
incondicional e inaprazável”.
Na verdade, estes elementos só poderão ser apreensíveis através do sistema
jurídico, dado ninguém os conseguir descortinar no artigo 36.º da Constituição
ou em outros preceitos constitucionais.
8 – Aliás, a haver dúvidas interpretativas sobre o conteúdo do
conceito constitucional português de casamento, mesmo que emergentes de uma
interpretação sistemática dos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º, elas teriam de ser
resolvidas, então, por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da Constituição,
com recurso ao disposto no artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem (DUDH) e este é claro, ao dispor, que “a partir da idade
núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família (…)”.
O conceito de casamento aqui acolhido é, seguramente, um conceito
normativo, na medida em que se afirma através da definição do direito do homem e
da mulher a casar-se um com o outro (e a constituir família que é considerada,
no n.º 3 do mesmo artigo, elemento natural e fundamental da sociedade), como,
aliás, de resto, o acórdão de que dissentimos se viu obrigado a aceitar, em face
da letra e do elemento sistemático de interpretação da própria DUDH.
Ora, a DUDH, vigente na Ordem Jurídica Internacional desde muitos
anos antes da nossa Constituição de 1976, foi assumida expressamente como fonte
vinculativa de conteúdo dos direitos fundamentais reconhecidos na nossa
Constituição, no seu artigo 16.º, n.º 2.
E não vale o argumento que o mesmo acórdão esgrime para afastar a
aplicabilidade desta norma da DUDH, apodando até a convocação da interpretação
da norma constitucional respeitante ao casamento (o artigo 36.º, n.º 1) segundo
o sentido da norma da DUDH de equívoco argumentativo, afirmando que «o n.º 2 do
artigo 16.º da Constituição funciona apenas bona parte e do “lado”
jurídico-individual dos direitos fundamentais».
Na verdade, o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição é claro ao dizer
que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem”.
Deste modo, a tarefa que se coloca ao intérprete constitucional é a
de saber qual o conteúdo normativo que os n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º da
Constituição incorporaram, ao falarem de “direito de contrair casamento em
condições de plena igualdade” e de que “cabe à lei a regulação dos requisitos e
dos efeitos do casamento”.
Para não padecer de incongruência, o acórdão teria forçosamente de
admitir que, à data da Constituição originária, o direito a contrair casamento
não tinha o sentido estabelecido na DUDH, mas já o outro mais lato que agora
entende como constituir o seu núcleo essencial ou o seu âmbito de protecção como
direito (subjectivo) fundamental – “o de significar o estabelecimento de uma
relação de comunhão de vida entre duas pessoas (independentemente do seu sexo),
estabelecida mediante um acto como tal designado, juridicamente regulado, livre,
incondicional e inaprazável”.
Só, sendo assim (e sem curar de saber, por desnecessário, se um tal
sentido contrário à DUDH seria legítimo), se poderia sustentar estar-se perante
um direito fundamental com um âmbito de protecção mais alargado do que aquele
que decorre da DUDH, pelo que a invocação desta DUDH não teria um sentido
explicativo ou integrador do direito fundamental de contrair casamento, mas
antes restritivo, não cabendo este na intencionalidade da regra constitucional
constante do artigo 16.º, n.º 2.
Mas este passo teve o acórdão o pudor de o não dar, precisamente
pela evidência de que um tal entendimento se tratava, à data da Constituição
originária, de uma aventurada ficção, pois só os sinais dos tempos vieram dar
conta da necessidade social de regulação de uma nova realidade nas relações de
família.
Depois, não concordamos de todo em todo com a asserção redutora
feita no acórdão no sentido de que o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição
«funciona apenas in bona parte e do “lado” jurídico-individual dos direitos
fundamentais».
Essa funcionalidade apenas teria sentido se o legislador
constituinte houvesse assumido, sem margens para quaisquer fundadas dúvidas
interpretativas, o paradigma de contrato de casamento agora acolhido, caso em
que o âmbito de protecção do direito fundamental e da garantia institucional do
casamento, entendidos nestes novos termos, seria mais alargado do que o
constante da DUDH.
Como se disse, o acórdão não foi capaz de chegar aí, tendo-se
quedado pela afirmação da realização de uma interpretação actualista do preceito
Constitucional, o que leva pressuposto que o actual conteúdo
normativo-constitucional tanto podia ser aquele que defende (de inclusão do
casamento homossexual), como outro, se a História caminhasse numa outra
direcção, como acaba por expressamente reconhecer ao dizer que, à data da
fixação do texto constitucional, “o problema era político-juridicamente
desconhecido”.
Nesta perspectiva, no mínimo e no limite, o acórdão não poderia,
então, deixar de ter admitido, para ser congruente, que, se ainda hoje são mais
que possíveis as dúvidas sobre o recorte constitucional do núcleo do direito
fundamental e da garantia institucional do casamento, o que não se poderia dizer
relativamente ao momento em que o legislador constituinte se “apoderou” da
instituição existente no sistema então vigente (seja o sistema constitucional
anterior ressalvado pela Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, seja o sistema
infraconstitucional)!
Ora, a haver dúvidas acerca do núcleo essencial do direito
fundamental e da garantia institucional do casamento, consagrado na Constituição
originária – dúvidas estas que corresponderão, no mínimo, a um limite científico
de intelegibilidade da Lei fundamental cuja existência não pode afastar-se –
elas teriam, e terão ainda hoje, de ser solvidas de acordo com o artigo 16.º,
n.º 1, da DUDH.
Na verdade, o artigo 16.º, n.º 2, da Constituição não determina
apenas, como diz o acórdão, a aplicação da DUDH in bona parte, mas consagra,
também, os princípios da interpretação e da integração dos preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais de harmonia com a
DUDH (princípio da interpretação em conformidade com a DUDH) (cf., sobre a
história da inserção do preceito na nossa Constituição na Assembleia
Constituinte e o sentido do texto, Jorge Miranda, “A Declaração Universal dos
Direito do Homem e a Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 1.º Volume,
p. 60).
Nesta medida, os preceitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º da
Constituição apenas podem ser entendidos com o sentido constante da DUDH, ou
seja segundo um direito fundamental e garantia institucional constitucional
(natureza que lhe advém da previsão na nossa Constituição) do homem e da mulher
a, na idade núbil, casar-se um com o outro (sentido emergente da DUDH).
9 – Ora, como bem diz José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, p. 141), cuja
doutrina o acórdão cita mas sem dela tirar as devidas ilações, “deve entender-se
que as garantias institucionais se referem ao complexo jurídico-normativo na sua
essência e não à realidade social em si, de modo que […] é com esse alcance que
vinculam o legislador, admitindo um espaço, maior ou menor, de liberdade de
conformação legal, mas proibindo-lhe sempre a destruição, bem como a
descaracterização ou a desfiguração da instituição (do seu núcleo essencial)”.
Reduzir o casamento, como fez o acórdão, contra todo o coro do
sistema jurídico-constitucional e ordinário, ao estabelecimento de uma relação
de comunhão de vida entre duas pessoas, estabelecida mediante um acto como tal
designado, juridicamente regulado, livre, incondicional e inaprazável, é
descaracterizar radicalmente a garantia institucional constante da Constituição
e isso só seria constitucionalmente legítimo através de uma revisão
constitucional.
É que não se vê nela qualquer resquício normativo, suportado em
quaisquer elementos de interpretação, de o conceito normativo casamento estar
reduzido a tal alegado agora núcleo essencial, para além de um aparente apoio
numa certa compreensão (errada, no caso) do princípio da igualdade.
Hoje, ao falar-se de casamento e do estado de casado fica sem
saber-se a que tipo de relação juridicamente relevada existente entre as pessoas
se refere: se a um contrato entre duas pessoas de sexo diferente celebrado com o
escopo de, através desse contrato, essas pessoas de sexo diferente pretenderem
constituir família mediante uma plena comunhão de vida, família esta, por norma,
com natureza geracional e, por regra, naturalmente alargada, entrelaçando várias
gerações, onde a afectividade brota como uma chamamento da própria natureza
humana; se a um contrato entre duas pessoas do mesmo sexo celebrado com o escopo
de constituir família mediante comunhão de vida, onde as relações entre as duas
pessoas se centram essencialmente numa dimensão afectiva.
Desde já importa notar que a comunhão de vida, numa relação
homossexual só é conseguível – afastada que está a complementaridade dos sexos e
os efeitos a ela associados como a possibilidade (não a necessidade) da
existência de determinados tipos de relações sexuais e de procriação – enquanto
referida a todos os aspectos da vida que não pressuponham a diferença de sexos:
a uma comunhão de vida dessas pessoas, sim, mas apenas dentro do universo
subjectivo e temporal do género unido pelo casamento.
O núcleo do casamento passou, assim, para o reconhecimento legal da
existência de uma declaração de afectos existentes entre duas pessoas, sem estar
associado ao modo normal de constituição da família geracional: os efeitos do
casamento homossexual quedam-se pelos horizontes temporais das pessoas que o
celebram, não contribuindo para o devir da Comunidade Jurídica que o reconhece.
Não vemos como é que das circunstâncias de o casamento heterossexual
não ter necessariamente de pressupor a ocorrência da procriação, seja por opção
dos próprios, seja por impossibilidade fisiológica, se podem extrair argumentos
no sentido de a união civil de pessoas do mesmo sexo ter de ser efectuada, para
salvaguardar os princípios da dignidade humana, da igualdade e da privacidade,
com apropriação da instituição casamento tal como ela se mostra assumida no
sistema jurídico.
Não se torna possível colocar no mesmo plano do casamento
heterossexual, onde essas situações correspondem a opções ou impossibilidades
fisiológicas circunstanciais (não imanentes ao género), as situações onde essas
ocorrências nunca são possíveis, de plano, como se passa nos casamentos
homossexuais.
A igualdade em causa não passa de uma igualdade simplesmente formal,
criada pelo legislador, como produto legislativo.
10 – A razão intrínseca do casamento heterossexual encontra-se na
possibilidade da complementaridade dos sexos dentro da própria matriz da pessoa
humana: complementaridade sexual, fisiológica, psicológica, sentimental,
afectiva, numa linha de correspondência com o que acontece com o nascimento da
vida humana, que apenas se torna possível segundo essa regra de
complementaridade e cujo normal desenvolvimento assenta também, de acordo com as
regras de normalidade, nessa complementaridade.
Temos, assim, que o legislador ordinário desfigurou o direito
fundamental e a garantia institucional do casamento existente no sistema
constitucional e no sistema ordinário.
E fê-lo desnecessária e desproporcionadamente, violando o disposto
nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.
Na verdade, ao alargar o sentido semântico da garantia institucional
“casamento”, de modo a abarcar as uniões homossexuais, o legislador ordinário
contraiu o âmbito normativo do direito fundamental e da garantia institucional
do casamento, na medida em que este passou agora a compreender apenas como uma
sua parcela a normatividade que o mesmo anteriormente transportava.
É defensável a criação de um instituto de reconhecimento jurídico do
contrato celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo que pretendam constituir
família mediante comunhão de vida, atribuindo-se-lhe efeitos jurídicos que não
pressuponham, segundo as leis da Natureza, a diferença de sexos ou conduzam à
descaracterização dos que necessariamente são postulados pelo casamento,
buscando arrimo na cláusula geral inserta no direito ao livre desenvolvimento da
personalidade constante do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, sede
constitucional adequada para acautelar a realização de todos os fins cuja
prossecução a Constituição não repudie e através dos quais o sujeito pessoa
entenda dever desenvolver a sua vida.
A restrição de âmbito do direito fundamental em causa é, pois,
constitucionalmente ilegítima.
Depois, o legislador destruiu o valor do simbolismo do casamento
enquanto garantia institucional conferida a pessoas de sexo diferente, com
milénios de existência: o estado de casado, na Comunidade Jurídica e Social, era
próprio – e foi-o durante, pelo menos, cerca de 7 milénios – apenas de pessoas
de sexo diferente.
Ora, o simbolismo ou o valor simbólico das instituições
constitucionais constitui um valor constitucional relevante, como decorre, desde
logo, do reconhecimento que é dado aos símbolos nacionais e à língua oficial
(artigo 11.º da Constituição), mas que, também, se pode ver associado, como
valor intrínseco, à previsão constitucional das relações de interdependência
entre os diversos órgãos de soberania (artigos 110.º e 111.º, da Constituição),
a demandarem um respeito próprio e autónomo a cada um deles, bem como nas
diversas garantias materiais institucionais previstas na Constituição (pense-se,
por exemplo, na autonomia das universidades – artigo 76.º, n.º 2, da
Constituição).
O reconhecimento aos homossexuais, sob invocação dos princípios da
dignidade humana, da igualdade e da privacidade, do direito de procederem
legalmente à união civil das suas vidas, não autoriza a que esse tratamento
tenha de passar pela apropriação do valor simbólico do casamento e do estado de
casado enquanto instituição própria, segundo a sua matriz histórica, de uma
união entre pessoas de sexo diferente, afectando desse jeito a imagem da
instituição existente.
A diluição ou degeneração do valor social do estado de casado
segundo um paradigma de diferenciação de sexos não se afigura necessária para
salvaguardar os direitos fundamentais dos casais homossexuais, antes
prosseguindo o intuito ilegítimo de confundir ou ocultar, à custa do valor
próprio do casamento, enquanto união reconhecida entre homem e mulher, adquirido
ao longo dos séculos, uma parte da realidade de facto que subjaz ao acesso a
esse estado.
Benjamim Rodrigues