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Processo n.º 993/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão
sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público
e Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, foi interposto recurso, ao
abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b), da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea
b), da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da
Relação de Lisboa, em 27 de Outubro de 2009 (fls. 1582 a 1589), para que seja
apreciada a inconstitucionalidade da “interpretação do bloco normativo composto,
pelo art. 380.º, do Código de Processo Penal, que não permite que se lhe aplique
na sua interpretação o art.º 669.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de
Processo Civil, por via do art.º 4.º do C.P.P., quando estivermos perante uma
situação de condenação em pena de prisão, alicerçada num «Erro grave de
julgamento», não permitindo que se aprecie devidamente essa «decisão errada de
condenação» (fls. 1604).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 1609), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator verificar que alguns deles não foram preenchidos, pode proferir
decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A
da LTC.
3. Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da LTC, impendia sobre o recorrente o ónus de prévia e adequada suscitação
da questão de inconstitucionalidade normativa que pretendesse ver apreciada pelo
Tribunal Constitucional. Sucede, porém, que o próprio recorrente reconhece nunca
ter suscitado previamente a questão normativa objecto do presente recurso,
conforme lhe competia por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC, ainda que tenha
procurado justificar essa omissão no facto de a decisão recorrida “constitui[r]
em si uma decisão «excepcional», pois ninguém poderia prever que perante uma
evidência (…), se invocasse o art.º 380.º do C.P.P.” (fls. 1604 e 1605).
Vejamos então se é possível considerar a decisão recorrida como uma
decisão-surpresa, de modo a justificar uma eventual dispensa do ónus de prévia e
adequada suscitação da inconstitucionalidade, na medida em que este Tribunal
admite a possibilidade de dispensa, a título excepcional, da invocação prévia da
inconstitucionalidade de normas aplicadas por decisões dos tribunais comuns,
sempre que não for processualmente exigida ao recorrente a previsão de aplicação
da norma ou da interpretação normativa efectivamente aplicada. Note-se, contudo,
que tal só sucede quando a aplicação da norma ou da interpretação normativa seja
objectivamente imprevisível ou insólita. Assim, ver, a título de exemplo:
i) Acórdão n.º 394/2005 – “A razão pela qual o Tribunal
Constitucional tem dispensado este ónus em casos excepcionais ou anómalos, como
se refere na decisão reclamada, é a de considerar não exigível antecipar um
sentido objectivamente inesperado, sobre o qual o recorrente não teve a
oportunidade de se pronunciar antes de proferida a decisão recorrida”;
ii) Acórdão n.º 120/2002 – “Todavia, como este Tribunal também
tem salientado (assim, por exemplo, do citado Acórdão n.º 352/94), tal situação
sofre restrições 'em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado
não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final'. É o que acontece
também quando, pela natureza insólita ou surpreendente da interpretação (ou da
aplicação) da norma em causa efectuada pela decisão recorrida, não era exigível
ao recorrente que contasse com ela.
Entende-se que é esta a situação no caso presente – tal como, por exemplo, nos
casos dos Acórdãos 74/00 e 56/01 (ainda não publicados), considerando-se como
'decisão-surpresa', de conteúdo imprevisível para o recorrente, a decisão
proferida pelo tribunal recorrido, para rejeição do recurso em causa”;
A natureza imprevisível, surpreendente ou insólita da norma ou interpretação
normativa efectivamente aplicada depende, todavia, do preenchimento de um grau
reforçado de diligência do recorrente. Este grau de diligência implica uma
antecipação das diversas soluções jurídicas potencialmente aplicáveis ao litígio
controvertido, devendo precaver-se contra a adopção de soluções que, ainda que
minoritárias, possam ser configuradas como objectivamente admissíveis face à
letra da lei. Só no caso de não ter sido possível antecipar a aplicação de norma
ou interpretação normativa contrária à Constituição da República – sendo esta
possibilidade sempre aferida de modo objectivo – é que será admissível a
dispensa de suscitação prévia da inconstitucionalidade. Neste sentido, ver:
i) Acórdão n.º 489/94 – “O Tribunal tem considerado
até que cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses de
interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as
inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão”);
ii) Acórdão n.º 479/89 – “(…) não pode deixar de recair
sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades
interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face
delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de
definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso –
acrescentar-se-á – também logo mostra como a simples «surpresa» com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (…) em
que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação
«prévia» da inconstitucionalidade perante o tribunal «a quo».
Mas – e agora em segundo lugar – se alguma vez tal for de admitir, então haverá
de sê-lo apenas numa hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita
e imprevisível, que seria de todo o ponto desrazoável a parte contar (também)
com ela”.
Ora, sucede que a decisão que aplica a interpretação normativa do artigo 380º do
CPP, reputada de inconstitucional, foi precedida de pedido de “aclaração,
correcção e reforma” apresentado pelo recorrente e sustentado, precisamente,
naquele preceito legal. Não podia, pois, o recorrente ignorar que o tribunal “a
quo” iria ser chamado a interpretar a norma jurídica extraída do artigo 380º do
CPP. Assim sendo, o recorrente deveria ter antecipado as interpretações
passíveis de serem extraídas da letra daquele preceito legal.
Conforme bem evidenciado pelo acórdão recorrido, a jurisprudência e a doutrina
têm vindo a discutir se o n.º 2 do artigo 669º do CPC é aplicável em sede de
processo penal, tendo sido, aliás, recentemente publicado comentário à lei
processual penal, largamente difundido, nos termos da qual se sufraga
precisamente o entendimento acolhido pela decisão recorrida (nesse sentido, ver
Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 1ª edição –
2007 e 2ª edição 2008, p. 969).
Para além disso, a invocação do artigo 4º do CPP para efeitos de aplicação do
n.º 2 do artigo 669º do CPC pressupõe, necessariamente – por força do preceito
legal –, a detecção de uma lacuna na letra da lei. Ora, afigura-se evidente que
não existe qualquer lacuna na lei processual penal quanto à correcção de
sentenças e acórdãos, na medida em que o artigo 380º do CPP regula expressamente
essa matéria. Se o legislador tivesse pretendido que os fundamentos de correcção
constantes da lei processual civil fossem aplicados em processo penal, decerto
tê-los-ia expressamente consagrado no referido artigo 380º do CPP.
Perante este quadro jurídico, não podia o recorrente ter deixado de antecipar a
possibilidade de o tribunal recorrido ter interpretado o artigo 380º do CPP, não
constituindo aquela interpretação qualquer surpresa ou revelação insólita.
Como tal, e em conclusão, não pode este Tribunal conhecer do objecto do presente
recurso, na medida em que o recorrente não suscitou, de modo processualmente
adequado, conforme lhe competia por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC, a
questão normativa que pretende ver agora apreciada, nem tão pouco beneficia
aquele de qualquer dispensa de suscitação, em função de uma hipotética natureza
surpreendente ou insólita do recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio reclamar, nos
seguintes termos:
«A douta decisão, que fulmina com a decisão de indeferimento liminar o recurso
de inconstitucionalidade deduzido pelo ora reclamante, segundo aquilo que este
consegue perceber, parece sintetizar-se no seguinte:
(…)
Pois...mas a verdade é que, “adivinhar” que a decisão sobre a aclaração e
reforma, versaria a interpretação da proposição normativa do art. 380.° do
C.P.P. ainda seria em tese admissível, agora ir Interpretar a citada proposição
normativa da forma que foi feita, isso, com todo o respeito, é que ninguém
minimamente astuto num Estado de Direito poderia ter previsto.
Por outras palavras, uma coisa é “presumir-se”, se bem que “juris tantum” que
uma determinada norma vai ser chamada à interpretação, quer seja em termos
linguísticos, quer seja, em termos jurídicos, outra bem diferente é presumir
“juris et de jure”, que uma determinada proposição normativa vai ser
interpretada de uma forma completamente “ab-rogante”, contrariamente a tudo e
todos, contra todos os princípios jamais imagináveis num “putativo”Estado de
Direito!
Daí que, trazendo à colação os Acórdãos do próprio Tribunal Constitucional que
fundamentam, na interpretação subjectiva de quem os faz, que não estaremos na
presença de um caso de interpretação insólita, inesperada e completamente
desajustada.
i) Acórdão nº 489/94 — “O Tribunal tem considerado até que cabe às
partes considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis
das normas em questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí
decorrentes antes de ser proferida a decisão”
estaremos também perante uma interpretação inconstitucional dos fundamentos do
próprio Estado de Direito e do princípio da proporcionalidade.
Este Acórdão fala em “interpretação razoável”. Considerar que, sendo juntos
vários documentos, que articulados com os factos respectivos, demonstram à
saciedade que estamos perante um “Erro grave de julgamento”, erro que no caso
concreto implica a aplicação de uma pena de prisão e concluir-se pela rejeição
de um enquadramento normativo que seria o normal num Estado de Direito,
constitui uma interpretação da norma jurídica do art. 380. ° do C.P.P.. de todo
imprevista, pois não permite que se aplique o mecanismo da correcção do art.
669.°, n.º 2, alíneas, a) e b), do Código de Processo Civil, “ex-vi” art. 4º do
C.P.P.”, o qual se justificará com maior acuidade no processo penal do que no
processo civil.
Ou seja, ficámos a saber que as pessoas em Portugal podem passar a ser julgadas
e condenadas com base em factos (documentos, in casu IVA) que não tem nada a ver
com os factos da acusação (Segurança Social) e serem vertiginosamente condenados
com base em factos que não são os seus.
Em bom rigor, talvez não seja assim tão insólito, pois muitos são absolvidos
pelos factos que efectivamente praticaram, o que em bom rigor tornará a
interpretação aqui “em crise apenas para o reclamante”, menos insólita. Todavia,
não nos parece que mesmo apelando à interpretação “em glosa” do Código de
Processo Penal, pudéssemos retirar essa ideia, pois o que aí se escreveu foi,
que não existe um mecanismo igual ao mecanismo do art 669º, nºs 2, alíneas a) e
b) do C.P.C. pois essa “glosa” não aborda a eventual questão constitucional,
visto essa pertencer a esse Venerando Tribunal Constitucional.
Obrigar o ora reclamante a efectuar futurologia, ao ponto de adivinhar que a
norma do art. 380. ° do C.P.P. não comporta a possibilidade de se proceder a uma
reforma do Acórdão, quando estamos perante um “erro de julgamento” que originou
“pena de prisão” e qualificá-la de não interpretação insólita e irrazoável do
Direito é violar o art. 20.° da C.R.P., que concede a todos os cidadãos o acesso
efectivo ao Direito e à Justiça.
Mas mais...escreve-se na decisão que fulmina liminarmente a pretensão do
reclamante a não ser preso com base em factos que não correspondem aos quais foi
acusado e julgado:
«Para além disso a invocação do artigo 4º do CPP para efeitos de aplicação do
n.º 2 do artigo 669° do CPC pressupõe, necessariamente — por força do preceito
legal —, a detecção de uma lacuna na letra da lei. Ora, afigura-se evidente que
não existe qualquer lacuna na lei processual penal quanto à correcção de
sentenças e acórdãos, na medida em que o artigo 380° do CPP regula expressamente
essa matéria. Se o legislador tivesse pretendido que os fundamentos de correcção
constantes da lei processual civil fossem aplicados em processo penal, decerto
tê-los-ia expressamente consagrado no referido artigo 380° do CPP.»
Ora, sem pretensões de sapiência e sem quaisquer outras que não concernem
unicamente a razões de estudo intelectual, muitas vezes desnecessário,
infrutífero e ingénuo, veja-se este Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:1
0004083
(…)
I - Por aplicação das regras do processo civil, é possível a reparação de
anterior decisão, quando nesta não haja sido tomada em consideração elementos
constantes do processo que possam implicar decisão diversa da proferida.
II - A notificação para interrogatório da arguida em instrução, no domínio do
C.P. de 1982, não tem virtualidade para interromper o decurso do prazo do
procedimento criminal.
Pelo que, não é argumento invocar que se o “legislador” quisesse que certas
“razões” do processo civil fossem aplicadas no processo penal certamente
tê-lo-ia dito!
Aliás, o reclamante também invocou o art. 379. ° do C.P.P., preceito que nem
sequer foi objecto de análise por parte da decisão sumária.
Para não nos tornarmos inconvenientes, resumamos:
É inconstitucional a interpretação do bloco normativo composto, pelo art. 380º,
do Código de Processo Penal, que não permite que se lhe aplique na sua
interpretação o art., 669. °, n.° 2, alíneas, a) e b), do Código de Processo
Civil, por via do art. 4° do C.P.P., quando estivermos perante uma situação de
condenação em pena de prisão, alicerçada num “Erro grave de julgamento”, não
permitindo que se aprecie devidamente essa “decisão errada de condenação”.
É inconstitucional a interpretação do bloco normativo composto, pelo art. 379º,
do Código de Processo Penal, que não permite que se lhe aplique na sua
interpretação, a possibilidade de modificar uma decisão “ilegal”, quando
estivermos perante uma situação de condenação em pena de prisão, alicerçada num
“Erro grave de julgamento”, não permitindo que se aprecie devidamente essa
“decisão errada de condenação”.
Este entendimento viola os art.°s, 27. °, 32.°, nºs 1, 2, da Constituição da
República Portuguesa, bem como, o princípio da legalidade democrática e
legalidade penal, que é decorrência daquele.
É inconstitucional o entendimento professado no despacho de indeferimento quando
considera que não se subsume a uma interpretação insólita e inesperada o caso
dos autos, em virtude de não ser justificável que um “homem médio”, adivinhasse
que um Tribunal iria condenar nos termos em que o fez, quando estamos perante um
“erro de julgamento” que originou “pena de prisão” e qualificá-la de não
interpretação insólita e irrazoável do Direito, violando assim o art. 20° da
C.R.P., que concede a todos os cidadãos o acesso efectivo ao Direito e à
Justiça.» (fls. 1634 a 1640)
3. Após notificação para efeitos de contradita, o recorrido Ministério Público
veio apresentar a seguinte resposta:
«1º
Na Decisão Sumária de fls. 1615 a 1619 decidiu-se não conhecer do objecto do
recurso porque o recorrente não suscitara previamente a questão da
inconstitucionalidade de uma determinada interpretação do artigo 380.º do CPP,
não estando dispensado desse ónus.
2º
Notificado do Acórdão da Relação de Lisboa que negara provimento ao recurso
interposto da decisão de 1.ª instância, o recorrente veio pedir a sua
“aclaração, correcção e reforma” e “arguir inconstitucionalidade ao abrigo do
disposto nos artigos 379.º, 380.º do CPP e 669.º do CPC”.
3º
Desde já, dir-se-à que, apesar dessa afirmação inicial, nessa peça processual
não foi arguida qualquer inconstitucionalidade.
4º
Nos termos do artigo 380º do CPP, só são admissíveis os pedidos de correcção das
sentenças, cujo deferimento não conduza à sua modificação essencial
5º
Ora, como resulta claramente do pedido e é confirmado na reclamação da Decisão
Sumária, o pedido do recorrente, a ser concedido, levaria a uma modificação
essencial da decisão proferida pela Relação.
Bastará lembrar que naquela reclamação se fala da “possibilidade de modificar
uma decisão” “ilegal” quando estivermos numa situação de condenação em pena de
prisão, alicerçada em “erro grave do julgamento”, não permitindo que se aprecie
devidamente essa “decisão errada de condenação””.
6º
Assim sendo, dado o conteúdo do pedido, era perfeitamente lógico, natural e
previsível que, não se considerasse aplicável o disposto no artigo 380.º do CPP,
e que perfilhando-se o entendimento de alguma jurisprudência e doutrina, não se
considerasse subsidiariamente aplicável o disposto no artigo 669.º do CPC, tal
como foi entendido pela decisão recorrida.
7.º
Como a questão de inconstitucionalidade que recorrente pretende ver apreciada,
consiste precisamente na interpretação que, neste casos, não considera
subsidiariamente aplicável o regime vigente em processo civil, parece-nos claro
que, não sendo a interpretação acolhida anómala ou insólita, ela nem sequer era
imprevisível, tendo em atenção as concretas circunstâncias dos presentes autos.
8.º
Assim, o recorrente poderia e deveria ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade, no momento processual próprio: o pedido de “aclaração,
correcção e reforma”.
9.º
Não o tendo feito e não estando dispensado do ónus da suscitação prévia, falta
um dos requisitos de admissibilidade do recurso, pelo que deve integralmente
manter--se a decisão reclamada, indeferindo-se a reclamação.»
4. Igualmente notificada da reclamação, o recorrido Instituto de Gestão
Financeira da Segurança Social deixou expirar o prazo sem que viesse aos autos
pronunciar-se sobre o teor da reclamação.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Importa notar que o reclamante alicerça toda a sua construção argumentativa
na tese de que seria completamente imprevisível que a decisão recorrida
aplicasse o artigo 380º do CPP, de tal modo que não permitisse a aplicação do
artigo 669º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, por via do artigo 4º do CPP, por,
no caso em apreço, se tratar de “quando estivermos perante uma situação de
condenação em pena de prisão, alicerçada num “Erro grave de julgamento”, não
permitindo que se aprecie devidamente essa “decisão errada de condenação”.
Ora, a falibilidade desta argumentação assenta, desde logo, na circunstância de
a decisão recorrida nunca ter afirmado que houve “erro grave de julgamento” pelo
tribunal de primeira instância. Tal constituiria, aliás, fundamento adicional
para que o Tribunal Constitucional não pudesse conhecer do objecto do recurso
interposto, na medida em que o artigo 79º-C da LTC apenas permite que este
Tribunal conheça questões respeitantes a normas que tenham sido alvo de
aplicação efectiva pelos tribunais recorridos.
Mas, independentemente desta questão, não subsistem quaisquer dúvidas de que o
reclamante estava obrigado a antecipar a possibilidade de aplicação daquela
interpretação normativa, no sentido de que não fosse admitida a aplicação do
artigo 669º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, por via do artigo 4º do CPP. Nenhum
dos argumentos esgrimidos pelo reclamante afasta tal conclusão.
A invocação de “erro grave de julgamento” sempre conduziria à impossibilidade de
aplicação do artigo 380º do CPP, na medida em que tal (alegado) vício
configuraria uma modificação substancial do acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação e, como tal, não daria lugar a uma mera correcção da sentença por aquela
conter “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não comporte
modificação essencial” [artigo 380º, n.º 1, alínea b), do CPP]. Como tal,
pré-existindo doutrina e jurisprudência no sentido da inaplicabilidade das
regras processuais civis aos acórdãos proferidos em processo penal, seria no
referido requerimento de correcção que o ora reclamante deveria ter colocado a
referida questão de inconstitucionalidade normativa. Reitera-se, integralmente,
a mais extensa fundamentação da decisão reclamada quanto à previsibilidade da
aplicação da interpretação normativa reputada de inconstitucional nos presentes
autos.
Por último, quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 379º do CPP – que
enumera as causas de nulidade de sentenças e acórdãos penais – mal se compreende
a sua invocação, na medida em que o tribunal recorrido nunca aplicou
efectivamente aquele preceito legal. Com efeito, o ora reclamante apenas
apresentou um requerimento de “correcção, aclaração e reforma” (sic, a fls.
1602), pelo que o tribunal recorrido nunca foi confrontado com a necessidade de
aplicação directa da norma extraída do referido artigo 379º do CPC. Assim sendo,
e reiterando o já supra afirmado, sempre seria inadmissível conhecer de tal
questão de inconstitucionalidade, na medida em que tal norma não foi alvo de
aplicação efectiva por parte do tribunal recorrido (artigo 79º-C, da LTC).
Em síntese, não subsiste qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 4 de Março de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão