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Processo n.º 862/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
( Conselheiro Vítor Gomes)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? Relatório
1. Na presente acção de anulação de cláusula de convenção colectiva de trabalho
que A. intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, contra a Liga Portuguesa de
Futebol Profissional, o autor, tendo ficado vencido na decisão de primeira
instância, interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça,
suscitando a inconstitucionalidade material do art. 52.º, n.º 1, da referida
convenção colectiva por violação dos direitos constitucionais à escolha de
profissão e ao trabalho.
Por acórdão de 7 de Março de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça declarou a
nulidade do artigo 52.º, n.º 1, da convenção colectiva com fundamento na sua
inconstitucionalidade orgânica decorrente da violação da reserva absoluta da
competência legislativa da Assembleia da República.
A Liga Portuguesa de Futebol Profissional arguiu a nulidade processual da
decisão por considerar que não foi ouvida previamente quanto à solução jurídica
do caso, que não tinha sido objecto de discussão entre as partes no decurso do
processo.
Por acórdão de 12 de Julho de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a
arguição, dizendo no essencial o seguinte:
Como decorre do excerto transcrito, o acórdão julgou nulo o art.º 52.º, n.º 1,
do CCT, com o fundamento de que o mesmo estabelecia uma restrição à liberdade de
exercício da profissão que o art.º 47º, n.º 1, da lei fundamental não permite, a
não ser através de lei da Assembleia da República ou através de lei do Governo,
quando previamente autorizado pela Assembleia, o que vale por dizer que
considerou o art.º 52.º. n.º 1, do CCT ferido de inconstitucionalidade orgânica.
Acontece, porém, que, ao contrário do que defende a recorrida, a questão da
inconstitucionalidade suscitada pelo autor não era restrita à
inconstitucionalidade material da norma em causa, pois, como já foi referido, o
autor limitou-se a alegar que a norma violava o disposto nos artigos 47.º, n.º 1
e 58.º, n.º 1, da CRP.
Ora e como é sabido, a violação dos preceitos constitucionais tanto pode
decorrer de inconstitucionalidade material (quando é ofendida uma norma
constitucional de fundo), como de inconstitucionalidade orgânica (quanto se
trata de norma de competência) ou de inconstitucionalidade formal (quando se
atinge uma norma que diz respeito à forma ou ao processo de formação das leis).
No caso em apreço, o autor não invocou nenhum daqueles vícios em particular e,
sendo assim, entendemos que a questão por ele suscitada era susceptível de
abarcar aquelas três vertentes da inconstitucionalidade.
Concluindo, diremos que não houve decisão-surpresa e que, por isso, não havia
necessidade de convidar a recorrida para exercer o contraditório, antes da
prolação do acórdão, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das
inconstitucionalidades invocadas pela recorrida no que toca à interpretação do
art.º 201.º, n.º 1, do CPC.
A Liga Portuguesa de Futebol Profissional interpôs então recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da
LTC, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do artigo 202°,
in fine, do artigo 205.° n.° 1, e do ainda do complexo normativo formado pelos
artigos 3.° e 201º, n.° 1, todos do CPC.
Por despacho do então relator, o âmbito do recurso de constitucionalidade foi
restringido à apreciação de uma dessas questões, que se encontra assim
identificada:
Inconstitucionalidade do complexo normativo formado pelos artigos 3.º e 201.º, n.º
1, do CPC, na interpretação segundo a qual não constitui nulidade processual por
violação de formalidade essencial a omissão de convite para exercício do
contraditório quando o tribunal decide julgar organicamente inconstitucional uma
norma constante de uma convenção colectiva de trabalho, quando a discussão nos
autos (e, em especial, o objecto do recurso de revista tal como ele fora
delimitado pelas conclusões das alegações) se limite à arguição da
inconstitucionalidade material dessa mesma norma convencional, por violação do
direito fundamental a uma tutela judicial efectiva e a um processo equitativo (art.
20.º, n.°s 1 e 4, da CRP).
Prosseguindo o processo, a recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
?1ª O princípio do contraditório constitui uma manifestação do direito
fundamental à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 1, da CRP) e do
direito fundamental a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP).
2ª A dimensão constitucional do princípio do contraditório posterga que nenhuma
questão pode ser judicialmente decidida, ainda que se trate de questão do
conhecimento oficioso do tribunal, sem que seja dada às partes a oportunidade
processual de sobre ela se pronunciarem.
3ª Os referidos direitos fundamentais a um processo equitativo e à tutela
jurisdicional efectiva impõem que, como garantia do princípio do contraditório,
a inobservância deste se projecte no concomitante desvalor jurídico dos actos
processuais afectados pela violação daquele princípio ou a que esta tenha dado
causa.
4ª As questões de inconstitucionalidade de normas jurídicas, mesmo as de fonte
convencional, são delimitadas, no que ao caso presente interessa, por dois
elementos essenciais: i) A concreta norma (ou interpretação normativa) julgada
inconstitucional ou cuja inconstitucionalidade foi arguida no processo; e ii) As
normas ou os princípios constitucionais paramétricos e que servem de fundamento
ao juízo de inconstitucionalidade ou à arguição desta.
5ª Desse modo, cada binómio ?norma aplica(n)da norma constitucional violada?
constitui uma diferente ?questão de constitucionalidade.?
6ª A invocação, mesmo oficiosamente pelo tribunal (art. 204.º da CRP), da
inconstitucionalidade de uma mesma norma jurídica por violação de diferentes
normas ou princípios constitucionais, constitui a invocação de uma nova ?questão
de inconstitucionalidade? normativa, relativamente à qual se deve assegurar a
observância do princípio do contraditório.
7ª Consequentemente, a interpretação do complexo normativo formado pelo art. 3.º
do CPC e pelo art. 201.º, n.º 1, do CPC, segundo a qual omissão de convite para
exercício do contraditório quando o tribunal decide julgar organicamente
inconstitucional uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho ?
quando a discussão nos autos (e em especial o objecto do recurso de revista, tal
como ele havia sido delimitado pelas conclusões das alegações) se limite à
arguição da inconstitucionalidade material dessa mesma norma convencional ? não
dá causa a uma nulidade processual, é uma interpretação materialmente
inconstitucional por violação dos direitos fundamentais a uma tutela
jurisdicional efectiva e a um processo equitativo (art. 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP).
O recorrido não apresentou contra-alegações.
II - Fundamentação
2. Tendo-se consolidado o despacho liminar do relator na parte em que rejeitou
parcialmente o recurso, em causa está apenas a apreciação de constitucionalidade
da norma extraída dos artigos 3.º e 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil,
na interpretação segundo a qual, num processo em que a discussão até então
travada se tenha limitado à invalidade de uma cláusula de uma convenção
colectiva de trabalho por inconstitucionalidade material (por violação do
disposto nos artigos 47.º, n.º1 e 58.º, n.º1 da CRP), as partes não tem de ser
ouvidas antes de o tribunal julgar nula a mesma cláusula por
inconstitucionalidade orgânica (por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b)
da CRP).
Sustenta-se, no acórdão que julgou improcedente a arguição de nulidade, que não
se justificava a audição prévia das partes antes de se decidir pela
inconstitucionalidade orgânica, porquanto a questão a decidir (que se não
confunde com os seus fundamentos) era, sempre e só, a de inconstitucionalidade
de uma dada cláusula e que nesta questão se compreendem todos os possíveis
vícios de inconstitucionalidade porque o tribunal, que não pode aplicar normas
inconstitucionais (artigo 204.º da CRP), pode decidir com fundamento distinto
daquele sobre que versou a argumentação e contra-argumentação das partes.
A recorrente critica esta orientação alegando que o princípio do contraditório
constitui uma manifestação do direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º,
n.º 1, da CRP) e do direito a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP).
Que a dimensão constitucional do princípio do contraditório proíbe que qualquer
questão seja judicialmente decidida, ainda que se trate de questão do
conhecimento oficioso, sem que às partes seja dada oportunidade processual de se
pronunciarem sobre essa precisa questão. Que a inconstitucionalidade orgânica é
uma questão autónoma e independente daquela que estava suscitada no processo. E
que os referidos direitos fundamentais a um processo equitativo e à tutela
jurisdicional efectiva impõem que, como garantia do princípio do contraditório,
a inobservância deste se projecte no concomitante desvalor jurídico dos actos
processuais afectados pela violação daquele princípio ou a que esta tenha dado
causa (nulidade processual).
É o que cumpre apreciar.
3. O artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente
que esse direito se efective ? na conformação normativa pelo legislador e na
concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo (n.º
4).
Para o processo civil, a jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o
conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios:
(1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo
proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da
indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade
de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas,
controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se
sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de
acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos;
(4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo
razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7)
direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª
ed., pág. 415).
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso
aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a
que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de
imparcialidade e independência, mediante o correcto funcionamento das regras do
contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 11º, pág. 741). Como concretização prática do princípio do
processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao
contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida
a cada uma das partes de ?deduzir as suas razões (de facto e de direito)?, de ?oferecer
as suas provas?, de ?controlar as provas do adversário? e de ?discretear sobre o
valor e resultados de umas e outras? (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).
Importa reter, no entanto, que o legislador dispõe de uma ampla margem de
liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar
os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes, incluindo o
próprio interesse de ambas as partes; em qualquer caso, à luz do princípio do
processo equitativo, os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente
adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da
proporcionalidade, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que
dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o
direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva (Lopes do
Rego, Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da
proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil,
in «Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra,
2003, pág. 839, e ainda os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 122/02 e 403/02).
O Código de Processo Civil consagra o princípio do contraditório, nos termos
tradicionalmente aceites, estipulando no seu artigo 3º que «o tribunal não pode
resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe
seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir
oposição» (n.º 1), e circunscrevendo a «casos excepcionais previstos na lei a
possibilidade de ser adoptada uma providência contra determinada pessoa sem que
esta seja previamente ouvida» (n.º 2). Com este alcance, o preceito do Código
reflecte a estrutura dialéctica e polémica do processo, visando assegurar um
direito de resposta a qualquer das partes quanto às posições assumidas no
processo pela contraparte e, portanto, em relação a qualquer acto processual (requerimento,
alegação ou acto probatório) apresentado pelo outro interveniente.
A reforma de 1996/1997, através do aditamento a esse artigo de um novo comando (n.º
3), acentuou a relevância concedida à garantia do contraditório no aspecto
relativo ao direito de resposta, impondo ao juiz o «dever de observar e fazer
cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório», com a
consequência de não lhe ser lícito, «salvo caso de manifesta desnecessidade,
decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem
que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Várias outras novas normas constituem uma concretização prática deste princípio,
como sejam as dos artigos 264º, n.º 3, 266º, n.º 2, 508º, n.º 4, 684º-B, n.º 4,
700º, n.º 3, 725º, n.º 2, e 787º do CPC, que contemplam expressamente um direito
de resposta em relação a diversas incidências processuais aí especialmente
previstas.
Neste sentido mais amplo, a regra do contraditório deixa de estar exclusivamente
associada ao direito de defesa, no sentido negativo de oposição à actuação
processual da contraparte, para passar a significar um direito de participação
efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade
de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da
causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes
para a decisão (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, págs. 96-97).
Podendo considerar-se consagrada nos sobreditos termos, no plano
infraconstitucional, uma acepção ampla da garantia do contraditório que vai além
do mero direito de contraditar as razões de facto e de direito e as provas
oferecidas pela parte contrária, é, no entanto, discutível que essa seja uma
imposição constitucional decorrente do due process of law. Como se deixou
exposto, a exigência de um processo equitativo, constante do artigo 20º, n.º 4,
da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta
estruturação do processo e apenas impõe, no seu núcleo essencial, que as normas
processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na
dialéctica que elas protagonizam no processo (Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, 2005, pág. 192, e acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 632/99). Um processo equitativo postula, por
conseguinte, a efectividade do direito de defesa por aplicação das garantias do
contraditório e da igualdade de armas, mas não necessariamente um direito de
participação activa no processo em termos tais que qualquer solução que venha a
ser adoptada pelo juiz deva ter sido antes debatida pelas partes em todos os
seus possíveis contornos jurídicos ou se torne sempre numa solução previsível
por dever ter sido necessariamente equacionada pelos sujeitos processuais.
Em qualquer caso, não pode deixar de reconhecer-se que a regra decorrente do
citado artigo 3º, n.º 3, que integra um princípio de proibição da decisão
surpresa, tem uma função essencialmente programática, conferindo ao juiz, fora
dos casos em que a audição da contraparte esteja expressamente prevista, o dever
de verificar, em função das circunstâncias do caso, a conveniência de as partes
se pronunciarem sobre qualquer questão de direito ou de facto que possa ter
relevo para a apreciação e resolução da causa (quanto ao carácter programático
da imposição constante do artigo 3º, n.º 3, 1ª parte, do CPC, Teixeira de Sousa,
Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pág. 48).
Por outro lado, é preciso notar que o julgador mantém a sua liberdade de
qualificação jurídica dos factos (artigo 664.º do CPC) e conserva os seus
poderes de direcção do processo - aqui se incluindo o dever de prévia audição
das partes sobre matéria tida como pertinente (artigo 265º do CPC) -, pelo que
só quando se conjecture uma nova questão de direito ou um diferente
enquadramento jurídico com que as partes não pudessem razoavelmente contar é que
poderia configurar-se com nitidez uma violação do princípio da proibição da
decisão surpresa que pudesse ter relevância no plano jurídico-constitucional (sobre
este aspecto, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra,
1999, págs. 24-25).
Tratando-se, além disso, de uma audição excepcional e complementar das partes,
realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos, e que decorre da
aplicação de um princípio geral, cabe ao julgador verificar, em cada caso, a
existência dos respectivos pressupostos processuais, mormente quanto à
caracterização da questão como susceptível de se repercutir, de forma relevante
e inovatória, no conteúdo da decisão.
Em todo este condicionalismo, a entender-se que está ainda em causa, na
aplicação da norma do artigo 3º, n.º 3, do CPC, o princípio do processo
equitativo, na vertente de garantia do contraditório, só nos casos em que o
tribunal tivesse postergado claramente o critério legal, preterindo, sem
justificação, o direito de audição quando este fosse evidentemente exigível, é
que poderia considerar-se a interpretação normativa como afectada de
inconstitucionalidade
No caso concreto, o tribunal recorrido justificou a não audição da contraparte
com o argumento de que a questão suscitada pelo autor, nos termos em que foi
apresentada, era susceptível de abarcar qualquer dos possíveis vícios de
inconstitucionalidade, tornando desnecessário o convite à ré para exercer o
contraditório, antes da prolação do acórdão, relativamente à solução jurídica
que veio a ser adoptada.
Deste modo, não omitiu a formalidade processual prevista no artigo 3º, n.º 3, do
CPC, mas antes afastou a necessidade do seu cumprimento por entender não estar
em causa questão de direito que não pudesse ter sido oportunamente equacionada
pelas partes.
Não havendo entendimento pacífico quanto a saber se existe identidade de questão
de direito quando se invocam em relação a uma mesma norma diferentes fundamentos
de inconstitucionalidade, mesmo no âmbito da jurisprudência constitucional (cfr.
as posições divergentes nos acórdãos n.ºs 424/2007 e 564/2007, e Isabel
Alexandre, A norma constitucional violada e o objecto do recurso de
constitucionalidade, in «Jurisprudência Constitucional», n.º 6, pág. 28 e segs.),
a posição adoptada pelo tribunal recorrido, no caso vertente, apresenta-se como
das soluções plausíveis de direito, sendo certo que não cabe ao Tribunal
Constitucional sobrepor o seu juízo ao do tribunal recorrido para efeito de
verificar se ocorria uma situação processual que justificasse a audição da parte,
em cumprimento do disposto no artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Não há, por isso, motivo para censurar a decisão recorrida.
III. Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Ana Maria Guerra Martins (vencida, no essencial, nos termos da
declaração do Exmo. Senhor Conselheiro Vítor Gomes)
Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa)
Gil Galvão (votei a decisão por entender, no essencial, que, no caso, estando
sempre em discussão a alegada violação de um direito, liberdade ou garantia, não
constitui surpresa, para efeitos do princípio do contraditório, uma decisão com
fundamento na reserva que à Assembleia da República cabe naquelas matérias).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, mas fi-lo, fundamentalmente, pelos motivos seguintes:
É para mim claro ? ao contrário do que se diz no Acórdão, que refere a este
propósito a inexistência de um ?entendimento pacífico? ? que há identidade da
questão de direito, quando se invocam, a propósito do juízo relativo a uma norma
infraconstitucional, diferentes normas ou ?parâmetros? constitucionais. A
questão de constitucionalidade é una, não variando, na sua essência e na sua
natureza, consoante se invoque este ou aquele preceito da Constituição. Não
existem tantas questões de constitucionalidade ? entendidas como outras tantas e
diferentes ?questões de direito? ? quantas as normas eventualmente decorrentes
do texto constitucional. O princípio da unidade da Constituição impede que assim
seja. Nem tão pouco me parece que possa existir uma divisão cerce, e
ineliminável, entre a chamada ?parte dogmática? da Constituição ? que consagra
princípios ordenadores do Estado e da Sociedade, bem como normas de direitos
fundamentais ? e a sua ?parte orgânica?, que define as competências dos órgãos
de poder, as formas dos seus actos ou os seus procedimentos. Em última análise,
as normas de direitos fundamentais só poderão vir a ser cumpridas se cumpridas
forem, também, as normas de organização, competência e procedimentos; as duas
partes da Constituição estão estritamente interligadas, justamente porque não
podem deixar de ser vistas como elementos de um sistema, dotado de unidade de
sentido.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Concederia provimento ao recurso, nos termos do projecto que apresentei,
essencialmente pelo seguinte:
1. Dentro do objecto do processo, a inconstitucionalidade é, em qualquer das
suas modalidades, seja qual for o elemento do acto normativo desconforme a
normas e princípios constitucionais uma quaestio juris de conhecimento oficioso
e o juiz não está adstrito aos fundamentos ou parâmetros invocados pelas partes
(artigo 204.º da CRP).
Todavia, nem a oficiosidade nem o princípio jus novit curia justificam que as
questões de constitucionalidade sejam decididas sem que as partes tenham
efectiva possibilidade de contribuir para a formação da decisão do tribunal. A
mais do contraditório stricto sensu, o processo justo e leal exige a
participação dos interessados tanto nos aspectos de facto como de direito, não
podendo a descoberta dos fundamentos jurídicos da decisão resultar de um
solilóquio do juiz. O direito de influir no desenvolvimento da controvérsia e no
conteúdo da decisão seria intoleravelmente comprimido se, posta em causa a
constitucionalidade de uma dada norma, o juiz pudesse decidir pela
inconstitucionalidade com qualquer outro fundamento, mesmo que estranho ao tipo
de inconstitucionalidade invocada.
Objectar-se-á que isto comporta o risco de uma cadeia interminável de
intervenções. Mas sem razão. Não se trata de impor ao juiz que sistematicamente
comunique às partes a própria orientação e valoração do caso previamente à
decisão [mas já assim se pensou; cfr. Nicolò Trocker, Processo Civile e
Costituzione, pag. 757] ou de um dever de auscultação das partes perante a
mínima variação dos pressupostos normativos da decisão projectada face ao
discutido, mas de colocá-las em condições de influir no processo decisório,
chamando-as a pronunciar-se sobre aspectos jurídicos anteriormente não debatidos
e que não possam considerar-se abrangidos pelo princípio da auto-responsabilidade
processual no círculo da diligência razoavelmente exigível, tomando como padrão
de justa previsão e actuação um operador judiciário normalmente informado do
estado da questão na doutrina e da jurisprudência.
A esta luz, afigura-se incompatível com a garantia do processo equitativo o
entendimento de que, posta em crise no processo a conformidade constitucional de
uma dada norma, o tribunal fica ipso facto habilitado a poder decidir pela
inconstitucionalidade com qualquer outro fundamento, sem necessidade de ouvir as
partes.
Aceita-se que, em geral, dentro do mesmo tipo de inconstitucionalidade, não
afronta a garantia constitucional do processo equitativo que o tribunal convoque,
para a decisão de desaplicação da mesma norma, parâmetros de constitucionalidade
diversos daqueles que foram anteriormente analisados. O elemento da norma ou do
acto normativo sobre que vai incidir o juízo de desvalia constitucional é o
mesmo, pelo que, nessa hipótese, as exigências de praticabilidade e eficiência
do funcionamento dos tribunais e de celeridade processual podem justificar que
se imponha às partes o ónus de analisar espontaneamente as alternativas
decisórias razoavelmente implicadas.
Incidindo, porém, o vício novo, oficiosamente detectado, sobre um elemento da
norma (ou do acto normativo) sobre que não tenha recaído ou devido recair a
pronúncia das partes agindo com normal diligência, não pode a decisão de
inconstitucionalidade ser proferida sem a sua oportuna audição a convite do juiz.
Será excessivo exigir à parte que proceda a um escrutínio da validade da norma
sob todos os aspectos constitucionalmente relevantes e se defenda
antecipadamente de vícios que possa conjecturar-se afectarem um elemento do acto
normativo diverso daquele a cujas condições de validade respeitam as normas
constitucionais invocadas.
Saber o que é uma questão para efeitos processuais é problema que não pode
abstrair da específica intencionalidade normativa, isto é, do fim e do contexto
em que o conceito é utilizado. A suposta unidade da questão de
constitucionalidade não é instrumento adequado para responder ao problema
prático-jurídico que consiste em aferir se o processo é justo e leal e, para
isso, de estabelecer o âmbito do dever de justa previsão das soluções possíveis
a cargo das partes. Pode ser explicação consistente para a relação entre o ónus
de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo e o âmbito do recurso de
constitucionalidade, porque aí é outro o contexto problemático em que o conceito
releva. Trata-se de provocar o tribunal a exercer o seu poder/dever de não
aplicar normas inconstitucionais, sendo desrazoável que, depois, o Tribunal
Constitucional viesse a ficar limitado, nos aspectos jurídico?constitucionais,
pelos termos da alegação perante o tribunal da causa. Mas isso não justifica,
nas relações entre as partes e o tribunal, que aquelas devam suportar um
ilimitado ónus de escrutínio ou antecipação de qualquer outro vício de
inconstitucionalidade.
Deste modo, entendo poder concluir-se que viola a garantia do processo
equitativo consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição a interpretação do
n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil no sentido de que as partes não
tem de ser ouvidas antes de o tribunal julgar verificada a desconformidade de
uma determinada norma com parâmetros constitucionais diferentes daqueles com que
anteriormente se confrontaram e que conduza à procedência de um vício de
inconstitucionalidade diverso daquele que resultaria das normas e princípios
constitucionais sobre os quais se pronunciaram ou puderam pronunciar-se, isto é,
que afecte um elemento da norma ou um requisito do acto normativo a que não
respeitassem os parâmetros constitucionais sobre que recaiu o debate.
2. No caso, é indiscutível que a questão da inconstitucionalidade orgânica, de
que resultou a procedência do recurso e a declaração de nulidade do n.º 1 do
artigo 52.º do CCT em causa, não foi suscitada pelas partes nem apreciada
oficiosamente pelo tribunal de 1.ª instância. Tal questão foi levantada,
apreciada e decidida pela primeira vez no acórdão que julgou a revista.
A ratio decidendi assentou, pois, numa (na resposta a uma) questão jurídica de
conhecimento oficioso que é nova, relativamente aos termos da discussão travada
nas alegações. Até aí discutira-se se aquele conteúdo da cláusula do CCT era
atentatório, por si mesmo, das garantias constitucionais de liberdade de escolha
de profissão e do direito ao trabalho. Imputava-se à cláusula uma
inconstitucionalidade material (artigos 47.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1, da CRP). O
acórdão que julgou a revista, embora movendo-se no âmbito da validade da mesma
cláusula, veio a decidir com um fundamento constitucional que conduz a um outro
tipo de inconstitucionalidade: aquele conteúdo só poderia constar de lei da
Assembleia da República ou de decreto-lei autorizado (alínea b) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP).
É certo que, no caso, o juízo de inconstitucionalidade que o tribunal da causa
formulou não surge a título incidental, conduzindo à desaplicação de uma norma
jurídica a um caso que, de outro modo, deveria ser regulado por essa norma [Sem
curar aqui da controvérsia acerca da natureza das cláusulas de instrumento de
regulamentação colectiva de trabalho para efeitos de controlo de
constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional]. Surge a título
principal porque a verificação da desarmonia com a Constituição é o próprio
fundamento (um dos fundamentos) do pedido, uma vez que a decisão foi proferida
num processo especial de anulação de cláusulas de convenções colectivas de
trabalho, nos termos dos artigos 184.º e seguintes do Código de Processo de
Trabalho. Mas isso não invalida, antes realça, o que se disse sobre ter sido
apreciada uma causa de inconstitucionalidade de tipo diverso daquela sobre que
incidira a discussão das partes e sobre a violação que tal modo de proceder
implica ao direito a um processo equitativo.
Vítor Gomes