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Processo n.º 685/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Relatório
1. Nos Juízos Cíveis do Porto foi, em 26 de Novembro de 2008, proferido despacho
no qual o juiz concluiu da seguinte forma:
[...] Na sequência do exposto:
a) recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por infracção
do disposto nos arts. 112.º, n.º 2 e 165, al. p) da Constituição da República
Portuguesa, da norma contida no artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13/09,
com a interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima
referidos e, consequentemente,
b) julga-se aplicável à presente acção a forma de processo comum ordinário, por
força do disposto nos arts 461 e 462 do Código de Processo Civil determina-se,
em conformidade, que a presente acção passe a prosseguir os seus termos sob a
referida forma de processo.
Notifique.
Atendendo a que a Portaria n.º 955/2006, de 13/09, não consubstancia um acto
legislativo nem um decreto regulamentar, não é a presente decisão de recurso
obrigatório pelo Ministério Público (cfr. art. 280.º, n.º 3 da C.R.P. e art. 258.º
do C.P.C.).
Não obstante, notifique o Ministério Público.
Notificado, o representante do Ministério Público naquele tribunal formulou, no
processo, a seguinte pretensão:
O Ministério Público nesta comarca, notificado da decisão de fls. 74 a 77, que
recusa a aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro,
na interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto (segundo a qual os
Juízos Cíveis do Porto são competentes para apreciação de acção declarativa,
proposta segundo o regime processual civil experimental, instituído pelo DL. 108/2008,
de 8 de Junho, quando o valor exceda a alçada do Tribunal da Relação e não tiver
sido requerida a intervenção de tribunal colectivo) com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica, por violação do art.ºs 112.º, n.º 2 e 165.º,
alínea p), da CRP e que determinou que os presentes autos prosseguissem a forma
de processo comum ordinário, por força do disposto nos art.ºs 461.º e 462.º do
CPC, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional da referida decisão
para apreciação da declarada inconstitucionalidade, nos termos dos art.ºs 280.º
n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa e do art. 70.º, n.º l,
alínea a), da Lei sobre a Organização Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis n.º 143/85
de 26/11; 85/89 de 7/9 ; 88/95 de 1/9 e 13-A/98 de 26/2); e dos art.ºs 71º, n.º
1; 72.º, n.º l, alínea a) e; 74.º, n.º 1; 75.º, n.º 1, e 75-A, n.º l, do mesmo
diploma legal.
O presente recurso tem subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente
devolutivo (art. 78.º, n.º 2, da mencionada Lei, com referência ao art. 691º, n.º
1, 691-A, n.º 1, alínea a) e 692.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo
as alegações produzidas no Tribunal Constitucional, nos termos do art. 79.º, n.º
l, da referida lei Orgânica.
Em 15 de Janeiro de 2009, antes de apreciar este requerimento, o juiz proferiu
sentença homologatória da transacção entretanto negociada entre as partes, «condenando
e absolvendo autora e réu nos precisos termos em que transigiram e declarando
extinto o direito que o réu/reconvinte pretendia fazer valer.»
A sentença transitou em julgado. Em 22 de Junho de 2009, o juiz proferiu o
seguinte despacho:
Atendendo a que a decisão proferida em 15/01/2009 já transitou em julgado, julga-se
desnecessário iniciar a instância de recurso para o Tribunal Constitucional,
pelo que se considera prejudicada a apreciação do requerimento de interposição
de recurso apresentado pelo Ministério Público em 03/12/2008. Notifique.
Inconformado, o representante do Ministério Público naquele tribunal reclamou
nos seguintes termos:
O Ministério Público nesta comarca, inconformado com o despacho datado de 22/06/2009,
proferida a fls. 104, nos autos à margem referenciados, o qual considera
desnecessário iniciar a instância de recurso para o Tribunal Constitucional,
considerando prejudicada a apreciação do requerimento de interposição de recurso,
apresentado pelo Ministério Público em 3/12/2008, vem nos termos do art. 76.º, n.º
4, da Lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LOFPTC
- Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis n.º 143/85, de 26/11; 85/89,
de 7/9; 88/95, de 1/9 e 13-A/98, de 26/2) e 688.º, n.º 1 e 3, do CPC, por
remissão do art. 69.º da LOFPTC, reclamar para o Tribunal Constitucional, o que
faz nos termos e pelos fundamentos seguintes:
A) Os factos
1) Em 17/11/2008, a Mm.ª Juiz proferiu decisão na qual recusa a aplicação do
artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a interpretação
defendida pelo Tribunal da Relação do Porto - segundo a qual compete aos Juízos
Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do
regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 1 08/2006,
de 8 de Junho, quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação,
e não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo ?, com fundamento
em inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 112.º, n.º 2 e 165.º, alínea p),
da CRP.
2) O Ministério Público foi notificado de tal decisão em 2/12/2008.
3) Em 3/12/2008 o Ministério Público interpôs recurso da decisão referida em 1)
para o Tribunal Constitucional.
4) Em 17/12/2008 as partes apresentaram requerimento com termo de transacção
solicitando à Mm.ª Juiz a sua homologação.
5) Em 15/01/2009 a Mm.ª Juiz homologou a referida transacção.
6) Em 22/06/2009 a Mm.ª Juiz, com fundamento no trânsito em julgado da decisão
proferida em 15/01/2009, considerou desnecessário iniciar a instância de recurso
para o Tribunal Constitucional, e consequentemente considerou prejudicada a
apreciação do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo
Ministério Público em 3/12/2008.
Tal decisão equivale a não admissão do recurso interposto pelo Ministério
Público para o Tribunal Constitucional.
B) O Direito
O Requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, apenas
pode (deve) ser indeferido nos termos previstos na lei, ou seja: ?deve ser
indeferido quando não satisfaça os requisitos do art. 75.º -A, mesmo após o seu
suprimento previsto no seu n.º 5 quando a decisão o não admita, quando o recurso
haja sido interposto fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade
ou ainda, no caso de recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do art. 70.º,
quando forem manifestamente infundados.? ? art.º 76.º, n.º 2, da LOFPTC.
Ora, no recurso em questão não se verifica nenhuma dessas situações.
A Mm.ª Juiz, não obstante ter declarado a inconstitucionalidade do artigo único
da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a interpretação defendida pelo
Tribunal da Relação do Porto ? segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto
preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual
civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho,
quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação, e não tenha
sido requerida a intervenção do tribunal colectivo ?, procedeu à homologação da
transacção.
Não podemos deixar de registar a incoerência de tal posição.
A Constituição atribui a qualquer tribunal competência para conhecer e decidir
se qualquer norma infringe o disposto na constituição ou os princípios nela
consagrados ? art.ºs 204.º e 277.º da CRP.
Destarte, através do mecanismo da fiscalização concreta da constitucionalidade,
consagrado no art. 280.º da CRP, qualquer tribunal por impugnação das partes, a
requerimento do Ministério Público (quando este intervenha no processo) ou
oficiosamente pode declarar a inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao
caso concreto.
Como refere Nuno Cunha Rolo in ?A fiscalização concreta em Portugal e o controlo
difuso da constitucionalidade em direito comparado: o sistema americano e o(s)
sistema(s) europeus, publicado em ?http:/www.verbojuridico.net?: ?A
inconstitucionalidade configura-se, assim, no processo, como uma espécie de
excepção de inconstitucionalidade.
Da decisão judicial cabe recurso, por via incidental (veja-se o art. 207.º ab
initio, CRP*) e cumpridos certos requisitos (art.º 280.º, C.R.P. e art. 69.º e
segs. da Lei do Tribunal Constitucional ? L.T.C. ?), para o Tribunal
Constitucional que, por sua vez, decidirá também em concreto. O TC poderá vir a
revogar a decisão do juiz a quo, incidindo sobre questões de
inconstitucionalidade.
Note-se que o objecto do recurso não é a decisão do tribunal a quo, mas a parte
da decisão em que esse Juiz recusou a aplicação de norma(s) por motivo de
inconstitucionalidade ou aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi impugnada.
(...)
Com a consagração constitucional do dever de recusa de aplicação de normas que
os tribunais julgam que infringem as normas e princípios constitucionais,
permite-se aos juízes que tenham acesso directo à Constituição; os juízes, em
geral, funcionam como verdadeiros intérpretes da Constituição, ainda que não
autênticos (no sentido técnico-jurídico). Este facto, que torna todos os
tribunais órgãos de justiça constitucional (...)
Trata-se, porém, como assinala a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de
uma competência vinculada, ou seja, «os tribunais ordinários só podem decidir as
questões de constitucionalidade que tenham por objecto as normas jurídicas que
forem aplicáveis ao caso concreto, submetido a julgamento» (Monteiro Diniz)?.
A decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado intra-processual ? art.º
80.º, n.º 1, LOFTC:
?1. A decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da
inconstitucionalidade ou ilegalidade suscitada.
2. Se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só
parcialmente, os autos baixam ao tribunal de onde provieram, a fim de que este,
consoante for o caso, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com
o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade.?
No entanto, não se pode dizer que o recurso perdeu a sua eficácia útil.
Se não houver outro fundamento, sempre se pode argumentar que compete ao
Tribunal Constitucional apreciar e declarar com força obrigatória geral a
inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por
ele julgada inconstitucional ou ilegal em 3 casos concretos ? art.º 281.º, n.º 3,
da CRP.
Nesta medida, estabelece o art. 82.º da Lei de Organização e Funcionamento do
Tribunal Constitucional que: ?Sempre que a mesma norma tiver sido julgada
inconstitucional ou ilegal em 3 casos concretos, pode o Tribunal Constitucional,
por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a
organização de um processo com cópias das correspondentes decisões, o qual é
concluso ao presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização
abstracta sucessiva da constitucionalidade ou ilegalidade previstos na lei.?
Assim, poderá o recurso em causa contribuir para a passagem da fiscalização
concreta para o controlo abstracto da constitucionalidade, o que por si só é
razão suficiente para a sua admissão.
Nestes termos, e nos melhores de direito, deverão V. Excelências admitir o
recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional.
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional lançou, no
processo, o seguinte parecer:
1. No 1.º Juízo Cível do Porto, a Senhora Juíza recusou aplicar, com fundamento
em inconstitucionalidade orgânica, a norma do artigo único da Portaria nº 955/2006,
de 13 de Setembro, na interpretação segundo a qual os juízos Cíveis do Porto
seriam competentes para apreciação de acção declarativa, proposta segundo o
regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei nº 108/2008,
de 8 de Junho, quando o valor excedesse a alçada da Relação e não tivesse sido
requerida a intervenção do Tribunal Colectivo.
2. Desta decisão, o Ministério Público, em 3 de Dezembro de 2008, interpôs
recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
3. Posteriormente, em 15 de Janeiro de 2009, foi, pela Senhora Juíza, homologada
a transacção e a desistência do pedido reconvencional, tendo essa decisão
transitado em julgado.
4. A mesma magistrada, em 22 de Junho de 2009, face à decisão homologatória
transitada, julgou desnecessário iniciar-se a instância de recurso para o
Tribunal Constitucional, considerando prejudicada a apreciação do requerimento
de interposição do recurso para aquele Tribunal.
5. É desta decisão que o Ministério Público reclama para o Tribunal
Constitucional.
Nessa reclamação, regista-se a incoerência que se traduz no facto de a Senhora
Juíza, que ?declarou? a inconstitucionalidade, homologar, posteriormente, a
transacção.
Por outro lado, também se sustenta a utilidade no conhecimento do recurso,
porque, sendo uma norma julgada inconstitucional em três casos concretos,
poderia estar aberta a via para o controlo abstracto de inconstitucionalidade.
6. O Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme, tem sublinhado o
carácter instrumental do recurso de constitucionalidade. Ou seja, em
fiscalização concreta de constitucionalidade, só deverá conhecer-se do recurso,
se a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional for susceptível de levar à
alteração da decisão recorrida, ainda que essa alteração possa ocorrer mais ou
menos directamente, ou mais ou menos remotamente.
Este entendimento é aplicável aos recursos obrigatórios interpostos pelo
Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70.º da LTC (cfr.
nesse sentido, v.g. o Acórdão nº 507/2008).
7. Face a esta uniforme corrente jurisprudencial, parece-nos que, tendo havido
uma decisão homologatória de transacção, que transitou em julgado, a decisão a
proferir pelo Tribunal Constitucional, em nada se reflectiria na decisão que
recusou a aplicação da norma, porque se interpõe um obstáculo intransponível: a
posterior e transitada decisão homologatória.
8. A Senhora Juíza que, em consequência do julgamento de inconstitucionalidade,
julgou aplicável à acção a forma de processo comum ordinário, posteriormente
homologou a transacção neste processo. Por isso, compreendemos que a Senhora
Procuradora-Adjunta fale em incoerência.
No entanto, haverá que ter em atenção dois aspectos: por um lado, essa decisão
não estava consolidada, porque o Ministério Público interpôs recurso para o
Tribunal Constitucional; por outro, a eventual incoerência não poderá prevalecer
sobre o trânsito da decisão posteriormente proferida.
9. Embora o conhecimento do recurso possa ter-se por processualmente inútil, o
conhecimento da questão de constitucionalidade que vem suscitada, revela-se, a
outros níveis, de grande importância. Neste ponto, concordamos, por isso, com a
Senhora Procuradora-Adjunta.
Quanto a este aspecto, sublinha-se que, sobre a matéria versada nos presentes
autos, se encontram actualmente pendentes, no Tribunal Constitucional, quatro
processos.
10. Pelo exposto, entendo que a presente reclamação deverá ser indeferida, por
se revelar processualmente inútil.
Fundamentação
2. Conforme sublinha o representante do Ministério Público neste Tribunal, no
domínio da fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional tem entendido,
uniformemente, que não deve tomar conhecimento do recurso quando a decisão que
vier a proferir sobre a questão de inconstitucionalidade não puder ter algum
efeito prático concreto relativamente à questão de fundo tratada no processo. E,
isto, com fundamento na natureza instrumental da questão de
inconstitucionalidade, que conduz ao não conhecimento das situações
insusceptíveis de influenciar a resolução da questão que constitui o mérito da
demanda. Neste sentido podem indicar-se, a título de mero exemplo, os Acórdãos
275/95, 385/95, 114/99, 322/99, 591/2001, 47/2002, 69/2002, 354/05 e 425/06,
entre muitos outros, que podem ser consultados na página informática do Tribunal.
No presente caso, apura-se que a questão de fundo se mostra resolvida por
sentença homologatória de transacção, transitada em julgado, pelo que a
resolução da questão de inconstitucionalidade normativa suscitada no recurso não
terá influência concreta na questão de mérito, já definitivamente decidida.
Impõe-se, por isso, concluir, na sequência do referido entendimento
jurisprudencial, pela inutilidade do conhecimento do recurso interposto.
Decisão
3. Decide-se, em consequência, indeferir a reclamação.
Lisboa, 12 de Outubro de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão