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Processo n.º 618/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O Ministério Público recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (LTC), do despacho judicial proferido no Tribunal da Comarca da Caldas
da Rainha que não recebeu a acusação deduzida contra A., pela prática de um
crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo
artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, pedindo a apreciação da questão de
inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada cuja
aplicação ao caso concreto foi recusada, com fundamento na violação do n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição.
2. Apenas o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu do seguinte
modo:
?1. A norma do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, enquanto permite que
seja considerado o resultado da contraprova, ainda que revele uma taxa de álcool
no sangue superior ao exame inicial, não viola o artigo 32.º, n.º 1.
2. A mesma norma, enquanto impõe taxativa e automaticamente que deve ser o
resultado da contraprova a prevalecer, viola o princípio da livre apreciação da
prova, que se extrai dos artigos 2.º e 202.º da Constituição.
3. Termos em que, ainda que com fundamento diferente, deve negar-se provimento
ao recurso?.
3. O relator suscitou a hipótese de o recurso vir a ser decidido mediante a
apreciação da inconstitucionalidade orgânica da mesma norma, à semelhança do que
sucedeu no acórdão n.º 488/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Quer o Ministério Público, quer o arguido, manifestaram concordância com a
doutrina desse acórdão e com a solução do presente recurso em conformidade.
II ? Fundamentação
4. O artigo 153.º do Código da Estrada dispõe:
?Artigo 153.º
Fiscalização da condução sob influência de álcool
1 ? O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou
agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2 ? Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a
autoridade ou agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou,
se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele
decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e de
que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de
resultado positivo.
3 ? A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos
seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efectuar através do aparelho aprovado;
b) Análise de sangue.
4 ? No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o
examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a
local onde o referido exame possa ser efectuado.
5 ? Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser
conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a
fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6 ? O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial.
7 ? Quando se suspeite da utilização de meios susceptíveis de alterar
momentaneamente o resultado do exame, pode o agente de autoridade mandar
submeter o suspeito a exame médico.
8 ? Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar
expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou,
se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em
estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado de
álcool.?
O n.º 6 deste artigo 153.º ? que contém a norma cuja aplicação foi recusada e
agora submetida a apreciação ? resultou da alteração ao Código da Estrada
efectuada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, publicado no uso da
autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro.
Posteriormente, o regime constante deste artigo do Código da Estrada foi
complementado pelo denominado ?Regulamento de Fiscalização da Condução sob a
Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas?, aprovado pela Lei n.º 18/2007,
de 17 de Maio, o qual revogou o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro,
que dispunha sobre a mesma matéria. O artigo 1.º do referido Regulamento de 2007
dispõe que:
?Artigo 1.º
Detecção e quantificação da taxa de álcool
1 ? A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado,
efectuado em analisador qualitativo.
2 ? A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado,
efectuado em analisador quantitativo, ou por análise no sangue.
3 ? A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em
analisador quantitativo?.
De acordo com estas disposições legais, a quantificação da taxa de álcool no
sangue do condutor começa por ser realizada através de exame no ar expirado,
efectuado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de
aparelho aprovado para o efeito. Só quando não for possível proceder ao exame
através desse método é que o primeiro exame é levado a cabo através de análise
de sangue.
O condutor pode requerer contra-prova, que consistirá em novo teste em avaliador
quantitativo ou em exame ao sangue, conforme prefira. Seja um ou outro o método
da contra-prova, o seu resultado prevalece sobre o resultado do exame inicial,
quando este tenha consistido em teste no ar expirado.
5. No referido acórdão n.º 488/2009, apreciou-se a constitucionalidade da mesma
norma que constitui objecto do presente recurso, nos seguintes termos:
?5.2 ? Pois bem, a primeira questão que se coloca é a da constitucionalidade
orgânica da norma que está em causa, enquanto dispondo sobre o valor das provas
atendíveis em julgamento por crime de condução de veículo em estado de
embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.
A decisão recorrida não equacionou esta questão. Tal não impede, porém, que o
Tribunal Constitucional a enfrente e a resolva, dado estar apenas vinculado ao
pedido e não, já, aos fundamentos invocados, podendo fazê-lo com base na
violação de normas ou princípios constitucionais diversos dos alegados (art.º 79.º-C
da LTC).
É claro que a norma, nos termos em que se acha enunciada, tanto funciona ou
projecta os seus efeitos nas situações em que a condução sob a influência de
álcool se queda pela prática de uma contra-ordenação grave [artigo 145.º, n.º 1,
alínea l)] ou muito grave [artigo 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada],
como quando ela é susceptível de preencher o tipo penal recortado no artigo 292.º,
n.º 1, do Código Penal.
Mas tendo a virtualidade de alcançar efeitos a nível penal e sendo este domínio
de vigência que está aqui em causa, é quanto a ele que há que resolver a questão.
E colocando-nos neste plano, haverá, todavia, que destrinçar as situações em que
a contraprova foi efectuada através de análise de sangue ou através de aparelho
de pesquisa quantitativa aprovado para o efeito.
Na verdade, quanto àquele tipo de contraprova não poderá desconhecer-se o
disposto, hoje, no referido n.º 5 do artigo 6.º do mencionado Regulamento e a
circunstância de o mesmo haver sido emitido através de Lei da Assembleia da
República.
Deste modo, a questão da inconstitucionalidade orgânica de tal preceito do n.º 6
do artigo 153.º do Código da Estrada apenas se coloca relativamente aos
resultados das contraprovas obtidos através de analisadores quantitativos
aprovados para o efeito e no domínio do processo penal, como é o caso.
Ora, quer se atribua às normas que dispõem sobre as provas atendíveis em
processo criminal e o seu respectivo valor natureza material, quer se lhes
reconheça natureza adjectiva, certo é que as disposições que prevêem os tipos de
prova admissíveis e o seu valor são normas de processo criminal, dado cumprirem
a função instrumental de darem a conhecer ?os factos juridicamente relevantes
para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade
do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis? (cf.
Artigo 124.º do Código de Processo Penal ? C. P. Penal) cuja determinação é
prosseguida pelo processo criminal.
Enquanto norma que dispõe sobre o valor da análise da contraprova por confronto
com o valor do exame inicial (não importando, aqui, saber se com o valor de
prova taxada ou prova legal, como parece ter entendido a decisão recorrida, ou
se com valor de prova sujeita a apreciação judicial segundo as regras de
experiência e livre convicção do julgador), ela é uma norma processual
compreendida no âmbito material do princípio afirmado no artigo 127.º do C. P.
Penal.
Assim sendo, o preceito, na medida em que projecta efeitos a nível da valoração
da prova em processo criminal, e quando referido a contraprova efectuada
mediante analisador quantitativo, apenas poderia ser editado por lei da
Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo, emitido a coberto de
autorização legislativa, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
Assembleia da República.
Anote-se, porém, que, quando referida a contraprova efectuada com recurso a
análise ao sangue, há-de entender-se que a mesma foi substituída pelo referido n.º
5 do artigo 6.º do referido Regulamento, deixando-se de colocar a questão da
competência para a edição do respectivo critério normativo.
5.3 ? O artigo 1.º da Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, concedeu autorização ao
Governo para ?proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs
2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002,
de 21 de Agosto, e ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações
emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação
complementar?.
E, definindo o sentido da autorização, o artigo 2.º da mesma Lei dispõe que a
autorização visa ?permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária
em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção
Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que
Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações
internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de
segurança rodoviária para os utentes?.
Ora, conquanto possa entender-se que o regime em causa constante do n.º 6 do
artigo 153.º do Código da Estrada cabe no objecto e no sentido da lei de
autorização, certo é que, analisado o artigo 3.º da mesma Lei e tendo em conta
que ?a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina
jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir
por força do exercício dos poderes delegados? (cf., entre outros, o Acórdão n.º
358/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não se vê que o mesmo
caiba em qualquer dos que, aí, são enunciados.
Assim sendo, a norma em causa padece de inconstitucionalidade orgânica?.
É este o entendimento que se perfilha, seja quanto à delimitação do objecto do
recurso, seja quanto ao juízo de inconstitucionalidade, ficando prejudicada a
apreciação das questões de inconstitucionalidade material versadas na decisão
recorrida e nas alegações de recurso.
É certo, como salienta o Ministério Público, que no caso dos autos, se for
considerado o resultado do primeiro exame o recorrente poderá ter cometido uma
contra-ordenação e não um crime. Mas essa especificidade apenas poderá ser
relevante para determinação das consequências do juízo de inconstitucionalidade,
que não compete ao Tribunal definir no âmbito do presente recurso.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide
a) Julgar organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º,
n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o artigo 153.º, n.º 6,
do Código da Estrada, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução
de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa
de álcool no ar expirado;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando, ainda que por
razões diferentes, a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade
respeita.
Lx., 13 de Janeiro de 2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão