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Processo n.º 271/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito da acção de investigação de paternidade, proposta por A. contra B.,
que corre os seus termos, sob o n.º 4002/08.0 TBMAI, no 4.º Juízo Cível do
Tribunal Judicial da Maia, foi proferido despacho saneador, datado de 5 de Março
de 2009, em que foi apreciada a excepção de caducidade deduzida pelo Réu,
tendo-se concluído do seguinte modo:
“…decide-se julgar improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada
pelo Réu:
- no que respeita ao artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, por força da
declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, proferida pelo
Acórdão 23/2006, de 10 de Janeiro e,
- no que respeita ao artigos 1817.º n.º 3 e 4 do Código Civil, porquanto este
Tribunal recusa a aplicação do disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 1817.º do
Código Civil, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1,
36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, quando
interpretados no sentido de estabelecerem um limite temporal para o exercício do
direito de investigação da paternidade…”.
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
suscitando a fiscalização da constitucionalidade das normas constantes do
artigo 1817.º, n.os 3 e 4, do Código Civil, quando interpretados no sentido de
estabelecerem um limite temporal para o exercício do direito de investigação da
paternidade, cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade
material, por violação do disposto nos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º,
n.º 2, da Constituição.
Notificado para efeito de apresentação de alegações de recurso, o Ministério
Público alegou e concluiu do seguinte modo:
“Passando a apreciar as questões suscitadas, importa notar que – relativamente à
recusa de aplicação da norma constante do artigo 1817º, nº 4, do Código Civil,
na versão em vigor à data da decisão recorrida – é inútil a pronúncia deste
Tribunal Constitucional, já que a própria decisão recorrida admite que o prazo
ali previsto ainda se não esgotou (p. 77): não sendo alegada “a cessação do
tratamento como filho pelo réu e sendo este ainda vivo, forçoso seria de
concluir que a acção é tempestiva, pois que dispunha a A. de um ano posterior à
morte do R. para intentar a acção de investigação de paternidade com fundamento
em posse de estado”.
Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada quanto à norma
constante do nº 3 daquele preceito legal, importa começar por realçar uma
circunstância fundamental e decisiva: é que, ao contrário do que se afirma na
decisão recorrida, a jurisprudência constitucional nunca considerou que o único
regime normativo, conforme à Lei Fundamental, é o da imprescritibilidade do
direito de investigar a paternidade (afirmando-se, aliás, tal conclusão
expressamente no Acórdão nº 23/06, bem como nas decisões anteriores que
estiveram na base daquela declaração de inconstitucionalidade); ou seja, o que
este Tribunal Constitucional considerou desconforme à Constituição foi o
específico e concreto regime de caducidade, plasmado no nº 1 do artigo 1817º,
tendo por insuficiente o prazo de 2 anos, contados do alcance da maioridade pelo
investigante, e cujo início assentava irremediavelmente em tal “facto
objectivo”, não conferindo relevância, em regra, a um superveniente e “tardio”
conhecimento subjectivo de factos ou provas, só então reveladas ao interessado.
A correcta interpretação da declaração de inconstitucionalidade constante do
citado aresto, é essencial para compreender e apreciar o novo regime instituído
pela Lei nº 14/09, de 01/04, aplicável aos processos pendentes nessa data –
sendo evidente que – se porventura, resultasse da jurisprudência constitucional
a necessária “imprescritibilidade” das referidas acções - o regime ali
inovatoriamente fixado padeceria de evidente inconstitucionalidade material…
A nosso ver, o regime plasmado no nº 3 do artigo 1817º, na versão anterior à Lei
nº 14/09, ao atribuir ao filho a possibilidade de interpor ainda (tardiamente) a
acção, no prazo de 6 meses contados do conhecimento do conteúdo do escrito em
que o pretenso pai afirmava inequivocamente a sua paternidade, não era violador
de qualquer preceito ou princípio constitucional, já que, neste caso, a acção
podia ainda ser proposta a partir do momento em que ficava disponível para o
interessado um elemento probatório fundamental, de que, aliás, se presumia a
paternidade – não podendo afirmar-se que o prazo de 6 meses (embora algo
limitado) fosse manifesta e ostensivamente exíguo e inadequado para se poder
ainda mover a acção de reconhecimento judicial.
Admitimos, porém, que a imediata entrada em vigor da Lei nº 14/09 – e a sua
aplicação aos “processos pendentes” - retire utilidade à dirimição de tal
questão de constitucionalidade, já que – não tendo obviamente transitado em
julgado a decisão que apreciou a caducidade, face à lei em vigor à data da
decisão recorrida, será necessário proceder a uma nova apreciação de tal
matéria, perante o novo quadro normativo do qual decorre ampliação para três
anos do prazo da acção “tardia”, fundada em ulterior acesso pelo investigante a
matéria fáctica ou probatória, relevante ou decisiva para a viabilidade da
investigação da paternidade.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º) Não é enquadrável no âmbito do artigo 78º, nº 2, da Lei do Tribunal
Constitucional um recurso obrigatório, baseado na alínea a) do nº 1 do artigo
70º, cujo regime nunca é moldado pelo que seria aplicável no recurso ordinário
que, no caso, nunca poderia ser interposto – o que dita a aplicação do regime
contido no nº 4 daquele artigo 78º.
2º) Não há interesse processual em apreciar as questões de constitucionalidade
colocadas quanto aos nºs 3 e 4 do artigo 1817 do Código Civil, na sua redacção
originária, já que, por um lado, não está sequer esgotado o prazo previsto
naquele nº 4, face ao teor da decisão recorrida.
3º) E – quanto ao referido nº 3 – será aplicável, porventura, o regime
inovatoriamente definido pela Lei nº 14/09, face à disposição transitória do
respectivo artigo 3º (o que conduz à aplicação de no prazo de caducidade de 3
anos para a acção “tardia”, fundada em conhecimento superveniente de factos ou
provas relevantes para a propositura o da acção, em momento ulterior ao
esgotamento do “prazo-regra”, afirmado no nº 1 do referido artigo 1817º [...]”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
Foi interposto recurso da decisão que recusou a aplicação do disposto nos n.º 3
e 4, do artigo 1817.º, do Código Civil (C.C.), por violação das disposições
conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição
da República Portuguesa (C.R.P.), quando interpretados no sentido de
estabelecerem um limite temporal para o exercício do direito de investigação da
paternidade.
Nas suas alegações o Ministério Público colocou a possibilidade do recurso não
ser conhecido, pela susceptibilidade desse conhecimento não ter repercussão
útil no processo concreto de que emerge.
Relativamente à recusa de aplicação da norma constante do n.º 4, do artigo
1817.º, do C.C., na redacção conferida pela Lei n.º 21/98, de 12 de Maio, quando
interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal para o exercício do
direito de investigação da paternidade, com fundamento em inconstitucionalidade
material, a referida disposição legal apresenta a seguinte redacção:
“4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha
cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano
posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento
como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data
em que o tratamento tiver cessado.”
A decisão recorrida admitiu, expressamente, que o prazo de caducidade em
questão, respeitante à situação de posse de estado, ainda não se esgotou, ou
melhor dizendo, ainda nem sequer se iniciou, uma vez que o pretenso pai ainda é
vivo e nenhuma das partes alegou a cessação voluntária do tratamento da
investigante como filha.
Assim sendo, a recusa de aplicação da disposição que estabelece um prazo de
caducidade, com fundamento na sua inconstitucionalidade, não foi determinante da
decisão recorrida, sendo apenas um simples obicter dictum, uma vez que nem
sequer se coloca a questão de aplicação daquele prazo, dado que o mesmo ainda
nem sequer se iniciou.
Deste modo a intervenção do Tribunal Constitucional em relação à referida norma
é totalmente inútil uma vez que não haverá lugar a qualquer alteração da decisão
recorrida nesta parte, seja qual for o sentido da decisão do recurso de
constitucionalidade.
Verificada a falta de interesse processual no recurso, nesta parte, importa
concluir que não estão preenchidos todos os requisitos de conhecimento do
recurso de constitucionalidade, no que respeita à apreciação do n.º 4, do artigo
1817.º, do C.C.
Já relativamente à recusa de aplicação do prazo de caducidade previsto no n.º 3,
do artigo 1817.º, do C.C., o recorrente apenas coloca a hipótese do seu
conhecimento não ter qualquer utilidade, por entretanto ter sido aprovada pela
Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, uma alteração do prazo de caducidade nela
prescrito, com aplicação aos processos pendentes, o que poderá conduzir a uma
alteração da decisão recorrida pelas instâncias ordinárias de recurso.
Ora, o recurso de constitucionalidade previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo
70.º, da LTC, caracteriza-se precisamente pela possibilidade de intervenção
directa e imediata do Tribunal Constitucional, não se exigindo aqui um
esgotamento das instâncias.
Perante uma presunção de validade das regras do Direito ordinário interno
dotadas de hierarquia mais elevada, se essa validade é negada pela decisão de
uma jurisdição comum, entendeu-se que esse incidente podia ser apreciado
imediatamente pelo Tribunal Constitucional, sem se aguardar pela posição das
instâncias superiores daquela jurisdição.
Daí que não tenha sentido antecipar-se, num juízo probabilístico, a posição
dessas instâncias, cuja intervenção ainda é incerta, para se verificar a
utilidade da intervenção do Tribunal Constitucional.
E o facto de posteriormente à emissão da decisão recorrida ter sido alterada a
norma cuja aplicação foi recusada, isso também não influi na utilidade do
conhecimento do mérito dessa desaplicação, uma vez que esta foi determinante do
sentido da decisão recorrida, pelo que o julgamento pelo Tribunal Constitucional
da questão de constitucionalidade colocada terá reflexo na manutenção dessa
concreta decisão.
Deste modo, deve o presente recurso cingir-se à recusa de aplicação do disposto
no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., quando interpretado no sentido de
estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu
ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a
paternidade para o exercício do direito de investigação da paternidade.
Impõe-se ainda tecer uma consideração suplementar relativamente aos parâmetros
constitucionais pretensamente contrariados pela referida interpretação
normativa.
O tribunal recorrido recusou a aplicação da referida interpretação normativa do
n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-lei n.º
496/77, de 25 de Novembro, com fundamento em inconstitucionalidade material
traduzida na violação do disposto nos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º,
n.º 2, da Constituição.
Analisada a fundamentação da decisão recorrida, alcança-se facilmente que a
mesma se estribou nos mesmos parâmetros constitucionais que sustentaram a
declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral levada a cabo
pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, por referência ao artigo
1817.º, n.º 1, do C.C., quando aplicável às acções de investigação de
paternidade.
Assim sendo, é indubitável que a alusão ao artigo 16.º, n.º 1, da Constituição,
respeitante ao âmbito e sentido dos direitos fundamentais em geral, deveu-se a
mero lapso, na medida em que se pretendia efectivamente indicar o artigo 26.º,
n.º 1, da Constituição, na parte respeitante ao direito fundamental à identidade
pessoal.
Por conseguinte, a análise das questões de constitucionalidade suscitadas pelo
Recorrente será levada a cabo, em primeira linha, tendo por referência os
parâmetros constitucionais constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e
18.º, n.º 2, da Constituição, sem prejuízo, obviamente, da convocação de outros
parâmetros que o caso concreto coloque em evidência, por respeito ao disposto no
artigo 79.º- C, da LTC.
2. Do mérito do recurso
2.1. A interpretação normativa sob fiscalização e o caso concreto
O tribunal recorrido recusou a aplicação da norma constante do n.º 3, do artigo
1817.º, do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de
Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6
meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do
escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade para o exercício do
direito de investigação da paternidade, com fundamento em inconstitucionalidade
material traduzida na violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1,
e 18.º, n.º 2, da Constituição.
A referida disposição legal, aplicável às acções de investigação de paternidade
por força do disposto no artigo 1873.º, do C.C., apresenta a seguinte redacção:
“3. Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe declare
inequivocamente a maternidade, pode ser intentada nos seis meses posteriores à
data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.”
A existência de carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare
inequivocamente a sua paternidade (escrito de pai) facilita em muito a tarefa
probatória do investigante na medida em que a paternidade se presume na referida
situação, por força do artigo 1871.º, n.º 1, al. b), do C.C., na redacção do
Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro.
No caso concreto, a Autora, nascida em 1 de Novembro de 1971, propôs uma acção
de investigação da respectiva paternidade, quando já perfazia 36 anos de idade,
com fundamento, inter alia, na alegada existência de escrito datado de 1975 no
qual o pretenso pai declara inequivocamente a paternidade.
Em sede de contestação, a Autora viu ser-lhe excepcionada a caducidade do
direito de investigação da paternidade fundada no alegado escrito de pai.
O tribunal recorrido reputou de inconstitucional a existência do prazo previsto
no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., para a propositura da acção de
investigação da paternidade e, consequentemente, recusou a aplicação da norma
em questão ao caso concreto.
Interessa, pois, saber se a Constituição tolera a existência de tal limite
temporal em sede de acção de investigação da paternidade proposta pelo filho
contra o pretenso pai.
2.2. A presunção de paternidade resultante de escrito que a reconheça
A existência de carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare
inequivocamente a sua paternidade começou por ser no nosso direito uma das
condições em que, excepcionalmente, era admitida uma acção de investigação de
paternidade.
Na verdade, sob a influência da doutrina da Revolução Francesa nesta matéria,
segundo a qual a imposição judicial da paternidade envolvia, além de um atentado
contra a liberdade individual, arbítrio, incerteza e possibilidade de abuso,
constituindo um risco grosseiro de erro, o Código de 1867 (Código de Seabra)
previu no seu artigo 130.º, n.º 2, como uma das situações em que
excepcionalmente era admissível a propositura de uma acção de investigação de
paternidade, a existência de escrito do pai em que este declarasse expressamente
a sua paternidade.
A relevância jurídica deste facto não residia, contudo, no seu valor indiciário
da paternidade, mas sobretudo porque o seu autor ao emitir esse escrito abria
voluntariamente uma brecha no seu direito à autonomia privada, deixando de
merecer o anonimato que o ordenamento jurídico lhe garantia, pelo que se
justificava que passasse a estar exposto ao risco de uma acção de investigação
de paternidade, conferindo-se prevalência aos interesses do filho (vide, neste
sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Critério jurídico da paternidade”, pág.
125-126, da ed. de 1998, da Almedina).
A valia jurídica deste facto manteve-se nestes precisos termos na redacção
original do C.C. de 1966, tendo o sentido jurídico da sua utilização apenas
mudado com a Reforma de 1977. As situações referidas pelo artigo 1871.º, n.º 1,
do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,
onde se contam os referidos escritos, num sistema de liberdade de investigação,
passaram a assumir o valor de índices da verdade biológica, de factos
denunciadores de uma probabilidade forte da existência da paternidade por eles
revelada.
Por isso, deles se passou a extrair uma presunção de paternidade, sendo essa
presunção ilidível mediante a demonstração de circunstâncias donde resultem
dúvidas sérias acerca dessa paternidade (artigo 1871.º, n.º 2, do C.C.).
2.3. A existência de limites temporais à investigação da paternidade no direito
ordinário português
O estabelecimento de prazos específicos de caducidade para as acções de
reconhecimento da filiação surgiu expressamente com o Código de Seabra.
Durante a vigência das Ordenações Filipinas, na ausência de previsão de prazos
de caducidade para as acções de reconhecimento da filiação, a doutrina divergia
entre a solução da imprescritibilidade e a da sujeição ao prazo ordinário de
prescrição de 30 anos relativo aos direitos de crédito (Vide GUILHERME DE
OLIVEIRA, na ob. cit., pág. 461).
Na redacção originária do Código de Seabra, os filhos só podiam investigar a
filiação durante a vida dos investigados, excepto se estes falecessem durante a
menoridade dos filhos – caso em que se sobrepunha um prazo de caducidade de 4
anos após a maioridade, ou emancipação –, ou quando os filhos obtivessem após a
morte dos pais documento escrito destes revelando a sua paternidade (artigo
133.º).
A implantação do regime republicano foi acompanhada de alterações em sede de
Direito da Filiação.
O artigo 37.º, do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, veio admitir que a
acção de investigação de filiação pudesse ser ainda intentada no ano seguinte à
morte dos pretensos progenitores e estabeleceu um prazo de seis meses para a
propositura da acção quando esta se fundasse em escrito obtido após a morte
daqueles (artigo 37.º).
Perante as críticas (Vide, por exemplo, PAULO CUNHA, em “Lições de direito de
família”, II vol., pág. 238, da ed. de 1941, da Imprensa Baroeth, e GOMES DA
SILVA, em “O direito de família no futuro Código Civil”, no B.M.J. nº 88, pág.
86-87.) que vinham sendo feitas à permissividade deste regime, o C.C. de 1966,
no seu artigo 1854.º, estabeleceu um sistema de prazos de caducidade mais curtos
e que, com pequenas alterações e aditamento de normas interpretativas, se mantém
na redacção actual do artigo 1817.º, do C.C. (esta opção não era seguida porém
no artigo 51º, do Anteprojecto de PIRES DE LIMA, pub. no B.M.J. nº 89, pág. 54,
que não se distanciava do regime do Código de Seabra, e foi criticada por VAZ
SERRA, em “Observações do Autor à segunda revisão ministerial do Anteprojecto do
Código Civil (Direito de Família)”, defendendo a imprescritibilidade destas
acções, conforme refere GUILHERME DE OLIVEIRA, na ob. cit, pág. 464-465).
O prazo-regra passou a ser de dois anos após o investigante ter atingido a
maioridade ou a emancipação (artigo 1817.º, n.º 1).
Excepcionalmente, transcorrido o referido prazo-regra, o Código Civil deu ainda
a possibilidade ao filho: a) de reagir no prazo de um ano à destruição do
registo da paternidade até então tido por verdadeiro e que inibia qualquer
investigação de paternidade (artigo 1817.º, n.º 2); b) de utilizar o escrito do
progenitor reconhecendo a paternidade, sendo aqui o prazo de seis meses a
contar do conhecimento desse escrito (artigo 1817.º, n.º 3); c) e, existindo
posse de estado, de investigar a paternidade no prazo de um ano a contar da data
em que cessou o tratamento (artigo 1817.º, n.º 4).
A Lei n.º 21/98, de 12 de Maio, veio clarificar certos aspectos do referido
regime sem, todavia, alterar os referidos prazos.
Este sistema, com um prazo-regra de caducidade muito curto, se já tinha sido
alvo de ataques aquando da sua adopção, com os assinaláveis progressos
verificados na obtenção científica da prova da paternidade passou a ser objecto
de numerosas críticas (vide, GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Estabelecimento da
filiação”, pág. 40-41, da ed. de 1979, da Almedina, em “Critério jurídico da
paternidade”, pág. 470-471, e em “Caducidade das acções de investigação”, em
“Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”,
vol. I, pág. 49-58, da ed. de 2004, da Coimbra Editora), tendo a Provedoria de
Justiça, pela Recomendação nº 36/B/99, e o partido “Os Verdes”, através do
Projecto de Lei nº 92/IX, de 2002, defendido a alteração do artigo 1817.º, do
C.C., de modo a não se imporem prazos de caducidade, desde que o investigante
renunciasse aos eventuais efeitos patrimoniais do estabelecimento do vínculo.
Recentemente, a Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, alterou sensivelmente os prazos
de caducidade das acções de investigação de paternidade. O prazo-regra passou a
ser de 10 anos, contado a partir da maioridade ou emancipação do investigante,
e os prazos excepcionais atrás aludidos, incluindo o prazo para a acção de
investigação de paternidade, com fundamento na existência de escrito do
progenitor reconhecendo a paternidade, foram todos elevados para três anos.
Por conseguinte, a lei civil portuguesa não adoptou a regra da
“imprescritibilidade” do direito de investigação de paternidade e continua a
insistir na necessidade de existência de limites temporais ao exercício desse
direito, embora na última alteração tenha alargado consideravelmente esses
limites temporais.
As razões avançadas para a previsão de prazos limitativos da acção de
investigação da paternidade encontram-se há muito identificadas pela doutrina
portuguesa e prendem-se com a segurança jurídica dos pretensos pais e seus
herdeiros, o progressivo “envelhecimento” das provas e com a prevenção da “caça
às fortunas” (Vide GUILHERME DE OLIVEIRA, em “Caducidade das acções de
investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da
Reforma de 1977, Volume I, pág. 49 e seg., da ed. de 2004, da Coimbra Editora).
2.4. A jurisprudência constitucional portuguesa em matéria de prazos de
caducidade das acções de investigação e de impugnação de paternidade
A temática da existência de prazos de caducidade limitativos do direito de
investigação de paternidade ocupou o Tribunal Constitucional logo na sua
primeira década de existência.
Numa primeira fase, dir-se-ia que o Tribunal Constitucional decidiu sempre no
sentido da compatibilidade das normas que prevêem os referidos prazos com os
princípios constitucionais.
No Acórdão n.º 99/88 (publicado em ATC, 11.º vol., pág. 785), o Tribunal
Constitucional não julgou inconstitucionais as normas dos n.º 3 e 4, do artigo
1817.º do C.C., na redacção do Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,
enquanto aplicáveis às acções de investigação de paternidade por força do artigo
1873.º do mesmo Código (Vide, no mesmo sentido, o Acórdão n.º 370/91, publicado
em ATC, 20.º vol., pág. 321).
Por seu turno, no Acórdão n.º 413/89 (publicado no B.M.J. n.º 387, pág. 362), o
Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do n.º 1, do artigo
1817.º, do C.C., na redacção do Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,
enquanto aplicáveis às acções de investigação de paternidade por força do artigo
1873.º do mesmo Código (Vide, no mesmo sentido, os Acórdãos n.os 451/89,
publicado em ATC, 13.º - II vol., pág. 1321; 311/95, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt; 506/99, publicado em ATC, 44.º vol., pág. 763, e
525/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em todos os referidos arestos, o Tribunal encarou os prazos de caducidade como
meros condicionamentos do exercício do direito de investigação da paternidade,
inerente ao direito à identidade pessoal, e não como verdadeiras restrições
desse direito fundamental.
No essencial, o Tribunal Constitucional entendeu invariavelmente que o regime
jurídico da filiação em questão assegurava um equilíbrio adequado entre o
direito do filho ao reconhecimento da paternidade e o interesse do pretenso
progenitor a não ver protelada uma situação de incerteza – agravada pelo
envelhecimento e aleatoriedade da prova – e ainda o interesse da paz da família
conjugal do investigado.
A primeira viragem neste entendimento deu-se com a prolação do Acórdão n.º
456/03 (publicado em ATC, 57.º vol., pág. 461) que julgou inconstitucional a
norma constante do artigo 1817.º, n.º 2, do C.C., na redacção introduzida pelo
Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, enquanto impede a investigação da
paternidade em função de um critério de prazos objectivos, nos casos em que os
fundamentos e as razões para instaurar a acção de investigação surgem pela
primeira vez em momento ulterior ao termo daqueles prazos.
Este aresto não censurou a existência de limites temporais ao exercício do
direito de instaurar acção de investigação, mas apenas a consagração de limites
temporais que inviabilizam absolutamente a possibilidade do interessado
averiguar o vínculo de filiação natural, nomeadamente aqueles que propiciam
concretamente que uma filha com 31 anos de idade não possa investigar a
paternidade biológica quando a mesma veja impugnada com sucesso a paternidade
presumida em acção proposta pelo cônjuge da mãe após a investigante já ter
perfeito 20 anos de idade.
Novo passo seria dado no Acórdão n.º 486/2004 (publicado em ATC, 60.º vol., pág.
191), através do qual o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o artigo
1817.º, n.º 1, do C.C., na redacção introduzida pelo Decreto-lei n.º 496/77, de
25 de Novembro, ao prever a extinção do direito de investigar a paternidade, em
regra, a partir dos vinte anos de idade.
Porém, este último aresto também não censurou a existência de limites temporais
ao exercício do direito de instaurar acção de investigação, mas apenas a
consagração de limites temporais que dificultam seriamente ou inviabilizam a
possibilidade do interessado averiguar o vínculo de filiação natural,
nomeadamente a circunstância do prazo se esgotar num momento em que o
investigante não é ainda uma pessoa inteiramente madura e em que o mesmo pode
nem sequer ter qualquer justificação para a interposição da acção de
investigação.
Esta última inconstitucionalidade – traduzida na reputada diminuição do alcance
do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a
constituir família – viria a ser declarada com força obrigatória geral pelo
Acórdão n.º 23/2006 (publicado em ATC, 64.º vol., pág. 81).
No ano imediatamente seguinte, desta feita no âmbito de uma acção de impugnação
da paternidade presumida, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 589/2007
(publicado em ATC, 70.º vol., pág. 519) não julgou inconstitucional a norma
prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do C.C., na redacção dada pelo
Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, na medida em que prevê, para a
caducidade do direito do marido da mãe impugnar a sua própria paternidade
presumida, o prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de
circunstâncias donde se possa concluir a sua não paternidade. O referido prazo
de dois anos, porque contado a partir de um facto subjectivo, foi então
considerado como sendo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do
exercício do direito de impugnar na medida em que permite avaliar todos os
factores que podem condicionar a decisão.
Alguns dias depois, também no âmbito de uma acção de impugnação da paternidade
presumida, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 609/2007(publicado na 2.ª
Série do Diário da República, de 7 de Março de 2008) julgou inconstitucional a
norma prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do C.C., na redacção dada
pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, na medida em que prevê, para a
caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade
presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve
conhecimento de circunstâncias donde possa concluir-se não ser o filho do marido
da mãe, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da
Constituição. O mencionado prazo de um ano foi então considerado manifestamente
exíguo, particularmente nos casos em que o conhecimento das circunstâncias que
indiciam a paternidade não biológica do marido da mãe ocorre em momento
temporalmente próximo da data em que o interessado alcançou a maioridade e a sua
autonomia.
2.5. O direito fundamental à identidade pessoal
O parâmetro constitucional mais relevante para a aferição da legitimidade da
previsão legal de limitações temporais ao direito de investigar a paternidade
encontra-se no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual é
reconhecido o direito à identidade pessoal a todos os cidadãos.
A identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que
permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada
indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, “uma unidade
individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas” (JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 284, da ed. de
2005, da Coimbra Editora).
Este direito fundamental pode ser visto numa perspectiva estática – onde avultam
a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem – e numa
perspectiva dinâmica – onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação
do indivíduo com a sociedade ao longo dos tempos.
Nunca suscitou qualquer oposição o entendimento de que deste direito fundamental
se extrai um direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da
ascendência biologicamente verdadeira (identidade biológica).
A importância da identidade biológica é fácil de alcançar já que o conhecimento
dos progenitores significa o conhecimento do princípio da existência de cada
indivíduo e responde ao interesse de todo o ser humano em saber donde provém a
sua própria vida e quem o precedeu biológica e socialmente.
Isso não impede, contudo, que o legislador possa modelar o exercício de um tal
direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente
tutelados.
No actual ordenamento jurídico português, a acção de investigação de paternidade
constitui precisamente o único meio destinado à efectivação do direito
fundamental ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira.
Em certos casos, por motivos de ordem social e para prevenir danos psíquicos
graves, a lei proíbe a investigação da paternidade, nomeadamente a investigação
da paternidade incestuosa (artigos 1809.º, al. a), e 1866.º, a), do C.C.), com
isso acautelando o direito fundamental à integridade moral consagrado no art.
26.º, n.º 1, da Constituição (Vide JOÃO DE PINA CABRAL, “A lei e a paternidade:
as leis de filiação portuguesas vistas à luz da antropologia social”, in Análise
Social, vol. XVIII, 1993 (4.º-5.º), pp. 983 e segs.; PAULA COSTA E SILVA, “A
realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação”,
in Estudos em homenagem à Prof. Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II,
pp. 579-580).
Para além destas proibições de investigação, importa, pois, saber, se será
admissível, à luz do n.º 1, do artigo 26.º da Constituição, a existência de
prazos de caducidade para a investigação da paternidade, mais concretamente o
prazo previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do C.C., na redacção do Decreto-lei
n.º 496/77, de 25 de Novembro, nos termos do qual a acção de investigação de
paternidade fundada em escrito de pai apenas pode ser intentada nos seis meses
posteriores à data em que o investigante – com mais de 20 anos de idade –
conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
Conforme já se tinha antecipado atrás, as razões avançadas para a previsão de
prazos limitativos da acção de investigação da paternidade encontram-se há muito
identificadas pela doutrina portuguesa e prendem-se com a segurança jurídica dos
pretensos pais e seus herdeiros, o progressivo “envelhecimento” das provas e com
a prevenção da “caça às fortunas”.
Estas justificações já foram reputadas atendíveis na jurisprudência
constitucional (vide o acima citado Acórdão n.º 99/88).
Mas foi o próprio Tribunal Constitucional que inflectiu este entendimento,
nomeadamente quando procedeu a uma nova reflexão, no Acórdão n.º 486/04, nos
seguintes termos:
«[...] 15. Como se disse, invocam-se, para justificar o regime actual, os riscos
de fraudes decorrentes de um “envelhecimento das provas”.
Tal dificuldade de prova constituía uma justificação de peso, frequentemente
invocada, para a limitação temporal prevista na lei, desde logo, porque
contendia com a própria fiabilidade do resultado da acção, e, consequentemente,
com a credibilidade do resultado quanto à identidade pessoal invocada.
Não parece, porém, que esta justificação possa actualmente ser considerada
relevante. É que os avanços científicos permitiram o emprego de testes de ADN
com uma fiabilidade próxima da certeza – probabilidades bioestatísticas
superiores a 99,5% -, e, por esse meio, mesmo depois da morte é hoje muitas
vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade.
Assim, a justificação relativa à prova perdeu quase todo o valor, com a eficácia
e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com
base em testes de ADN, que não envelhecem nunca. Como salienta Guilherme de
Oliveira, Caducidade…, cit., pág. 11, “os exames podem fazer-se muitos anos
depois da morte do suposto pai, ou na ausência do pai! Morrem as testemunhas,
mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera, verdadeiramente, o caminho que
as acções seguem, e hão-de seguir cada vez mais, no futuro”.
16. Não é, pois, o valor da certeza objectiva da identidade pessoal que está em
causa, mas antes a segurança para sujeitos ou pessoas concretas –
designadamente, o interesse do pretenso progenitor, que poderia ser investigado,
em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza
quanto à sua paternidade, bem como o interesse, sendo o caso, da paz e harmonia
da família conjugal constituída pelo pretenso pai, a que se junta o argumento de
que as acções de investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais (de
“caça à herança”).
Começando por este último, também ele não pode deixar de ser visto a outra luz.
Se já anteriormente não era claro que acções antigas fossem necessariamente
intentadas contra honestos cidadãos, com uma finalidade de cobiça, é certo que,
hoje, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram, podendo
mesmo muitas acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorrer
hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna não muito
diversos, com formação profissional e um emprego – Guilherme de Oliveira (ob.
cit., pág. 11, nota 14) pergunta mesmo: “Seria concebível, nas leis
contemporâneas, ler: ‘O filho ilegítimo (…) presume-se pobre, salvo prova em
contrário…’, como se lia no art. 44.º, do Decreto n.º 2, de 1910?”. E o móbil do
investigante pode bem ser apenas esclarecer a existência do vínculo familiar,
chamar o progenitor a assumir a sua responsabilidade e descobrir o lugar no
sistema de parentesco para deixar de estar só. Isto, mesmo em momentos em que
não tenha pretensões patrimoniais, por não poder deduzir pretensões de natureza
alimentar e não ter ainda previsivelmente expectativas sucessórias.
Acresce que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não
podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima,
constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu
progenitor. Pode, aliás, deixar-se em aberto a questão de saber se a motivação,
também patrimonial, da família do pretenso progenitor merece maior apreço do que
a do investigante quando aquela pretende “proteger” a herança à protecção deste
último, por se afigurar decisiva a impossibilidade de anular totalmente a
possibilidade de exercer o “direito pessoal” a conhecer o progenitor, a partir
dos vinte anos, com invocação de uma tal motivação de segurança patrimonial.
Perante esta diferença, verdadeiramente qualitativa, dos interesses em presença,
afigura-se, aliás, difícil que se possa sindicar a motivação do investigante –
e, de toda a forma, se a motivação censurável pode fundar limitações em casos
extremos (a aplicação do instrumento do abuso do direito ou de outro remédio
expressamente previsto), não legitimará por certo uma exclusão geral e total do
direito a investigar a paternidade.
Poderá aceitar-se que o argumento da segurança possa eventualmente justificar um
prazo de caducidade da investigação de paternidade. Mas o certo é que no
presente caso está apenas em causa o concreto prazo previsto no artigo 1817º,
n.º 1, do Código Civil, que conduz à caducidade da acção logo a partir dos vinte
anos de idade.
17. Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou
excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde
logo, deixar de observar-se que, se o que está em questão é realmente a
incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo
eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver
realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar
teste genético de paternidade.
Não deve sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da
personalidade, a garantia de “segurança jurídica”, que releva sobretudo no
âmbito patrimonial. Note‑se que a ordem jurídica não mostra uma preocupação
absoluta com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor,
podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de “petição da herança”, a
todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (artigo 2075º do
Código Civil).
E, de qualquer modo, pode duvidar-se de que o pretenso progenitor mereça uma
protecção da segurança da sua vida patrimonial que justifique a regra de
exclusão do direito do investigante, logo a partir dos vinte anos e sem
consideração de outras circunstâncias, a saber que é o seu pai. É que não pode
conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial de outros filhos, ou do
pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o direito, eminentemente
pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é
o pai ou a mãe biológicos.
Na verdade, afigura-se que a pretensão de satisfazer, através do sacrifício do
direito do filho a saber quem é o pai, um puro interesse na tranquilidade – em
“ser deixado em paz” – ou na eliminação rápida de dúvidas – em resolver o
assunto – não é digna de tutela, se se tratar realmente do progenitor. Este tem
uma responsabilidade para com o filho que não deve pretender extinguir pelo
decurso do tempo, logo que aquele completa 20 anos, pela simples invocação de
razões de segurança, confiança ou comodidade. E se, diversamente, não se tratar
do verdadeiro progenitor, pode, como se disse, submeter-se a um teste genético
sem nada a temer. Retomando as palavras de Guilherme de Oliveira (ob. cit., pág.
10), “se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos
acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo promover a
realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a
consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria
insegurança. E se for um dia surpreendido pelas consequências de um ‘acidente’
passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre o dever de assumir as
responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele.”
Também a circunstância, aduzida em defesa do regime actual, de o
estabelecimento da filiação alegadamente dever ter lugar quando é mais
necessário, e pode ser mais útil para o filho, não pode considerar-se decisiva,
desde logo, porque – mesmo aceitando a lógica “assistencial” deste argumento – o
dever de prestação de alimentos pelos pais aos filhos se prolonga bem para além
da maioridade. E, de qualquer forma, a apreciação da conveniência em determinar
a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal,
corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o
critério do próprio filho, e não qualquer “interpretação” externa do seu
interesse ou utilidade deste na investigação da paternidade.
E também não se vê que possa só por si a protecção do interesse na paz e
harmonia da família conjugal que pode ter sido constituída pelo pretenso pai,
considerar-se decisiva. Ao que acresce especificamente, ainda, que o
investigado casado não deve ou pode seguramente receber, por esse facto, maior
protecção contra potenciais investigantes do que o solteiro. Tal tratamento
desigual baseia-se numa circunstância irrelevante para o fim visado pelo
investigante, com a acção de investigação de paternidade, para além de tais
limitações específicas ao direito de agir contra supostos progenitores casados
(ao tempo do nascimento ou apenas no momento do reconhecimento), embora com
antecedentes no nosso sistema jurídico, se traduzirem em efeitos
discriminatórios, constitucionalmente vedados, contra os filhos concebidos fora
do casamento.
É certo que o investigado poderá também invocar direitos fundamentais, como o
“direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar” (ou, mesmo, também,
como se disse, o direito ao desenvolvimento da personalidade), que poderão ser
afectados pela revelação de factos que o possam comprometer. Não se vê, porém,
que se possa proteger tais interesses do eventual progenitor à custa do direito
de investigar a própria paternidade. Uma alegada
“liberdade-de-não-ser-considerado-pai”, apenas por terem passado muitos anos
sobre a concepção, ou um interesse em eximir-se à responsabilidade jurídica
correspondente, determinada fundamentalmente pelo “princípio da verdade
biológica” que inspira o nosso direito da filiação, não podem considerar-se
dignos de tutela, pelo menos, a ponto de sacrificar o direito do filho a apurar
e ver judicialmente declarado que é o seu pai (e lembre-se, aliás, que como se
disse, não é de excluir que se possa chegar, mesmo fora de um processo judicial,
mediante exames realizados no próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, à
conclusão de que certa pessoa é progenitora de outra, ficando, porém, a verdade
biológica sem relevância simplesmente porque o progenitor não pretende perfilhar
e o filho já completou vinte anos).»
A desvalorização de todas as referidas razões que vinham justificando a previsão
legal de limites temporais, relativamente ao exercício do direito de
investigação e reconhecimento de paternidade, e a ausência de quaisquer outras
razões reportadas a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos,
determinou que se começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não
inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º
e 1873.º do Código Civil (Vide, neste sentido GUILHERME DE OLIVEIRA, em
“Caducidade das acções de investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código
Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, pág. 57-58, J. P. REMÉDIO
MARQUES, em “Caducidade de acção de investigação da paternidade fundada no
artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil”, in Jurisprudência Constitucional, n.º
4, Out-Dez 2004, p. 42, e JORGE DUARTE PINHEIRO, em “Direito da Família e das
Sucessões”, pág. 149 e seg., da 3.ª Edição, da AAFDL).
Todavia, o prazo especial previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil,
na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, apresenta uma
diferença assinalável relativamente ao prazo-regra outrora consagrado no n.º 1
do mesmo artigo, quando aplicável às acções de investigação da paternidade.
Diversamente do que sucedia com o prazo-regra declarado inconstitucional, que
começava a correr inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e
se podia esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação
para a instauração da acção de investigação de paternidade contra o pretenso
pai, o prazo especial, ora sob análise, apenas começa a correr a partir do
momento em que o investigante – com mais de vinte anos de idade – conheceu ou
devia ter conhecido o conteúdo do escrito de pai, o que, em princípio,
viabilizará a instauração da acção de investigação de paternidade a todo o tempo
ainda que sujeita à referida limitação temporal.
Não estamos aqui perante um prazo “cego”, que começa a correr independentemente
de poder haver qualquer justificação para o exercício do direito pelo respectivo
titular, como sucede com o prazo estabelecido no n.º 1, do artigo 1817.º, do
C.C., mas sim perante um prazo cujo início de contagem coincide com o momento em
que o titular do direito tem conhecimento do facto que o motiva a agir.
Nesta situação, pelo menos o direito à segurança jurídica, nomeadamente o
direito do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada
uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, justifica que se condicione
o exercício do direito do filho à investigação da paternidade, através do
estabelecimento de um prazo para o accionar.
Na verdade, tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe
permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a
propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o
interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude
desinteressada daquele.
O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à
investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstracto, uma limitação
adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse
da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º,
da C.R.P.).
Contudo, para além do modo como se processa a contagem desse prazo, importa
também saber se este permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil,
ou se, pelo contrário, é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta
gravemente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao conteúdo
daquele direito fundamental (Vide, fazendo este juízo, os Acórdãos n.º 140/94,
70/2000 e 247/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O prazo de caducidade de 6 meses em apreço, ainda que estabelecido relativamente
à existência de um documento escrito no qual o pretenso pai reconhece
inequivocamente a sua paternidade, apresenta-se objectivamente exíguo para
efeito de serena avaliação e ponderação de todos os factores que podem
condicionar a difícil tomada de decisão de investigar a paternidade por parte de
quem até então não tinha quaisquer razões, ou pelo menos razões sérias, que
justificassem a propositura de uma acção de investigação da paternidade contra
uma determinada pessoa na qualidade de pretenso pai.
É óbvio que não se partirá imediata e directamente da descoberta do escrito de
pai para a propositura da acção de investigação de paternidade, havendo, assim,
que contar com tempos razoáveis para a habituação do filho com a revelação da
novidade da pretensa ascendência biológica, para as necessárias tentativas de
aproximação e de estabelecimento de contactos com o pretenso pai, para a
eventual necessidade de superação da atitude de rejeição do reconhecimento da
paternidade adoptada pelo pretenso pai, para a informação e patrocínio
judiciários e, finalmente, para a assunção da decisão de estabelecer a
paternidade pelos meios jurisdicionais, sendo certo que a caducidade relativa
aos direitos indisponíveis em presença apenas é impedida pela instauração da
própria acção de investigação.
A decisão de avançar para o estabelecimento da ascendência biologicamente
verdadeira convoca uma reflexão prévia e profunda sobre aspectos pessoalíssimos
da pessoa humana – e, secundariamente, também de ordem social e patrimonial –
que não é seguramente compatível com a exigência legal do seu exercício judicial
no prazo de 6 meses a contar do conhecimento da existência de escrito de pai.
Aliás, a lei civil portuguesa está bem provida de exemplos de previsão de prazos
subjectivos de caducidade mais dilatados relativamente ao exercício de direitos
de conteúdo estritamente patrimonial, sem a indiscutível ressonância ética
inerente às acções de filiação, que revelam a exiguidade do prazo previsto para
a investigação da paternidade, designadamente:
- prevê-se um prazo de um ano para pedir a anulação dos negócios (artigo 287.º,
n.º 1, do C.C.);
- prevê-se um prazo de um ano para o doador revogar a doação por ingratidão do
donatário (artigo 976.º, n.º 1, do C.C.);
- prevê-se o prazo de um ano para o possuidor para pedir a restituição da posse
(artigo 1282.º, n.º 1, do C.C.);
- prevê-se o prazo de dez anos para o sucessível aceitar a herança (artigo
2059.º, n.º 1, do C.C.);
- prevê-se um prazo de dois anos para o interessado anular o testamento (artigo
2308.º, n.º 2, do C.C.).
Regista-se também que a recente Lei n.º 13/2009, de 1 de Abril, veio alterar o
prazo ora sob análise de 6 meses para 3 anos, reconhecendo implicitamente a
manifesta exiguidade daquele.
Atentas as ponderações efectuadas conclui-se que o referido prazo de 6 dificulta
de tal modo o exercício do direito à investigação de paternidade que resulta
numa verdadeira restrição a este direito fundamental, não se revelando que o
peso do interesse da segurança jurídica do investigado exija a imposição de tal
dificuldade ao investigante, sendo por isso a duração de tal prazo claramente
desproporcionada.
Assim sendo, importa concluir que a norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º,
do C.C., na redacção conferida pelo Decreto-lei n.º 496/77, quando interpretada
no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o
autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso
pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da
paternidade, padece de inconstitucionalidade material, por violação do disposto
nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, por consagrar uma
restrição desproporcionado ao direito fundamental ao conhecimento dos
ascendentes biológicos.
Mostrando-se alcançado o anterior juízo negativo de constitucionalidade,
torna-se desnecessário o confronto da interpretação normativa desaplicada com
outros parâmetros constitucionais que o presente recurso poderia suscitar,
nomeadamente com o direito a constituir família consagrado no art. 36.º, n.º 1,
da Constituição.
*
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não conhecer do recurso na parte em que o mesmo tem por objecto a norma
constante do n.º 4, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redacção introduzida
pela Lei n.º 21/98, de 12 de Maio;
b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e
18.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º, do
Código Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de
Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6
meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do
escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do
direito de investigação da paternidade;
c) E, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade adoptado na
decisão recorrida, relativamente a esta norma, negando desta forma provimento
ao recurso.
*
Sem custas.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos. Assim revendo, após melhor estudo, a posição assumida em
sede de conhecimento no Acórdão n.º 579/2009, da 1.ª Secção