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Processo n.º 569/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. No dia 31 de Agosto de 2007, através do disco-diagrama instalado no tacógrafo
de um veículo automóvel pesado de mercadorias, conduzido por um trabalhador ao
serviço de A., SA, verificou-se que esse condutor não respeitara o período
mínimo de repouso de 11 horas consecutivas ou, pelo menos, de 9 horas
consecutivas num período de 24 horas.
Instruído o processo de contra-ordenação, a Autoridade para as Condições de
Trabalho considerou a entidade patronal responsável pela contra-ordenação
laboral grave prevista no n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 272/89, de 19
de Agosto, com referência ao artigo 8.º do Regulamento CEE n.º 3820/85 (actual
artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 561/06, de 15 de Março), aplicando-lhe uma
coima.
Tendo a arguida impugnado esta decisão, por sentença de 1 de Abril
de 2009, o Tribunal de Trabalho de Faro entendeu que, face à entrada em vigor do
Código do Trabalho e à consequente revogação da Lei n.º 116/99, de 04 de Agosto,
o responsável pela infracção é quem a pratica, ou seja, o motorista, apenas
podendo responder também a entidade patronal se do Auto de Notícia constasse a
materialidade fáctica que permitisse a imputação do ilícito à entidade
empregadora, o que, não se verificando no caso, levava à absolvição.
E, ponderando a hipótese de tal responsabilização se fundar no
regime instituído pelo DL 237/2007, de 19 de Julho, recusou-lhe aplicação com
fundamento em inconstitucionalidade, considerando que o Governo não dispunha de
credencial legislativa para estabelecer essa responsabilidade
contra-ordenacional dos empregadores.
Em consequência, concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão
administrativa impugnada.
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Por despacho do relator ficou fixado que “apesar de no requerimento de
interposição de recurso se referir globalmente o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19
de Junho, resulta da fundamentação da sentença recorrida que desse diploma
apenas se consideraram susceptíveis de relevar para a decisão as normas dos seus
artigos 1.º, n.º 3 (“O disposto nos artigos 3.º a 9.º prevalece sobre as
disposições correspondentes do Código do Trabalho”), 8.º, n.ºs 1 e 2 (“1 – O
período de trabalho diário dos trabalhadores móveis é interrompido por um
intervalo de descanso de duração não inferior a trinta minutos, se o número de
horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, ou a quarenta e cinco
minutos, se o número de horas for superior a nove. 2 – Os trabalhadores móveis
não podem prestar mais de seis horas de trabalho consecutivo”) e l0.º n.º 2 (“O
empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente decreto-lei”),
necessariamente conjugados com o disposto no artigo 16.º (“Constitui
contra-ordenação grave a violação do disposto nos artigos 8.º e 9.º”).
Deve, assim, entender-se que o objecto do presente recurso consiste na
apreciação da constitucionalidade do critério normativo, extraído dos artigos
1.º, n.º 3, 8.º, n.ºs 1 e 2, e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19
de Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela contra-ordenação
consistente em violação do limite máximo de duração do trabalho diário dos
“trabalhadores móveis” (definidos no artigo 2.º, alínea d), do mesmo diploma). “
3. Prosseguindo o recurso, só o Ministério Público apresentou
alegações, tendo concluído nos termos seguintes:
“1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia
da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação
social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos
limites impostos por esse regime geral.
2. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614º do
Código de Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das
Contra-Ordenações Laborais), podendo estar incluídos entre os sujeitos
responsáveis pela infracção tanto as entidades empregadoras como os
trabalhadores.
3. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele o regime geral, o critério
normativo, extraído nos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs. 1 e 2, e 10º, nº 2, do
Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do
empregador pela contra-ordenação consistente em violação do limite máximo de
duração do trabalho diário dos “trabalhadores móveis” (definidos no artigo 2º,
alínea d), do memo diploma), não viola o artigo 165º, nº 1, alínea d), da
Constituição, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional.
4. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
II – Fundamentos
4. A questão de constitucionalidade que neste processo se coloca foi
recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 578/09,
proferido em recurso oriundo do mesmo Tribunal do Trabalho.
O Tribunal revogou o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão
recorrida com a seguinte fundamentação:
“5. Considerou a decisão recorrida, em suma e para o que agora importa, que o
Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, é organicamente inconstitucional, por
alegada violação do artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição. Fê-lo por
entender que, de várias das suas disposições conjugadas [a decisão recorrida
refere expressamente os artigos 1º, nº 1, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº 2],
decorreria, inovatoriamente, a responsabilidade contra-ordenacional dos
empregadores cujos trabalhadores fossem motoristas de veículos pesados de
mercadorias, por factos praticados em violação dos tempos de condução e repouso
destes trabalhadores. Sendo certo que, no seu entendimento, no regime anterior –
constante da Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho
então em vigor, tal como vinha sendo interpretado pela jurisprudência -, apenas
o condutor/trabalhador, e não também a entidade patronal, seria responsável pela
infracção traduzida no incumprimento das disposições legais relativas aos tempos
de condução e de repouso, ao menos quando do auto de notícia não constassem
factos que permitissem uma imputação directa da responsabilidade à entidade
empregadora. Vejamos.
6. O artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição, invocado pela decisão
recorrida, reserva à competência exclusiva da Assembleia da República, salvo
autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera
ordenação social e do respectivo processo. O Tribunal Constitucional tem-se
debruçado detalhadamente e por várias vezes sobre o sentido normativo
fundamental deste artigo 165º, n.º 1, al. d), da Constituição. Fê-lo, pela
primeira vez, mais detalhadamente, no Acórdão nº 56/84, (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 3º, págs. 153), ao qual se seguiram ao longo dos anos
muitos outros. Dessa vasta jurisprudência resulta, em síntese, que apenas é
matéria de competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização
ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social e
do respectivo processo; isto é: (i) sobre a definição da natureza do ilícito
contra-ordenacional, (ii) a definição do tipo de sanções aplicáveis às
contra-ordenações (iii) a fixação dos respectivos limites das coimas e (iv) a
definição das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação
concreta de tais sanções. Assim e em suma, com observância do regime geral, e
dos limites aí definidos, pode o Governo livremente criar contra-ordenações
novas, modificar ou eliminar as contra-ordenações já existentes e estabelecer as
coimas a elas aplicáveis.
Ora, definidos, nestes termos, os quadros gerais em função dos quais se delimita
a competência, nesta matéria, dos dois órgãos de soberania, não se vê que o
Governo, através da emissão do referido Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho,
tenha invadido a competência própria da Assembleia da República. A conclusão
contrária a que chega a decisão recorrida parece decorrer, essencialmente, de um
pressuposto que não será correcto. Com efeito, apenas cabe na competência
própria da Assembleia da República, nos termos já supra descritos, definir o
“regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo”, e não, como parece pressupor a decisão recorrida, necessariamente,
todo o regime dos actos ilícitos de mera ordenação social de um determinado
sector. Quer isto dizer que o Governo pode, em princípio, sem necessidade de
autorização da Assembleia da República, criar novas contra-ordenações aplicáveis
num determinado sector de actividade, em que exista um regime geral sectorial,
desde que se contenha dentro dos limites do regime geral das contra-ordenações.
7. Mas, ainda que assim se não entenda, sempre será legítimo ao Governo criar
contra-ordenações num sector de actividade em que a Assembleia da República
tenha estabelecido um regime geral sectorial, desde que respeite este regime ou,
mais rigorosamente, as regras deste regime sectorial que possam simultaneamente
ser concebidas como regras do regime geral das contra-ordenações.
Ora, assim sendo e prevendo o regime geral do ilícito de mera ordenação social
que as coimas tanto se podem aplicar às pessoas singulares como às pessoas
colectivas e prevendo o artigo 614° do Código do Trabalho de 2003 que, nas
respectivas contra-ordenações, possa ser responsável “qualquer sujeito no âmbito
das relações laborais”, incluindo tanto as entidades empregadoras como os
trabalhadores, apenas resta concluir que não se vê que as normas que vêm
questionadas invadam o âmbito da reserva legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, tais normas não se podem, por um lado, incluir na definição da
natureza do ilícito de ordenação social, na definição do tipo de sanções
aplicáveis às contra-ordenações e muito menos na fixação dos respectivos limites
ou na tramitação processual das contra-ordenações; e, por outro, não extravasam
os quadros legalmente definidos da responsabilidade de pessoas colectivas ou de
entidades empregadoras, não consubstanciando, nem autorizando, qualquer forma de
responsabilidade objectiva. Pelo que a sua edição pelo Governo, sem autorização
legislativa do Parlamento, não viola a Constituição, não sendo,
consequentemente, as mesmas organicamente inconstitucionais. Conclusão análoga,
aliás, à que se tirou, por exemplo, no Acórdão nº 359/2001 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), em que se julgou “não inconstitucional a norma
do artigo 29º com referência ao artigo 27º, nº4, do Decreto-Lei nº 38/99, de 6
de Fevereiro”, que considerava responsável a pessoa colectiva ou singular que
efectuasse o transporte, pela contra-ordenação consistente em o condutor do
veículo se escusar a levar o veículo à pesagem das balanças ao serviço da
entidade fiscalizadora”.
Acompanha-se este entendimento, pelo que, não julgando inconstitucionais as
normas a que foi recusada aplicação pela decisão recorrida, igualmente se
concede provimento ao recurso.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o juízo de não
inconstitucionalidade que antecede.
Lx. 2/XII/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão