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Processo n.º 275/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. No processo de fixação de indemnização por expropriação por utilidade pública
de uma parcela de terreno, a desanexar de um prédio misto, com vista à
construção de uma auto-estrada, em que é expropriante EP - Estradas de Portugal
E.P.E. e expropriados A. e B., por acórdão de 24 de Janeiro de 2008, o Tribunal
da Relação de Guimarães decidiu:
“(…)
3 e 4 – No que respeita à valorização da parte sobrante a entidade expropriante
entende que não se verificam os pressupostos para a fixação da indemnização
consignados no artigo 29 do CE/99, e além disso, os fundamentos extravasam o
objecto do processo expropriativo, porque incidem sobre questões ambientais que
depreciam a construção existente na parte sobrante, devendo ser apreciada noutro
processo.
É o artigo 29 do CE/99 que regula os termos em que deve ser atribuída
indemnização à parte sobrante numa expropriação parcial. Começa por dizer que é
obrigatório fixar valores relativos à parte expropriada e sobrante. E impõe
também, nos casos identificados no n.º 2 do referido normativo, que sejam
fixados os montantes emergentes da depreciação e dos prejuízos ou encargos que
acrescem ao valor da parte expropriada.
Porém o n.º 3 excepciona a avaliação, quando se verifique que a parte não
expropriada continua a satisfazer de forma proporcional, os mesmos cómodos que a
totalidade do prédio ou se os cómodos assegurados pela parte sobrante não
tiverem interesse económico para o expropriado, determinado objectivamente.
Destacam-se aqui dois requisitos em que não é obrigada a avaliação na
expropriação parcial. Mas para que isso se concretize, necessário se toma que os
árbitros ou os peritos fundamentem as suas decisões ou laudos no sentido de
justificarem que a parte sobrante não é afectada nos pontos acima enunciados.
E não foi o que aconteceu nos autos, em que tanto os árbitros na sua decisão
arbitral como os peritos indicados pelo tribunal, pelos expropriados e
expropriante, no seu laudo, justificaram, respectivamente, que a parte sobrante
sofria de danos consignados na perda total construtiva devido à constituição
duma servidão non aedificandi, originada pela implantação da via de comunicação,
e de depreciação da habitação originada pela mesma.
Resta-nos analisar se são fundamentadas as depreciações aventadas pelo árbitros
e peritos, que foram de alguma forma acolhidas pela decisão recorrida, que se
apoia nas circunstâncias ambientais oriundas da auto-estrada construída, mais
concretamente nos ruídos e gases que influenciam, de forma negativa, a procura e
valor venal da construção.
No que respeita à desvalorização da habitação, julgamos que os fundamentos não
podem proceder face à natureza do processo expropriativo. Pois, estamos perante
circunstâncias que são analisadas num processo prévio ao acto administrativo de
declaração de utilidade pública. Processo esse de impacto ambiental que definirá
se há possibilidades de implantar a obra em causa, e em que circunstâncias. E no
caso do resultado ser favorável dirá em que circunstâncias haverá danos
susceptíveis de serem indemnizados que deverão fundamentar o acto administrativo
de declaração de utilidade pública. Se isto não vier a acontecer, os cidadãos
que venham a sofrer danos não previstos, terão de se socorrer da impugnação do
acto administrativo demonstrando que o mesmo está viciado. E se não optarem por
esta via, terão de o fazer num processo próprio, demonstrando os danos que a
infra-estrutura construída lhes, provoca. O que quer dizer que a depreciação na
habitação não pode ser objecto de análise nestes autos.
Por sua vez, estamos perante uma servidão administrativa “non aedificandi”,
provocada pela construção da via de comunicação. E antes da declaração de
utilidade pública da parcela expropriada, esta tinha potencialidades
edificativas. O que quer dizer que a parte sobrante, que antes da desanexação da
parte expropriada fazia parte da totalidade do prédio, gozava de potencialidades
edificativas, e agora perdeu-as na totalidade, como o referem os árbitros na sua
decisão. Estamos perante uma servidão administrativa, que afecta a totalidade
construtiva da parcela sobrante, pelo que teremos de analisar se a mesma é
indemnizável nos termos conjugados do n.º 2 do artigo 29 e n.ºs 1 e 2 do artigo
8 do CE/99.
O disposto no n.º 2 do artigo 8 do CE/99 é muito restritivo, porque não abrange
todas as situações de danos provocados pela servidão administrativa constituída
ou não por expropriação. Porém, podemos estar perante uma servidão
administrativa que atinja de forma substancial, excepcional, as utilidades
essenciais do bem, que imponham ao seu titular um encargo desproporcionado, isto
é, danos especiais, excepcionais, violando o princípio da igualdade, da justa
indemnização, vista no plano da expropriação por sacrifício, que justifica ou
impõe a correspondente indemnização. O que quer dizer que nestas circunstâncias,
quando existam estes danos e não sejam previstos e indemnizáveis ao abrigo do
disposto no artigo 8 n.ºs 2 e 3 do CE/99, estamos perante uma
inconstitucionalidade desta norma, por violação do princípio da igualdade, da
justa indemnização e do princípio do Estado de direito democrático, nos termos
dos artigos 13 n.º l, 62 n.º 2 e 2 e 9 al. b) da CRP. (Parecer Dr. Fernando
Alves Correia, Expropriações por Utilidade Pública, Col. Jurisprudência, 2007,
pag. 448 a 464).
É que no domínio do artigo 8 n.º 3 do CE/9 1, que foi substituído pelo artigo 8
n.º 2 do CE/99, era prevista uma indemnização quando a servidão administrativa
diminuía efectivamente o valor ou o rendimento do bem. E foi declarada
inconstitucional, com força obrigatória geral a norma do n.º 2 do artigo 8º do
CE/91, “na medida em que não permite que haja indemnização pelas servidões
fixadas directamente pela lei que incidam sobre parte sobrante do prédio
expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já
tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa” (Ac.
Trib. Constitucional 331/99, DR 1 Série A, de 14/7/1999). O problema destas
servidões administrativas “non aedificandi” sobre a parte sobrante dos prédios
expropriados, foi objecto de algumas decisões, cuja jurisprudência veio a
uniformizar-se no domínio do CE/76 pelo Assento 16/94, publicado no DR. Série A,
de 19/10/94 que refere “ Na vigência do Código das Expropriações, aprovado pelo
decreto-lei 845/76, de 11 de Dezembro, é devida indemnização, em sede de
expropriação, na parte sobrante dos prédios expropriados, da servidão non
aedificandi decorrente da implantação de uma auto-estrada”. No domínio do CE/91
a situação continuou a ser controversa como o já afloramos, vindo a ser
declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 8 n.º
3. O que quer dizer que a situação mantém-se, neste caso, porque o artigo 8 n.º
2 do CE/99 não abrange a situação da servidão “non aedificandi”. Pois, o solo,
com essa servidão, não perde a utilização que vinha tendo e não perde
completamente o seu valor económico. Na verdade, a servidão, em si, apenas
limita a possibilidade de construção futura, mantendo-lhe as outras
potencialidades. Daí que, no caso em apreço, não seja indemnizável, nos termos
do n.º 2 do artigo 8° do CE/99.
Porém julgamos que estamos perante uma situação duma servidão administrativa
“non aedificandi” que abrange a totalidade da parcela sobrante, que,
anteriormente ao processo expropriativo tinha potencialidades edificativas, que
foram eliminadas perante a construção da auto-estrada. Esta servidão é a
consequência necessária da declaração de utilidade pública da parcela
expropriada que dividiu o prédio em causa, e o restringiu nas suas utilidades
mais valiosas, neste caso, a capacidade edificativa. Julgamos que estamos numa
situação em que os danos, em consequência da servidão, são excepcionais,
especiais, pelo que não são urna consequência da função social, vinculação
social ou situacional do prédio que justificavam uma servidão não indemnizável.
Pois “..não estamos perante uma consequência da especial situação factual dos
bens, da sua inserção na natureza e na paisagem e das suas características
intrínsecas, ou cujos efeitos ainda se contenham dentro dos limites ao direito
de propriedade definidos genericamente pelo legislador..”( Dr. Alves Correia,
obra acima citada, pág. 454). Pelo contrário, o valor do solo em causa é de tal
ordem atingido, porque deixou de ter potencialidades edificativas, devido à
expropriação parcial, que se toma num encargo desproporcionado para o seu
proprietário face ao interesse público, se não for indemnizado. Pois participa
com uma quota parte superior aos outros cidadãos para os encargos públicos,
violando-se o princípio da igualdade. Além disso, impõe-se um sacrifício
excepcional sem contrapartida, isto é, sem indemnização, violando-se o princípio
da justa indemnização e ainda o princípio do Estado de direito democrático que
garante o princípio da igualdade e da justa indemnização. O que quer dizer que o
artigo 8° n.º 2 do CE/99 é inconstitucional, por violação do artigo 13 n.º 1, 2
e 9 e 62 n.º 2 todos da CRP, quando não abrange a servidão administrativa “non
aedificandi” emergente duma expropriação parcial duma parcela de terreno com
capacidade edificativa anterior ao processo expropriativo.
Assim, no caso, é de atender à ressarcibilidade do dano efectivo emergente da
expropriação, e indemnizar os expropriados pelos prejuízos sofridos calculados
pelo valor da construção que deixaram de poder implantar na parcela sobrante.
Valor esse que foi determinado pelo árbitros na sua decisão arbitral, e que foi
substituído na decisão recorrida pela depreciação na habitação e que é de
8.295,84 €. Porém este valor teve como fundamento l80m2 de construção ao valor
de 46.088 €. O certo é que o valor tido em conta pelos peritos é de 45,36€/m2, o
que deve ser aplicado ao caso. Assim o valor indemnizatório cifra-se em 8.164,87
€. Temos de retirar do valor global da indemnização o montante de 31.250 €,
fixado por depreciação do valor venal da habitação e acrescentar o montante de
8.164,87 €, correspondente aos danos causados pela servidão administrativa “non
aedificandi”, sobre a parcela sobrante. O que equivale a dizer que o montante
global indemnizatório é de 158.535,73 € (181.620,93 € - 31.250,00 € + 8.164,87
€). E será este o montante a fixar a favor dos expropriados.
Conclusão:
1 – O artigo 8º n.º 2 do CE/99 é inconstitucional, por violação do. princípio da
igualdade, da justa indemnização e do Estado de direito democrático quando não
abrange servidões administrativas que atinjam a essencialidade das utilidades
dos bens, impondo-lhes encargos excepcionais.
2 – A servidão non aedificandi emergente da implantação duma auto-estrada sobre
a parte sobrante duma parcela de terreno expropriada parcialmente, com
capacidade edificativa antes do processo expropriativo, deve ser indemnizada nos
termos do artigo 29 n.º 2 do CE/99, por inconstitucionalidade do artigo 8º n.º
2, por violação dos artigos 13, 2 e 9 e 62 n.º 2 todos da CRP.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
visando a apreciação da norma a que se recusou aplicação com fundamento em
inconstitucionalidade: o artigo 8.º, n.º 2 do Código das Expropriações, aprovado
pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, na interpretação segundo a qual não
abrange servidões administrativas que atinjam a essencialidade das utilidades
dos bens, impondo-lhes encargos excepcionais.
Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, apenas o Ministério
Público alegou, tendo concluindo nos seguintes termos:
“1º
A norma constante do nº 2 do artigo 8º do Código das Expropriações de 1999, ao
estabelecer um regime unitário de ressarcimento da privação de utilidades de um
prédio, como imediata consequência da imposição sobre ele de uma servidão legal
(independentemente de esta emergir ou não de um processo expropriativo),
assegurando a indemnização relativamente às utilidades actuais que o
proprietário extraía do prédio, na parte onerada, bem como nos casos de privação
absoluta de valor económico do imóvel, não afronta os princípios constantes dos
artigos 13º e 62º da Constituição da República Portuguesa.
2º
Na verdade, os critérios de fixação da justa indemnização não têm de ser
idênticos nos casos em que ocorre um acto ablativo da propriedade e naqueles em
que se verifica uma mera restrição ou oneração ao direito do respectivo titular,
assegurando o regime legal em causa o núcleo essencial de tal direito ao
ressarcimento, que não tem de se reportar necessariamente ao valor efectivo e
venal dos bens.
3º
Sendo certo que o princípio da igualdade, na sua vertente externa, sempre se
mostraria inconciliável com um tratamento radicalmente diversificado do
proprietário que é sujeito à oneração com certa servidão legal, fora de qualquer
processo expropriativo, relativamente àquele que sofre uma restrição que só de
modo remoto e indirecto se conexiona com o típico efeito ablativo da
expropriação por utilidade pública, radicando antes, de forma directa e
imediata, na construção da infraestrutura pública, visada com a dita
expropriação.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
II – Fundamentos
3. O artigo 8.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18
de Setembro (CE99), dispõe o seguinte:
“Artigo 8.º
Constituição de servidões administrativas
1 – Podem constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de
fins de interesse público.
2 – As servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização
quando:
a) Inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado
globalmente;
b) Inviabilizem qualquer utilização do bem, no caso em que estes não estejam a
ser utilizados;
ou
c) Anulem completamente o seu valor económico.
3 – À constituição das servidões e à determinação da indemnização aplica-se o
disposto no presente Código com as necessárias adaptações, salvo o disposto em
legislação especial.
As servidões administrativas, que correntemente se definem como o
encargo imposto por lei sobre certo prédio, em proveito da utilidade pública de
uma coisa (MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, p
1052-1053), têm pontos comuns com as “restrições de utilidade pública” que podem
limitar, afectar ou condicionar a situação jurídica do titular de direitos reais
sobre imóveis, mas não se confundem com estas. Ambas as figuras se traduzem em
proibições, limitações ou condicionamentos ao uso, ocupação e transformação dos
prédios sobre que incidem em razão do interesse público. Porém, enquanto nas
primeiras há uma ligação intrínseca do ónus imposto sobre o prédio serviente à
utilidade pública ou função de interesse público de uma coisa determinada (coisa
“dominante” esta que não é necessariamente de natureza predial, diferentemente
do que sucede na servidão predial em direito civil), as segundas são limitações
ao direito de propriedade que visam a realização de interesses públicos
abstractos, de utilidade pública ideal, sem relação imediata com uma coisa
pública (ou de utilidade pública) determinada (FERNANDO ALVES CORREIA, A
Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade
Pública e o Código de Expropriações de 1999, Separata da Revista de Legislação e
Jurisprudência, pg. 79).
As servidões administrativas são sempre legais, no sentido de que a
sua constituição está sujeita ao princípio da precedência de lei. Porém, a par
de servidões administrativas cuja constituição resulta ope legis, mediante a
submissão automática a regimes uniforme e directamente predeterminados de todos
os prédios que se encontrem em determinadas condições fixadas legalmente por via
geral e abstracta, outras servidões há cuja constituição exige a prática de um
acto individual e concreto por parte da Administração (um acto administrativo –
cfr. artigo 120.º do CPA), seja para verificar se ocorrem os pressupostos
legalmente exigidos, seja para definição de certos aspectos do respectivo
regime, designadamente, no respeitante à área sujeita à servidão e aos encargos
por ela impostos (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 181/70, de 28 de Abril).
As servidões administrativas podem classificar-se em várias espécies, em função
da utilidade pública que servem, do tipo de encargos que impõem sobre o prédio
onerado ou do modo de constituição. Aquela que agora nos interessa é, em função
dos encargos que impõe ao prédio serviente, a das servidões non aedificandi. São
limitações instituídas por lei, uma vezes directamente outras por intermediação
de acto administrativo, que se traduzem na proibição de construir em certos
prédios (ou em condicionamentos especiais à edificação aí consentida) por causa
ou em benefício da utilidade pública de uma coisa com a qual se encontram na
relação de vizinhança ou proximidade espacial legalmente pré-determinada.
A servidão administrativa que dá origem à questão de constitucionalidade
colocada é uma servidão non aedificandi de protecção às estradas da rede viária
nacional. De modo genérico (assim dito porque, embora obedecendo ao mesmo modelo
essencial, o programa legal de algumas estruturas rodoviárias inclui previsão
específica quanto às respectivas servidões ou faixas de respeito), trata-se de
servidões que se constituem com a publicação da planta parcelar da via a
construir ou reconstruir e que incidem sobre uma certa faixa de terreno,
determinada para cada um dos lados da estrada, cuja largura depende da natureza
da rodovia (Cf. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 13/94, de 15 de Janeiro, artigo
3.º do Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro e Decreto-Lei n.º 13/71, de 23
de Janeiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 219/72, de 27 de Junho, pelo
Decreto-Lei n.º 25/2004, de 24 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 175/2006, de 28
de Agosto).
4. Postas estas referências gerais, importa reter do caso quatro aspectos que,
tendo em conta a jurisprudência do Tribunal sobre a matéria da indemnização por
expropriações, são susceptíveis de condicionar (ou recortar) a apreciação da
questão de constitucionalidade que agora se coloca:
(i) trata-se de uma servidão non aedificandi que incide sobre a parte sobrante
de um prédio sujeito a expropriação parcial para construção da via em favor da
qual se constitui a servidão;
(ii) a parcela era anteriormente “solo apto para construção”, segundo os
elementos a que o Código das Expropriações manda atender;
( iii ) a sujeição à servidão non aedificandi implica, segundo a matéria de
facto fixada e o juízo que sobre ela fez o acórdão recorrido, a perda total
dessa anterior aptidão edificativa;
(iv) a decisão recorrida considerou que essa perda de valor devia ser atendida
no processo de expropriação, relevando a título de desvalorização da parcela
sobrante, a calcular o abrigo do art.º 29.º do Código das Expropriações.
Deste modo, a questão que cumpre apreciar, no presente recurso de
fiscalização concreta cujo objecto é delimitado pela particular dimensão
normativa a que foi recusada aplicação, é a da norma do n.º 2 do art.º 8.º do
Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro
(CE99), interpretado no sentido de que não confere direito a indemnização a
constituição de uma servidão não aedificandi que incida sobre a parte sobrante
do prédio expropriado, quando a parcela sobre que recai o ónus fosse
classificável como terreno para construção anteriormente à declaração da
utilidade pública da expropriação e o ónus atinja a totalidade da parcela.
5. É matéria de longa controvérsia saber quais e em que condições
devem as servidões administrativas dar lugar a indemnização (colocando o
problema de modo genérico porque relativamente a muitas delas a questão é
objecto de regulação especial, na legislação que as institui).
Anteriormente à Constituição de 1976, o princípio geral, estabelecido pelo
artigo 3.º da Lei n.º 2030, era o de que “as servidões derivadas directamente da
lei não d[avam] direito a indemnização” (n.º 2) e que “as servidões
constituídas por acto administrativo d[avam] direito a indemnização, quando
envolve[ssem] diminuição efectiva do valor dos prédios servientes”.
Este regime foi mantido pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do Código das
Expropriações de 1976 (CE76). E foi repetido pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 8.º do
Código das Expropriações de 1991 (CE91), com a relevante inovação de que este
último preceito reconhecia direito a indemnização, não só quando as servidões
acarretassem diminuição efectiva do valor, mas também quando delas decorresse a
diminuição efectiva do rendimento do prédio onerado (Embora, mesmo sem esta
última previsão, não fosse descabido sustentar que a diminuição do rendimento
implicava diminuição efectiva do valor da coisa onerada, calculado este, em
termos de racionalidade económica, em função daquela utilidade afectada pela
servidão).
O Código das Expropriações de 1999, procurando solucionar alguns aspectos em que
o regime anterior fora objecto de críticas, designadamente por fazer depender a
indemnizabilidade da distinção entre servidões resultantes (directamente) da lei
e servidões impostas por acto administrativo, reformulou o regime nos termos do
preceito acima transcrito. Essencialmente, a atribuição ou não do direito a
indemnização deixou de depender do modo imediato de constituição da servidão e
passou a estar ligada à índole dos prejuízos emergentes do encargo.
Como traços fundamentais deste novo regime, importa realçar, em primeiro lugar,
o tratamento unitário que é conferido ao direito de indemnização por servidões
administrativas, quer tenham sido constituídas na sequência de um processo
expropriativo, quer dele sejam totalmente independentes (artigo 8.º, n.º 2: “...
resultantes ou não de expropriações...”).
E, em segundo lugar, a limitação da indemnização ao sacrifício das utilidades
actuais, conferindo ao titular da coisa onerada um direito de indemnização de
contornos mais restritivos do que o atribuído ao proprietário expropriado (hoc
sensu aquele que suporta uma expropriação dita “clássica”, a extinção da
titularidade do direito sobre todo ou parte do prédio e a sua “transferência”
para um sujeito diferente com vista à realização de um fim público). Na verdade,
o titular do prédio onerado com a servidão “non aedificandi” apenas terá direito
a ser ressarcido – além daqueles casos em que a imposição da servidão retire
qualquer valor económico ao prédio ou inviabilize qualquer utilização (alíneas
c) e b) do n.º 2 do artigo 8.º do CE99), em que há uma substancial equivalência
de efeitos económicos entre a imposição da servidão e a privação da titularidade
(redução do valor da coisa a zero, para o seu titular) – da perda de valor
correspondente às concretas utilidades que lhe vinham sendo efectivamente dadas
à data da constituição da servidão (n.º 2, alínea a) : “ ... a utilização que
vinha sendo dada ao bem...”).
Assim, centrando-nos no tipo de servidão em causa, enquanto a “justa
indemnização” por expropriação de um terreno (expropriação “clássica” ou da
titularidade do bem) abrange o ressarcimento das potencialidades edificativas
existentes à data da declaração da utilidade pública, o direito a indemnização
consequente à imposição de uma servidão legal “non aedificandi” apenas abarca a
utilidade actual e efectiva que era extraída do imóvel onerado. Deste modo,
quando uma parcela onerada seja classificável como “solo apto para construção”
segundo os critérios objectivos a que o Código manda atender (artigo 25.º), se
não lhe estivesse a ser conferida uma efectiva e actual utilização com vista à
edificação (v.gr. por nela estar em curso uma edificação ou, no extremo, por
estar para ela aprovado um projecto de construção ou urbanização), a oneração
(rectius, a perda de valor inerente à imposição do ónus) decorrente directamente
da servidão legal (associada à construção da auto-estrada que justifica a
expropriação parcial) será insusceptível de ressarcimento.
Foi este tratamento normativo, esta interpretação do regime jurídico no sentido
de ser indemnizável a perda de valor inerente à privação total da aptidão
edificativa que a parcela sobrante anteriormente detinha (a potencialidade
edificativa reconhecida segundo os critérios legais que levariam a que o valor
do terreno fosse classificado como solo apto para construção no cálculo do valor
do bem, em processo expropriativo), que a desaplicação da norma do n.º 2 do
artigo 8.º do CE99 pela decisão recorrida quis afastar.
6. O Tribunal Constitucional apreciou, por diversas vezes, a
constitucionalidade de exclusões de compensação pela imposição de servidões
desta natureza que figuravam nos anteriores Códigos das Expropriações. A questão
foi colocada ao Tribunal em recursos de fiscalização concreta de
constitucionalidade, relativamente a servidões constituídas na sequência de
processos de expropriação parcial e a propósito da desvalorização da “parcela
sobrante” por virtude da servidão non aedificandi que sobre ela passava a
incidir a favor da obra pública (geralmente de carácter rodoviário) que motivava
a expropriação. Isto é, perante “situações de facto” em tudo semelhantes àquela
de que emerge o presente recurso.
No Código das Expropriações de 1976, o Tribunal considerou inconstitucional a
norma do n.º 2 do artigo 3.º desse Código que dispunha que “as servidões fixadas
directamente na lei não dão direito a indemnização, salvo se a própria lei
determinar o contrário”, na medida em que não consentia a indemnização do
prejuízo resultante da imposição de uma servidão non aedificandi sobre a parcela
sobrante do prédio expropriado quando este tivesse já aptidão edificativa
anteriormente ao processo expropriativo (acórdãos n.º 262/93, n.º 594/93, n.º
800/93, nºs 329/94, n.º 405/94, n.º 657/94, n.º 72/95, n.º 112/95, n.º 142/95,
n.º 154/95, n.º 192/95, n.º 230/95, n.º 250/95, n.º 391/95, n.º 588/95, n.º
665/95 e n.º 147/96, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) .
Saliente-se que em algumas destas decisões a dimensão da norma julgada
inconstitucional comportava um elemento, inerente às circunstâncias do caso de
espécie mas redutor do alcance (da extensão) do julgamento de
inconstitucionalidade, de a servidão non aedificandi abranger a totalidade da
parcela sobrante. E, retenha-se, é também esta a extensão da servidão na
situação que agora é presente ao Tribunal.
No Código de Expropriações de 1991, o Tribunal veio a julgar igualmente
inconstitucional, fiel à mesma fundamentação e também no âmbito de recursos de
fiscalização concreta emergentes de processos de expropriação parcial em que a
servidão incidia sobre a parte sobrante do prédio, a norma do n.º 2 do artigo
8.º deste Código, de conteúdo idêntico à do n.º 2 do artigo 3.º do CE76 e em
interpretação com o mesmo conteúdo normativo, pelos acórdãos n.ºs 193/98,
614/98, 740/98, 41/99 e 243/99, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt.
Finalmente, pelo acórdão n.º 331/99, publicado no Diário da República, I
Série‑A, de 14 de Julho de 1999, em processo de generalização ao abrigo do
artigo 82.º da LTC, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, “do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo
Decreto‑Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, na medida em que não permite que haja
indemnização pelas servidões fixadas directamente pela lei que incidam sobre
parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde
que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo,
capacidade edificativa, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1, e 62º,
nº 2, da Constituição”.
Note-se que, neste julgamento, o Tribunal frisou na fundamentação e expressou
na decisão que apreciava a dimensão normativa que se refere à servidão
constituída sobre a parte sobrante do prédio expropriado na sequência de
expropriação parcial.
A fundamentação desta jurisprudência é assim expressa neste acórdão de
generalização, que a reassume dos casos anteriores:
“4. A ratio do juízo de inconstitucionalidade nos Acórdãos que servem de
fundamento a este pedido tem como pressuposto a diminuição efectiva da utilidade
do prédio (serviente) derivada da imposição legal de uma servidão non
aedificandi decorrente de acto expropriativo e relativamente a parte sobrante
com anterior aptidão edificante.
Com efeito, apesar de, em si mesma, uma servidão non aedificandi não se
confundir com a expropriação, ela suscita pela afectação de uma faculdade
essencial do direito de propriedade, um prejuízo do titular do direito de
propriedade, que é, pelo menos em princípio, susceptível de indemnização, por
força de um princípio geral de indemnização de danos que, no que se refere à
afectação do direito de propriedade, radica no artigo 62º da Constituição (como
resultante da protecção constitucional de tal direito).
Independentemente dessa susceptibilidade abstracta decorrente da tutela
constitucional do direito de propriedade, mas que pode sofrer compressões em
razão do interesse público, cuja constitucionalidade não cabe, aqui, averiguar
em geral, uma razão específica aponta, no tipo de situações agora consideradas,
para, por razões de justiça e de igualdade, tornar concretamente exigível uma
indemnização quando a constituição da servidão incidente sobre a parte sobrante
do prédio surgir na sequência de expropriação de parte do mesmo prédio. Essa
razão consiste em que, nesse caso, à extinção do direito de propriedade
decorrente da mesma expropriação acresce uma essencial diminuição das faculdades
do direito de propriedade quanto à parte sobrante.
Embora a constituição da servidão tenha, obviamente, como causa jurídica, a
protecção legal do interesse público, a precedência da expropriação cria um
efeito global na função económica da propriedade, que, incidindo a sujeição
sobre a parte sobrante, faz decorrer histórica e funcionalmente da expropriação
uma redução global das utilidades do bem que é objecto do direito de
propriedade. A não indemnização da servidão non aedificandi implicaria, por
isso, uma compressão desproporcionada do direito de propriedade e uma violação
da igualdade na tutela desse direito.
São estas razões que justificaram a decisão do Tribunal Constitucional nos
Acórdãos fundamento, os quais se limitaram a julgar a inconstitucionalidade do
artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, por violação dos artigos 62º, nº
2, e 13º, nº 1, da Constituição, enquanto admitisse, sem indemnização, a
constituição de uma servidão legal na sequência fáctica de um processo
expropriativo.”
O Tribunal admitiu, portanto, que a garantia da justa indemnização
contida no n.º 2 do artigo 62.º não se limita aos actos ablativos da
titularidade do bem (ou direito real) para prossecução do bem comum, abrangendo
a perda de valor inerente à imposição de uma servidão de direito público que
sacrifique uma das faculdades de gozo ou uso (utilitas rei) que a coisa
anteriormente proporcionava. Mas também frisou que se ocupava apenas daquelas
imposições de sacrifício que acresciam a expropriações da titularidade de outra
parcela do (mesmo) bem onerado.
7. Deve ainda referir-se que o Supremo Tribunal de Justiça também
foi chamado a intervir na matéria, aí para resolver o conflito de jurisprudência
quanto à interpretação do direito ordinário, no âmbito de aplicação do CE76.
Pelo Assento n.º 16/94 fixou-se jurisprudência no sentido de que “na vigência do
Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de
Dezembro, é devida indemnização, em sede de expropriação, pelo prejuízo que
efectivamente resulte, na parte sobrante dos prédios expropriados, da servidão
non aedificandi decorrente da implantação de uma auto-estrada”.
Neste acórdão entendeu-se, com um número significativo de votos de
vencido, que a servidão em causa resultava directamente da lei e não de um acto
administrativo concreto. O que, na opinião de ALVES CORREIA, A Jurisprudência do
Tribunal Constitucional …, pg 87, dada a clareza do n.º2 do art.º 3.º do CE76
quanto à não indemnização das servidões fixadas directamente na lei, significa
que o Supremo Tribunal de Justiça recusou implicitamente a aplicação dessa norma
com fundamento em inconstitucionalidade, não havendo, assim, divergência entre o
Tribunal Constitucional e aquele Supremo Tribunal quanto à problemática da
indemnização das servidões non aedificandi relacionadas com um procedimento
expropriativo.
8. Não pode dizer-se que a norma agora sob exame seja a mesma que
foi objecto de apreciação na jurisprudência do Tribunal anteriormente referida,
uma vez que ocorreu, não só uma alteração legislativa formal (o que sempre
afastaria a identidade de objecto), mas sobretudo uma modificação substancial do
regime global de indemnização dos prejuízos resultantes de servidões
administrativas, como se referiu (cfr. supra 4.).
Todavia existe substancial identidade de questão problemática face à
Constituição, entre a situação jurídica que agora nos é presente e as que foram
anteriormente examinadas. Pergunta-se agora ao Tribunal, como então se
perguntava e se respondeu negativamente, se é admissível, face ao n.º 2 do
artigo 62.º e ao n.º 1 do artigo 13.º da CRP, que não seja indemnizado o
prejuízo resultante da constituição de servidões non aedificandi que afectem a
parte sobrante de prédios expropriados que, anteriormente à declaração pública
da expropriação, tinha aptidão edificativa.
9. Perspectivada a questão deste modo, e mantendo-se inteiramente
válidos os fundamentos da jurisprudência do Tribunal que culminou naquela
declaração com força obrigatória geral, tem de concluir-se que a alteração do
regime jurídico ordinário em nada muda os termos de análise do problema e a
resposta que lhe deve ser dada.
Efectivamente, os parâmetros constitucionais relevantes permaneceram
inalterados e a provisão que o direito infra-constitucional actual fornece para
esta situação típica (o concreto conteúdo normativo extraído do preceito
actualmente vigente que se entendeu recusar por inconstitucionalidade para poder
decidir como se decidiu) é a mesma que lhe era dada pelo direito anterior.
Trata-se, agora como então, de saber se a Constituição garante ou não
indemnização pela perda de valor sofrida pelo proprietário onerado que decorra
da imposição de uma servidão non aedificandi que abrange toda a parcela sobrante
de um prédio parcialmente expropriado, quando essa parcela constituía
anteriormente “solo apto para construção” e essa diminuição da utilitas rei
surge facticamente associada a um processo expropriativo.
Ora, como se disse no acórdão n.º 331/99, à extinção do direito de
propriedade decorrente da mesma expropriação acresce uma essencial diminuição
das faculdades actuais do direito de propriedade quanto à parte sobrante,
criando um efeito global que decorre histórica e funcionalmente da expropriação
e uma redução global das utilidades do bem cuja não indemnização implicaria uma
compressão desproporcionada do direito de propriedade e uma violação da
igualdade na tutela desse direito.
10. E os argumentos trazidos pelo Ministério Público não convencem
de que deva abandonar-se a referida jurisprudência ou que se imponha, perante a
norma em causa, análise diversa daquela a que se procedeu perante o direito
anterior.
Com efeito, ao Tribunal não cabe apreciar o equilíbrio global do novo regime de
indemnização por constituição de servidões, mas apenas responder ao que
interesse à particular dimensão normativa integrada pelos elementos acima
referidos: (i) servidão non aedificandi, (ii) incidência da servidão sobre
parcela sobrante de prédio parcialmente expropriado, (iii) existência actual de
aptidão construtiva dessa parcela, (iiii) sacrifício total dessa potencialidade.
Ora, para esta situação normativa a resposta do direito anterior e do direito
actual é invariável, ou seja, para uma dada situação carecida de tutela jurídica
o direito infra-constitucional mantém, apesar da alteração legislativa, a
solução já julgada desconforme à Constituição. Na verdade, o que levou a
concluir pela inconstitucionalidade do regime anterior não foi a distinção em
razão do modo de constituição da servidão (resultar o ónus directamente da lei
ou ser intermediado por acto administrativo), mas o facto de a privação, em
benefício da coisa pública cuja utilidade justifica a expropriação, de
faculdades concretas e actuais, determinantes do valor do bem num aproveitamento
económico normal, não ser acompanhada de adequada compensação. Num ou noutro
regime, o proprietário onerado com a servidão fica colocado numa posição mais
gravosa do que a da generalidade dos proprietários de bens da mesma natureza ou,
até, daqueles que sofreram expropriação total e viram esse direito ou faculdade
de uso da coisa ser valorado na determinação da justa indemnização, em violação
do princípio da igualdade de contribuição de todos para os encargos públicos.
Trata-se, neste tipo de servidões, de uma limitação singular às possibilidades
objectivas de uso do solo preexistentes que comporta uma restrição significativa
da sua utilização (a totalidade da aptidão edificativa actual) de efeitos
equivalentes a uma expropriação, porque sacrifica um factor de valorização do
solo que numa expropriação do prédio, em igualdade de circunstâncias, seria
necessariamente levado em conta no cálculo da indemnização. Se, nos casos de
expropriação total, a aptidão edificativa actual funciona como um dos factores a
ter em conta na fixação da indemnização a atribuir ao expropriado a título de
ressarcimento pelo prejuízo decorrente da expropriação, também naqueles casos em
que a Administração impõe a certos particulares vínculos que diminuem
substancialmente a utilitas rei a igualdade exige que se reconheça ao titular
afectado o direito à “justa indemnização”.
Deve, pois, concluir-se que estamos perante um encargo que incide
especialmente sobre os cidadãos onerados, que implica o sacrifício total e
permanente de uma faculdade actual inerente à propriedade da coisa (a aptidão
edificativa que a parcela sobrante já detinha como solo classificado como apto
para construção segundo os factores objectivos relevantes à luz do artigo 25.º
do Código das Expropriações) e que é imposto por razões de interesse público.
Justifica-se que à luz do princípio da igualdade dos cidadãos perante os
encargos públicos o proprietário expropriado e simultaneamente onerado seja
indemnizado da perda de valor correspondente.
Assim, ao não consentir a indemnização da servidão non aedificandi que incida
sobre a totalidade da parcela sobrante de um prédio expropriado para construção
de uma auto-estrada, parcela onerada essa que anteriormente ao processo
expropriativo tinha potencialidades edificativas que foram totalmente
eliminadas, o n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações de 1999 viola o
direito à justa indemnização e o princípio da igualdade de contribuições para os
encargos públicos. No mesmo sentido se pronuncia FERNANDO ALVES CORREIA, op.
cit., pág. 83, que afirma. “Tendo em conta o que vimos de referir, propendemos a
entender que a norma do n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações de 1999,
na parte em que não consente a indemnização de todas e quaisquer servidões
administrativas que produzam danos especiais e anormais (ou graves) na esfera
jurídica dos proprietários dos prédios pelas mesmas onerados, é
inconstitucional, por violação do princípio do Estado de direito democrático,
condensado nos artigos 2.º e 9.º, alínea b) da Constituição (a indemnização dos
prejuízos oriundos daquelas servidões é uma exigência deste princípio), do
princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º, n.º 1, da Lei Fundamental (o
proprietário do prédio afectado pelas referidas servidões administrativas
contribuirá em maior medida do que os restantes cidadãos para o interesse
público, havendo, assim, uma violação do “princípio da igualdade dos cidadãos
perante os encargos públicos”, se os danos por ele suportados não forem
indemnizados) e do princípio da “justa indemnização” por expropriação
(entendida, aqui, no sentido de expropriação de sacrifício ou substancial),
consagrado no artigo 62.º, n.º 2, também da Constituição”.
Deste modo, tal como nos acórdãos anteriores do Tribunal em que se
reconheceu direito a indemnização pela imposição de servidão non aedificandi se
considerou, a acumulação de efeitos lesivos no mesmo titular (a expropriação de
substância de uma parte e o sacrifício da potencialidade edificativa na parcela
sobrante) constitui “uma razão específica [que] aponta, no tipo de situações
agora consideradas, para, por razões de justiça e de igualdade, tornar
concretamente exigível uma indemnização”, considerando-se que “a precedência da
expropriação cria um efeito global na função económica da propriedade, que,
incidindo a sujeição sobre a parte sobrante, faz decorrer histórica e
funcionalmente da expropriação uma redução global das utilidades do bem que é
objecto do direito de propriedade”.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 13.º e do n.º 2 do
artigo 62.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 8.º do Código das
Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, interpretada no
sentido de que não confere direito a indemnização a constituição de uma servidão
non aedificandi de protecção a uma auto-estrada que incida sobre a totalidade da
parte sobrante de um prédio expropriado, quando essa parcela fosse classificável
como “solo apto para construção” anteriormente à constituição da servidão.
B) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a sentença
recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lx. 2/XII/2009
Vítor Gomes (com declaração anexa)
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não acompanho inteiramente a fundamentação adoptada, na parte em
que considera que a confluência, sobre o mesmo prédio, da imposição da servidão
administrativa e da expropriação parcial constitui uma razão específica para o
juízo de inconstitucionalidade a que se chegou.
A meu ver, não é consistente, podendo mesmo contender com o
princípio da igualdade, eleger como factor distintivo, para efeitos do direito à
indemnização pela sujeição à servidão administrativa non aedificandi, a
circunstância acidental de a oneração incidir sobre a parcela sobrante de um
prédio expropriado.
Efectivamente, no plano substantivo, do direito à indemnização (mas já pode
haver para um tratamento diferenciado no domínio processual), não se vê razão
para tratar mais favoravelmente este tipo de situações (servidão incidente sobre
a parte sobrante de prédio expropriado) daquelas outras em que a mesma servidão
(com idêntico conteúdo, decorrente da mesma disposição legal, estabelecida em
benefício da mesma coisa pública dominante e implicando o mesmo efeito gravoso
na consistência económica da parcela onerada) é constituída sem relação com
qualquer processo expropriativo, i.e., passa a existir simplesmente porque o
prédio passa a ser marginado pela auto-estrada. Sob todos os pontos de vista
relevantes para o problema da indemnizabilidade dos prejuízos decorrentes da
servidão (limitação das faculdades inerentes ao direito de propriedade,
igualdade de contribuição para os encargos públicos, natureza da via geradora da
sujeição, gravidade das consequências do encargo no aproveitamento económico do
prédio) as situações são perfeitamente equiparáveis. A concomitância da
expropriação confere oportunidade para a apreciação da perda patrimonial através
do processo de expropriação (lato sensu, fase administrativa e judicial), mas
não induz qualquer efeito diferencial no sacrifício substancial suportado pelo
proprietário onerado.
Na verdade, mesmo quando surge na sequência de processo expropriativo relativo a
parte do prédio, a servidão não deriva dessa expropriação mas antes, em termos
imediatos e directos, da construção da obra pública. A acumulação destas
qualidades no mesmo sujeito (a de proprietário expropriado e a de proprietário
onerado com a servidão) é meramente circunstancial. O ónus desvaloriza do mesmo
modo e com a mesma intensidade um prédio simplesmente marginado pela
auto-estrada e aquele outro que resultou do parcelamento imposto pela
expropriação se, por efeito dele, ambos perderam totalmente a aptidão que
anteriormente a ordem jurídica lhes reconhecia.
Assim, no aspecto material, do direito à “justa indemnização” pelo sacrifício –
coisa diversa, repete-se, será o aspecto processual, em que razões de economia
processual justificam o aproveitamento do processo relativo à expropriação
parcial para determinar conjuntamente a indemnização quanto aos dois aspectos,
não se vendo como daí possa decorrer violação do princípio da igualdade – não há
razão para tratar diversamente as situações (como a presente) em que a servidão
incide sobre a parte sobrante de prédio expropriado. Tal hipótese é idêntica,
sob os pontos de vista juridico-constitucionalmente relevantes, à imposição de
servidão sobre prédio não expropriado que tenha e veja sacrificadas as mesmas
possibilidades de aproveitamento económico normal e igualmente marginado por uma
estrada ou auto-estrada. O reconhecimento do direito à indemnização não pode,
pois, repousar no efeito “sinérgico” que impressionou a maioria dos juízes do
Tribunal no acórdão n.º 331/99 e que no presente acórdão se continua a adoptar
como decisivo.
2. Posto isto, não sendo mobilizável o argumento da concorrência do efeito
gravoso decorrente de processo de expropriação parcial do mesmo prédio para
justificar a indemnização pelo ónus imposto sobre a parte sobrante, importa
averiguar, de forma mais extensa, se é desconforme à Constituição
(designadamente, ao seu artigo 62º, n.º 2) a exclusão do direito de indemnização
para as servidões non aedificandi de protecção às auto-estradas e estradas
nacionais que se não compreendam no n.º 2 do art.º 8.º do Código das
Expropriações de 1999, ou seja, relativamente a servidões desta natureza que
incidam sobre solo apto para construção que não o privem da utilização que lhe
vinha sendo dada (alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º), nem lhe façam perder
completamente o valor económico (alínea c) do n.º 2 do artigo 8.º), mas que lhe
retirem totalmente a capacidade edificatória que detinha à data do acto
impositivo do ónus.
As servidões non aedificandi de protecção à rede rodoviária nacional
decorrem da lei, no sentido de que não exigem um acto definitório (accertamento)
por parte da Administração, que individualize o prédio, identifique os titulares
e defina a extensão concreta do ónus. A servidão define-se mediante certa
relação de vizinhança legalmente prevista entre o prédio e a estrada, sem
necessidade de acto administrativo (ou judicial) que o declare. Mas apenas nesse
sentido pode dizer-se que a servidão não é imposta por acto administrativo. Com
efeito, a servidão só fica constituída com a decisão administrativa de aprovação
do projecto da via em benefício da qual é estabelecida ou com a construção ou
afectação desta (a opção sobre em qual destes momentos a servidão fica perfeita
depende da análise do respectivo regime legal e não é aqui decisiva). Há sempre,
portanto, um acto da Administração que, escolhendo o traçado da via,
irremediavelmente determina quais os prédios (e, consequentemente, os
proprietários) onerados com a servidão non aedificandi correspondente.
Concede-se que seja um efeito indirecto ou reflexo, se pensarmos no elemento da
intencionalidade da decisão administrativa; mas não deixa de ser um efeito
necessário e típico dessa decisão. Em termos sintéticos, é o traçado da via e
não a lei que individualiza o encargo.
Assim e em geral, por um lado, este ónus é imposto, em último termo,
por uma intervenção administrativa justificada por razões de interesse público
e, por outro, não se identifica com o mero reconhecimento de uma vinculação
situacional objectiva do solo. Não é consequência das características do terreno
afectado pela proibição de construir (pantanoso, alagadiço, declivoso, instável,
sujeito a avalanches, etc.), da sua relação com acidentes geográficos (rios,
lagos, mar, etc.) ou com as características, ocupação ou aproveitamento
consolidado anterior do espaço envolvente (especial aptidão agrícola, sítios
paisagísticos, protecção de biótopos naturais, zonas históricas, monumentos,
etc.), mas de uma decisão da Administração de construção da estrada com aquele
traçado e não com outro qualquer. Apesar de o ónus surgir por efeito de uma
relação de vizinhança com a coisa pública que é dada pela lei, sem necessidade
de identificação individual dos prédios sujeitos ao ónus, há sempre um acto
pressuposto que comporta uma escolha, uma opção administrativa para servir um
interesse público concreto daquela maneira, que equivale a um acto singular
porque comporta uma intervenção unilateral das entidades públicas que,
escolhendo o traçado da via, indirecta mas inexoravelmente designa os prédios
que ficarão sujeitos à servidão non aedificandi .
E, considerando a especificação ou dimensão aplicativa concreta da
norma em causa (incidência do ónus sobre parcela classificada como “solo apto
para construção” com privação total dessa potencialidade), trata-se de uma
limitação singular às possibilidades objectivas de uso do solo preexistentes que
comporta uma restrição significativa da sua utilização (a totalidade da aptidão
edificativa actual) de efeitos equivalentes a uma expropriação, porque sacrifica
um factor de valorização do solo que seria necessariamente levado em conta no
cálculo da indemnização numa expropriação (da titularidade) do mesmo bem, em
igualdade de circunstâncias. Se, nos casos de expropriação total, a aptidão
edificativa actual funciona como um dos factores a atender no cálculo da
indemnização a atribuir ao expropriado a título de ressarcimento pelo prejuízo
decorrente da expropriação, também naqueles casos em que a Administração impõe a
certos particulares vínculos que diminuem substancialmente a utilitas rei, a
igualdade exige que se reconheça ao titular afectado o direito à “justa
indemnização”.
Parece, pois, poder concluir-se que se depara um encargo que incide
especialmente sobre os cidadãos onerados, que implica o sacrifício total e
permanente de uma faculdade actual inerente à propriedade da coisa (a aptidão
edificativa que a parcela sobrante já detinha como solo classificado como apto
para construção, segundo os factores objectivos relevantes à luz do artigo 25.º
do Código das Expropriações) e que é imposto por razões de interesse público.
Justifica-se que à luz do princípio da igualdade dos cidadãos perante os
encargos públicos o proprietário onerado seja indemnizado da perda de valor
correspondente.
Com efeito, não pode dizer-se, mormente quando a coisa dominante é uma
auto-estrada que, por definição, não serve os prédios marginantes, que se trate
de uma contrapartida do funcionamento dos serviços públicos que deva ser
suportado, à luz de um princípio de socialidade ou de conformação social da
propriedade, pelo sujeito sobre que incide. Nem pode pretender-se
que essa relação de vizinhança com a via significa que a limitação das
possibilidades de aproveitamento urbanístico é consequência da vinculação
situacional do solo, porque a sua emergência concreta só surge como efeito de
uma opção da entidade administrativa que estabeleceu aquele traçado, não sendo
inerente às características intrínsecas ou à particular situação factual do
terreno. Não é, pois, uma regulação geral ou delimitação do conteúdo do direito
de propriedade quanto a certo tipo de bens, mas de uma privação singular e
substancial do aproveitamento económico da coisa, com “penetrante incidência” no
gozo standard que a lei permitia ao proprietário à data da imposição do ónus,
por causa de utilidade pública.
3. Deste modo, acompanho o juízo de inconstitucionalidade da norma,
mas porque entendo que a indemnização é constitucionalmente devida pela
imposição de quaisquer servidões administrativas que produzam danos especiais e
anormais (ou graves) na esfera jurídica dos proprietários de solos
classificáveis como “solo apto para construção”, independentemente da
circunstância acidental que consiste na convergência da expropriação parcial e
da imposição do sacrifício sobre o mesmo prédio (e o mesmo sujeito).
A esta luz, fica suprimida a base argumentativa para a alegada
violação do princípio da igualdade, na vertente da chamada “igualdade externa”
da relação de expropriação. O tratamento privilegiado que se traduz em o
proprietário simultaneamente afectado pela imposição do sacrifício e pela
privação da titularidade ver a indemnização fixada no processo de expropriação,
além de respeitar ou de decorrer de uma norma que não é objecto do presente
recurso (o artigo 29.º do CE99), não constitui diferenciação constitucionalmente
proibida. A “competência por atracção” que leva à fixação da indemnização por
esta via – supondo que corresponda à correcta interpretação do regime legal, o
que não cabe ao Tribunal apreciar – é perfeitamente justificada pelo princípio
da economia processual (na vertente não só de economia de actos processuais,
como de economia de processos) e tem pleno suporte na realidade
procedimentalmente diferenciada em que se encontram os diversos sujeitos
passivos da servidão. Quem for expropriado entra necessariamente em relação
procedimental com a entidade expropriante, sendo razoável que se aproveite o
procedimento e o processo subsequente para regular a situação relativamente aos
dois efeitos gravosos que, na qualidade de proprietário daquela unidade predial,
lhe são impostos em função daquela mesma obra pública. Quem sofre, apenas, a
privação de faculdades, sem privação da titularidade, não está nessa relação
procedimental necessária de iniciativa pública, pelo que o ónus de ter que
desencadear as vias administrativas e judiciais adequadas a ser ressarcido pelo
sacrifício não é senão consequência dessa diversa situação de partida quanto à
relação procedimental com a entidade expropriante. Pode discutir-se se a
imposição da servidão administrativa não deveria ser sempre acompanhada de um
procedimento de iniciativa oficiosa destinado a assegurar a indemnização, mesmo
para aqueles proprietários que não sofrem expropriação de titularidade. Mas essa
é questão estranha à constitucionalidade da norma em causa, não podendo
converter-se um eventual deficit de protecção de um grupo de sujeitos em vício
da norma que protege outros sujeitos do mesmo universo de situações
juridicamente relevantes, por violação do princípio da igualdade.
Vítor Gomes