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Processo n.º 676/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por decisão da Autoridade Para as Condições do Trabalho, de 16 de Março de 2009,
foi a ora recorrida, A., Limitada, condenada ao pagamento de uma coima no valor
de € 1248,00, pela prática de uma contra-ordenação laboral prevista e punida nos
termos do disposto no n.º 1, do artigo 7.º, do Decreto-lei nº 272/89 de 19 de
Agosto.
Inconformada com esta decisão a arguida recorreu para o Tribunal de Trabalho de
Faro, que, por sentença de 4-5-2009, julgou o recurso procedente e, em
consequência, revogou a decisão administrativa que havia imposto uma coima à
arguida.
Para assim concluir, ponderou, designadamente, o seguinte:
“No domínio contra-ordenacional valem também os princípios da legalidade, quer
das contra-ordenações, quer do processo e, bem assim, da presunção de inocência
do arguido (cfr. art.ºs 2.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e
32.º, n.º 2 da CRP).
Do auto de notícia não consta qualquer facto imputando à Recorrente a
responsabilidade pelo cometimento da infracção enquanto entidade patronal do
condutor daquele veículo. O que, diga-se em abono da verdade, não era exigido
pelo precedente regime das contra-ordenações laborais constante da Lei 116/99,
de 4 de Agosto, uma vez que, no seu art.º 4.º se prescrevia o seguinte:
«1. São responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das
coimas:
a) A entidade patronal, quer seja pessoa singular ou colectiva associação sem
personalidade jurídica ou comissão especial;
(…).»
Todavia, conforme refere o Acórdão da Relação de Coimbra, proferido a
04-03-2004, nas Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em Bases
Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em www.dgsi.pt, com expressa
revogação da Lei 116/99, «tem que se entender que o sujeito da referida
contra-ordenação é quem pratica (o motorista), apenas podendo também responder
a sua entidade patronal desde que no auto de notícia conste a materialidade
fáctica que permita a imputação do ilícito penal à entidade empregadora, quer
seja a nível da sua exclusiva autoria, quer como co-autora, quer a titulo de
cúmplice (art.ºs 614.º do Código do Trabalho e 26.º e 27.º do Código Penal).»
E acrescenta este arresto:
«Não havendo no auto de notícia factos que permitam a imputação directa do
referido ilícito à empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo
contra-ordenacional com base nos citados preceitos.»
Nesse sentido, pode ver-se também o Acórdão da Relação de Coimbra, de
26-02-2004, igualmente disponível em Bases Jurídico-Documentais do Ministério da
Justiça, em http://www.gde.mj.pt.
Daí que também se tenha entendido no acórdão da Relação do Porto, proferido em
12-07-2004, em Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em
http://www.gde.mj.pt, que «é o condutor-trabalhador, e não a entidade
empregadora, o responsável pela infracção traduzida no incumprimento das
disposições legais relativas aos tempos de condução e de repouso.» Isto porque,
conforme se sustentou no referido Acórdão:
«A imputação ao trabalhador-condutor da infracção só é compreensível pelo facto
de estar em causa, conforme já referido, a segurança nas estradas. Na verdade,
quando o trabalhador está na estrada, exercendo as funções de condução, é ele
que controla essa actividade e mais ninguém, e por isso tem ele de respeitar as
interrupções na condução e os tempos de repouso tendo em conta a sua segurança e
a dos demais utentes da estrada.
E argumentar-se-á: mas assim fica de fora qualquer responsabilidade da entidade
patronal. Mas não, já que à entidade patronal compete organizar o serviço e
forma a dar cumprimento à regulamentação social em matéria de segurança
rodoviária (art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 272/89, de 19 de Agosto, na redacção
dada pela Lei 114/99 e art.º 10.º do Regulamento).
Assim, e tendo em conta a redacção dada pela Lei 114/99 ao art.º 7.º do
Decreto-Lei n.º 272/89, em especial o seu n.º 6, quis o legislador imputar ao
condutor/ trabalhador e o não cumprimento de qualquer disposição relativa aos
tempos de condução e repouso, assim como as interrupções da condução previstas
no Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho de 20.12.85.
Por isso, não pode a recorrente - entidade patronal – ser responsabilizada pela
prática da referida infracção na medida em que ela não foi o seu agente, sendo
certo que não nos encontramos perante qualquer responsabilidade objectivo ou
responsabilidade a título de «culpa in vigilando.»
Ou seja, a existir qualquer infracção foi ela praticada pelo supra identificado
condutor, que é trabalhador da Arguida, pelo que, em consonância com o atrás
referido, a responsabilidade pela prática da infracção em causa no presente
processo e, consequentemente, pelo pagamento da correspondente coima e das
custas do processo, não pode recair sobre aquela.
Com efeito, face à entrada em vigor do Código de Trabalho e à consequente
revogação da Lei 116/99, tem que se entender que o sujeito da referida
contra-ordenação é quem a pratica, ou seja, o motorista. Apenas podendo, também
responder a entidade patronal desde que o Auto de Notícia conste a
materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade
empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer, como co-autora,
quer a título de cúmplice. Não havendo no Auto de Notícia factos que permitam a
imputação directa do referido ilícito à entidade empregadora, impõe-se a
respectiva absolvição em processo contra-ordenacional com base nos art.ºs 614.º
do Código do Trabalho e 26.º e 27.º do Código Penal. Pelo que assim sendo deverá
proceder o recurso.
É certo que entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de
Junho de 2007, o qual, no n.º 1 do seu art.º 1.º esclareceu que «o disposto nos
artigos 3.º a 9.º prevalece sobre as disposições correspondentes do Código do
Trabalho».
Ora, o n.º 1 do seu art.º 8.º, veio estipular que «o período de trabalho diário
dos trabalhadores de duração não inferior a trinta minutos, se o número de horas
de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, número de horas for superior
a nove» e no n.º 2 que «os trabalhadores móveis não podem prestar mais de seis
horas de trabalho consecutivo.» E por sua vez, o n.º 2 do art.º 10.º desse
diploma estabeleceu que «o empregador é responsável pelas infracções ao
disposto no presente decreto-lei.»
Destarte, aparentemente estaria assim estabelecida nova fonte legal de
responsabilização contra-ordenacional para os empregadores cujos trabalhadores
fossem motoristas de veículos pesados de mercadorias ou de passageiros que
tivessem violado o ali estabelecido sobre os tempos máximos de trabalho/de
descanso. Mas vejamos mais cuidadosamente se assim será.
Conforme estipula o n.º 2 do art.º 1.º do mencionado diploma legal, «o presente
diploma transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/15/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do
tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de transporte
rodoviário.»
Sabemos bem que segundo o n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República, «as
disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das
suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na
ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático.» Ora, sobre essa
matéria diz-nos o art.º 249.º do Tratado da Comunidade Europeia diz que «a
directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar,
deixando no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos
meios.» Daí que importe saber se o que sobre isso dispõe a Constituição da
República Portuguesa.
Releva, desde logo, o n.º 8 do seu art.º 112.º, segundo o qual «a transposição
de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a
forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto
legislativo regional.» E também o art.º 165.º, o qual, no que interessa tem o
seguinte conteúdo.
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
(…)
d) Regime geral … dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo;
(…).»
Ora, o Governo publicou o citado Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho de
2007 desprovido de qualquer autorização legislativa. De resto, nem escondeu que
o fazia, uma vez que ali invocou para legitimar a sua tarefa o disposto no
art.º 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição, o qual, como é de conhecimento
generalizado, versa sobre a competência legislativa própria daquele órgão. Que
assim é pode facilmente constatar-se lendo seu conteúdo, que é este:
«1. Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a) Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
(…).»
Assim sendo as coisas, afigura-se-nos singelamente claro que aquele diploma é
inconstitucional e por isso não pode ser aplicado pelos tribunais, sem ofensa da
própria Lei Fundamental (cfr. o seu art.º 204.º). O que, não ignoramos, o
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-02-2008, publicado nas Bases
Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.dgsi.pt, não
ponderou, tendo aplicado aquele diploma sem qualquer consideração acerca do
regime normativo que atrás referimos.
Daí que a solução seja, como atrás se delineou, aplicar o direito em vigor e que
mais não é do que o que atrás deixámos referido, tanto bastando para que proceda
o recurso.”
O Ministério Público recorreu desta sentença, nos termos do artigo 70.º, n.º 1,
a), da LTC, por ter recusado a aplicação do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de
Junho, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Apresentou alegações em que concluiu do seguinte modo:
“1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia
da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação
social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos
limites impostos por esse regime geral.
2. No uso dessa sua competência própria, pode a Assembleia definir regimes
gerais sectoriais, tendo em atenção as especificidades das matérias que visa
regular, como é o caso das infracções laborais.
3. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614º do
Código do Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das
Contra-Ordenações Laborais), podem estar incluídos entre os sujeitos
responsáveis pela infracção tanto as entidades empregadoras como os
trabalhadores.
4. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele o regime geral, o critério
normativo, extraído dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº2, do
Decreto-Lei nº237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do
empregador pela contra-ordenação consistente em violação do limite máximo de
duração do trabalho diário dos “trabalhadores móveis” (definidos no artigo 2º,
alínea d), do mesmo diploma), não viola o artigo 165º, nº 1, alínea d), da
Constituição, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional.
5. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A recorrida apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do
recurso.
*
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
Apesar da decisão recorrida explicitar a recusa de aplicação do Decreto-lei n.º
237/2007, de 19 de Junho, na sua totalidade, do raciocínio nela efectuado
resulta que apenas se afastou a aplicação do disposto no artigo 8.º, n.º 1,
conjugado com os artigos 10.º, n.º 2, e 16.º, daquele diploma, uma vez que foi
da leitura destes preceitos que se entendeu que dos mesmos resultava a
responsabilização do empregador pela prática da infracção pela qual havia sido
aplicada uma coima à arguida.
Assim, apenas cumpre apreciar da constitucionalidade do arco normativo
constituído pelos artigos 8.º, n.º 1, 10.º, n.º 2, e 16.º, do Decreto-lei n.º
237/2007, de 19 de Junho.
2. Do mérito do recurso
Considerou a decisão recorrida que o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho,
que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 202/15/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do
tempo de trabalho das pessoas que exerçam actividades móveis de transporte
rodoviário, é organicamente inconstitucional, quando prevê a punição do
empregador pela infracção ao disposto no artigo 8.º, n.º 1, como
contra-ordenação, por alegada violação do artigo 165.º, nº 1, alínea d), da
Constituição.
Neste preceito constitucional impõe-se que o regime geral da punição dos actos
ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo seja definido pela
Assembleia da República, salvo autorização ao Governo.
Mas esta reserva legislativa abrange apenas o regime geral deste direito
sancionatório.
Como tem dito este Tribunal (v.g. os Acórdãos n.º 56/84, em ATC, 3.º vol, pág.
153, 158/92, em ATC, 21.º vol., pág. 713, 594/97, em DR, II Série, de
10-12-1997, 236/2003, em ATC 56.º vol., pág. 233, e 324/2003, em
www.tribunalconstitucional.pt) tal regime abrange apenas as regras essenciais
deste direito sancionatório, ou seja, a definição geral do ilícito
contra-ordenacional, do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e dos
seus limites, e das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a
aplicação concreta de tais sanções, podendo o Governo, com respeito por este
regime geral, criar livremente contra-ordenações concretas, modificar ou
eliminar as contra-ordenações já existentes e estabelecer as coimas a elas
aplicáveis.
A definição do regime geral pode destinar-se genericamente a todas e quaisquer
contra-ordenações, como sucede com o Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
ou ter como objecto apenas as contra-ordenações previstas para um determinado
sector (v.g. o regime geral das contra-ordenações laborais, constante do Código
de Trabalho, ou o regime geral das contra-ordenações fiscais, constante do
Regulamento Geral das Infracções Tributárias), nada impedindo, contudo, que o
Governo, desde que respeite o disposto nesses regimes gerais, por razões de
economia legislativa, também aprove algumas regras comuns a um determinado
conjunto de contra-ordenações, agrupadas tematicamente.
Necessário é que essas regras não invadam o âmbito do regime geral ou essencial
das contra-ordenações e, quando nele se insiram, se limitem a reproduzir as
soluções que já constam do regime fixado pela Assembleia da República ou por ela
autorizado.
O Decreto-lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, procedeu à transposição para a ordem
jurídica interna da Directiva n.º 2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das
pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário, regulando
determinados aspectos da duração e organização do tempo de trabalho de
trabalhadores móveis que participem em actividades de transporte rodoviário
efectuadas em território nacional e abrangidas pelo Regulamento (CEE) n.º
3820/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, ou pelo Acordo Europeu Relativo ao
Trabalho das Tripulações dos Veículos Que Efectuam Transportes Internacionais
Rodoviários (AETR), aprovado, para ratificação, pelo Decreto n.º 324/73, de 30
de Junho.
No artigo 8.º, n.º 1, impõe-se que o período de trabalho diário dos
trabalhadores móveis seja interrompido por um intervalo de descanso de duração
não inferior a 30 minutos, se o número de horas de trabalho estiver compreendido
entre seis e nove, ou a quarenta e cinco minutos, se o número de horas for
superior a nove, e no artigo 16.º tipifica-se a violação deste dever como
contra-ordenação.
O artigo 10.º, depois de no n.º 1 determinar que o regime geral previsto nos
artigos 614.º a 640.º do Código do Trabalho se aplica às contra-ordenações por
violação daquele diploma, no n.º 2 responsabiliza o empregador pela prática das
respectivas infracções.
Deste modo, os preceitos sob análise limitam-se a tipificar uma determinada
contra-ordenação, submetida ao regime geral das contra-ordenações laborais
aprovado pela Assembleia da República.
Note-se que o n.º 2, do artigo 10.º, é perfeitamente compatível com o regime
geral do artigo 614.º, do Código do Trabalho, uma vez que este regime comporta a
imputação subjectiva a qualquer um dos sujeitos da relação laboral.
Estes preceitos, como é evidente, não se integram num regime geral das
contra-ordenações, correspondendo apenas à criação de contra-ordenações no
domínio da duração e organização do tempo de trabalho de trabalhadores móveis
que participem em actividades de transporte rodoviário efectuadas em território
nacional, sujeitas ao regime geral das contra-ordenações laborais previsto no
Código do Trabalho.
Por isso a sua aprovação pelo Governo não viola a reserva legislativa da
Assembleia da República consagrada no artigo 165.º, n.º 1, d), da C.R.P.,
devendo, assim, ser julgado procedente o presente recurso.
*
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não julgar organicamente inconstitucional o arco normativo formado pelos
artigos 8.º, n.º 1, 10.º, n.º 2, e 16.º, do Decreto-lei n.º 237/2007, de 19 de
Junho;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com este julgamento.
*
Sem custas.
*
Lisboa, 18 de Novembro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos