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Processo n.º 953/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O arguido A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso por ele interposto,
confirmando a decisão da 1.ª instância que o condenara como co-autor material e
em concurso efectivo por um crime de rapto, p. e p. pelo artigo l60.º, n.º 1,
alínea a), e n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 158.º, n.º 2, alínea g),
do Código Penal (e, actualmente, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
59/2007, de 4 de Setembro, p. e p. pelo artigo 161.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2,
alínea a), do Código Penal), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e por um
crime de extorsão, p. e p. pelo artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de
2 anos de prisão. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 6
anos de prisão.
Por despacho do Desembargador Relator esse recurso não foi admitido, nos termos
do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na sua redacção
actual.
Desse despacho apresentou o recorrente reclamação para o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça.
Por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a reclamação foi
indeferida.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
“Com efeito, com o despacho que não admitiu o recurso e, consequentemente, com
a reclamação que lhe sucedeu, verifica-se existir inconstitucionalidade na
aplicação do art. 5º, nº 2, do CPP, quando interpretado no sentido de que a
aplicação da redacção pré-vigente da alínea f) do n.º 1 do art. 400º do CPP, ou
seja, o direito ao recurso do arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, fica
dependente da temporalidade da prolação da decisão condenatória de 1ª instância,
violando, nessa medida, o disposto no art.29º,n.º 3e n.º4, e 32º, n.º 1, ambos
da CRP, que encontram expressão no princípio da legalidade criminal.
Para efeitos do disposto no art. 75º-A da LTC, declara-se que a
inconstitucionalidade da interpretação da referida norma foi suscitada logo na
reclamação do despacho que não admitiu o recurso, mormente quando se afirma que
a não concordância com esta linha de pensamento é, na visão da defesa, uma
violação do princípio da legalidade criminal, constituindo uma decisão
surpreendente e anómala, cuja inconstitucionalidade de invocará.”
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho de não
admissão deste recurso com a seguinte fundamentação:
“O arguido A. notificado do despacho que não lhe admitiu o recurso e do sequente
indeferimento da reclamação por ele apresentada veio interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC,
sustentando ter havido inconstitucionalidade na aplicação do art.5.º, n.º 2, do
CPP, por violação do disposto nos arts. 29.º, n.ºs 3 e 4, e 32.º, n.º 1, ambos
da CRP.
Face ao disposto no n.º 2 do art. 72º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do
n.º 1 do art. 70º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a
questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer”.
O recorrente diz no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional que suscitou a questão da inconstitucionalidade da referida
norma na reclamação quando afirmou que «a não concordância com esta linha de
pensamento é na visão da defesa uma violação do princípio da legalidade
criminal, constituindo uma decisão surpreendente e anómala, cuja
inconstitucionalidade se invocará».
Ora, do exposto resulta que para fundamentar a reclamação não foi suscitada
adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade.
Com efeito, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001 – DR, II Série de
14.11.2001 entendeu-se “... que uma questão de constitucionalidade normativa só
se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o
recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o principio
ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação,
ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim
suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se
limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional,
sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo”.
Neste entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não se
considera suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade.”
Desta decisão reclamou o arguido para o Tribunal Constitucional, invocando os
seguintes argumentos:
“Refere a douta decisão em reclamação que como o recorrente não suscitou,
durante o processo, a inconstitucionalidade de qualquer norma, não poderia
dar-se como verificado o requisito da suscitação prévia da questão de
constitucionalidade.
Ora, com a devida vénia, cremos que tal omissão não se verifica e que, sempre
seria estranho o recorrente ter alegado a existência da suscitação prévia de tal
questão e ela não se verificar. Pelo menos, em consciência, não o poderia,
nunca, ter feito.
Não obstante, a fundamentação da reclamação refere, em suma, a errónea aplicação
dada ao art. 5º, n.º 2, do CPP, quando interpretado no sentido de que a
aplicação da redacção pré-vigente da alínea f) do n.º 1 do art. 400º do CPP, ou
seja, o direito ao recurso do arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, fica
dependente da temporalidade da prolação da decisão condenatória de 1ª instância,
violando, nessa medida, o disposto no art. 29º, n.º 3 e n.º 4, e 32º, n.º 1,
ambos da CRP, e que encontram expressão no princípio da legalidade criminal.
Concluindo-se que a não concordância com esta linha de pensamento é, na visão da
defesa, uma violação do princípio da legalidade criminal, constituindo uma
decisão surpreendente e anómala, cuja inconstitucionalidade de invocará.
O reclamante identifica as normas e o princípio violados, referindo que a
manutenção dessa decisão, com a interpretação descrita, é
inconstitucionalidade.
Por conseguinte, considera o ora reclamante que cumpriu o disposto no art.
75º-A, n.º 2, do referido diploma, mormente por ter identificado as normas –
arts. 29º e 32º da CRP, e 5º do CPP – e o princípio constitucional – princípio
da legalidade criminal – que se considera violado, as quais constam da
reclamação apresentada.
Por conseguinte, verificamos que não existe motivo para não admitir o recurso
interposto pelo ora reclamante.”
O Ministério Público pronunciou-se pela manutenção da decisão reclamada.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
A decisão reclamada não admitiu o recurso interposto para este Tribunal,
precisamente por não ter sido suscitada perante a instância recorrida a questão
de constitucionalidade que agora se pretende que o Tribunal Constitucional
fiscalize.
No recurso interposto pede-se que se verifique a constitucionalidade do “art.
5º, nº 2, do CPP, quando interpretado no sentido de que a aplicação da redacção
pré-vigente da alínea f) do n.º 1 do art. 400º do CPP, ou seja, o direito ao
recurso do arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, fica dependente da
temporalidade da prolação da decisão condenatória de 1ª instância”.
Na reclamação apresentada ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, peça
processual adequada para suscitar perante esta instância aquela questão, apenas
se referiu o seguinte nesta matéria:
- “…a não concordância com esta linha de pensamento é na visão da defesa uma
violação do princípio da legalidade criminal, constituindo uma decisão
surpreendente e anómala, cuja inconstitucionalidade se invocará”.
- “…por considerar que o Acórdão da Relação de Lisboa violou o disposto nos
artigos 120.º, n.º 3, al. a), 122.º, n.º 1, 126.º, n.º 3, 147.º, 359.º, 374.º,
n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, entre outras normas
de carácter constitucional, mormente o artigo 32.º, nº 2 e n.º 8 da CRP.”
Na primeira das referências anuncia-se que se considerará inconstitucional por
violação do princípio da legalidade criminal qualquer posição que não siga a
linha de pensamento defendida pelo arguido, sem que se precise qual é a
interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada.
Na segunda das referências acusa-se a decisão recorrida de violar a
Constituição, mormente o seu artigo 32.º, n.º 2 e 8, sem que também se suscite
a inconstitucionalidade de qualquer norma ou qualquer interpretação normativa
devidamente identificada.
Não se pode, pois, considerar adequadamente suscitada perante a instância
recorrida, de modo a vinculá-la ao seu conhecimento, a questão de
constitucionalidade que agora se pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A..
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos