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Processo n.º 469/2009
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção no Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da sentença do
Tribunal do Trabalho do Barreiro, de 27 de Março de 2009, que recusou aplicação
à norma vertida na alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de
Fevereiro, que alterou o Código do Trabalho, na versão constante da declaração
de rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
Prosseguindo o recurso, o Ministério Público apresentou alegações,
que conclui nos seguintes termos:
“1. A Lei n.º 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 2/2005, de 24
de Janeiro, n.º 26/2006, de 30 de Junho e n.º 42/2007, de 2 de Agosto, define e
circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações aos
diplomas legais.
2. Subjacente a tal quadro jurídico está a garantia de que, por meios ínvios,
não se alterem diplomas – fora dos requisitos constitucionais e legais.
3. A Declaração de Rectificação n.º 21/2009, ao proceder às “correcções” nos
termos em que o fez, “recuperando”matéria contra‑ordenacional que deixara de
vigorar no ordenamento jurídico por força da Lei n.º 7/2009, viola os princípios
da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança
jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa
(artigos 13.º, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4).
4. Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea m),
do n.º 6, do artigo 12.º do Código do Trabalho na versão constante da Declaração
de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, mantendo-se o juízo de
inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais.”
Não houve contra-alegações por parte do recorrente A., Lda.
2. Após as alegações, o relator proferiu o seguinte despacho:
“Pode razoavelmente sustentar-se que o conhecimento do recurso não tem
utilidade, uma vez que a decisão de não considerar a redacção da alínea m) do
n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 resultante da “Declaração de
Rectificação”, n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 12 de
Fevereiro de 2009, assentou num duplo fundamento. Além de inconstitucional,
considerou-se que essa Declaração de Rectificação não cumpre o disposto no
artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, sendo ilegal. Parece,
pois, que a decisão que o Tribunal Constitucional viesse a proferir em matéria
de constitucionalidade não produziria quaisquer efeitos no julgamento do caso.
Nestes termos, notifique o Ministério Público e o a recorrida para dizerem o que
tiverem conveniente sobre esta questão.”
Não houve resposta.
3. Na parte que é objecto do recurso, a fundamentação da sentença
recorrida é a seguinte:
“(…)
Questão Prévia: da inconstitucionalidade da declaração de rectificação nº
21/2009, de 18 de Março de 2009 e eventual despenalização da conduta da
recorrente
Nos presentes autos (proc. nº 45/09.5TTBRR) é imputada à recorrente a prática de
três contra-ordenações pela violação do disposto no artigo 245º, nº 2, al. a) em
conjugação com o nº 1 e artigo 484º, nº 2 da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho.
Com a entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código de Trabalho pela
Lei nº 07/2009, de 12 de Fevereiro foi revogado o citado artigo 484º, nº 2, uma
vez que no artigo 12º, nº 6, al. m) da Lei nº 7/2009, sob a epígrafe ‘Norma
Revogatória” não se mostra contemplado este normativo.
No entanto, no passado dia 18 de Março de 2009 é publicada a Declaração de
Rectificação nº 21/2009, na qual se declara que a Lei nº 7/2009, de 12 de
Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicada no Diário da
República, 1ª Série, nº 30, de 12 de Fevereiro de 2009, saiu com inexactidões
que se rectificam.
Assim, e em conformidade com a declaração de rectificação, e ao que aqui nos
interessa, na alínea m) do nº 6 do artigo 12º, ‘Norma Revogatória’ onde se lê
“m) Artigos 212º a 280º, sobre segurança e saúde no trabalho;” deve ler-se ‘n)
Artigos 212º a 280º, 484º e 485º, este na parte referente àqueles artigos, sobre
segurança, higiene e saúde no trabalho; ‘
Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, tal declaração de
rectificação é nula, por várias ordens de razões.
Vejamos.
Nos termos da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a
identificação e formulário de diplomas), na versão republicada no anexo à Lei nº
42/2007, de 24 de Agosto, dispõe o artigo 5º, nº 1 que «As rectificações são
admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos,
de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais
provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer
diploma publicado na 1ª série do Diário da República e são feitas mediante
declaração do mesmo órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma
série».
É evidente que a indicação do artigo 212º a 280º e a omissão do artigo 484º não
decorrem de lapso gramatical, ortográfico, de cálculo ou de natureza análoga.
Aqui chegados, resta apurar se esta rectificação decorre de erros materiais
provenientes de divergências entre o texto original e o texto publicado na 1ª
série do Diário da República. Do confronto do texto original com o publicado no
dia 12 de Fevereiro de 2009 não resulta qualquer divergência, no que concerne à
alínea m), do nº 6, do artigo 12º.
Com efeito, o que na referida alínea consta do texto final aprovado pela
Assembleia da República é exactamente o que consta no Diário da República, 1ª
série, de 12 de Fevereiro de 2009.
Para chegar a tal conclusão, basta consultar o Decreto da Assembleia da
República nº 262/X, publicado no Diário da Assembleia da República, II série A,
nº 61/X/4, de 26 de Janeiro de 2009.
Texto final que decorre, aliás, de um processo de alteração, após veto e
reapreciação, da versão publicada por Decreto da Assembleia da República nº
255/X, publicada no Diário da Assembleia da República, II série A, nº 34/X/4, de
28 de Novembro de 2008.
Na verdade, não pode haver qualquer dúvida sobre o que se considera texto
original (o do Decreto da Assembleia da República nº 262/X, publicado no Diário
da Assembleia da República, II série A, nº 61/X/4, de 26 de Janeiro de 2009).
Nos termos do artigo 156º, nº 1, do Regimento da Assembleia da República, «A
redacção final dos projectos e propostas de lei incumbe à comissão parlamentar
competente», sendo certo que «concluída a elaboração do texto este é publicado
no Diário [da Assembleia da República]».
Até três dias úteis após a publicação no Diário da Assembleia da República, os
deputados podem reclamar das inexactidões, tendo o Presidente de decidir em
vinte e quatro horas, existindo ainda a possibilidade de recurso para o Plenário
ou para a Comissão Permanente (artigo 157º do Regimento), determinado o artigo
158º do Regimento que «considera-se definitivo o texto sobre o qual tenham
recaído reclamações ou aquele a que se chegou depois de decididas as reclamações
apresentadas».
É esta versão final dos Decretos da Assembleia da República que é enviada ao
Presidente da República para promulgação (artigo 159º do Regimento).
Sendo certo que, nem o Presidente da República, em sede de promulgação, nem o
Governo, em sede de referenda, têm poderes para alterar o texto.
O que significa que a única possibilidade de o texto original ser distinto do
que surge no Diário da Assembleia da República de 26 de Janeiro de 2009 (II
série A) é ter ocorrido alguma reclamação que levasse a alterar o texto remetido
para o Presidente da República. Mas, o que resulta da cronologia do diploma que
se encontra no site da Assembleia da República é que tal não sucedeu.
Nestes termos, não restam dúvidas que a Declaração de Rectificação nº 21/2009,
publicada no Diário da República, 1ª série, nº 54, de 18 de Março de 2009, não
cumpre o disposto no artigo 5º, nº 1, da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro, na
versão actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal.
A tanto acresce que esta declaração de rectificação padece, também, de
inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a
alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da
Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma
censura contra‑ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a
teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República.
Como bem escreve o Professor Figueiredo Dias, «esquecimentos, lacunas,
deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o
legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido
intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade
também certos (outros) comportamentos» (in Direito Penal Português, Tomo 1, 2ª
Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 180).
Nestes termos, e em conformidade com o supra exposto, declaro ilegal e
inconstitucional a norma vertida na al. m), do nº 6 do artigo 12º na versão
constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009 de 18 de Março de 2009 e como
tal decido não a aplicar ao presente caso.
Aqui chegados, temos que o artigo 245º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 35/2004
apenas estabelece a realização de exames de saúde e o momento em que os mesmos
devem ser realizados. A cominação como ilícito contra-ordenacional encontra-se
consagrada no artigo 484º, nº 2 da citada lei e sem a qual a violação do artigo
245º não constitui a prática de contra-ordenação.
No artigo 12º da Lei nº 7/2009 a revogação do artigo 245º apenas ocorrerá quando
entrar em vigor o diploma que regular a mesma matéria, pelo que e até lá se
mantém em vigor este normativo.
No entanto, tal não sucede com o artigo 484º, pois, não integrando qualquer das
excepções previstas no referido 12º, apenas se pode concluir pela sua revogação,
a qual ocorreu no dia 17 de Fevereiro de 2009 com a entrada em vigor da Lei nº
7/2009.
É, assim, de concluir que com a entrada em vigor da Lei n° 7/2009 a
inobservância do estabelecido no artigo 245º, nº 1 e 2, al. a) da Lei nº 35/3004
não configura a prática de ilícito de mera ordenação.
Temos, assim, que, nesta parte, os factos cuja prática é imputada à recorrente
deixaram de ser punidos por lei posterior, aplicando-se, assim, o disposto no
artigo 2º, nº 2 do Código Penal ex vi artigo 32º do RGCO.
Face ao exposto, e considerando o disposto no artigo 2º, nº 2 do Código Penal,
aplicável ex vi artigo 32º do RGCO, declaro extinto o procedimento
contra‑ordenacional quanto à prática de três contra-ordenações previstas no
artigo 484º, nº 2 da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho, contra a recorrente e,
consequentemente, determino o prosseguimento dos autos para apuramento da
responsabilidade da recorrente pela prática das outras contra‑ordenações que lhe
são imputadas.
(…).”
Em conformidade com esta fundamentação, o dispositivo da sentença é
do seguinte teor:
“Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso interposto pelo recorrente e
consequentemente revoga-se parcialmente a decisão administrativa nos seguintes
termos:
a) declaro ilegal e inconstitucional a norma vertida na al. m) do nº 6 do artigo
12º na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009 de 18 de Março
de 2009 e como tal decido não a aplicar ao presente caso;
b) declaro extinto os procedimentos contra-ordenacionais quanto à prática de
três contra-ordenações previstas no artigo 484.º, nº 2 da Lei nº 35/2004, de 29
de Julho contra a recorrente.”
4. Coloca-se a questão, oficiosamente suscitada, de saber se o
Tribunal deve conhecer do objecto do recurso.
É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de
Rectificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de
Março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre
o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na versão
actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em seguindo lugar (“ a tanto
acresce”), por entender que “esta declaração de rectificação padece, também, de
inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a
alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da
Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma
censura contra‑ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a
teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos
alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo legal de que a
Declaração de Rectificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º
da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais
estranho ao objecto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual
fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para
assegurar o sentido da decisão recorrida.
Vem o Tribunal entendendo que, face à função instrumental do recurso
de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos
de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos
alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e suficiente para
suportar o sentido da decisão. É certo que tais situações surgem, na grande
maioria dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, mas esse é também o entendimento dominante em recursos
interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC (Cf., entre muitos, acórdãos n.º 216/2007, n.º 257/2008, n.º 397/2008, n.º
183/09 e n.º 228/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) .
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da
sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero
obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que,
fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o
tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da Declaração
de Ratificação, uma vez que considera que essa rectificação não se conteve nos
limites que a lei consente a tal figura.
Aliás, no caso, a questão de constitucionalidade – ao menos na construção
adoptada na sentença – só se coloca porque a questão da legalidade se resolveu
em determinado sentido. Considera-se violado o disposto na alínea c) do artigo
161.º e no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição precisamente porque foi
recuperado, por essa via, um ilícito contra-ordenacional que deixara de figurar
no texto publicado, usando-se ilegalmente o mecanismo da rectificação. O juízo
de ilegalidade da rectificação, que autonomamente se formulou, é aqui
pressuposto necessário do juízo de inconstitucionalidade a que se chegou quanto
à norma rectificada.
Afinal, o acto a que não se reconhece aptidão para produzir os efeitos jurídicos
a que tende é a declaração de rectificação. A norma rectificada, em direitas
contas, não se considera sequer existir no ordenamento com o conteúdo de que
essa declaração a pretendia dotar, uma vez que o acto integrativo ou
complementar (a rectificação) não chegou a projectar qualquer no conteúdo da
alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, por não
respeitar as regras (de direito ordinário) que regiam a sua emissão.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do
recurso.
Lx. 18/XI/2009
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha (com declaração de voto em anexo)
Maria Lúcia Amaral (com declaração em anexo)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não obstante a alusão, na sentença recorrida, a um duplo fundamento de
ilegalidade e de inconstitucionalidade para justificar a extinção, no caso, do
procedimento contra-ordenacional e a consequente concessão de provimento ao
recurso, a referência, nesse contexto, à violação do disposto no artigo 5º, n.º
1, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, surge como um elemento intrínseco do
juízo de inconstitucionalidade (e não como mero fundamento alternativo da
decisão), que, como tal, poderia reconduzir-se a uma violação do princípio da
tipicidade e da hierarquia das fontes normativas, consignado no artigo 112º da
Constituição, sobre que o Tribunal Constitucional poderia pronunciar-se no
âmbito dos seus normais poderes de cognição em recurso de constitucionalidade
(artigo 79º-D da LTC).
Nestes termos, entendi que nada obstava a que pudesse conhecer-se do objecto do
recurso.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Tem sido tema de controvérsia jurisprudencial a questão de saber se o princípio
da utilidade da decisão do Tribunal, determinado pela natureza instrumental dos
recursos de constitucionalidade, pode ser aplicado – enquanto pressuposto de
admissibilidade dos mesmos recursos –, do mesmo modo e com a mesma extensão,
tanto nos casos de “decisões positivas de inconstitucionalidade”, ou de
sentenças de desaplicação de normas, quanto nos casos de “decisões negativas de
inconstitucionalidade”, ou de sentenças que apliquem normas cuja
inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. Não vou agora
retomar os termos desse debate. Neste caso, dissenti do juízo maioritário por
duas razões que me parecem nítidas.
Em primeiro lugar, é para mim claro por que razão impôs a CRP recurso
obrigatório para o Ministério Público nos casos de decisões que não apliquem
normas (dotadas do grau mais elevado na hierarquia das fontes): havendo aí forte
presunção de inconstitucionalidade da norma, natural é que se accione a
necessária e imediata intervenção do Tribunal para que venha a ser
definitivamente resolvida a questão de constitucionalidade. Num sistema como o
nosso, que confere – diferentemente do que ocorre em geral na Europa – ao juiz
comum pleno acesso à Constituição, nem de outro modo poderia ser. Não só por
razões de segurança e harmonia do ordenamento jurídico, mas ainda por razões de
coerência interna do próprio sistema: não faria sentido devolver ao juiz comum o
poder de decisão sobre a questão de constitucionalidade – mais do que o poder da
sua mera verificação, solução comum nos restantes sistemas europeus – se se não
partisse do princípio segundo o qual o juiz exerce bem tal poder de decisão.
Assim, e por uma razão de coerência interna do sistema, às decisões judiciais
que se recusam a aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade não
pode deixar de estar associada a forte presunção de que a norma é, na verdade,
inconstitucional. Pelo menos, presunção mais forte do que aquela que existe nos
casos em que o juiz não acolhe a alegação de inconstitucionalidade, formulada
por uma das partes no decurso do processo.
Assim, e sendo este o fundamento constitucional para a obrigatoriedade de
interposição do recurso por parte do Ministério Público em casos de sentenças de
desaplicação de normas, especiais cautelas haverá que observar, na “equiparação”
entre os pressupostos de admissibilidade deste tipo de recursos e os
pressupostos de admissibilidade dos recursos de “parte”. É esta a segunda ideia
que me parece clara.
Tanto basta para que se justifique, a meu ver, alguma contenção na utilização do
argumento segundo o qual “face à função instrumental do recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade [o Tribunal vem entendendo que] não deve
conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão comporte
fundamentos alternativos”, sendo que, por fundamentos alternativos se entende –
como se entendeu no caso concreto – a invocação, tanto da inconstitucionalidade
de uma norma, quanto da sua ilegalidade (comum).
É que nem sempre essa “alternatividade” de fundamentos corresponde a uma real
disjunção das razões de decidir. Foi o que ocorreu, a meu ver, neste caso, em
que a “ilegalidade” que se invocou, como razão de decidir, estava – pela sua
própria natureza – estreitamente associada a uma questão de constitucionalidade.
A decisão recorrida entendeu, fundamentalmente, que o vício do procedimento
legislativo constituía razão bastante para o juízo a adoptar. E essa era,
evidentemente, uma questão, não de “ilegalidade”, mas de
“inconstitucionalidade”, que, creio, justificava inteiramente a intervenção do
Tribunal.
Maria Lúcia Amaral