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Processo n.º 951/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., S.A. interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de
Setembro de 2008, que negou a revista pedida pela ora recorrente e a concedeu
parcialmente no recurso interposto pela Autora B. do acórdão do Tribunal da
Relação do Porto que, decidindo o recurso de apelação, condenou o ora recorrente
no pagamento à mesma A. dos danos que se apurarem em execução de sentença,
decorrentes de esta A. ter ficado privada de utilizar o automóvel, desde 21 de
Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se de transportes de
terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos custos, e manteve
a condenação da mesma R. no pagamento à A, da importância de € 6.122,30,
relativa ao custo da reparação do veículo, acrescida de juros de mora desde a
citação.
2.1 – A recorrida B. propôs acção com processo ordinário contra A.,
S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de € 32.872,30 (ou
pelo menos € 9. 122,30 atento o pedido subsidiário), a título de indemnização e
compensação pelos danos sofridos pela A. em consequência directa do acidente de
viação, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral
pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que, no dia 21/12/2002, por volta das
23:50 horas, na auto-estrada A4, ocorreu um acidente de trânsito que envolveu o
veículo automóvel n.º ..-..-…, de marca Wolswagen Golf, sua pertença e que era
conduzido pelo seu filho C., e uma raposa que se intrometeu na faixa de rodagem
por onde o condutor circulava, em virtude de a rede de protecção não estar
totalmente vedada, apresentando uma abertura no local do acidente.
A R. contestou alegando efectuar inspecções periódicas da rede de
vedação da auto-estrada e consertar imediatamente qualquer anomalia que
detectasse, que na data do acidente não era de prever que a rede estivesse
danificada, tanto mais que na inspecção realizada pouco antes do acidente
acontecer, a vedação estava em bom estado e que só o facto da rede ter sido
vandalizada determinou que se encontrasse rompida no dia do acidente, pelo que
não houve qualquer culpa sua na eclosão do acidente.
Foi requerida e admitida a intervenção acessória da Companhia de
Seguros C., S.A., em virtude de a R. haver transferido para ela a
responsabilidade civil que, de conformidade com a lei, lhe possa ser exigida por
prejuízos causados a terceiros na qualidade de concessionária da exploração e
manutenção das auto-estradas.
Efectuada audiência de julgamento para apuramento da matéria de
facto controvertida, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a
acção, condenou a R. a pagar à A. a quantia de 6.122,30 €, a título de
indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros
de mora, à taxa de 4% ao ano, desde 16/12/2005 até integral e efectivo
pagamento, e na indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente à
quantia despendida pela A. na obtenção de viatura de substituição do OG no
período de 21/12/2002 até 01/05/2005. No mais, absolveu-se a R. do pedido.
2.2 – Não se conformando com esta decisão, dela recorreram tanto a
A. como a R. para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este Tribunal julgado
parcialmente procedentes os recursos, pelo que, revogando em parte a sentença
recorrida, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar à A. a
quantia de 6.122,30 € acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação
até integral pagamento e no mais absolveu a R. do pedido.
2.3 – Não aceitando, uma vez mais, o decidido, dele recorreram a A.
e a R., esta subordinadamente, para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
A revista da A. foi julgada parcialmente procedente, tendo-se
condenado a R. no pagamento à A. dos danos que se apurarem em execução de
sentença, decorrentes do facto de a A. ter ficado privada de utilizar o veículo
automóvel, desde 21 de Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se
de transportes de terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos
custos, e mantido a condenação da R. no pagamento à A. da importância de
6.122,30 €, relativa ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros de
mora desde a citação.
Por seu lado, foi negado provimento à revista interposta pela R.
2.4 – O acórdão recorrido negou provimento ao recurso da R., por
entender, em resumo, que, conquanto a doutrina e a jurisprudência se dividissem
quanto à natureza da responsabilidade civil das concessionárias das
auto-estradas por acidentes nelas ocorridos em razão de animais que nelas se
introduzem – defendendo uns a sua natureza extracontratual, com os consequentes
corolários da exigência de prova da culpa por parte do titular do direito, e
outros uma natureza de responsabilidade contratual, assente, ora num contrato
existente entre o utilizador e a concessionária das auto-estradas, atributivo
àquela parte de um direito subjectivo à prestação do serviço com certas
qualidades ou características, evidenciado pelo pagamento de uma taxa pela sua
utilização, ora num contrato firmado entre a concessionária e o Estado (o
contrato de concessão), mas atributivo ao utilizador de um direito subjectivo
que este pode autonomamente exercer contra a concessionária – o certo é que a
questão do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança das
concessionárias das auto-estradas havia sido resolvida pelo artigo 12.º n.º 1,
da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, em termos correspondentes aos que já eram
postulados pela tese contratualista da responsabilidade, ou seja, no sentido de
que incumbia ao devedor a prova de que agiu sem culpa na determinação do dano,
por força do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 799.º, 342.º,
344.º, n.º 1, e 350.º do Código Civil).
Por outro lado, este critério normativo tinha natureza
interpretativa, porquanto o preceito que o explicitou mais não fizera do que
eleger, entre as duas soluções antes aventadas pela doutrina e pela
jurisprudência, aquela que vinha sendo acolhida, no quadro do pertinente sistema
jurídico, por vários arestos do STJ, designadamente, a partir da prolação do
Acórdão de 22/06/2004, relatado pelo Conselheiro Afonso Correia.
Ora, de acordo com o princípio de que cabe ao devedor fazer a prova
de que o incumprimento das obrigações de segurança, instituídas no contrato de
concessão das auto-estradas, não basta ao devedor fazer a prova do cumprimento
genérico desses deveres, mas sim o cumprimento dessas obrigações em concreto.
Não tendo essa prova sido feita, era a R. responsável pelos danos
advenientes do acidente ocorrido entre o veículo que circulava na auto-estrada e
uma raposa que se havia intrometido na faixa de rodagem por onde circulava o
mesmo veículo.
Considerou, ainda, o acórdão recorrido que a aplicação da referida
disposição do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, aos processos
pendentes de apreciação judicial não atingia o alegado princípio de separação de
poderes, nem a solução nele consagrada violava os princípios do processo
equitativo, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça ou afrontava o
direito fundamental à propriedade privada garantido no artigo 62.º, n.º 1 e 2,
da Constituição, este consubstanciado, no caso, na titularidade de obrigações
contratuais com valor económico.
3 – No requerimento de interposição do recurso constitucional, a
recorrente disse pretender a “apreciação das questões de inconstitucionalidade
das normas que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007,
de 18 de Julho (define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias
classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e
itinerários complementares, e ainda as constantes dos artigos 4.º a 12.º da
mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações
sistemáticas de aplicação”.
4 – Porém, em sequência de convite efectuado à recorrente, a coberto
do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, foi, por despacho do relator, fixado como
objecto do recurso de constitucionalidade a norma constante do artigo 12.º, n.º
1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual, “em caso
de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais,
o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à
concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão
do animal na via não lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo
de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua
imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”, por alegada
violação dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 62.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
5 – Alegando sobre o objecto do recurso, a recorrente condensou nas
seguintes proposições conclusivas o seu discurso argumentativo:
«1ª A A. é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração
de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei
nº 247-C/2008, de 30 de Dezembro.
2ª Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto – estrada do Norte), a
Assembleia da República aprovou a Resolução nº 14/2004, de 31 de Janeiro (DR I
Série-A, Nº 137, de 31-Jan.-2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração
das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a
melhor informar os utentes da sua ocorrência.
3ª Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias:
inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.
4ª Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de Lei:
Projecto nº 145/X (PCP) e nº 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro (Decreto
nº 122/X), o qual deu azo à Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, destinada, no fundo,
a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível pela negociação.
5ª A Lei nº 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais
gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem
compensação.
6ª Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras,
à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro:
também sem compensação.
7ª Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os
derivados do atravessamento de animais), estabeleceu uma denominada “presunção
de incumprimento”, contra as concessionárias: igualmente sem compensação.
8ª A Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, veio definir os direitos dos utentes
nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas,
itinerários principais e itinerários complementares.
9ª No entanto, ao invadir o espaço de conformação dos contratos
administrativos de concessão de auto-estradas celebrados por parte do Governo,
em representação do Estado Português, a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, é
inconstitucional por violar o princípio da separação e interdependência dos
órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo.
10ª Na verdade, a leitura restritiva do princípio da separação de poderes que
o Tribunal Constitucional fez nos Acórdãos n.º 1/97 e 24/98 deixa sérias
dúvidas, na medida em que não só ignora que o princípio democrático é, hoje,
fonte de legitimidade de todos os poderes do Estado, como desconsidera a
dimensão positiva da mesma proposição normativa enquanto princípio organizativo
de optimização do exercício das funções do Estado.
11ª A Constituição permite recortar, outrossim, uma área de reserva de
administração a partir das normas de competência do Governo e outra a partir dos
modos típicos de exercício da função administrativa.
12ª O núcleo da reserva de caso concreto é constituído pela autonomia
pública, isto é, pela permissão de criação de efeitos de direito não
predeterminados por normas jurídicas e titularidade e exercício do
correspondente poder, isto é, por margens de livre decisão na criação de efeitos
de direito nas situações concretas regidas pelo direito administrativo.
13ª A autonomia pública corresponde, pois, a uma reserva de decisão parcial a
favor da Administração, exercida através da prática de actos administrativos ou
da outorga de contratos administrativos.
14ª No caso em análise, a Assembleia da República pretendeu alterar, através
um acto formalmente legislativo, contratos administrativos de concessão
celebrados pelo Governo, em representação do Estado Português, com sociedades de
direito privado.
15ª O diploma veio versar matéria que estava ocupada pelo Governo,
determinando a alteração de contratos administrativos em execução, através da
introdução de novas obrigações que passam a impender sobre os co-contratantes da
Administração. Mais: o Parlamento fê-lo prescindindo de qualquer acordo de
vontades entre as partes.
16ª Existe, assim, uma cobertura 'com a forma de lei' de uma “pura actividade
administrativa' (alteração de um contrato de concessão já existente), com
consequências evidentes no futuro desenvolvimento do plano rodoviário traçado
pelo Governo, em termos de se não poder falar a este propósito de 'uma
esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo'.
17ª Por outro lado, o diploma é ainda inconstitucional por violação dos
princípios da igualdade e da proporcionalidade.
18ª Este diploma veio consagrar, com carácter geral, uma presunção de culpa
das concessionárias de auto-estradas em matéria de (in)cumprimento de obrigações
de segurança daquelas quanto a acidentes rodoviários.
19ª Fazendo-o, passou a onerar as concessionárias com a demonstração de que
não cometeram nenhuma violação dos deveres de segurança a que estavam adstritas,
ou seja, são oneradas com a prova de um facto negativo. Estabelece um ónus de
prova, mas ao mesmo tempo inviabiliza efectivamente, na prática, a sua
realização: atenta contra as regras do processo equitativo e do acesso ao
direito.
20ª A verdade, porém, é que os restantes co-contratantes da Administração -
ou sequer os restantes concessionários -, não estão onerados com uma tal
presunção de culpa; o caso da ANA, que gere as infra-estruturas aeroportuárias,
é paradigmático a este respeito.
21ª Ponderadas as 'propriedades' dos dois casos - o das concessionárias de
auto-estradas e o da ANA - , conclui-se inexistir qualquer razão suficiente para
um tratamento desigual que não seja a maior frequência dos sinistros rodoviários
22ª Não se vê, contudo, como possa esse fundamento justificar a diferença de
tratamento, visto que, se uma tal asserção é verdadeira, não é menos certo dizer
que os acidentes conjecturáveis nas infra-estruturas aeroportuárias causados
pela violação das mesmas regras de segurança seriam, potencialmente, de
proporções muito superiores aos que se verificam em auto-estradas; ou seja, de
certa forma, a magnitude dos acidentes acaba por compensar a respectiva
frequência.
23ª Se assim é, estão aqui dois sujeitos - por um lado, as concessionárias de
auto-estradas e, por outro, a concessionária das infra-estruturas aeroportuárias
- a ser tratados de forma arbitrariamente desigual, o que se encontra proscrito
pelo princípio da igualdade.
24ª No que concerne ao equilíbrio financeiro uma leitura atenta do artigo
11.º deste diploma demonstra que o que o mesmo determina é que, caso a
concessionária não cumpra o disposto nos artigos 4.º a 8.º e, por via disso lhe
sejam aplicáveis as sanções previstas nos artigos 9.° e 10.°, tal situação não
será 'causa justificativa de revisão contratual para efeitos de equilíbrio
financeiro'.
25ª De resto, visto que o direito ao equilíbrio financeiro do contrato se
encontra constitucionalmente protegido pelo direito fundamental de propriedade
privada, associado à liberdade de iniciativa económica privada, e pelo princípio
da protecção da confiança, sempre prevaleceria esse direito contra qualquer lei
que o negasse.
26ª Em concreto, através do princípio do equilíbrio financeiro, não se
indemnizam prejuízos causados por circunstâncias excepcionais e imprevisíveis
alheias à vontade das partes: antes se mantém um equilíbrio que, por respeito ao
significado inicial do contrato, a administração não pode romper.
27ª A intervenção legislativa em questão configura-se como um caso de fait du
prince, isto é, trata-se de uma actuação exterior ao contrato que determina uma
perturbação significativa na sua equação económico-financeira.
28ª São vários os requisitos do factum principis: (i) a imprevisibilidade:
(ii) a natureza geral da medida; (iii) a natureza jurídico-pública da entidade
que emana a medida; (iv) o grau de perturbação do equilíbrio financeiro do
contrato, que deve sofrer um agravamento significativo; e (v) a repercussão
particular da medida em determinados sujeitos.
29ª O fait du prince gera uma obrigação ressarcitória que deverá ser
satisfeita pela pessoa colectiva administrativa contratante, fundada no
princípio do equilíbrio do contrato.
30ª A Lei nº 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto
órgão superior da administração pública – 182º – incumbido da direcção da
administração directa do Estado – 199º, d).
31ª Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de
concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários
para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a referida
Resolução nº 14/2004.
32ª A Lei nº 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na
área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e
violando o artigo 2º da Constituição.
33ª O contrato de concessão tem uma inequívoca base contratual, integrando-se
nas chamadas leis-contrato ou leis pactuadas.
34ª Do facto de essas leis serem de formação contratual e terem uma
substância contratual decorrem importantes implicações em sede do seu regime
jurídico, tais como: a de a sua modificação ou revogação apenas poder
realizar-se por mútuo acordo das partes, que lhe deram origem, a menos que a sua
modificação resulte do poder de modificação unilateral
35ª O princípio jurídico fundamental pacta sunt servanda é estruturante da
nossa ordem constitucional que tem o seu fundamento último na própria ideia de
Estado de Direito ou no princípio da segurança jurídica ou da protecção da
confiança, com assento muito claro no art. 2° da Constituição. Pois a 'palavra
dada' é para respeitar mesmo quando venha a assumir a forma de lei.
36ª Na revisão do contrato de concessão formalizada pelo Dec.-Lei nº
247-C/2008, de 30 de Dezembro, e pela Resolução do Conselho de Ministros nº
198-B/2008, da mesma data (esta publicada no D.R., 1ª Série, nº 252, de
31-12.08), a estipulação da responsabilidade civil na Base XLIX do Dec.-Lei nº
294/97, de 24 de Outubro, para com os utentes, manteve-se incólume, não tendo
sido alvo de modificação.
37ª Com efeito, não é legítimo tratar uma tal lei como as demais,
colocando-as sob o normal poder de revisão (ou alteração) próprio do poder e
ordenamento legislativos, uma vez que tais leis, em virtude do vínculo
contratual subjacente, não participam inteiramente da livre revisibilidade
própria da função legislativa.
38ª O nº 1 do art. 12º viola também o princípio da protecção da confiança,
num outro aspecto, ou seja, enquanto põe em causa o particular mundo das
empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter
e os e custos em que vão incorrer.
39ª Além disso, a Lei nº 24/2007, designadamente através do seu artigo 12º/1,
veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre
particulares.
40ª Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202º/2), sob
pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos
direitos (20º/1). Interpretar o contrato não compete à lei, mas aos tribunais.
41ª A Lei nº 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do
poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o
princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2º da
Constituição.
42ª O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o
diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as
soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.
43ª O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio,
distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional,
emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção
de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à
inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais
leve): artigos 799º/1 e 487º/1, do Código Civil.
44ª A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária:
depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.
45ª No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando‑se cumpridos os deveres
específicos a cargo da A., apenas queda verificar se, com violação do dever
genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é,
pela natureza das coisas, aquiliana.
46ª A “presunção de incumprimento”, ao interferir (e na medida em que
interfira) nessa questão, viola o artigo 13º/1, da Constituição. Sem conceder,
47ª A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade
rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e
nunca ad hominem.
48ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior
protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas
jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em
causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13º/1.
Sem conceder,
49ª O artigo 12º/1 da Lei nº 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de
“não-cumprimento” (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime
de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária
ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco.
50ª A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos
especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por
seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de
inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo 13º/1
da Lei Fundamental. Sem conceder,
51ª A Lei nº 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo
12º/1, veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fê-lo fora
de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade
prevista no artigo 13º/1, da Constituição.
52ª A recorrente A. detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato
de concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição,
por reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62º/1, da
Constituição).
53ª A Lei nº 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu
artigo 12º, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação:
violou a propriedade privada.
54ª No caso do artigo 12º em causa, esse fenómeno mais flagrante se torna:
foi criada, com referência a situações pré-existentes, uma situação objectiva de
risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do
artigo 62º/1, da Constituição, surge apodíctica.
Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros
Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade
material da Lei nº 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12º, por violação,
inter alia, dos artigos 2º, 13º/1 e 62º/1, da Constituição, assim se dando
provimento ao presente recurso».
6 – A recorrida não contra-alegou.
B – Fundamentação
7 – Resulta do relatado que o objecto do recurso de
constitucionalidade se cinge à norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º
24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso de acidente
rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de
prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e
esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via
[não] lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer
positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade
moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”.
Em tal norma radica, na verdade, o fundamento normativo do decidido
relativamente à obrigação de indemnizar em que a ora recorrente foi condenada.
De fora do objecto do recurso de constitucionalidade, por não terem
constituído sua ratio decidendi, estão, assim, as normas constantes dos artigos
4.º a 12.º da mesma Lei às quais a recorrente imputa a violação do equilíbrio
financeiro do contrato de concessão firmado entre o Estado e a recorrente para a
construção, manutenção e exploração de auto-estradas formalizado no Decreto-Lei
n.º 294/97, de 24 de Outubro, bem como, em certa medida, “o princípio da
separação e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional
do Governo”.
Deste modo apenas faz sentido convocar o princípio do equilíbrio dos
contratos, mesmo quando de natureza administrativa, enquanto dimensão absorvida
no princípio da proporcionalidade que a nossa Constituição acolheu quer como
princípio geral próprio do princípio do Estado de direito democrático (artigo
2.º), quer como princípio legitimador das limitações ou restrições aos direitos
fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
A problemática da responsabilidade das concessionárias de
auto-estradas por acidentes nelas ocorridos por virtude de animais que nelas se
introduzem tem sido objecto de larga discussão doutrinária e jurisprudencial,
centrada essencialmente na preocupação de dar resposta à questão de saber a quem
compete o ónus de prova da culpa do facto, tendo no horizonte como referentes
legais os princípios segundo os quais, na responsabilidade contratual, esse ónus
incumbe ao devedor (artigo 799.º do Código Civil) e, na responsabilidade
extra-contratual, ao lesado (artigo 487.º, n.º 1, do Código Civil).
Pode dizer-se que, para uns, se trata de uma responsabilidade
contratual, porque advém de um contrato inominado de utilização da auto-estrada,
expresso na oferta de fornecimento do serviço de circulação automóvel, efectuado
segundo os parâmetros de qualidade expressos no contrato de concessão, e no
pagamento da taxa de portagem que possibilita a utilização do serviço oferecido:
a situação ajusta-se a um contrato de facto celebrado directamente entre o
utente do serviço e o fornecedor do respectivo bem, por adesão de uma relação
factual concreta a um tipo contratual predefinido pela exigência de pagamento de
uma taxa de portagem e pela disponibilidade de utilização da auto-estrada em
condições de segurança (Sobre as diferentes teses, cf. a anotação do Prof. Sinde
Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 131.º, 41 e segs.,
132.º, 29 e segs. e 133.º, 27 e segs.).
Outros admitem a natureza contratual da responsabilidade mas
fundam-na no contrato de concessão celebrado entre o Estado e a concessionária
da construção, conservação e exploração das auto-estradas, descortinando neste
uma cláusula de constituição de responsabilidade contratual em benefício de
terceiros, os utentes da via: os terceiros utilizadores da via estariam
incluídos, por força do próprio contrato, no âmbito da protecção dos interesses
acautelados pelo contrato de concessão, em termos que justificam a chamada à
colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros» (cf.
Sinde Monteiro, loc. cit.).
Finalmente, depara-se uma tese de responsabilidade extra-contratual
ou aquiliana, nos termos da qual, o único contrato discernível na situação é um
contrato entre a concessionária das auto-estradas e o Estado que apenas define
as suas recíprocas obrigações, pelo que aquela responde perante os terceiros se,
com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer
disposição legal destinada a proteger interesses alheios (cf. Profs Menezes
Cordeiro, in Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas,
Estudo do Direito Civil Português, 2004, pp. 56; Carneiro da Frada, parecer
publicado na Revista do STJ n.º 650/07, e Conselheiro Armando Triunfante, in
Responsabilidade Civil das Concessionarias das Auto-estradas, RDJ, tomo 1.º, pp.
45 e segs.).
O Supremo Tribunal de Justiça adoptou tanto a tese da
responsabilidade extra-contratual (cf. Acórdãos de 12/11/96, BMJ, 461.º, 411 e
Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131, pp. 41 e segs., de 20/05/2003 e
de 1/10/2009, in www.dgsi.pt/jstj,nsf), como a da responsabilidade contratual
que o acórdão recorrido tem por dominante a partir da prolação do Acórdão de
22/06/2004, disponível no mesmo site informático.
O acórdão recorrido resolveu a questão do ónus da prova do
cumprimento das obrigações de segurança das auto-estradas em função apenas do
disposto na norma questionada do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Junho
que assim dispõe:
“Artigo 12.º
Responsabilidade
1 — Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de
acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da
prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde
que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de
rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas
anormais.
2 — Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das
causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade
policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de
circulação em segurança.
3 — São excluídos do número anterior os casos de força maior, que
directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao
concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente
graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”.
Segundo o aresto recorrido “este dispositivo põe fim à polémica
relativa ao ónus de prova, remetendo a discussão sobre a natureza jurídica da
responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas para fundamentos
meramente teórico-académicos”. Todavia, não obstante esta proclamação, certo é
que, para resolver o caso concreto, não pôde o aresto ignorar as posições
anteriores sobre o fundamento da responsabilidade das concessionárias das
auto-estradas, pois se lhe tornou necessário aferir se ao novo preceito deveria
ser atribuída natureza interpretativa ou carácter inovatório, dado os factos em
questão terem ocorrido antes da entrada em vigor da lei nova.
E no desembaraço dessa tarefa e convocando os critérios definidores
das leis interpretativas concluiu o acórdão recorrido que o preceito devia ser
tido como lei interpretativa e consequentemente como norma esclarecedora do
sentido da norma interpretada e integrando, por isso, ab initio, o seu conteúdo
prescritivo enquanto cometendo às concessionárias das auto-estradas o ónus da
prova das obrigações de segurança, tal qual era antes consagrado pela
jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, conquanto a recorrente, pelos termos em que recorta a norma
sindicada, pareça apenas controverter a validade do critério estabelecedor do
ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança, a se, o certo é que,
na sua argumentação, não deixa ela de atacar igualmente a eficácia retroactiva
da norma associada àquela qualificação de lei interpretativa.
A elucidação da questão de constitucionalidade dispensa a
determinação da natureza da responsabilidade aqui em causa, mas já não desobriga
de uma análise da norma impugnada quanto a saber se ela deve ser havida como
norma que dispõe sobre matéria cuja regulação tenha sido pactuada entre os
intervenientes do contrato de concessão, formalizado no Decreto-Lei n.º 294/97,
de 24 de Outubro (ou diploma posterior – Decreto-Lei n.º 247-C/2008, de 30 de
Dezembro) ou se dispõe sobre efeitos que são estranhos à negociação contratual
ou à ponderação dos interesses que cada um dos contraentes visa acautelar
vinculativamente através do contrato.
Ora, o preceito questionado insere-se num diploma que tem como
objecto definir, nos termos nele apontados (artigo 1.º da referida Lei n.º
24/2007), “os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como
auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários
complementares e estabalece[r], nomeadamente as condições de segurança,
informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos
utentes estabelecidos ou a estabelecer”.
Se bem que a norma sindicada respeite apenas ao ónus da prova do
cumprimento das obrigações de segurança da concessionária de “auto-estradas, com
ou sem obras em curso, em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas
para pessoas ou bens”, o certo é que ele atinge não só os sujeitos que já
detenham a qualidade de concessionários de auto-estradas, mas igualmente todos
aqueles que venham a ficar em tal posição no futuro. Por outro lado, o preceito
não visa dispor acerca de um certo e determinado contrato de concessão de
auto-estradas, nem interferir com a definição das obrigações contratuais
assumidas nesses contratos por quem neles intervém: o Estado concedente e a
concreta concessionária. O legislador associa, simplesmente, a constituição de
efeitos jurídicos à existência de uma hipótese de facto configurada em torno de
uma categoria abstracta de pessoas e de um tipo de situações, igualmente
abstractas.
Nesta linha de pensamento não se vê como seja possível sustentar-se
que, ao adoptar o regime jurídico de cometer à concessionária das auto-estradas
o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança atinentes à
circulação nas respectivas vias, na dimensão aqui sindicada, o legislador
parlamentar esteja a violar o “princípio da separação e interdependência dos
órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo”, como esgrime a
recorrente.
Não tendo a norma em causa a natureza de qualquer cláusula
contratual, mesmo que construída sobre um qualquer prévio pacto de legislar em
certo sentido, antes derivando da competência da Assembleia da República de
“fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao
Governo” [artigo 161.º, alínea c)], não se vislumbra como possa defender-se que,
com a conformação do respectivo regime jurídico, com carácter geral e abstracto,
se possa estar a atingir o “núcleo essencial” da autonomia pública pressuposta
como função material da Administração-Governo em se vincular, com respeito pelo
princípio da precedência e da reserva material de lei, em contratos de concessão
da concepção, construção, manutenção e exploração de auto-estradas.
Como dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa, Anotada, 3.ª edição revista, pp. 497-498), o sentido útil
do princípio da separação de poderes, como princípio normativo autónomo dotado
de um irredutível núcleo essencial, será o de servir de fundamento à declaração
de inconstitucionalidade de qualquer acto que ponha em causa o sistema de
competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto
constitucional”.
A definição do regime de responsabilidade dos concessionários das
auto-estradas para com os utentes dessas vias de comunicação não é matéria que
respeite à definição das obrigações recíprocas dos contraentes no contrato de
concessão respeitantes às operações materiais e jurídicas da concepção,
construção, manutenção e exploração de auto-estradas e, consequentemente, ao
exercício, com respeito pelos referidos princípios da precedência e de reserva
material de lei, de uma competência inserida materialmente na função
administrativa, independentemente de esta não caber exclusivamente ao Governo,
mas apenas como função-regra, própria da concepção constitucional do Governo
como órgão superior da administração pública (artigo 182.º da Constituição)
dotado de uma competência administrativa expressamente enunciada no texto
fundamental (artigo 199.º da Constituição), mas ao regime de relações com
terceiros em relação ao contrato.
Do mesmo passo, pode asseverar-se que a instituição do referido ónus
de prova, por banda das concessionárias de auto-estradas, do cumprimento das
obrigações de segurança na circulação rodoviária que estas oferecem, não ofende,
ao contrário do alegado, as regras do processo equitativo, consagrado no artigo
20.º, n.º 4, da Constituição.
O princípio do processo equitativo tem sido compreendido enquanto um
direito a um due process of law que deve compreender o direito à igualdade de
armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as
discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias, o direito de defesa e de
contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes
invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da
outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas, direito a
prazos razoáveis de acção e de recurso, direito à fundamentação das decisões,
direito à decisão em tempo razoável, direito ao conhecimento dos elementos
processuais, “direito à apresentação de provas tendentes e aptas a demonstrar os
factos alegados e o direito a um processo orientado para a justiça material sem
demasiadas peias formalísticas” (cf. J. J. Gomes Canotilho, Constituição da
República Portuguesa Anotada, Volume I, p. 415-416).
Ora a repartição, pelo legislador, entre os sujeitos das obrigações
do ónus de prova dos elementos constitutivos de tais obrigações não se afigura
constituir matéria de processo, mas antes matéria substantiva, conquanto o
momento de primacial efectividade da norma ocorra dentro do processo,
determinando a quem incumbe, nele, a tarefa de ter de demonstrar os factos
controvertidos e de como deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova
do facto. Está ausente dessa atribuição qualquer ideia de igualdade ao processo
e no processo.
De qualquer modo, não se vislumbra que seja desprovido de fundamento
material bastante a opção de o legislador cometer o ónus em causa à parte que se
encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios
ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos, quer pelo domínio material
que tem sobre as auto-estradas e os meios de equipamento e de infra-estruturas
adequadas a conferir maior segurança na circulação rodoviária, quer pela sua
capacidade económica para se socorrer desses meios.
Entende a recorrente que o estabelecimento, pelo referido preceito,
do ónus de prova de cumprimento das obrigações de segurança viola os princípios
da igualdade, da proporcionalidade e da protecção da confiança.
Para fundamentar a primeira asserção convoca a circunstância de os
restantes co-contratantes da Administração – ou sequer os restantes
concessionários – não estarem onerados com uma tal presunção de culpa,
constituindo caso paradigmático da diferença de tratamento o que se passa com a
ANA que gere as infra-estruturas aeroportuárias e cuja violação das regras de
segurança terá potencialmente proporções muito superiores.
Mas tal alegação é manifestamente improcedente. O princípio da
igualdade, assumido como princípio fundamental na nossa Constituição (artigo
13.º) não significa igualitarismo ou igualdade formal.
Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90,
publicado no Diário da República II Série, de 12 de Setembro de 1990,
dispensando-se o Tribunal de citar outros locais, dada a uniformidade de
critério, “O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação
do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento,
“razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não
sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do
acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a
discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar,
diz-nos j.c.vieira de andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299)”.
Ora, a afirmação de que o regime de responsabilidade civil do ónus
da prova dos restantes co-contratantes da Administração na concessão de bens ou
serviços públicos, e mais especificadamente a alegada relativa à ANA, é menos
exigente do que a decorrente da aplicação do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 é
tudo menos líquida, porquanto é possível sustentar que idêntica inversão do ónus
da prova opera, nesse domínio, seja por decorrência do enquadramento na
responsabilidade contratual (artigo 799.º do Código Civil), seja por aplicação
do regime específico da responsabilidade extracontratual (artigo 493.º, nº 1, do
Código Civil).
Por outro lado, não pode negar-se que as duas situações de facto
apresentam contornos evidentes de exigências não inteiramente coincidentes.
Do mesmo passo, tendo em conta que o tipo de bens oferecido através
da oferta da via das auto-estradas, diferentemente do que se passa com as demais
estradas, pressupõe níveis elevados e especiais de segurança, traduzidos desde
logo na concepção, construção, manutenção e exploração das vias segundo padrões
materiais ou normativos de grande exigência, e que a sua utilização é feita em
termos massivos e mediante o pagamento de uma taxa (ainda que nas SCUT esta seja
assumida pelo Estado), não se vê que possa considerar-se existir qualquer
violação do princípio da proporcionalidade ao atribuir-se ao concessionário da
auto-estrada o ónus de demonstrar que cumpriu, em concreto, relativamente a cada
utilizador, a obrigação de segurança cuja pressuposta existência real se
apresenta como determinante para que uma grande massa de consumidores opte pela
sua utilização.
Não constituindo a instituição legal desse ónus uma interferência no
domínio da estipulação das concretas relações contratuais, não pode também
defender-se que ela introduza qualquer perturbação anormal e imprevisível na
habitual previsão dos riscos que as partes ponderam antecipadamente antes de se
decidir pela vinculação contratual, em termos de se poder considerar afectar-se
intoleravelmente a autonomia de vontade pressuposta pelo direito à capacidade
civil e ao livre desenvolvimento da personalidade.
Estando-se perante especiais actividades económicas geradoras de
riscos elevados de lesão de bens e direitos de terceiros, muitas vezes ínsitos
ao próprio tipo de bens cuja aquisição se oferece, afigura-se como previsível
que o legislador possa submeter essa actividade concreta a especial regime de
responsabilidade e isso principalmente quando ela é levada a cabo em regime de
concessão pública, pois dela poderá sobrar para o Estado a emergência de ter de
suprir as consequências danosas para os utilizadores desses bens, mormente
através do cumprimento dos deveres de prestação dos serviços de saúde e de
segurança social.
Nesta senda, falece, igualmente, o argumento da violação do
princípio da protecção da confiança, independentemente de se afigurar
inconsistente a sua convocação quando, como acontece no caso, se está, segundo o
entendimento do tribunal a quo que constitui um dado para o Tribunal
Constitucional, em presença de uma lei interpretativa, por o sujeito não poder
deixar de contar com a eventualidade de o legislador vir a assumir como sentido
normativo obrigatório aquele que, na jurisprudência aplicada, pese embora a
existência de divergências perante a lei interpretada, coincidia com o que veio
a ser positivado na lei interpretativa.
Alega, ainda, a recorrente que a norma em questão viola o direito de
iniciativa económica privada e o direito de propriedade privadas, consagrados,
respectivamente, nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, ambos da Constituição.
Mas sem razão, uma vez mais. O direito de iniciativa económica
privada está expressamente reconhecido como direito fundamental no artigo 61.º,
n.º 1, da Constituição. Mas não como direito absoluto. Daí que ele deva ser
exercido “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o
interesse geral”.
Ora, no preceito constitucional imediatamente antecedente (o artigo
60.º, n.º 1) dispõe-se que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e
serviços consumidos, […] à protecção […] da segurança e dos seus interesses
económicos, bem como à reparação de danos”.
Por outro lado, não pode deixar de distrair-se do artigo 2.º da
Constituição, consagrador do princípio do Estado de direito democrático,
enquanto postulado decorrente do princípio de justiça material em que aquele
também se decompõe, um princípio fundamental do reconhecimento de um direito
geral à reparação de danos.
O direito à reparação de danos, seja por violação dos direitos do
consumidor com protecção constitucional garantida no artigo 60.º, n.º 1, da
Constituição, seja por falta de cumprimento de obrigações emergentes de
contratos, da violação de direitos ditos “absolutos” ou até da prática de actos
que, embora lícitos causam prejuízo a outrem, pressupõe uma tomada de posição
legislativa quanto à exigência ou não da culpa pelo facto danoso e dentro desta
matéria, da repartição do ónus de prova.
Não se afigura, pelas razões já expendidas, que a sujeição das
concessionárias de auto-estradas ao ónus de prova do cumprimento, em concreto,
das obrigações de segurança de circulação na via, viole esse direito de
iniciativa económica privada, mormente por ofensa do alegado princípio da
proporcionalidade em qualquer das suas significações.
E também não procede a alegada violação do direito fundamental à
propriedade privada.
Pode, desde logo, questionar-se que, no âmbito material da garantia
do direito fundamental à propriedade privada, possa incluir-se as diminuições de
património decorrentes do dever de indemnizar.
Mas, independentemente da resposta que essa dúvida possa merecer,
certo é que o direito de propriedade privada não está garantido em termos
absolutos, mas apenas, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 62.º da
Constituição, dentro dos limites e com as restrições previstas em outros lugares
da Constituição e na lei quando ela remeta para esta a regulação das matérias
previstas nesses outros lugares da Lei Fundamental.
Sendo assim, mesmo que o direito à reparação de danos por acidentes
em auto-estradas possa fundar-se, em alguns casos e, em parte, na violação do
direito de propriedade privada de outrem, sempre razões de segurança e de
protecção de outros direitos com reconhecimento constitucional, como o direito à
vida, à integridade física e à protecção da saúde, podem justificar a opção
legislativa de atribuição do ónus de prova do facto danoso à quem incumbe o
cumprimento de uma obrigação legal de concreta provisão material e normativa de
condições de segurança na circulação rodoviária.
Deste jeito, impõe-se concluir que a norma constante do artigo 12.º,
n.º 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso
de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais,
o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à
concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão
do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo
de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua
imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”, não padece de
inconstitucionalidade.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos