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Processo n.º 290/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
A. interpôs recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, ao
abrigo do disposto no artigo 763.º do Código de Processo Civil, na redacção dada
pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, do acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 6 de Novembro de 2008, com fundamento em contradição com o acórdão
de 8 de Julho de 1997, proferido pelo mesmo tribunal no Processo n.º 99/97.
O relator no Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 8 de Janeiro de 2009,
não admitiu o recurso por considerar, em aplicação do disposto no artigo 11º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, que o novo regime de recursos para
uniformização de jurisprudência, introduzido por este diploma, não se aplica aos
processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Notificado dessa decisão, o recorrente reclamou para a conferência, nos termos
do disposto no artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, invocando a
inconstitucionalidade da interpretação normativa adoptada em relação ao referido
preceito do artigo 11º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, por violaçao dos
artigos 1.º, 2.º, 12.º, 13.º e 20.º da Constituição da República.
Por acórdão de 25 de Março de 2009, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a
reclamação, aduzindo no tocante à questão de constitucionalidade que a
interpretação efectuada não é discriminatória, na medida em que o novo regime
de recurso é aplicável a todos processos iniciados a partir de 1 de Janeiro de
2008 e em relação aos processos pendentes nessa data, as partes continuavam a
dispor de um mecanismo de resolução de conflitos de jurisprudência que era o
previsto nos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil, e que o
recorrente não estava impedido de utilizar.
O recorrente veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto no artigo 70°, n° l, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, tendo por referência a norma do artigo 11º, n°s 1 e 2,
interpretada conjugadamente com o artigo 12º, nº 1, do Decreto-Lei n° 303/2007
de 24 de Agosto, e, consequentemente, também as normas dos artigos 763° a 770°
do Código de Processo Civil, na redacção resultante desse diploma, e ainda as
dos artigos 732º-A, n°s 1, 2 e 3, do mesmo Código na sua anterior versão (ainda
aplicável), porquanto a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido é
susceptível de violar os princípios constitucionais dos artigos 2°, 13°, n°s 1 e
2, 18°, 20º, n°s 1 e 5, da Lei Fundamental.
Tendo prosseguido o processo para alegações, o recorrente, depois de aludir à
matéria de fundo que constituía objecto do processo, relacionada com a aplicação
do disposto no artigo 877º do Código Civil, veio a formular, na parte útil, as
seguintes conclusões:
1. Perante as conclusões que antecedem, coloca-se a questão
jurídico-constitucional que, fundamentalmente, consiste em saber se, vedando-se
ao Recorrente a utilização de um recurso extraordinário para uniformização da
jurisprudência, por aplicação das normas dos art.s 763º e seguintes do C.P.C.,
na versão de 2007, colide ou não com normas e princípios constitucionais. É que,
2. no entendimento do acórdão recorrido, a barreira para essa via de recurso
extraordinário está no respeito estrito dos preceitos dos art.s 11º, nº 1, e
12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 303/2007, que vieram estabelecer a inaplicabilidade
do novo regime de recurso aos processos pendentes à data da sua entrada em
vigor, em 1 de Janeiro de 2008 (e o presente processo estava, na verdade,
pendente naquela data).
3. É uma interpretação e aplicação simples e literal daqueles preceitos do
Decreto-Lei nº 303/2007 que o Acórdão recorrido fez e, como tal, simplesmente e
automaticamente interpretou e aplicou normas feridas de inconstitucionalidade
material, como se demonstrará.
4. Desde logo é chocante que uma circunstância meramente aleatória de estar
pendente naquela data de 1 de Janeiro um processo, afaste a aplicação do regime
de recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que visa,
através do pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, sanar
situações de diversidade jurisprudencial. E o presente caso é uma dessas
situações, como fica demonstrado, sendo aqui evidente a contradição na questão
de fundo entre os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, quando o recorrente
tinha uma expectativa legitimamente fundada de ver adoptada uma corrente
jurisprudencial anteriormente firmada e que ia ao encontro das posições que
vinha defendendo na acção em causa. Assim,
5. Com este pressuposto pode adiantar-se que há uma inconstitucionalidade
material das normas já identificadas como objecto do presente recurso de
constitucionalidade, em vários patamares:
6. Por violação do principio da igualdade consagrado na norma do artigo 13º da
CRP, porque a solução legal, assente numa circunstância de tempo meramente
aleatória – antes ou depois de 1 de Janeiro de 2008 –, é uma solução arbitrária,
discriminando os litigantes de antes ou depois daquela data de 1 de Janeiro de
2008 (“não sendo aqui ostensivo que a hipótese da norma seja manifestamente
compatível com o principio da igualdade”, como se lê no acórdão do T.C. nº
484/08, de 7 de Outubro de 2008).
Por consequência, uma medida processual restritiva de um recurso tão importante
em matéria de direito – e só ele podendo contribuir para a definição do “melhor
direito” – como é o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência,
que é materialmente injustificada, mesmo no quadro de uma liberdade de
conformação legislativa do autor da medida. Porquê 1 de Janeiro de 2008 e não 1
de Agosto de 2008 ou 31 de Dezembro de 2008? – pergunta-se, a menos que se
entenda que isso teria que ver com a revogação dos anteriores art.s 763º e 770º,
operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, o que não se aceita e
mesmo os actuais litigantes nada têm que ver com os “humores” arbitrários do
poder legislativo.
Em suma: uma norma do regime de recursos, traduzida nos artigos 11º, nº 1, e
12º, nº1, do Decreto-Lei nº 303/2007, que apela à pendência dos processos para
fazer distinções, e que é destituída de fundamento constitucionalmente
relevante, violando, pois, o principio da igualdade constitucionalmente
consagrado no art. 13º da CRP.
7. Por violação da norma do art. 20º, nºs 1 e 5, da CRP, na medida em que veda
o acesso à via judiciária, na fase de um recurso, que é célere e prioritário,
para resolver dissidências ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria
de direito. O carácter sequencial dos actos processuais e a natureza unitária e
estruturada do processo impunham que a causa terminasse com a aplicação de norma
de direito transitório de um modo mais favorável aos litigantes, como é a norma
traduzida nos citados artigos 11º, nº 1, e 12º, nº 1.
Com o que, se desprotegem os litigantes com processos pendentes em 1 de Janeiro
de 2008, violando-se, assim, o principio da tutela jurisdicional efectiva dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, que se extrai da norma
do artigo 20º, nºs 1 e 5, da CRP. E não se diga que se trata de uma garantia
genérica do direito ao recurso de decisões judiciais, porque o recurso para
uniformização de jurisprudência é um recurso extraordinário e de largo espectro
na melhoria do direito.
8. Por violação da norma do art. 18º, nº 2, da CRP, porque a mesma medida
processual restritiva, a que se reportam os art.s 11º, nº 1, e 12º, nº 1, é de
muito duvidosa adequação ao fim que porventura visa atingir (será porventura
para desonerar o Supremo Tribunal de Justiça, numa óptica de racionalização do
acesso àquele Supremo, de uma eventual sobrecarga de recursos extraordinários
para uniformização de jurisprudência?). E não é indispensável, excedendo
manifestamente o que seria necessário, tanto mais que a causa já está no Supremo
Tribunal de Justiça e só convoca o pleno das secções cíveis para decidir a
dissidência de jurisprudência do mesmo Supremo. Portanto, salvo o devido
respeito, não se venha, como genericamente se vem fazendo, com a tal sobrecarga
de recursos para o Supremo…
É, assim, ilegítimo o condicionamento apontado, não respeitando o princípio do
excesso que se extrai da norma do art. 18º, nº 2.
Operando o princípio da proporcionalidade como limitação ao exercício do poder
público, e funcionando, em sede de direitos, liberdades e garantias, como limite
às restrições admissíveis, ele significa que deve estar presente no “modus
operandi” do legislador, em obediência aos subprincipios em que se desdobra: os
princípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida. Mesmo que seja,
aqui, contestável a violação de todos aqueles subprincipios, sempre será
indiscutível a violação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou
da justa medida.
Justa medida nunca, pois do que se trata, no presente caso, é de negar o acesso
à Justiça em matéria de direito, no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça,
impedindo-se que se apure a linha jurisprudencial desse Supremo que melhor sirva
o “bom direito”.
Sai, assim, violado o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso,
consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP (vejam-se, a propósito as considerações
oportunas que constam do acórdão do TC nº88/2004, in Acórdãos, 58º Vol., pág.
423).
9. Por fim, por violação dos artigos 1º e 2º da CRP, na medida em que aí estão
ínsitos os princípios da confiança e da segurança jurídica, que são pilares
fundamentais da protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
acórdãos.
Com efeito, os litigantes, ao acederem aos Tribunais, pedindo-lhes que se faça
Justiça, têm legitimas e fundadas expectativas de que as causas sigam uma
tramitação processual que lhes assegure, com respeito pelas alçadas, a
reapreciação e a revisão das decisões jurisdicionais. E não podem ser
circunstâncias meramente aleatórias, como seja, a circunstância da pendência da
causa numa determinada data, a obstar, em definitivo, a tal reapreciação e
revisão. Se isso acontecer, como se quer fazer entender nestes autos, então o
Estado-legislador, ao enunciar friamente o que enunciou nos artigos 11º, nº 1, e
12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 303/2007, está a frustrar a confiança que os
cidadãos devem ter na tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos.
Em contra-alegações, os recorridos consideram, em suma, que está vedado ao
Tribunal conhecer do recurso, por falta de suscitação da questão de
constitucionalidade, no que se refere às normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 877.º
do Código Civil, e que o recurso é improcedente no tocante às disposições dos
artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, por se não
verificar o invocado vício de inconstitucionalidade material.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nas suas contra-alegações, os recorridos suscitam a questão do não conhecimento
do recurso em relação ao artigo 877.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, por
considerarem que não foi cumprido, pelo recorrente, o ónus de suscitação da
questão de inconstitucionalidade, no decurso do processo, como exigem os artigos
70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Tal invocação é, no entanto, inteiramente descabida, porquanto, como resulta com
evidência do requerimento de interposição de recurso, o recorrente não indicou o
referido preceito como constituindo objecto do recurso, e apenas a ele aludiu
nas alegações de recurso em termos meramente circunstanciais, fazendo centrar
antes a questão de constitucionalidade tão-somente nas disposições dos artigos
11º, nº 1, e 12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
Por outro lado, embora o recorrente, no mesmo requerimento, tenha feito alusão,
não apenas às sobreditas normas do Decreto-Lei nº 303/2007, mas também às dos
n°s 1, 2 e 3 do artigo 732º-A do Código de Processo Civil, na versão anterior à
introduzida por esse diploma, a verdade é que nenhuma referência é feita, nas
alegações de recurso, a essas outras disposições – que, aliás, também não
constituem ratio decidendi do acórdão recorrido -, pelo que deve entender-se o
recorrente operou a restrição tácita do objecto inicial do recurso, não havendo
que considerar a questão de constitucionalidade por referência àquele preceito.
É com esta necessária delimitação que cabe apreciar o mérito do recurso.
O Decreto-Lei nº 303/2007 procedeu à reforma dos recursos cíveis, visando
essencialmente a simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso
ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando as suas funções de orientação e
uniformização de jurisprudência. Servindo especificamente o propósito de uma
maior uniformização da jurisprudência, o novo diploma, como decorre
explicitamente do respectivo preâmbulo, veio implementar duas diferentes medidas
legislativas: i) a obrigação que passa a impender sobre o relator e os adjuntos
de suscitar o julgamento ampliado da revista sempre que verifiquem a
possibilidade de vencimento de uma solução jurídica que contrarie jurisprudência
uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça; e, ii) a introdução de um recurso
extraordinário de uniformização de jurisprudência para o pleno das secções
cíveis do Supremo quando este tribunal, em secção, proferir acórdão que esteja
em contradição com outro anteriormente proferido, no domínio da mesma legislação
e sobre a mesma questão fundamental de direito.
A primeira dessas medidas foi concretizada através da alteração do artigo 732º-A
do Código de Processo Civil, que, em matéria de julgamento ampliado de revista,
passou a ostentar a seguinte redacção:
Artigo 732.º-A
(Uniformização de Jurisprudência)
1. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do
acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do plenário das
secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a
uniformidade da jurisprudência.
2. O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por
qualquer das partes ou pelo Ministério Público e deve ser sugerido pelo relator,
por qualquer dos adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis,
designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento de solução
jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no
domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
A segunda resultou do aditamento dos artigos 763º e seguintes, que passaram a
instituir um novo recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, à
semelhança do que já se sucedera no âmbito do processo penal (artigo 437.º, n.º
1, do Código de Processo Penal) e do contencioso administrativo (artigo 152.º,
n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
O artigo 763.º do Código de Processo Civil passou então a dispor:
Artigo 763.º
(Fundamento do recurso)
1. As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em contradição
com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma
legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
2. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito
em julgado, presumindo-se o trânsito.
3. O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido
estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de
Justiça.
A reforma do regime de recursos em processo civil assim gizada entrou em vigor
em 1 de Janeiro de 2008, como determina o artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/2007, mas não se aplica aos processos pendentes, nos termos do n.º 1 do
artigo 11.º desse mesmo diploma, que, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”,
prescreve: “[s]em prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do
presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua
entrada em vigor”.
Embora o recorrente identifique como objecto do recurso o bloco normativo
constituído pelas disposições dos citados artigos 11º, n.º 1, e 12º, n.º1, a
interpretação normativa que é censurada é a referente àquele primeiro preceito,
e prende-se com a restrição que é feita, no tocante à aplicação no tempo, do
novo sistema de recursos. A norma do artigo 12º, por sua vez, limita-se a fixar
a data do começo de vigência do diploma, por referência à qual se há-de
determinar se um dado processo, considerando o momento da sua entrada em juízo,
estava ou não pendente para efeito de ser ou não aplicável o novo regime de
recursos.
É, pois, a norma do artigo 11º, n.º 1, que interessa essencialmente considerar,
embora esta não possa deixar de ser interpretada em conjugação com o preceito
subsequente, para que necessariamente remete num aspecto preciso da sua
regulamentação.
E essa norma, como bem se vê, tem a natureza de uma disposição de direito
transitório, que se destina a regular de modo expresso um problema de sucessão
de leis no tempo criado pela entrada em vigor no ordenamento jurídico de um novo
regime processual de recursos, e que, de outro modo, teria de ser solucionado
por aplicação dos princípios gerais.
O recorrente pretende, porém, que a limitação dos efeitos do novo regime legal
aos processos que se iniciem a partir da entrada em vigor da lei nova (com a
consequente exclusão dos processos que se encontrem pendentes a essa data) é
susceptivel de violar o principio da igualdade consagrado no artigo 13º, bem
como o princípio da tutela jurisdicional efectiva decorrente do artigo 20º, nºs
1 e 5, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, expresso no
artigo 18º, nº 2, e ainda os princípios da confiança e da segurança jurídica
ínsitos nos artigos 1º e 2º, todos da Constituição.
A ideia central que subjaz à argumentação do recorrente de onde decorrem todos
os invocados vícios de inconstitucionalidade assenta na seguinte premissa: o
legislador quis estabelecer um novo recurso extrordinário para uniformização de
jurisprudênca para sanar s situações de oposição de julgados, pelo que lhe está
constitucionalmente vedado impedir as partes de utilizar essa garantia
processual com base num critério meramente aleatório que se traduza no factor
tempo.
Tomando por base os parâmetros constitucionais da igualdade, da tutela
jurisdicional efectiva e do estado de Direito, o Tribunal Constitucional,
através do acórdão n.º 383/09, teve já oportunidade de se pronunciar sobre a
mesma interpretação normativa que está agora em causa em termos que mantêm plena
validade.
Escreveu-se então o seguinte:
10. […]
É exacto que ao Supremo Tribunal de Justiça, como órgão superior da hierarquia
dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal
Constitucional (art.º 210.º da CRP) compete, além da comum função de julgamento
do caso individual que compartilha com todos os tribunais, a função específica
dos supremos tribunais que consiste em procurar assegurar a unidade da ordem
jurídica mediante a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos
tribunais. Princípio da uniformidade da jurisprudência que se entende sem
prejuízo da independência decisória e da liberdade judicativa das instâncias
jurisdicionais e da abertura a novas necessidades e a novos problemas da prática
jurídica que exijam a assimilação de novos critérios jurídicos. Mas que merece
tutela sob pena de os valores da segurança jurídica e da igualdade sofrerem
intolerável erosão no momento da aplicação da lei pelos tribunais. O Supremo é
chamado a desempenhar, dizendo-o como CASTANHEIRA NEVES, O Instituto dos
“Assentos” e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, p. 658, a tarefa de
“conjugar a estabilidade com a continuidade na unidade e como unidade
(prático-normativa), embora uma estabilidade que, como sabemos, não é nem deverá
ser fixidez e uma continuidade que não é nem deverá ser imutabilidade”. Para
essa função específica do Supremo Tribunal de Justiça contribuem, no modo
organizativo, a unicidade orgânica e a qualificação funcional dos seus Juízes
(inerente aos critérios de recrutamento e selecção) e, no plano processual,
instrumentos como os referidos julgamento ampliado da revista e recurso por
oposição de julgados.
Porém, a mais do que aquilo que resulta da consagração constitucional da
hierarquia dos tribunais, trata-se de finalidade prosseguida pelo direito de
organização judiciária e processual infra-constitucional. E, ainda que se
considere possível retirar da Constituição, designadamente dos princípios da
segurança jurídica e da igualdade, a imposição ao legislador de um dever de
consagrar medidas organizatórias e instrumentos processuais especificamente
ordenados à prossecução do interesse da uniformização da jurisprudência,
tratar-se-á sempre de uma exigência de protecção institucional objectiva da
unidade da ordem jurídica, não de um direito subjectivo ou situação activa
equiparada dos cidadãos ( de cada cidadão litigante) a deduzir uma pretensão
dirigida à manutenção ( ou pelo menos à uniformização ) da jurisprudência. Como
no Acórdão nº 574/98 (Acórdãos, 41º, 149, 162) se afirmou “ não existe na Lei
Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro do processo civil, a
existência de um recurso para uniformização de jurisprudência”, pelo que não
pode considerar-se violados os preceitos constitucionais que a recorrente invoca
por lhe não ser aberta tal via processual.
11. O que, com maior credibilidade argumentativa, poderia perspectivar-se por
confronto com o princípio da igualdade seria o facto de, perante decisões do
Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão fundamental de direito tomadas
a partir do momento em que foi reintroduzido o recurso por oposição de acórdãos,
a uns interessados ser possível interpor recurso extraordinário para
uniformização de jurisprudência (obviamente, em ordem a obter que a divergência
se resolvesse em sentido favorável à sua pretensão) e a outros não assistir tal
faculdade, apenas em função do momento em que a acção foi instaurada. Abreviando
o passo, saber se passa o teste da proibição do arbítrio a norma transitória que
escolhe como factor determinante para negar este recurso – cuja (re)introdução
pelo legislador significa o reconhecimento do seu contributo para a melhor
aplicação do direito – o facto de o processo onde a decisão é proferida se
encontrar já pendente à data da entrada em vigor da lei nova.
Como é de uso repetir-se, o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo
13.º da Constituição, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia
geral de proibição de arbítrio. O que ele proíbe ao legislador não é que
estabeleça distinções: proíbe-lhe, isso sim, que estabeleça distinções de
tratamento materialmente infundadas, irrazoáveis ou sem justificação objectiva e
razoável.
No caso, o factor de diferenciação escolhido, no que concerne ao recurso para o
Pleno das secções cíveis, é o momento em que a acção foi proposta. O legislador
pretendeu resolver os complexos problemas de aplicação da lei processual no
tempo mediante uma norma de direito transitório que assegurasse que nas acções
propostas antes da entrada em vigor da lei nova os interessados conservassem
(positiva e negativamente) os meios de impugnação das decisões judiciais nela
proferidas que lhes eram reconhecidos no domínio da lei antiga. Esta solução não
se mostra irrazoável, sem justificação objectiva ou fundamento material, sendo
inspirada por óbvias preocupações de certeza e segurança jurídicas e de
protecção da confiança. Com efeito, há que ter presente, além de que a
estratégia processual das partes pode ter-se orientado em função dos meios
impugnatórios existentes, o facto de ao interesse de uma das partes em mais uma
via de recurso se contrapôr o interesse da outra parte em dar a discussão por
finda com a decisão que se lhe revela favorável. Assim, a ponderação legislativa
que levou à referida norma de direito transitório que torna a lei nova
inaplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, mesmo na
parte em que introduz a faculdade de recurso para o pleno das secções cíveis
para uniformização de jurisprudência, pode ser solução de mérito duvidoso, mas
não pode ser apodada de arbitrária.
Estas considerações são perfeitamente transponíveis para o caso vertente e
conduzem inevitavelmente à improcedência da argumentos invocados pelo
recorrente.
Na verdade, contrariamente ao que vem afirmado, a exclusão do novo de recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência em relação aos processos
pendentes à data da entrada em vigor da nova lei não assenta em qualquer factor
arbitrário ou aleatório, mas decorre de um facto processualmente relevante que é
o começo de vigência da nova lei. O que basicamente está em causa é uma
diferença de regimes decorrente da normal sucessão de leis, havendo que
reconhecer ao legislador uma apreciável margem de liberdade no estabelecimento
do marco temporal relevante para aplicação do novo e do velho regime. E nem é
sequer possível estabelecer um termo de comparação entre a situação dos sujeitos
processuais cujas acções entraram em juízo no domínio da lei precedente e a
daqueles outros cujos processos já se iniciaram na vigência da nova lei, e que,
por isso, ficam já subordinados ao novo regime legal. A diferenciação de
tratamento baseia-se, neste caso, numa distinção objectiva de situações e esta
distinção, por sua vez, encontra justificação num fundamento material bastante,
qual seja a entrada em vigor de um novo regime processual em matéria de recursos
cíveis. De resto, como o Tribunal tem sistematicamente afirmado, o «princípio de
igualdade não opera diacronicamente» (acórdãos nº 43/88, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol. pág. 565 e Acórdão n.º 309/93) ou, pelo menos, não
opera diacronicamente de forma a impedir a sucessão de leis no tempo (acórdãos
n.ºs 563/96, 467/03, 99/04 e 222/08.
É também evidente que não há qualquer violação do princípio da protecção da
confiança.
Este conceito, como decorrência do princípio do Estado de Direito democrático,
postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na
ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de
segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente
criadas». Nesse sentido, só uma «normação que, por natureza, obvie de forma
intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e
segurança jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar,
como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser
entendida como não consentida pela a lei básica» (entre outros, o acórdão n.º
303/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pág. 65).
Ora, no caso vertente, o recorrente não tinha qualquer expectativa de poder
lançar mão de um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, como
o que veio a ser admitido por força da aditamento das normas dos artigos 763º e
seguintes do Código de Processo Civil, porque justamente no momento em que
propôs a acção não era esse o regime legal vigente, o qual apenas passou a
entrar em vigor na pendência do processo. E, por outro lado, o recorrente
dispunha de um outro mecanismo destinado a assegurar a uniformidade da
jurisprudência, mediante o julgamento ampliado da revista que estava previsto no
artigo 732º-A do mesmo Código, que igualmente implicava a intervenção do
plenário das secções cíveis, e que satisfazia já o interesse processual de
prevenção de um eventual conflito de jurisprudência.
Não pode, por isso, afirmar-se que a norma do artigo 11º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 303/2007, ao afastar a retrospectividade na aplicação do novo regime de
recursos, tenha afectado de forma inadmissível as expectativas jurídicas do
recorrente, quando é certo que este tinha à sua disposição um meio processual
adequado a assegurar a uniformidade da jurisprudência e não poderia contar,
legitimamente, no momento em que propôs a acção, com um qualquer outro
expediente alternativo para atingir esse mesmo objectivo.
E é também claro que não há qualquer violação do artigo 20º da Constituição
porque dessa norma não resulta que o legislador tenha de assegurar
imperativamente e sem restrições um duplo grau de recurso e, por maioria de
razão, nem ela impõe qualquer exigência de um duplo grau de recurso no seio do
tribunal de cúpula da ordem jurisdicional comum para efeito de garantir a
uniformização de jurisprudência (cfr., entre outros, acórdãos do TC n.ºs 209/90,
189/2001, 261/2002 e 490/2003).
Resta verificar se interpretação normativa aqui em causa implica, como vem
alegado, uma violação do disposto no artigo 18º, nº 2, do CPP.
Como pressuposto material para a restrição de direitos, liberdades e garantias,
o princípio da proporcionalidade genericamente considerado impõe que a solução
normativa se revele como idónea para a prossecução dos fins visados pela lei, se
mostre necessária por não ser viável ou exigível que esses fins sejam obtidos
por meios menos onerosos para os direitos dos cidadãos, e se apresente ainda
como uma medida razoável, e, por isso mesmo, não excessiva ou desproporcionada
(Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª
edição, Coimbra, págs. 392-393).
Conforme vem sendo sublinhado pelo Tribunal Constitucional, «[s]ó as normas
restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu conteúdo e
alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir
pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao conjunto de
exigências e cautelas consignado no artigo 18º, nºs 2 e 3, da Lei Fundamental».
Para que um condicionamento ao exercício de um direito possa redundar
efectivamente numa restrição torna-se necessário que ele se mostre desadequado e
desproporcionado de modo a que possa dificultar gravemente o exercício concreto
do direito em causa (acórdão n.ºs 413/89, publicado no Diário da República, II
Série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi refirmada, designadamente,
no acórdão n.º 247/02).
Sendo assim, só poderia considerar-se verificada a violação do princípio da
proporcionalidade relativamente ao direito de acesso à justiça e aos tribunais
se estivéssemos na presença de uma efectiva restrição ao exercício desse direito
ou, de outro modo, perante um condicionamento que se mostrasse excessivo ou
desproporcionado.
Desde logo, a norma em si não afecta o conteúdo de um direito fundamental, mas
apenas regulamenta a produção de efeitos de um novo diploma legal; nesse
sentido, a norma não tem um carácter restritivo de direitos e nem sequer opera o
preenchimento ou desenvolvimento legislativo do conteúdo de um direito (quanto à
distinção entre restrição e regulamentação, Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, Tomo IV, 3ª edição, Coimbra, págs. 329-330). E, para além disso,
o recurso para uniformização de jurisprudência, como se deixou esclarecido, não
integra o direito de acesso aos tribunais, pelo que, também por essa razão, não
poderia considerar-se a existência de uma restrição de direito fundamental.
Revertendo ao caso concreto, o que se constata é que o artigo 11º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 303/2007 se limitou a estabelecer uma norma de direito
transitório material destinada a adaptar o novo regime legal introduzido por
esse diploma às situações existentes no momento da sua entrada em vigor. Como se
observou já, o legislador dispõe de uma ampla margem de conformação na definição
do regime de aplicação da lei no tempo, havendo de atender a considerações de
política legislativa que possam justificar a aplicação da nova lei a relações já
constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor ou apenas a factos
novos.
Nestes termos, o referido preceito limita-se a consignar uma das soluções
possíveis de regulação da transição entre dois regimes jurídicos.
Nada permite concluir, por conseguinte, pela violação do disposto no artigo 18º,
n.º 2, da Constituição.
Termos em que o recurso se mostra ser inteiramente improcedente.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a
decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 27 de Outubro de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão