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Processo n.º 991/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. instaurou acção ordinária contra Companhia de Seguros B., SA., pedindo a
condenação desta a pagar-lhe a quantia de 12.155.845$00, para ressarcimento de
danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação de que
foi vítima em Espanha devido ao despiste, em consequência de o piso se encontrar
escorregadio, do veículo de matrícula ..-..-.., por si conduzido, sob as ordens
e direcção de C. Lda, que era proprietária do mesmo e tinha a responsabilidade
civil transferida para a ré.
A acção foi julgada parcialmente procedente por sentença que condenou a ré a
pagar ao autor a quantia global de ? 10.973,54, sendo ? 9.975,95, referente a
lucros cessantes, e ? 997,95 de despesas de tratamento. Quanto aos danos não
patrimoniais entendeu-se que os mesmos não estavam cobertos pela garantia do
seguro contratado com a ré.
2. Da sentença recorreram autor e ré, tendo a Relação decidido julgar procedente
a apelação da ré B., revogando parcialmente a sentença e fixando a indemnização
a pagar pela ré ao autor em ? 1.995,20, e julgar improcedentes as apelações do
autor (do despacho saneador que conheceu da prescrição do direito de
indemnização do autor relativamente à interveniente ?C.? e da sentença final).
Deste aresto interpôs o autor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que,
por acórdão de fls. 408 a 415, negou a revista, com os seguintes fundamentos:
?[ ?]
7.º Na segunda questão, considera o recorrente que é terceiro relativamente ao
acidente, por estar abrangido pela prescrição do artº 504º, n.º 1.
À face dos autos constata-se que a interveniente ?C.?, enquanto proprietária do
veículo acidentado, havia celebrado com a recorrida ?B.? dois contratos de
seguro, sendo um de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº ?.
e outro de acidentes pessoais, abrangendo os ocupantes, incluindo o condutor, do
veículo ..-..-.., titulado pela apólice nº ?..
Esse veículo era, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo apuradas, conduzido
pelo recorrente por conta da dita tomadora dos seguros.
Estipula o art. 504º, nº 1 que ?a responsabilidade pelos danos causados por
veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas?.
?Terceiro?, em matéria de acidente de viação é todo aquele que possa imputar a
responsabilidade de evento a outrem.
Na categoria de terceiros deve ser incluído a condutor que não tenha a direcção
efectiva do veículo nem o utilize no seu próprio interesse, mas apenas como
comissário (Cf. Vaz Serra, R.L.J. 102º, 28 e ac. S.T.J. de 25/02/75, B.M.J., 244º,
269).
No entanto, o conceito de ?terceiro? sofre das excepções contidas no artº 7º do
Dec-Lei nº 522/85, de 31/12, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei nº 130/94,
donde resulta, ?ex vi? do nº 1 que se encontram excluídos da garantia do seguro
as lesões corporais sofridas pelo condutor do veículo seguro.
A Directiva do conselho de 14/05/90 (nº 90/232/CEE) estabelece no seu artº 1º
que o seguro de responsabilidade civil atinente à circulação de veículos
automóveis deve cobrir a responsabilidade por danos pessoais de todos os
passageiros, com excepção dos sofridos pelo condutor, o que implicou a nova
redacção ao citado artº 7º, pelo dito Dec-Lei nº 130/94, de 19/05 que transpôs
tal Directiva para a ordem jurídica portuguesa.
Os danos sofridos pelo recorrente derivaram de lesões corporais, sendo certo que,
como se disse, o artº 7º, nº 1 do Dec-Lei nº 522/85 (diploma que institui o
seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) exclui da garantia do
seguro os danos dessa natureza derivados para o condutor do veículo.
Entende o recorrente, que a exclusão do âmbito da cobertura do seguro dos danos
sofridos pelo mesmo, condutor do FR, prevista no indicado normativo, foi
implicitamente revogada pela alteração da redacção do artº 504º do Cód.Civ.,
efectuada pelo Dec-Lei nº 14/96, de 06/03.
Contudo, a alteração operada (em ordem a adequar o direito interno à referida
Directiva Comunitária n.º 90/232/CEE) limitou-se a incluir no âmbito do seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel as pessoas transportadas quer
haja culpa do condutor quer haja responsabilidade pelo risco.
Não consta do artº 504º que os danos sofridos pelo próprio condutor estejam
abrangidos pela cobertura do seguro, lembrando-se que a Directiva determinou
apenas que o seguro devesse cobrir a responsabilidade por danos de todos os
passageiros, com excepção dos padecidos pelo condutor do veículo.
Consequentemente, e até porque não é terceiro para efeitos da aplicação do
regime estabelecido nos apontados arts 504º e 7º, não assiste ao recorrente o
direito a ser indemnizado pelos danos corporais decorrentes das lesões ao abrigo
do seguro de responsabilidade de titulado pela apólice 07-40-30660, por não se
incluírem na sua cobertura.
8.º Responde o recorrido apenas pelos danos abrangidos pelo seguro facultativo
de acidentes pessoais (ocupantes e condutor do veículo FR) celebrado com a
chamada ?C.?, nos termos e pelo montante fixado no acórdão da Relação, o que
aqui não é questionado, concluir-se.
9.º Prende-se a última questão com a alegada inconstitucionalidade da
interpretação dada ao artº 7º, nº 1 do Dec-Lei nº 522/85 por ofensa do disposto
nos arts 9º, al d), 13º, nº 1, 16º, nº 2, 18º, n.ºs 1 e 2, 20º, nº 4, 24º, nº 1
e 25º, nº 1 da CRP.
Expressa-se nestas normas o seguinte:
- Art. 9º, al. d): É tarefa fundamental do Estado ?promover o bem estar e a
qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a
efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a
transformação e modernização das estruturas económicas e sociais?.
- Artº 13º, nº 1: ?todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais
perante a lei?.
- Artº 16º, nº 2: ?os preceitos constitucionais ilegais relativos aos direitos
fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem?;
- Artº 18º, nº 1: ?os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades
públicas e privadas;
Nº 2: ?A lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos da constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário parta salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos?;
- Artº 20º, nº 4: ?Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja
objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo?;
- Artº 25º, nº 1: ?A integridade moral e física das pessoas é inviolável?.
10.º Não justifica recorrente a razão pela qual considera que a interpretação
dada ao artº 7º, nº 1, do Dec-Lei nº 522/85 no acórdão recorrido viola as
indicadas disposições constitucionais.
Como vimos, a Relação no respeito pelo postulado no artº 9º do Cód. Civ, atribui
à norma do citado artº 7º, nº 1 o sentido que resulta claramente do seu texto e
que esteve na mente do legislador, isto é, que nele se prevê a exclusão da
garantia do seguro dos danos decorrentes de lesões corporais sofridas pelo
condutor do veículo seguro.
Decidiu-se, em consequência, que baseando-se a indemnização reclamada à
recorrida, em danos corporais causados ao recorrente, condutor do veículo,
estávamos mesmo fora do âmbito do contrato de seguro obrigatório de
responsabilidade civil contratado.
11.º Não se vê que a interpretação operada pelo tribunal recorrido ao referido
artigo traduza, por qualquer forma, infracção das regras e princípios
consagrados na Lei Fundamental, designadamente, o direito à vida e integridade
pessoal, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e os princípios da
igualdade e da proporcionalidade invocados.
12.º Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso, não merecendo reparo o
acórdão recorrido.
III ? DECISÃO
Atento o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de revista.
Custas pelo recorrente.»
3. O autor interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para o
Tribunal Constitucional, com fundamento nas alíneas b), c) e f) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro [cf. requerimento de fls. 425].
Na sequência da resposta do recorrente [cf. fls. 430/431] a convite que lhe foi
formulado ao abrigo do artigo 75.º-A da LTC, o relator proferiu o despacho de
fls. 435, do seguinte teor:
?Nada tendo o recorrente dito, no requerimento de interposição do recurso ou na
resposta ao convite formulado ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, que
possa justificar a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo
das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º desta Lei, o recurso apenas
prossegue, sem prejuízo de questões obstativas que venham a ser suscitadas, ao
abrigo da aliena b) do n.º 1 do artigo 70.º para apreciação da
constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85,
de 31 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 130/94, de
19 de Maio).
Com esta delimitação, notifique para alegações.?
4. Apenas alegou o recorrente, sustentando as seguintes conclusões:
?1º O presente recurso foi admitido no Tribunal Constitucional tendo o seu
objecto sido delimitado, pelo que prossegue apenas ao abrigo do artº 70º, nº 1,
alínea b) da LTC, para apreciação da constitucionalidade da interpretação e
aplicação da norma do artº 7º, nº 1 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção
dada pelo DL 130/94, de 19 de Maio.
2º O ora recorrente invocara a inconstitucionalidade da interpretação dada ao
artº 7º, nº 1 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, nas suas alegações e conclusões
no recurso de revista, e que expressamente se invoca de novo, uma vez que o
acórdão recorrido partilha a linha de orientação do Acórdão da Relação do Porto
de 23 de Janeiro de 2007 relativamente ao preceitos constitucionais dos arts. 9º,
alínea b); 13º, nº 1; 16º, nº 2; 18º; 20º, nº 4; 24º, nº 1 e 25º, nº 1 da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
3º O ora recorrente propusera acção ordinária de responsabilidade civil por
acidente de viação no Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar, que correu
termos na 1ª Secção, como Processo nº 141/2002, contra a B., SA, ora recorrida.
4º Os factos dados como provados, e que constam dos autos, encontrando-se
resumidos nas presentes alegações, excluem a responsabilidade do autor, ora
recorrente, relativamente ao acidente.
5º O ora recorrente propôs a referida acção contra a B. por a C. ter transferido
a responsabilidade civil emergente de acidente de viação causado pela utilização
de veículo para esta Companhia de Seguros, através do contrato de seguro
titulado pela apólice nº ?., vigente à data do acidente.
6º A mesma C. também transferira a responsabilidade civil por danos emergentes
de acidente de viação, causados aos ocupantes para a mesma Companhia de Seguros,
através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ?..
7º Após a contestação da ora 1ª recorrida, B., SA, o ora recorrente requereu a
intervenção provocada da ora 2ª recorrida, a ?FILIPETTJR ? Viagens e Turismo,
Lda.?.
8º A sentença de 31 de Agosto de 2006, notificada a 5 de Setembro de 2006,
julgou a acção parcialmente procedente por parcialmente provada, condenando a ré
?B., SA?, ora 1º recorrida, ao pagamento da quantia global de 10.973,54 euros,
correspondentes à soma dos valores do limite da garantia do seguro (9.975,95
euros) e do limite do seguro contratado com esta (997,59 euros), absolvendo do
demais peticionado contra si.
9º O ora recorrente e a ora 1ª recorrida interpuseram recurso de apelação, tendo
apresentada as respectivas alegações e contra-alegações.
10º O Tribunal da Relação do Porto por Acórdão de 23 de Janeiro de 2007, veio
julgar a matéria de prescrição do direito do A. relativamente à ora 2ª recorrida,
tendo julgado procedente a excepção invocada em recurso do despacho saneador e
acordou-se em julgar procedente a apelação da ora 1ª recorrida, revogar
parcialmente a sentença recorrida; fixar em 1.995,20 euros a indemnização a
pagar pela R. ao A.; e julgar improcedente a apelação do A.
11º Não se conformando com o acórdão, o ora recorrente interpôs recurso de
revista sendo as seguintes as questões a saber: se não prescrevera o direito de
indemnização relativamente à interveniente, ora 2ª recorrida; se o recorrente
era ?terceiro? para efeitos do nº 1 do artº 504º do CC; se acórdão seria nulo
por omissão de pronúncia e se seria inconstitucional a interpretação dada pelo
acórdão ao nº 1 do artº 7º do DL 522/85.
12º O acórdão recorrido, o Acórdão do STJ de 20/09/2007, negou provimento ao
recurso de revista.
13º O presente recurso versa sobre uma das questões suscitadas no acórdão
recorrido, a de saber se seria inconstitucional a interpretação e aplicação do
artº 7°, nº 1 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, por ofensa dos preceitos
constitucionais dos arts. 9º, alínea d); 13º, nº 1; 16º, nº 2, 18º nº 1 e 2; 20º,
nº 4; 24, nº 1 e 25º, nº 1 da CRP.
14º A aplicação destes preceitos constitucionais não é feita plenamente no caso
sub judice.
15° O artº 7º, nº 1 do DL 522/85 exclui do âmbito do seguro as lesões corporais
sofridas pelo condutor do veículo seguro.
16º O ora recorrente entende que a interpretação literal dessa norma não é que
melhor respeita a nossa Constituição.
17º Entende o ora recorrente que a exclusão das lesões corporais sofridas pelo
condutor do veículo seguro da garantia de seguro foi implicitamente revogada
pela redacção dada ao artº 504º, nº 1 do CC pelo DL 14/96, de 6 de Março.
18º O conceito de terceiro constante do preceito supra enunciado é mais lato
pois terceiro, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que pode imputar
a responsabilidade do evento a outrem, devendo também incluir-se nesta categoria
o condutor que não tenha a direcção efectiva do veículo nem o utilize no seu
próprio interesse, mas apenas como comissário.
19º O acidente não foi produzido por evento imputável ao condutor, ora
recorrente, a terceiros ou a causa de força maior estranha ao funcionamento do
veículo, mas às condições do piso escorregadio pela existência de óleo na
estrada e queda das primeiras chuvas.
20º Está excluída a aplicação da norma do artº 505º do CC, sendo aplicáveis os
preceitos dos arts. 503º, n.º 1 e 3, 504º, nº 1 do CC.
21º Sendo de excluir a responsabilidade do condutor, cuja responsabilidade é
garantida no artº 8º do DL 522/85, deverá este ser indemnizado ao abrigo do
disposto no artº 6º, nº 1 nesse Decreto-Lei, sendo afastado o artº 7º, nº 1 do
mesmo diploma legal por verificação dos requisitos do artº 504º do CC.
22° Se não se interpretasse a norma do artº 7°, nº 1 dessa forma, o condutor
lesado excluído da categoria de terceiro do artº 504° do CC, pela exclusão do
artº primeiramente citado, não veria qualquer dos seus direitos
constitucionalmente protegidos nem veria ressarcidas a suas lesões corporais por
não lhe ser aplicável o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
23º A limitação do âmbito do seguro automóvel conjugada com a limitação da
legitimidade passiva prevista no artº 29º, nº 1, alínea a) do DL 522/85, que
originou que a acção fosse inicialmente proposta contra a seguradora, também
deixariam o ora recorrente desprotegido, nomeadamente a nível indemnizatório.
24º A ora 1ª recorrida invocou os limites do contrato de seguro para delimitar a
sua responsabilidade pelo que o ora recorrente, que sabia unicamente o nº do
contrato mas nunca tivera acesso a ele, só então pode requerer a intervenção da
ora 2ª recorrida.
25º Tendo esta excepcionado a prescrição do direito do ora recorrente em relação
a ela, as suas pretensões foram atendidas no acórdão da Relação, já
anteriormente citado, secundado pelo acórdão recorrido.
26º A interpretação destes preceitos da forma como foi feita pelo acórdão
recorrido conduziria a uma interpretação e aplicação do artº 7º, nº 1 do DL 522/85
feita contra a Constituição.
27° Essa interpretação e aplicação da norma em análise no caso concreto viola os
preceitos dos arts. 9º, alínea d); 13, nº 1; 16º, n.° 2; 18º, nº 1 e 2; 20, nº 4;
24º, nº 1 e 25º, nº 1 da Constituição.
28° Com o acórdão recorrido, o Estado não prossegue as tarefas fundamentais de
promover o bem-estar e a qualidade de vida e a igualdade real ente os
portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais
e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas
e sociais.
29º Não respeita os princípios da igualdade e da interpretação e integração dos
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais de
harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
30º Também não são respeitados o direito à vida e à integridade física.
31º A força jurídica dos preceitos constitucionais relativos a direitos,
liberdades e garantias que são directamente aplicáveis e vinculam entidades
públicas e privadas seria letra morta.
32º As restrições efectuadas dos direitos, liberdades e garantias previstas na
Constituição não se limita ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, indo para além do necessário.
33º As garantias jurisdicionais do ora recorrente de decisão em prazo razoável e
mediante processo equitativo não foram igualmente respeitadas.
34º Com a interpretação e aplicação feita do artº 7º, nº 1 do DL 522/85 foram
violados os preceitos constitucionais supra citados e pelas razões explanadas
nestas alegações e suas conclusões.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. O presente recurso, inicialmente admitido no tribunal a quo com fundamento
nas alíneas b), c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, prosseguiu apenas ao abrigo da alínea b), tendo o seu objecto sido
restringido à apreciação da (in)constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo
7.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada
pelo Decreto-Lei n.º 130/94, de 19 de Maio), conforme se consignou no despacho
de fls. 430/431, que determinou a notificação das partes para alegações, com
esta delimitação.
Sucede que, nas alegações, além de referir a inconstitucionalidade da norma do n.º
1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85, o recorrente continua a sustentar,
como havia feito nas alegações do recurso de revista e no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade, que esta norma não seria
aplicável ao caso. Considera que a exclusão das lesões corporais sofridas pelo
condutor do veículo seguro da garantia de seguro obrigatório, prevista na norma,
foi implicitamente revogada pela redacção dada ao artigo 504.º, n.º 1, do Código
Civil, pelo Decreto-Lei n.º 14/96, de 6 de Março, e que o condutor lesado, ao
qual não foi imputada responsabilidade na produção do acidente, devia ser
indemnizado ao abrigo do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 522/85.
Importa esclarecer que tais questões, enquanto respeitantes à subsunção da
situação fáctica apurada às normas de direito ordinário que se entendeu serem as
aplicáveis ao caso submetido a julgamento, não integram o objecto do recurso de
constitucionalidade.
Efectivamente, não compete a este Tribunal interferir, para além do controlo da
constitucionalidade do resultado normativo a que se chegar, na determinação do
direito aplicável. Como se disse logo no acórdão n.º 44/85 (publicado in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, págs. 403-409), ?para o
Tribunal Constitucional a norma de direito infra-constitucional que vem
questionada no recurso é um dado (...) Saber se essa norma era ou não aplicável
ao caso, se foi ou não bem aplicada ?, isso é da competência dos tribunais
comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal
Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o
direito infra-constitucional; apenas lhes compete controlar o modo como eles
aplicam (ou não) o direito constitucional.? E acrescentou-se: ?Em matéria de
fiscalização concreta da constitucionalidade ? repita?se ? o dado normativo a
ser submetido ao parâmetro constitucional chega já definido ao Tribunal
Constitucional, não lhe cabendo pô-lo em causa.?
A este Tribunal somente compete dizer se a norma, com o sentido adoptado pela
decisão recorrida e identificada como objecto de recurso, padece da
inconstitucionalidade que lhe foi imputada ? ou, eventualmente, de outra (Cf.
artigo 79.º-C da LTC).
Deste modo, a questão a apreciar no presente recurso consiste em saber se é ou
não inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85,
de 31 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 130/94, de
19 de Maio), enquanto exclui da garantia do seguro obrigatório os danos
decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro.
6. Resulta da factualidade assente que o recorrente conduzia o veículo ?FR?,
propriedade de C. Lda., ?a pedido, sob as ordens, orientação, autoridade e
direcção da C.?, quando, no trajecto em Espanha, o veículo se despistou, em
consequência do estado escorregadio do piso, por existência de óleo na estrada e
queda das primeiras chuvas.
Na Relação entendeu-se que os danos não patrimoniais sofridos pelo autor (condutor
do veículo sinistrado), decorrentes das lesões corporais sofridas no acidente,
além de estarem contratualmente excluídos do seguro facultativo de acidentes
pessoais celebrado entre a proprietária do veículo e a ré B., que era limitado
aos danos da morte, invalidez permanente e despesas de tratamento do segurado,
estavam também excluídos da garantia do seguro obrigatório, por não ser
aplicável o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, em virtude
de o artigo 7.º n.º1, do Decreto-Lei n.º 522/85, excluir da garantia do seguro
os danos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo autor, por ser o
condutor do veículo acidentado. Concluiu-se, assim, que pelos danos não cobertos
pela apólice de seguro de acidentes pessoais responderia a proprietária do
veículo, se o direito do autor em relação a ela não estivesse prescrito, como se
decidiu que estava.
O Supremo Tribunal de Justiça confirmou o entendimento da Relação, concluindo
que o artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, na redacção do Decreto-Lei n.º
130/94, de 19 de Maio, exclui da garantia do seguro obrigatório os danos
decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo, não tendo,
consequentemente, o recorrente o direito a ser indemnizado por via desta
garantia.
7. O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição,
tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente objectivado e
claramente enraizado na consciência jurídica geral, segundo o qual todo e
qualquer autor de acto ilícito gerador de danos para terceiros se constitui na
obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria Lúcia Amaral,
Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E o
lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo ou
contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente imputável.
Porém, em muitos casos, como se frisou no acórdão n.º 270/09, este direito à
reparação dos danos depara-se com uma inultrapassável dificuldade de
concretização prática: a inexistência de património do obrigado à reparação
susceptível de execução. É, por isso, frequente que o legislador institua o
dever de cobrir com um seguro de responsabilidade civil a obrigação de
indemnizar que possa estar ligada ao exercício de determinadas actividades
potencialmente geradoras de danos para terceiros de modo a que, verificado o
evento que obriga à reparação, os lesados possam ter perante si uma entidade
cuja solvabilidade esteja, em princípio, garantida (a seguradora) e não (ou não
apenas) o lesante, cujos acasos de fortuna podem esvaziar de conteúdo prático o
direito à indemnização.
O seguro automóvel obrigatório é precisamente um destes institutos. As regras
gerais da responsabilidade civil tornaram-se inidóneas para dar resposta,
prática, equitativa e economicamente equilibrada, ao problema da reparação dos
danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a circulação rodoviária uma das
actividades em cujo desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes
susceptíveis de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao
estabelecer a obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da
circulação de veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos
responsáveis, o legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e
futuros titulares do direito à reparação.
8. O regime jurídico do seguro obrigatório automóvel encontra-se amplamente
penetrado por normas de direito da União Europeia sobre as quais o Tribunal de
Justiça se tem debruçado e que se reflectem não apenas no domínio do seguro como
também nos direitos nacionais em matéria de responsabilidade civil.
Como nos dá conta Moitinho de Almeida (Seguro Obrigatório Automóvel: O direito
português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, in
Revista do CEJ, 2º Semestre 2007, n.º 7, p. 55 e segs.), foram publicadas cinco
directivas no domínio do seguro obrigatório automóvel que, por um lado, visam
assegurar a livre circulação dos veículos com estacionamento habitual no
território da União Europeia bem como das pessoas neles transportadas, e, por
outro, garantir que as vítimas de acidentes causados por esses veículos
beneficiem de tratamento comparável, seja qual for o local em que o acidente
ocorra [É assim que o Tribunal de Justiça resume o objectivo das directivas em
causa: acórdãos de 28 de Março de 1996, Ruiz Bernáldez, C-129/94, Colectânea p.I-1831,
n.° 13; de 14 de Setembro de 2000, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, C-348/98,
Colectânea p.I-6711, n.° 24; e de 30 de Junho de 2005, Katja Candolin, C-537/03,
Colectânea p.I- 5745 , n° 17]. Trata-se das directivas 72/166/CEE, de 24 de
Abril (1ª Directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (2ª Directiva), 90/232/CEE,
de 14 de Maio de 1990 (3ª Directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (4ª
Directiva) e 2005/14/CE, de 11 de Maio (5ª Directiva) [publicadas,
respectivamente no Jornal Oficial (1972) L 103, p.1; (1984) L 8, p.17; (1990) L
129 p.33; (2000) L 181, p.65; e (2000) L 149, p.14].
Com particular interesse para o caso em apreço interessa considerar o teor da 3ª
Directiva que ? considerando a existência em certos Estados-membros de lacunas
na cobertura pelo seguro obrigatório dos passageiros de veículos automóveis e
que, para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas
potenciais, é conveniente que essas lacunas sejam preenchidas, no seguimento das
duas anteriores directivas em matéria de responsabilidade civil automóvel, de
modo uniforme (cfr. parágrafos 5º e 12º do preâmbulo da Directiva) ?, estabelece
no seu artigo 1.º o seguinte:
?Article 1 - Without prejudice to the second subparagraph of Article 2 of
Directive 84/5/EEC, the insurance referred to in Article 3 of Directive 72/166/EEC
shall cover liability for personal injuries to all passengers, other than the
driver, arising out of the use of a vehicle.?
Porém, na versão portuguesa do artigo 1º consta o seguinte:
?Artigo 1º - sem prejuízo do nº 1, segundo parágrafo, do artigo 2º da Directiva
nº 84/5/CEE, o seguro referido no nº 1 do artigo 3º da Directiva nº 72/166/CEE
cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do
condutor, resultantes da circulação de um veículo.?
Como refere Calvão da Silva (em anotação ao acórdão STJ de 4 de Outubro de 2007,
in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3946, p. 45/46):
«Numa primeira leitura, todos os passageiros, além do condutor, incluiria o
próprio condutor: a letra conduziria a esse resultado.
Só que, confrontada a versão portuguesa do transcrito art. 1.º da 3ª Directiva
Automóvel com as versões do mesmo artigo noutros idiomas, o alcance do preceito
é precisamente o oposto: responsabilidade por danos pessoais de todos os
passageiros, excepto o condutor.
Vejam-se neste sentido as seguintes versões:
- ?(?) shall cover liability for personal injuries to all passengers, other than
the driver (?);
- (?) couvre la responsabilité des dommages corporels de tous les passagers
autres que le conducteur (?) ;
- (?) Personenschäden bei allen Fahrzeuginsassen mit Ausnahme des Fahrers (?) ;
- (?) Danni alla persona di qualsiasi passeggero, diverso dal conducente (?);
- (?) Daños corporales de todos los ocupantes, com excepción del conductor.?»
Logo, conclui o mesmo autor, é clara a dicotomia nos passageiros ou ocupantes do
veículo ? o condutor e os outros ?, com o direito da União Europeia a isolar o
condutor (do veículo responsável pelo acidente) para o excepcionar do âmbito do
dever de o seguro obrigatório cobrir a responsabilidade pelos danos pessoais de
todos os passageiros resultantes da circulação do veículo seguro.
Deste modo, com o segmento normativo em causa, apenas se visa a exclusão do
condutor do veículo da garantia do seguro obrigatório, não abrangendo, pois,
quer o proprietário, quer o tomador do seguro ou titular da apólice, quando
transportados gratuitamente no veículo seguro.
9. A chamada 3ª Directiva Automóvel foi transposta para o ordenamento jurídico
português através do Decreto-Lei nº 130/94, de 19 de Maio, que deu nova redacção
aos artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.
Esse artigo 7.º, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 130/94,
vigente à data do sinistro em causa nestes autos, dispunha [em destaque a norma
impugnada]:
?Artigo 7º
(Exclusões)
1 ? Excluem-se da garantia do seguro os danos decorrentes de lesões corporais
sofridos pelo condutor do veículo seguro.
2 ? Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de danos
materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo e titular da apólice;
b) Todos aqueles cuja responsabilidade é, nos termos do nº 1 do artigo 8º,
garantida, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro;
(?).?
Já depois do acidente em causa, mediante o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de
Agosto, o legislador aproveitou o ensejo proporcionado pela necessidade de
transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e
90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de
responsabilidade resultante da circulação de veículos automóveis (a chamada ?5ª
Directiva sobre o Seguro Automóvel?) para proceder à actualização do regime de
protecção dos lesados por acidentes de viação baseado neste seguro, mantendo, no
entanto, no seu artigo 14.º regime idêntico ao que constava do artigo 7.º do
Decreto-Lei n.º 522/85, agora revogado.
Deste conjunto de preceitos se retira ? ao menos segundo a corrente
jurisprudencial em que se filia o acórdão recorrido, que não é unânime a nível
interno (vid., por exemplo, declaração de voto junta ao acórdão do STJ de 16/1/2007,
Proc. 06A2892, in http://www.dgsi.pt/jstj) ? que apenas o condutor do veículo é
excluído da garantia do seguro quanto aos danos que sofreu decorrentes de lesões
corporais (ou pessoais, como consta da Directiva ? personal injuries) ou
resultantes de danos materiais, assim se acentuando o primado da protecção das
vítimas que sofrem lesões na sua própria pessoa, pois assegura-se o
ressarcimento de todos os passageiros transportados no veículo seguro, com
excepção do condutor do veículo responsável pelo acidente.
Como impressivamente se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de
Abril de 2008, Proc n.º 742, reflectindo sobre as consequências na ordem
jurídica nacional da realidade normativa da União Europeia tal como interpretada
pelo Tribunal de Justiça (mais proximamente, pelos acórdãos de 30/6/2005 ? caso
Kandolin e de 19/4/2007 ? caso Elaine Farrell), ?[e]stes arestos, sem porem em
causa o edifício da responsabilidade civil, afastam, em alguma medida, a rigidez
dos pilares de betão em que assenta a construção emergente das nossas normas
internas, incorporando neles materiais mais maleáveis e mais modernos que
sustentam um tecto bem mais abrangente. Assim, a culpa, como elemento em torno
do qual gira a responsabilidade civil, foi afastada em ambos os casos, não
relevando, nomeadamente no primeiro, a contribuição, bem culposa, do próprio
passageiro/lesado. O risco de circulação do veículo ? pelo menos como é
entendido entre nós ? não é referido como requisito, sendo certo que, por
exemplo, o falado artigo 1.º da Terceira Directiva, de aplicação directa
relativamente aos direitos dos particulares, alude apenas a danos pessoais ?resultantes
da circulação de um veículo?. Tudo vai ficando obnubilado pela necessidade de
protecção dos lesados face à enormidade da circulação de veículos. Vem-se
passando, afinal, quanto a este tipo de acidentes, de um ?as vítimas serão
indemnizadas se?? para um ?as vítimas serão indemnizadas, salvo se??. Inserindo-se
este evoluir ? cremos poder constatar ? na própria evolução do modo de pensar
consistente em, face a um acontecimento negativo, procurar o culpado, para outro,
mais moderno e menos repressivo, de procurar antes a solução adequada?.
10. O artigo 7.º nº 1 do Decreto-Lei n.º 522/85, ao excluir da garantia do
seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do
veículo seguro, parece estar em consonância com o disposto no artigo 8º, nº 1,
do mesmo diploma, que estende a garantia do seguro à responsabilidade, entre
outros, do condutor do veículo, e esta tem sido a razão apontada como
justificação para tal exclusão. Argumenta-se que se trata de um seguro de
responsabilidade e não de um seguro de danos, pelo que, sendo o condutor
beneficiário da garantia do seguro para com terceiros lesados, não pode
simultaneamente ser beneficiário de indemnização, isto é, terceiro, para efeitos
de receber, ele próprio qualquer indemnização por eventuais danos sofridos em
consequência do acidente (No sentido da exclusão do condutor do veículo causador
do acidente da garantia do seguro, vide entre outros, os acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, de 8 de 6 de Abril de 2002, Proc. n.º 02A1760, de 16 de
Janeiro de 2007 Proc.º n.º 06A2892, de 8 de Janeiro de 2009, Proc.º n.º 08B3722,
e de 8 de Janeiro de 2009 Proc.ª n.º 08B3796, disponíveis em texto integral em:
http://www.dgsi.pt/. Relativamente à obrigação de indemnização por lesões
corporais dos passageiros transportados gratuitamente, ainda que parentes do
tomador do seguro do veículo, pronunciaram-se os acórdãos do Tribunal da Relação
do Porto, de 4 de Julho de 1990 (CJ, 1990, 4º, 241), e do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 5 de Maio de 1992 (CJ, 1992, 3º, 100). No sentido da abrangência
pelo seguro obrigatório dos danos pessoais do próprio tomador do seguro e/ou
proprietário do veículo, vejam-se Calvão da Silva, RLJ, ob. cit., p. 54, 61 e 63,
e Moitinho de Almeida, Revista do Centro de Estudos Judiciários, ob. cit, p. 69,
e o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Janeiro de 2007,
Proc.º n.º 06A2892).
Será esta distinção, quanto ao âmbito da cobertura do seguro obrigatório dos
danos decorrentes de lesões corporais em consequência de acidentes de circulação
automóvel, entre o condutor e os outros passageiros ou ocupantes do veículo
violadora dos princípios constitucionais invocados? Designadamente, do princípio
da igualdade, especialmente quando se adoptar a interpretação de que dessa mesma
cobertura não estão excluídos os danos sofridos pelo proprietário ou tomador do
seguro que não seja o condutor do veículo e que os danos sofridos pelo condutor
(e só por ele) estão excluídos, mesmo nas situações em que a lesão resulta de
acidente para cuja produção se não provou ter concorrido culpa sua?
11. A invocação de alguns dos princípios constitucionais referidos pelo
recorrente para fundar a pretensão de inconstitucionalidade da interpretação
normativa em causa é manifestamente descabida. Designadamente, não são
directamente aplicáveis ao caso os artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, que
consagram a inviolabilidade da vida humana e da integridade moral e física das
pessoas.
Independentemente de saber se uma norma excludente da indemnização pela lesão
dos respectivos bens jurídicos pode considerar-se, em abstracto, idónea a violar
tais princípios ? tal norma não autoriza a atentar contra a vida ou a
integridade física e moral das pessoas ?, o certo é que o acórdão recorrido não
entendeu que os danos corporais sofridos pelo condutor em consequência de
acidente de viação não eram passíveis de ser indemnizados. O que é legitimo
concluir deste aresto é que o condutor do veículo sinistrado tem direito a ser
indemnizado pelos danos sofridos nos termos das normas gerais da
responsabilidade civil (cfr. artigo 483º e segs. do Código Civil), mas que, no
caso, esse direito não está abrangido no âmbito do seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel regulado no Decreto-Lei n.º 522/85. A
circunstância de resultar da decisão a não atribuição da indemnização ao
condutor do veículo sinistrado pelos danos corporais sofridos no acidente não
decorre unicamente desta exclusão, mas também do facto de o recorrente ter
deixado prescrever o direito de accionar o responsável civil por tal
indemnização ? a entidade proprietária do veículo e por conta de quem este era
conduzido ? não constituindo as normas que fundamentaram a decisão quanto à
matéria da prescrição objecto do recurso de constitucionalidade.
Quanto à norma do artigo 20.º, n.º 4, o que o recorrente poderá querer
questionar será o direito a um processo equitativo, o que ? tal como se
sublinhou no acórdão n.º 1193/96 ? exige não apenas um juiz independente e
imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e
acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos
ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em
perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas
possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a
sentença só por acaso será justa.
Porém, não se vislumbra em que medida a interpretação normativa em causa
interfere com o direito ao processo equitativo, nem o recorrente o explicita. A
eventual ?injustiça? do resultado da acção de que emerge o presente recurso foi
produto, também, da verificação da prescrição e não apenas da interpretação
normativa impugnada em sede de recurso de constitucionalidade, como se sublinhou.
E, de todo o modo, a interpretação normativa adoptada, conducente à exclusão do
direito de indemnização, não se reconduz a uma situação de indefesa
consubstanciadora do vício de violação deste preceito constitucional. É uma
norma que dispõe sobre a relação jurídica material, sobre o conteúdo do direito,
não sobre as condições e os termos processuais para vê-lo reconhecido pelos
tribunais
12. Invoca também o recorrente que a interpretação dada à norma do artigo 7.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 522/85, no sentido de excluir da garantia do seguro
obrigatório os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do
veículo, viola o princípio da igualdade, pelo que importa averiguar se essa
exclusão da obrigação de segurar poderá ser entendida como medida razoável,
racional ou objectivamente fundada.
Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95 (disponível
em www.tribunalconstitucional.pt, como os demais citados sem referência a local
de publicação):
«O princípio da igualdade reconduz-se [?] a uma proibição de arbítrio sendo
inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação
razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente
relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente
desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de
arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são
afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa
adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas
sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente
imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.ºs 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II Série,
de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I Série, de,
respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993,
pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e garantias»,
Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de Direito
Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira Pinto,
«Princípio da Igualdade ? Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de Sentido?»,
Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987; Lívio
Paladin, Il Princípio costituzionale d?equaglianza, Milão, 1965).»
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete «substituírem-se»
ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo
a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna»
(do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas
soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente»
(acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República,
de 23 de Agosto de 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 750/95, que vimos acompanhando).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma
medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade
dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes
precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007).
Tem de reconhecer-se que, em hipóteses como a dos autos, não é inteiramente
satisfatório a explicação acima apontada para a exclusão: ser o condutor uma das
pessoas cuja responsabilidade está segura. Efectivamente, os tribunais da causa
decidiram que o acidente não ocorreu por culpa do condutor lesado e, assim,
tendo a situação sido qualificada como de responsabilidade objectiva do dono do
veículo, por conta de quem este era conduzido, não pode retirar-se argumento do
facto de o condutor ter a sua responsabilidade garantida nos termos do artigo 8.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85.
Mas, tal circunstância não impede que se encontre um mínimo de justificação
capaz de suportar o tratamento diferenciado do condutor relativamente aos demais
passageiros ou ocupantes do veículo, mesmo em situações deste tipo de
responsabilidade pelo risco. Note-se que é aqui muito lata a discricionariedade
do legislador. Na verdade, não pode dizer-se que ao instituir o seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel o legislador esteja a
concretizar uma medida constitucionalmente imposta. O seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel é um meio de colectivização ou socialização do
risco da circulação rodoviária, em último termo suportado pelos prémios pagos
pelos tomadores (obrigatórios) desse seguro, cuja extensão não é
constitucionalmente determinada. O legislador adopta uma política em que, em
contraponto à protecção dos lesados por acidentes de viação, pode ponderar
outros interesses ou finalidades concorrentes, como os custos acrescidos do
alargamento da cobertura e, até, avaliar as desvantagens, na política de
prevenção de segurança rodoviária, de uma sobreprotecção do condutor.
Ora, não está em causa o ressarcimento dos danos sofridos pelo condutor a cargo
de quem possa ser responsabilizado a título de culpa ou de responsabilidade pelo
risco, mas a extensão ou reforço de protecção do lesado em que consiste o seguro
obrigatório. Tenha ou não ficado provado que o acidente se deveu a culpa sua, o
condutor do veículo causador do acidente ao desempenhar essa actividade da
condução aceita o risco que ela envolve em termos diferenciados das dos demais
ocupantes do veículo. Poder-se-á objectar que tal risco, enquanto englobado no
risco inerente à circulação do veículo, é do comitente por conta e direcção de
quem o lesado conduz o veículo, mas tal situação e o correspondente direito à
indemnização está acautelado nas normas que regulam a responsabilidade pelo
risco do dono do veículo, como se decidiu nos autos. E não pode ignorar-se que,
naquilo que se designa por responsabilidade pelo risco e que nos acidentes
rodoviários, nas explicações dogmáticas correntes, se imputa a riscos próprios
do veículo, vem a cair, em termos práticos, todas as situações em que se não
prova a culpa do condutor. Na imensa generalidade dos casos, na génese dos
acidentes com veículos automóveis encontra-se uma multiplicidade de decisões e
actuações dos condutores que, mesmo quando não fica provada a culpa, concorrem
para potenciar ou não minorar os riscos próprios dos veículos. Os riscos
próprios do veículo não são tanto riscos da máquina em si mesma como do modo
como é utilizada. Esta circunstância de a actuação do condutor não ser estranha
ao processo genético do acidente e de aquele estar, nesse domínio do facto
lesivo, numa posição que nenhum dos outros ocupantes do veículo detém, é razão
suficiente para que não se considere arbitrário o tratamento diferenciado que a
norma em causa lhe dá por comparação com os demais ocupantes do veículo.
E isso sucede mesmo quando o termo de comparação é a situação retratada no
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2007, proferido no
Proc, n.º 06A2892, já citado, que decidiu que o proprietário e tomador do seguro
que é transportado como passageiro no seu próprio veículo, sendo outrem o
respectivo condutor, está coberto pela responsabilidade civil automóvel quanto
aos danos decorrentes de lesões corporais que lhe advenham em virtude do
acidente, por, na situação, ter a qualidade de terceiro. É que, diferentemente
do que sucede com o condutor-lesado que, com culpa ou sem ela, é directo
interveniente no acidente, os passageiros transportados, mesmo no caso do
proprietário e/ou tomador do seguro, não têm intervenção na produção do evento
lesivo.
A situação em apreço também é diferente da retratada no acórdão n.º 270/2009 do
Tribunal Constitucional, em que se decidiu julgar inconstitucional, por violação
do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a
norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85, quando interpretada no
sentido de a circulação na via pública de motocultivadores com atrelado não
estar dependente da celebração do contrato de seguro obrigatório previsto no n.º
1 do mesmo preceito legal. Aí estava em causa o facto de a dispensa da obrigação
de celebrar contrato de seguro para que tais máquinas possam circular na via
pública deixar terceiros estranhos à condução ou detenção do veículo sem a
protecção jurídica que o legislador entendeu conceder aos restantes lesados por
acidentes de viação.
Deste modo, conclui-se que a norma do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85,
de 31 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 130/94, de
19 de Maio), enquanto exclui da garantia do seguro obrigatório os danos
decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro, mesmo
quando o lesado não seja o detentor do veículo ou o tomador do seguro e não lhe
tenha sido imputada culpa na produção do acidente, não é inconstitucional,
designadamente por violação dos princípios consignados nos artigos 2.º, 9.º,
alínea b), 13.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.º 4, 24.º, n.º 1
e 25.º, n.º 1, da Constituição.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
Ucs, sem prejuízo do apoio judiciário concedido a fls. 61.
Lx., 13/1/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
[1] Rectificado pelo Acórdão nº 43/2010