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Processo 99/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente Ministério Público e recorrida A.,
Lda., foi interposto recurso, com carácter obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 280º, da CRP, e do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da LTC, da sentença
proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 5 de Setembro de
2009 (fls. 70 a 76), que desaplicou a norma constante do n.º 1 do artigo 4º do
Código do Imposto de Valor Acrescentado [de ora em diante, identificado por CIVA],
por ?faltar à norma o «elevado grau de determinação conceitual» exigível, assim
afrontando o disposto no Art.º 103/2 CRP (?)? (fls. 74).
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes
alegações:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão,
proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, nos autos de impugnação
em que figura como uma impugnante A. Loja do Ceramista, na parte em que se
recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante
do artigo 4º, nº 1, do CIVA.
Na óptica da decisão recorrida, tal norma - de carácter ?residual? e grande
amplitude ? violaria o princípio da legalidade tributária, já que dela
decorreria um desenho ?elástico? quanto à incidência de tal imposto,
transferindo para a administração tributária o poder de decidir quais as
situações de facto que se lhe subsumem ? e levando, no caso dos autos, à
inclusão de um negócio jurídico de cessão da posição contratual, detido em
contrato de locação financeira, tido por subsumível no amplo conceito de ?prestação
de serviços a título oneroso?, delineado pela norma desaplicada.
O princípio de legalidade tributária não impede que o legislador fiscal possa
utilizar conceitos indeterminados ou cláusulas gerais na definição dos
pressupostos da obrigação tributária, incluindo a definição do âmbito da
incidência fiscal.
A questão de admissibilidade e do âmbito do uso pela lei fiscal de cláusulas
gerais ou de conceitos indeterminados foi aprofundadamente analisada pelo
Tribunal Constitucional no Acórdão nº 252/05, que procede a um levantamento
exaustivo de anterior jurisprudência sobre tal tema, concluindo que não pode
inferir-se automaticamente do princípio da legalidade e da tipicidade que esteja
vedada a utilização de conceitos indeterminados no âmbito da ?fattispecie?
normativa que releva para delimitar a incidência tributária ? impondo-se
distinguir os casos de inadmissível outorga à Administração Fiscal de
verdadeiros poderes discricionários, judicialmente insindicáveis, ?daqueloutros
onde, perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é
completamente vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua
extensão (?), ?sendo que, no domínio tributário ? mesmo no que toca
especificamente à definição dos elementos essenciais dos impostos nos aspectos
relacionados com a sua incidência ? o princípio da legalidade não impede que a
prescrição legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais
se ?remeta (?) a administração para a consideração de circunstâncias de índole
técnica (?) (possa) significar a preterição da instancia jurisdicional decidente,
(ou) a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa (?)?.
?Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais ?conceitos indeterminados?
são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação
conceitual (?) [não colocando] nas mãos da Administração Fiscal o monopólio da
sua densificação (?) como autênticas ?cláusulas de discricionariedade?,
porquanto, ?se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação,
a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido
jurídico-normativo da norma interpretada seja marcada por uma ineliminável
subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais
onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente
sindicada pelos tribunais fiscais?.
No caso dos autos, o problema detectado prende-se ? mais do que com a
indeterminação conceitual ? com a amplitude ? tida por desproporcionada e
excessiva ? da previsão normativa constante do artigo 4º, nº 1, do CIVA: na
verdade, tal norma inclui no âmbito de incidência do IVA todas as operações
efectuadas a título oneroso - perspectivadas como ?prestação de serviços? ?
mesmo que não integrem transmissões onerosas de bens, prestações onerosas de
serviços ou actos de transferência onerosa de bens corpóreos por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade.
Tudo se passa, em rigor, como se tal norma submetesse à incidência do IVA todas
as transmissões ou atribuições patrimoniais, feitas a título oneroso,
independentemente da estrutura jurídica do negócio em que as mesmas se
corporizam.
Não se pode dizer que tal ampla previsão normativa implique a criação de uma ?zona
obscura? ou de fronteira, de difícil apreensão, determinabilidade e controlo,
nomeadamente jurisdicional: é que a norma, com tal interpretação e configuração,
é clara e tem um conteúdo determinável, embora efectivamente muito amplo, sendo
questões diferentes e autónomas a indeterminação e a amplitude da ?fattispecie?
das normas que regem sobre a incidência tributária.
Na verdade, estatuir que todos os actos que se consubstanciam numa transferência
ou aquisição patrimonial, feita a título oneroso, estão sujeitos a IVA não
traduz qualquer indeterminabilidade dos elementos que integram esta previsão
normativa ? implicando apenas que o legislador fiscal optou por estabelecer uma
cláusula de grande amplitude, mas de sentido perfeitamente apreensível pelos
destinatários da norma e controlável pelos tribunais.
É certo que a qualificação de tais actos de atribuição patrimonial, a título
oneroso, como ?prestações de serviços? pode ? do ponto de vista estritamente
jurídico - configuram-se como efectivamente discutível, nomeadamente por os
mesmos nada terem que ver com o conceito jus-civilístico de ?prestação de
serviços?, decorrente do artigo 1154º do Código Civil (sendo evidente que o
negócio de cessão de posição contratual nada tem que ver com a figura do
contrato de prestação de serviço, regulada naqueles artigos 1154/1156 do Código
Civil).
Tal objecção não se afigura, porém, precedente por um duplo fundamento:
- em primeiro lugar, nada obriga a que os conceitos utilizados pela lei fiscal
tenham de coincidir com os conceitos normativos ?paralelos? utilizados pelo
direito civil ?comum? ? bem podendo o direito fiscal, moldado essencialmente em
função de realidades económicas, prescindir da estrutura jurídico-formal de
certas figuras, paralelas ou análogas , tal como vigoram no campo do direito
civil;
- em segundo lugar ? e decisivamente ? este problema não se configura, em rigor,
como envolvendo uma questão de inconstitucionalidade normativa, - mas apenas e
tão somente ? com a realização pelo juiz de uma actividade subsuntiva, estranha
à fiscalização da constitucionalidade de ?normas?: na verdade, se o tribunal ?a
quo? entender, no exercício dos seus poderes de interpretação da lei fiscal, que
o conceito de ?prestação de serviço?, utilizado pela norma que integra o objecto
deste recurso, em nenhumas circunstâncias poderá abarcar a referência a um
negócio de cessão da posição contratual, terá apenas, no exercício de tais
poderes interpretativos, de optar por não subsumir à norma do artigo 4º, nº1, o
negócio jurídico controvertido na presente impugnação.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
Como decorre do acórdão nº 252/05, não pode inferir-se dos princípios da
legalidade e da tipicidade, contidos no princípio constitucional da reserva da
lei fiscal, que esteja absolutamente proscrita a utilização, pelas normas
determinadoras da incidência dos impostos, de conceitos indeterminados ? sendo
esta legítima desde que não envolva a outorga à Administração Fiscal de
verdadeiros poderes discricionários, judicialmente insindicáveis.
2º
A ampla previsão normativa constante do artigo 4º, nº 1, do CIVA implica que se
devam ter por situados no âmbito da incidência deste imposto todos os actos de
atribuição ou transferência, de natureza patrimonial, efectuados a título
oneroso, qualificados como ?prestação de serviços?, independentemente da
natureza e estrutura jurídica formal que lhes assista e os caracterizem.
3º
Tal previsão normativa ? apesar da sua muito ampla abrangência ? não é
obviamente indeterminável, possibilitando aos destinatários da norma um juízo
sobre o respectivo âmbito e ao juiz, no momento subsuntivo, um efectivo controlo
da actividade administrativa no preenchimento de tal fattispecie.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.» (fls. 94 a 99)
3. Notificada das referidas alegações, a recorrida deixou expirar o respectivo
prazo, sem que tenha vindo aos autos apresentar as correspondentes contra-alegações:
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II ? FUNDAMENTAÇÃO
4. A norma que foi alvo de decisão de desaplicação pela decisão recorrida e que
se configura agora como objecto do presente recurso corresponde à constante do n.º
1 do artigo 4º do CIVA, de acordo com a redacção que lhe foi conferida pelo
Decreto-Lei n.º 100/95, de 19 de Maio, que estipula o seguinte:
?Artigo 4º
1 ? São consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a
título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou
aquisições de bens.?
Para melhor compreensão do regime de tributação de IVA das prestações de
serviços, tem-se por conveniente transcrever igualmente os n.ºs 2 e 3 do
referido artigo 4º do CIVA:
?2 - Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso:
a) Ressalvado o disposto no n.º 1 do artigo 25.º, a utilização de bens da
empresa para uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral para fins
alheios à mesma e ainda em sectores de actividade isentos quando, relativamente
a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou
parcial do imposto (de acordo com a redacção conferida pelo Dec.-Lei n.º 195/89,
de 12 de Junho);
b) As prestações de serviços a titulo gratuito efectuadas pela própria empresa
com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral,
a fins alheios à mesma;
c) A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda com materiais
que o dono da obra tenha fornecido para o efeito, quer o empreiteiro tenha
fornecido, ou não, uma parte dos produtos utilizados. (de acordo com a redacção
conferida pelo art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 206/96, de 26 de Outubro)
3 - São equiparadas a prestações de serviços a cedência temporária ou definitiva
de um jogador, acordada entre os clubes com o consentimento do desportista,
durante a vigência do contrato com o clube de origem e as indemnizações de
promoção e valorização, previstas no n.º 2 do artigo 22.º do Contrato de
Trabalho Desportivo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 305/95, de 18 de Novembro,
devidas após a cessação do contrato. (de acordo com a redacção conferida pelo n.º
1 do art.º 34.º da Lei n.º 127-B/97, de 20 de Dezembro)?
Daqui decorre que o legislador ordinário optou por fixar o âmbito de incidência
objectiva do IVA, no que concerne às prestações de serviços, através de um
método dualista. Assim, por um lado, foi adoptado um elenco exemplificativo de
operações que correspondem ao conceito de ?prestações de serviços a título
oneroso? sujeitas a IVA ? vide n.ºs 2 e 3 do referido artigo 4º do CIVA ?, que é
complementado, por outro lado, o n.º 1 do artigo 4º do CIVA estabelece uma
cláusula geral que permite a qualificação dessas mesmas prestações de serviço
mediante recurso a um conceito jurídico indeterminado que extravasa as situações
especificamente previstas nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito.
Ora, sucede que a decisão recorrida considerou que a previsão legal de tal
cláusula geral, assente num conceito jurídico indeterminado, briga com o
princípio da legalidade tributária (artigo 103º, n.º 2, da CRP), por se tratar
de:
?(?) uma norma de carácter residual onde cabem todas as operações não abrangidas
pelas anteriores normas de incidência.
(?)
Mas porque «esse tudo» é indeterminável, tal implica devolução à administração
fiscal do poder de preenchimento e selecção factual, subtraindo ao Parlamento o
poder de decidir quais os factos tributáveis ? ainda que mediante autorização
legislativa.
Conclui-se faltar à norma o «elevado grau de determinação conceptual exigível,
assim afrontando o disposto no Art.º 103/2/CRP (?)? (fls. 73 e 74).
Importa, portanto, verificar se procedem os fundamentos adoptados pela decisão
recorrida para justificar a decisão de desaplicação da norma prevista no n.º 1
do artigo 4º do CIVA.
5. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de apreciar, por diversas
vezes, a problemática decorrente da necessidade de compatibilização entre o
princípio da legalidade democrática e a previsão de conceitos jurídicos
indeterminados que concedem à administração fiscal uma relativa margem de
discricionariedade no seu preenchimento, a propósito de cada relação jurídico-administrativa
em concreto. A compatibilidade da previsão de tais conceitos jurídicos
indeterminados com o referido princípio da legalidade tributária, desde que seja
objectivamente possível que o destinatário possa antever a criação legal de uma
obrigação tributária tem sido jurisprudência consolidada neste Tribunal.
Assim, no Acórdão n.º 233/94 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), este
Tribunal entendeu o seguinte:
(?)
?11. Como já vimos, a norma em causa insere?se de pleno no domínio fiscal,
estando, por assim dizer, duplamente vinculada à lei, por um lado por força da
cominação expressa do artigo 106º, nºs 2 e 3, da Constituição e, por outro, em
virtude de a matéria em causa se inserir na esfera de competência reservada da
Assembleia da República [artigo 168º, nº 1, alínea i) ? 'criação de impostos e
sistema fiscal'].
Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a
violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente
densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou seja,
do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais atinentes
a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em crise a
descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes do
artigo 106º, nºs 2 e 3, da Constituição).
Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de
definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente
parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade
tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só
indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à
Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de
tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do
que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas
regras atinentes às suas obrigações fiscais.
Recorde?se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de
dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, a
Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à
Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde
que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente
densificada na própria lei ( cfr. Acórdão nº 285/92, publicado no Diário da
República, I Série?A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições
de direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos
indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de
exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra
da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de
critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração,
em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com
que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que
simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para
apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes.
E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional
para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde
logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema
tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa
verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece
não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação
conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração
uma 'margem de livre apreciação' para analisar uma dada situação de facto de
incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da
aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do
§ 2º do artº 114º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal
habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido
requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal do imposto).
Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em
concorrência com os ditâmes do princípio da legalidade e da tipicidade
tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e
garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que
beneficiariam do regime do artigo 18º da Constituição, por força do disposto no
artigo 17º da Lei Fundamental, será também de concluir que, à luz do critério
jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos
indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma
certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde
que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos
destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os
pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os
tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa assim desenvolvida.? (com sublinhado nosso)
Em sentido idêntico, quanto à questão da constitucionalidade de conceitos
indeterminados em matéria fiscal, veja-se igualmente o Acórdão n.º 756/95 (disponível
in www.tribunalconstitucional.pt):
?4.1. Será a norma de incidência aqui questionada tão ampla e vaga na sua
formulação, que ponha em causa esse mínimo de precisão exigível às normas
fiscais?
A resposta a esta interrogação pressupõe o caracterizar da articulação -
constitucionalmente viável - entre o emprego, neste tipo de normas, de conceitos
indeterminados e aquilo que a jurisprudência constitucional alemã definiu como 'princípio
da determinabilidade' (Bestimmenheitgrunsatz), referindo-se à exigência destas
normas construírem a respectiva previsão 'assegurando um mínimo de clareza e de
transparência do tipo' e que 'permita a calculabilidade e a previsibilidade da
obrigação fiscal' (J.L: Saldanha Sanches, A Segurança Jurídica no Estado Social
de Direito, Ciência e Técnica Fiscal, nºs 310/312, pág. 299).
A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de
determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios
constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos
contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaz aos artºs
nºs 2 e 3, do artº 106º, o emprego de conceitos amplos e por vezes
indeterminados - os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a
adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente
iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com
precisão - não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no
cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o
aparecimento constante de refúgios de evitação fiscal.
Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é
susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível
dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.
Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições
constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma
transferência da 'criação da obrigação fiscal' para a 'discricionariedade da
administração', mas não inviabilizando liminarmente certas 'cláusulas gerais', 'conceitos
jurídicos indeterminados', 'conceitos tipológicos' (Typusbegriffe), 'tipos
discricionários' (Ermessentatbestände), e certos conceitos que atribuem à
administração uma margem de valoração, os chamados 'preceitos poder' (Kaan-Vorschrift).
Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o
sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação, 'circunstâncias
novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei' (JL Saldanha
Sanches, ob. cit. pág. 297 e 299/300).
Ganha, assim, a tipicidade tributária, concretizada no princípio da
determinabilidade, um valor específico, aquele que (e citamos de novo JL
Saldanha Sanches) 'tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei
para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação,
na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos
tributáveis', mas que não inviabiliza 'que este se sirva de uma formulação
suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente
indicadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si
os diferenciem' (ob. cit. pág. 299).
Ora, a norma aqui constitucionalmente questionada, como verdadeira norma
residual de um universo que o legislador define com suficiente precisão (a
Secção B do Imposto de Capitais - v. artº 3º, do CIC); construída em torno de um
conceito - 'rendimentos derivados da simples aplicação de capitais' - que
concretizado de acordo com as regras interpretativas possíveis relativamente a
normas de incidência fiscal, está muito longe de colocar nas mãos da
administração um poder arbitrário de concretização; uma norma com estas
características, dizíamos, não pode à partida ser tida como
inconstitucionalmente indeterminada.?
No acórdão n.º 252/05, (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), foi
apreciada a constitucionalidade de norma que incluía um conceito jurídico
indeterminado indispensável a habilitar a administração fiscal a corrigir a base
tributável de IRC, quando estejam em causa relações especiais indiciadoras de ?preços
de transferência? (daquela feita, tratava-se do n.º 1 do artigo 57º, do CIRC), o
Tribunal Constitucional pôde já afirmar a inexistência de qualquer antinomia
entre o princípio da legalidade tributária e a previsão legal de conceitos
jurídicos indeterminados ? porém, determináveis ? que permitam a definição dos
elementos fundamentais de impostos devidos pelos contribuintes:
?5.2.4.2 ? Não há dúvida de que a presente construção legislativa assenta na
mobilização tipológica de conceitos indeterminados, que, pela sua natureza, não
se prestam a uma aplicação ?automática?, antes exigindo uma valoração
problematicamente concretizadora do sentido jurídico-normativo da norma, e,
portanto, uma concretização especificante em atenção ao caso a considerar.
Contudo, tal conclusão não autoriza que, sem mais, possa concluir-se por uma
apodíctica preterição do princípio da legalidade fiscal ? com a inerente
dimensão de tipicidade ? e, do mesmo passo, pelo reconhecimento de um
insindicável espaço de discricionariedade à actuação administrativa, mesmo
salientando-se que nessa esfera não pode estar em causa a concessão de um poder
arbitrário de conformação normativa, porquanto, a bem ver, no âmbito de um
Estado de direito materialmente comprometido, toda a actuação administrativa,
ainda que discricionária, está sempre ?sujeita a uma regra de absoluta
juridicidade? (cf. João Pedro Silva Rodrigues, Critérios normativos de
predeterminação da matéria tributável ? Os novos caminhos abertos pela [pré-]
suposta avaliação indirecta na imposição fiscal do rendimento, Coimbra, 2002, pp.
110; e, mais expressivamente, A. Castanheira Neves, ?O problema da
discricionariedade?, in Digesta ? Escritos acerca do Direito, do Pensamento
jurídico, da sua Metodologia e Outros, Volume 1.º, Coimbra, 1995, pp. 531 e ss.,
esp.te 586).
Nesta linha discursiva, sempre haverá, então, que distinguir as questões
relacionadas com o exercício de poderes discricionários, ?daqueloutras onde,
perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente
vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão (...)?,
sendo que, no domínio tributário ? mesmo no que toca especificamente à definição
dos elementos essenciais dos impostos e aos aspectos relacionados com a sua
incidência ? o princípio da legalidade não impede que a prescrição legislativa
que contenha conceitos indeterminados através dos quais se ?remeta (...) a
administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica (...) [possa]
significar a preterição da instância jurisdicional decidente, [ou] a condenação
do contribuinte a uma mera decisão administrativa (...)?.
Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais «conceitos indeterminados
são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação
conceitual (...) [não colocando] nas mãos da administração fiscal o monopólio da
sua densificação, (...) como autênticas ?cláusulas de discricionariedade?»,
porquanto, ?se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação,
a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido
jurídico-normativo da norma interpretanda seja marcada por uma ineliminável
subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais
onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente
sindicada pelos tribunais fiscais? (cf. João Pedro Silva Rodrigues, «Conceitos
indeterminados e a sindicabilidade pelo tribunal da sua ?interpretação-aplicação?»,
in Saldanha Sanches et alii, Jurisprudência Fiscal Anotada, 2001, pp. 89 e ss.
esp.te 102-103)
E, no âmbito desta distinção, sempre importará precisar que não será, pois, o
maior ou menor grau de indeterminação conceitual a determinar ? ou afastar ? a
sindicância jurisdicional do juízo administrativo, antes havendo que determinar
se, para lá da estrutura conceitual da norma e, portanto, do seu ?conteúdo
significativo-conceitual?, o legislador pretendeu desvincular a actuação
administrativa de uma esfera de revisibilidade jurisdicional, admitindo, quanto
a determinados aspectos do acto administrativo, uma verdadeira ? e insindicável
? liberdade de escolha.
(?)
Essencial, será, assim, que a norma em questão possa ?ser interpretada e
aplicada em termos de assegurar aos interessados uma suficiente densificação que
sirva de critério orientador à actividade administrativa e à dos próprios
tribunais quando chamados a controlar a actividade da administração? (cf. o
mencionado Acórdão n.º 233/94, deste Tribunal).
(?)
Podemos assim concluir, sintetizando, que estamos, no caso, perante conceitos
indeterminados cujo conteúdo não demanda a atribuição de qualquer poder
constitutivo à administração fiscal em sede de determinação da matéria
colectável, pois apenas pode ser admitido como critério de decisão aquele
sentido objectivo que resulta directamente da lei tributária. Isto, ao contrário
do que se passava na norma sindicada pelo Acórdão n.º 233/94, em que a lei
erigia a dúvida subjectiva da administração fiscal sobre a correspondência à
realidade da matéria colectável declarada a elemento normativo determinante e
especificante da mudança do critério de tributação. Diversamente, à
administração tributária apenas é reconhecida, agora, uma competência de
prognose probatória relativamente aos factos que preencherão esses conceitos
jurídicos, gozando tão somente de liberdade quanto à escolha dos meios de prova
a utilizar, de entre os permitidos em direito.
E conquanto a determinação em concreto dos termos em que ocorrem as relações
entre ?pessoas independentes? admita, segundo os padrões de normalidade
probatória, alguma álea, como vem sendo dito, não poderá dizer-se que esta seja
atentatória do princípio da previsibilidade das obrigações fiscais do
destinatário da
norma e do princípio da segurança jurídica, que encarnam a essência material do
princípio da legalidade tributária no Estado de direito democrático, avaliados
pelo crivo dos princípios da necessidade e da proporcionalidade: até porque
ninguém melhor do que o sujeito passivo conhecerá as regras de mercado cuja
existência pode evidenciar à administração e perante o tribunal.?
Tendo em conta esta firme jurisprudência do Tribunal, resta verificar se a norma
em apreço (n.º 1 do artigo 4º do CIVA), face ao seu teor, encerra em si um
mínimo de significação normativa que se revela apta a limitar o exercício
interpretativo da administração fiscal e a permitir ao sujeito tributário o
prévio conhecimento da obrigação tributária que sobre si recai.
6. Parece evidente que o diploma legal em causa fixa, de modo apreensível para
qualquer destinatário, o âmbito de incidência objectiva do imposto a cobrar.
Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do artigo 1º do CIVA determina que ?estão
sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: (?) as transmissões de bens e as
prestações de serviços efectuadas em território nacional, a título oneroso, por
um sujeito passivo agindo como tal?. Após esta fixação do âmbito de incidência
objectiva do imposto, o legislador opta ainda por densificar tais conceitos
jurídicos, mediante a exemplificação de condutas concretas que são susceptíveis
de se enquadrar nos referidos conceitos de ?transmissões de bens? (cfr. artigo 3º
do CIVA) e ?prestações de serviços? (cfr. artigo 4º do CIVA).
Sucede que, no caso do artigo 4º do CIVA, o legislador opta por associar um
critério geral (cfr. n.º 1 do artigo 4º do CIVA), à previsão de um elenco
exemplificativo de operações qualificáveis como ?prestações de serviços?.
Ora, o recurso a tal conceito jurídico não prejudica, no caso concreto em apreço,
a susceptibilidade de apreensão dos factos sujeitos a imposto por parte de um
destinatário normal, nem tão pouco viola o princípio da legalidade tributária.
Acresce ainda que, conforme já notado, a alínea a) do n.º 1 do artigo 1º do CIVA
determina estarem sujeitas a imposto as ?prestações de serviços efectuadas em
território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal?.
Ora, quando o intérprete recorre ao conceito de sujeito passivo do imposto,
constata que são enquadráveis como tais ? conforme decorre da alínea a) do n.º 1
do artigo 2º do CIVA:
?As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter
de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de
serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões
livres, e, bem assim, as que do mesmo modo independente, pratiquem uma só
operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das
referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente
dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos da incidência real de IRS e
de IRC?.
Assim, apesar de amplo, o conceito jurídico consagrado no n.º 1 do artigo 4º do
CIVA é determinável, pelo que, qualquer que fosse o seu sentido, a decisão da
administração fiscal permaneceria sempre passível de ser controlada pelo
competente tribunal administrativo e tributário.
Como tal, conclui-se que a adopção do conceito jurídico constante do n.º 1 do
artigo 4º do CIVA não constitui violação do princípio da legalidade tributária (artigo
102º, n.º 3º, da CRP).
III ? DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar procedente o presente recurso;
E, em consequência:
b) Determinar a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para que seja reformada a
decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de não
inconstitucionalidade, conforme determina o n.º 2 do artigo 80º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 30 de Setembro de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão