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Processos n.ºs 111/09, 116/09 e 320/09
Plenário
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – Requerentes
O Provedor de Justiça dirigiu, em 10 de Fevereiro de 2009, ao
Tribunal Constitucional, um requerimento pedindo a apreciação e declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos
artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101, n.º
1, alínea n), e 130.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos
Açores, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, na redacção que, por
último, lhe foi conferida pela Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro (de agora em
diante, EPARAA).
Logo depois, no dia 12 de Fevereiro de 2009, um Grupo de deputados à
Assembleia da República apresentou outro requerimento, pedindo, agora, a
apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral,
da norma contida no artigo 114.º do EPARAA.
Finalmente, no dia 29 de Abril de 2009, o Provedor de Justiça
dirigiu novo requerimento ao Tribunal pedindo a apreciação e declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos
artigos 4.º, n.º 4, 1ª parte, 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m),
119.º, nos 1 a 5, 124.º, n.º 2, e 140.º, n.º 2, do EPARAA.
2 – Objecto dos pedidos
O teor das normas do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores (na redacção introduzida pela Lei n.º 2/2009, de 12 de
Janeiro) que são, aqui, questionadas é o seguinte:
Artigo 4.º
Símbolos da Região
4 — A bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de
soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles
tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores.
Artigo 7.º
Direitos da Região
1 — São direitos da Região, para além dos enumerados no n.º 1 do artigo
227.º da Constituição:
[…]
i) O direito a uma política própria de cooperação externa com entidades
regionais estrangeiras, nomeadamente no quadro da União Europeia e do
aprofundamento da cooperação no âmbito da Macaronésia;
j) O direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades regionais
estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e
cooperação inter-regional;
[…]
o) O direito a criar provedores sectoriais regionais;
Artigo 34.º
Competência política da Assembleia Legislativa
Compete à Assembleia Legislativa:
[…]
m) Aprovar acordos de cooperação com entidades regionais ou locais estrangeiras
que versem sobre matérias da sua competência ou sobre a participação em
organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter
-regional;
Artigo 47.º
Discussão e votação
4 — Carecem de maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que
superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções:
[…];
c) A eleição de provedores sectoriais regionais.
Artigo 67.º
Outras matérias
Compete ainda à Assembleia Legislativa legislar nas seguintes matérias:
[…];
d) A criação e estatuto dos provedores sectoriais regionais;
[…].
Artigo 101.º
Incompatibilidades
1 — São incompatíveis com o exercício do mandato de deputado à Assembleia
Legislativa os seguintes cargos ou funções:
[…];
n) Provedores sectoriais regionais;
[…].
Artigo 114.º
Audição pelo Presidente da República sobre o exercício de competências políticas
Os órgãos de governo regional devem ser ouvidos pelo Presidente da República
antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a
realização de eleições regionais ou de referendo regional, nos termos do n.º 2
do artigo 229.º da Constituição.
Artigo 119.º
Audição qualificada
1 — A Assembleia da República e o Governo da República adoptam o procedimento de
audição qualificada, nos seguintes casos:
a) Iniciativas legislativas susceptíveis de serem desconformes com qualquer
norma do presente Estatuto;
b) Iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão, redução ou
supressão de direitos, atribuições ou competências regionais, nos termos do n.º
2 do artigo 14.º;
c) Iniciativas legislativas destinadas à transferência de atribuições ou
competências da administração do Estado para as autarquias locais dos Açores,
nos termos do artigo 135.º.
2 — O procedimento de audição qualificada inicia-se com o envio para o órgão de
governo próprio competente da proposta ou projecto de acto acompanhada de uma
especial e suficiente fundamentação da solução proposta, à luz dos princípios da
primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade.
3 — No prazo indicado pelo órgão de soberania em causa, que nunca pode ser
inferior a 15 dias, o órgão de governo próprio competente emite parecer
fundamentado.
4 — No caso de o parecer ser desfavorável ou de não aceitação das alterações
propostas pelo órgão de soberania em causa, deve constituir-se uma comissão
bilateral, com um número igual de representantes do órgão de soberania e do
órgão de governo próprio, para formular, de comum acordo, uma proposta
alternativa, no prazo de 30 dias, salvo acordo em contrário.
5 — Decorrendo o prazo previsto no número anterior, o órgão de soberania decide
livremente.
Artigo 124.º
Relações externas com outras entidades
2 — No âmbito do número anterior, a Região pode, através do Governo Regional,
estabelecer ou aceder a acordos de cooperação com entidades de outros Estados.
Artigo 130.º
Provedores sectoriais regionais
1 — A Região pode criar provedores sectoriais regionais que, respeitando as
atribuições do Provedor de Justiça e em coordenação com este, recebam queixas
dos cidadãos por acções ou omissões de órgãos ou serviços da administração
regional autónoma, de organismos públicos ou privados que dela dependam, de
empresas privadas encarregadas da gestão de serviços públicos regionais ou que
realizem actividades de interesse geral ou universal no âmbito regional.
2 — Os provedores sectoriais regionais podem dirigir as recomendações que
entenderem às entidades referidas no número anterior e exercer as restantes
competências que lhes venham a ser atribuídas por decreto legislativo regional.
3 — Os provedores sectoriais regionais são eleitos pela Assembleia Legislativa e
têm um estatuto de independência.
4 — A criação de um provedor sectorial regional não envolve qualquer restrição
ao direito de queixa ao Provedor de Justiça ou às suas competências.
Artigo 140.º
Alteração do projecto pela Assembleia da República
2 — Os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão
limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da
Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas.
3 – Fundamentação dos Pedidos
3.1. O Provedor de Justiça fundamentou o pedido de declaração da
inconstitucionalidade dos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c),
67.º, alínea d), 101, n.º 1, alínea n) e 130.º, do EPARAA, em suma, nos
seguintes termos:
O artigo 7.°, n.º 1, alínea o), do Estatuto, consagra o direito da
Região de «criar provedores sectoriais regionais».
Nos termos do artigo 130.º, estes provedores receberão 'queixas dos
cidadãos por acções ou omissões de órgãos ou serviços da administração regional
autónoma, de organismos públicos ou privados que dela dependam, de empresas
privadas encarregadas da gestão de serviços públicos regionais ou que realizem
actividades de interesse geral ou universal no âmbito regional'. Nos termos do
mesmo artigo, os provedores sectoriais podem dirigir as recomendações que
entenderem às entidades referidas e exercer as restantes competências que lhes
venham a ser atribuídas por decreto legislativo regional.
O legislador quis instituir, ao nível regional, instituições com as
mesmas características e funções que o órgão consagrado no artigo 23.° da
Constituição: o Provedor de Justiça.
Ora, ao permitir a criação de provedores sectoriais regionais, o
Estatuto ignora o estatuto constitucional do Provedor de Justiça. Com a criação
dos provedores sectoriais regionais perde-se a visão sistémica da defesa não
jurisdicional dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, subverte-se a
função preventiva global de ocorrência de injustiças e ilegalidades nas diversas
administrações, deturpa-se o papel unitário de guardião dos direitos e
interesses legítimos de todos e de cada um dos portugueses por parte do Provedor
de Justiça, e retira-se, sem necessidade e contra a intenção legislativa,
efectividade aos direitos.
Termina o Provedor de Justiça pedindo a apreciação e declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos
artigos 7.º n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101, n.º
1, alínea n), e 130.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos
Açores.
3.2. O Grupo de Deputados à Assembleia da República, no requerimento
que dirigiu a este Tribunal, fundamentou o seu pedido de declaração da
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 114.º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, nos seguintes termos:
A Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, adita ao Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores o artigo 114°, relativo à
“Audição pelo Presidente da República sobre o exercício de competências
políticas”.
O artigo 114° do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
dos Açores estabelece o que se segue: “Os órgãos de governo regional devem ser
ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia
Legislativa e da marcação da data para a realização de eleições regionais ou de
referendo regional, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição”.
Esta norma vem impor ao Presidente da República novas obrigações que
a Constituição não prevê.
Na verdade, de acordo com o artigo 234°, n.º 1, da CRP: “As
Assembleias Legislativas das regiões autónomas podem ser dissolvidas pelo
Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e os partidos nelas
representados”.
De igual forma, o artigo 133°, alínea j), da Lei Fundamental
estabelece que “Compete ao Presidente da República, relativamente a outros
órgãos:
(...) j) Dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o
Conselho de Estado e os partidos nela representados (...)“.
A Constituição só impõe, portanto, o dever de audição do Conselho de
Estado e dos partidos representados na Assembleia Legislativa respectiva. Só
estes, e nenhum outro órgão ou entidade, devem ser ouvidos, nos termos
constitucionais, pelo Presidente da República, em caso de dissolução de
Assembleia Legislativa.
Sucede, porém, que o novo artigo 114° do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores vem impor ao Presidente da
República outras audições, para além das constitucionalmente exigidas, no caso
de dissolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Efectivamente, tal norma obriga a que, em caso de dissolução da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Presidente da República
ouça, para além do Conselho de Estado e dos partidos representados na Assembleia
Legislativa, os próprios órgãos de governo regional, ou seja, no caso, o Governo
Regional dos Açores e a própria Assembleia Legislativa dos Açores, cuja
dissolução estará em causa.
Tal norma cria, assim, obrigações acrescidas ao Presidente da
República, sujeitando-o a mais deveres de audição, no que respeita à dissolução
da Assembleia Legislativa dos Açores, do que as previstas na Constituição,
desfigurando, assim, o equilíbrio de poderes resultante da Constituição.
Ora, tal não é possível. Nos termos do artigo 110, n.º 2, da
Constituição, “A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos
órgãos de soberania são as definidas na Constituição”. O exercício dos poderes
do Presidente da República é realizado no quadro da Constituição (cfr. artigo
110°, n.º 2, da CRP), não podendo ficar à mercê da contingência da legislação
ordinária aprovada por maiorias políticas circunstanciais.
Não pode, assim, uma lei ordinária restringir o exercício das
competências políticas do Presidente da República definidas na Constituição,
impondo, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa dos Açores, um novo
trâmite que não tem cobertura constitucional: a audição dos “órgãos de governo
regional”.
Acresce referir que a solução normativa contida no artigo 114° do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores é absurda. O
Presidente da República passa a estar sujeito a mais exigências no que toca à
dissolução da Assembleia Legislativa dos Açores do que as previstas para a
dissolução da Assembleia da República.
Para dissolver a Assembleia da República não tem de consultar o
órgão, mas para dissolver a Assembleia Legislativa dos Açores já terá de o fazer
[cfr. artigo 133°, alínea e), da Constituição da República Portuguesa].
Além disso, é incompreensível a audição autónoma do Governo Regional
quando o Presidente de tal órgão tem já assento no Conselho de Estado e é aí
ouvido pelo Presidente da República e também não se compreende a audição
autónoma da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores quando, nos
termos constitucionais, o Presidente da República já ouve os partidos nela
representados.
O artigo 114.º consubstancia uma redução dos poderes do Presidente
da República e uma alteração no equilíbrio de poderes que é manifestamente
inconstitucional.
Em sentido idêntico se pronunciou, aliás, em caso similar, o Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 402/08, a propósito da norma do n.º 3 do artigo
114.º do Decreto da Assembleia da República n.º 217/X.
O artigo 114.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores, é, portanto, inconstitucional por violação do disposto no
artigo 110°, n.º 2, conjugado com os artigos 234°, n.º 1, e 133°, alínea j), da
Constituição da República Portuguesa.
3.3. No segundo requerimento que dirigiu ao Tribunal, o Provedor de
Justiça pediu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, dos artigos 4.º, n.º 4, 1ª parte, 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º,
alínea m), 119.º, nos 1 a 5, 124.º, n.º 2, e 140.º, n.º 2, do EPARAA, nos termos
e com os fundamentos que, em síntese, se seguem:
3.3.1. O art. 4.°, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma dos Açores determina que “a bandeira da Região é hasteada nas
instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de
governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias
locais dos Açores”.
Esta norma impõe, na prática, que a bandeira da Região seja hasteada
nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam situadas na
Região.
Os órgãos de soberania representam a Nação e o todo nacional. Deste
modo, não faz sentido que a utilização da bandeira da Região seja imposta nas
instalações deles dependentes, apenas por força da sua localização regional.
Trata-se, aliás, de matéria comum às duas Regiões Autónomas, e que não se
afigura apresentar especificidades em cada uma delas.
É certo que o lugar a ser ocupado pela bandeira regional quando,
eventualmente, hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na
Região teria de respeitar o “lugar de honra” que é devido à bandeira nacional. E
é, também, naturalmente, aceitável que os órgãos de soberania na Região, por sua
vontade e em momentos específicos, de celebração regional (nomeadamente, nos
feriados regionais), possam hastear a bandeira da Região juntamente com a
Bandeira Nacional.
Já não parece, porém, aceitável, pela própria natureza das coisas,
que se imponha, aos órgãos de soberania, a utilização obrigatória de um símbolo
regional.
A imposição, aos órgãos de soberania, que decorre do artigo 4.º, n.º
4, 1.ª parte, do Estatuto, é violadora do princípio da unidade e da
indivisibilidade da soberania, e das ideias de unidade nacional e de integridade
do território que lhe estão associadas, sendo certo que, conforme decorre,
explicitamente, do art.º 225.°, n.º 3, da Constituição, a autonomia
político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do
Estado.
Tal princípio e seus corolários são institucionalmente
representados, na Região, pelo exercício dos poderes pelos órgãos de soberania,
como órgãos superiores do Estado (art.º 110.º, n.º 1, da Constituição), e
simbolicamente pela Bandeira Nacional (art.º 11.º da Constituição).
Ademais, o art. 227.°, n.º 1, da Constituição, não abre a porta à
normação pelos estatutos regionais de matérias que extravasem o que nele se
consente, pelo que também por essa razão o art.° 4.°, n.º 4, do Estatuto, na
parte questionada, viola o disposto no art.° 227.°, n.º 1, da Constituição.
Com efeito, o art. 4.º, n.º 4, do Estatuto, impõe procedimentos a
órgãos de soberania e a órgãos do Estado com instalações na Região, logo,
interfere com os poderes destes, o que não cabe, manifestamente, no âmbito
próprio da autonomia regional.
Assim sendo, a imposição, aos órgãos de soberania, do hastear da
bandeira regional revela-se violadora dos princípios da soberania, da unidade e
integridade territoriais, e da protecção constitucional conferida à Bandeira
Nacional como símbolo desses mesmos princípios.
3.3.2. Também o artigo 7.º, nas suas alíneas i) e j), ao conferir à região “o
direito a uma política própria de cooperação externa com entidades regionais
estrangeiras', e os artigos 34.°, alínea m) e 124°, n.º 2, ao permitirem que a
Assembleia Legislativa Regional e o Governo regional estabeleça acordos de
cooperação com entidades estrangeiras são inconstitucionais.
Os mencionados dispositivos legais visam concretizar o conteúdo da
norma estabelecida no art. 227.°, n.º 1, alínea u), da Constituição, que inclui,
no elenco dos poderes das regiões autónomas, o de estabelecerem cooperação com
outras entidades regionais estrangeiras e participarem em organizações que
tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional, de acordo
com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em
matéria de política externa.
Contudo, o Estatuto omite a parte final da norma constitucional
mencionada, no segmento que determina que os poderes das regiões autónomas se
exerçam “de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com
competência em matéria de política externa”.
As referidas normas do Estatuto não contêm meros arranjos formais,
que permitam, através de uma leitura integrada com a alínea u) do n.º 1 do art.°
227.° da Lei Fundamental, uma interpretação das mesmas conforme ao texto
constitucional.
A omissão do segmento final da norma constitucional com a
concomitante referência, no texto do Estatuto, a um “direito a uma política
própria”, visam, conjugadamente, introduzir uma ideia materialmente distinta e,
conforme se concluirá, incompatível, com a orientação da Constituição sobre a
matéria.
O Estatuto pretende permitir o exercício, pela Região, dos poderes
em causa de estabelecer acordos de cooperação com entidades estrangeiras,
segundo uma política própria, independentemente da existência de orientações,
quanto à matéria, definidas pelos órgãos de soberania.
Na prática, e se o exercício de tais poderes não implica,
naturalmente, o cumprimento de condutas impositivas por parte dos órgãos de
soberania, terá, no entanto, de ser feito de forma vinculada relativamente às
orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de
política externa, e não independentemente, ou mesmo em contradição, com aquelas.
Ora os poderes das regiões devem ser exercidos nos quadros do Estado
unitário e nunca ao arrepio das orientações definidas pelos órgãos de soberania
em matéria de política externa.
3.3.3. São, também, inconstitucionais as normas do artigo 119.°,
n.ºs 1 a 5 que estabelecem um procedimento de audição qualificada.
O art. 119.° do Estatuto vincula a Assembleia da República e o
Governo da República à adopção de um procedimento que o legislador qualifica
como de “audição qualificada” dos órgãos de governo próprio da Região, nas
situações que aparecem discriminadas nas três alíneas do respectivo n.º 1 —
iniciativas legislativas susceptíveis de serem desconformes com qualquer norma
do Estatuto, iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão,
redução ou supressão de direitos, atribuições ou competências regionais, e
iniciativas legislativas destinadas à transferência de atribuições ou
competências da administração do Estado para as autarquias locais dos Açores.
O procedimento, dito de “audição qualificada”, pautado pelo conjunto
de regras contidas nos n.ºs 2 a 5 do artigo, não pode, em bom rigor, ser
materialmente qualificado como de audição, contendo antes as referidas normas um
procedimento que constitui uma verdadeira negociação, de carácter bilateral,
entre os órgãos de soberania mencionados e os órgãos de governo próprio da
Região.
É certo que, decorrendo esse prazo, o órgão de soberania decide
livremente (n.º 5 do mesmo artigo). Mas, na prática, a referida solução contém
uma verdadeira limitação, de natureza temporal, ao exercício das competências
legislativas e regulamentares por parte dos órgãos de soberania.
O artigo 229.º, n.º 2, estabelece um dever de audição, mas esse
dever não pode obrigar os órgãos de soberania a aguardar pelo parecer da região
para além do prazo concretamente razoável.
É notório que o legislador constituinte quis distinguir as formas de
audição no âmbito das iniciativas legislativas em geral (art.º 229.º, n.º 2) e
para efeitos de elaboração ou de alteração dos estatutos
político-administrativos das regiões autónomas (art.º 226.º, n.º 2), pretendendo
inequivocamente um procedimento mais exigente nesta última situação, e só nesta
situação.
O procedimento de audição qualificada do art. 119.º do Estatuto
imposto, para as matérias elencadas no seu n.º 1, independentemente da situação
concreta e da ponderação casuística da necessidade ou não de uma segunda ou mais
audições, consubstancia um procedimento materialmente distinto da audição que
tem como consequência que o órgão de soberania não possa, no período temporal
estabelecido, exercer as suas competências ao nível legislativo e regulamentar.
Não podendo, naturalmente, aceitar-se que o procedimento de audição
pretendido pelo legislador constituinte, com tradução na previsão do art. 229.°,
n.º 2, possa comportar essa limitação de poderes dos órgãos de soberania, as
normas constantes dos n.ºs 1 a 5 do art. 119.º do Estatuto são materialmente
inconstitucionais no confronto com o referido preceito da Lei Fundamental.
3.3.4. É, ainda, inconstitucional a norma do artigo 140.°, n.º 2, do
Estatuto.
O art. 140.°, n.º 2, do Estatuto, determina que “os poderes de
revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas
estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às
matérias correlacionadas”.
Apesar de a Constituição reservar para a Assembleia Legislativa da
Região a iniciativa legislativa tendente à revisão do Estatuto, não decorre do
texto constitucional, em momento algum, que a Assembleia da República — órgão
que, nos termos constitucionais, tem competência para aprovar o Estatuto e as
suas respectivas revisões [art.°s 161.°, alínea b), e 226.°, n.ºs 1 a 5, da Lei
Fundamental] —, fique limitada na sua competência legislativa à aprovação das
normas do Estatuto sobre as quais incida a prévia iniciativa da Assembleia
Legislativa.
Ou seja, a reserva de iniciativa legislativa da Assembleia
Legislativa não implicará, nem nos termos da Constituição, nem por natureza, a
vinculação da Assembleia da República a uma espécie de “princípio do pedido”,
que é o que acontece com a previsão do art. 140.°, n.º 2, do Estatuto.
A regra que se extrai da norma do art. 140.º, n.º 2, do Estatuto,
não decorre do texto constitucional, e coloca a Assembleia da República sob a
possibilidade de ficar indefinidamente, e contra a sua vontade, refém das
soluções legais consagradas, em determinado momento histórico, nas leis
estatutárias das regiões autónomas.
E se tal solução se mostra de alcance compreensível quando estão em
causa normas reguladoras de matérias que, de uma forma ou outra, servem o
enquadramento e aprofundamento da autonomia político-administrativa da Região, a
mesma solução já será inaceitável do ponto de vista constitucional não só quando
estão em causa normas que, pese embora constando do Estatuto, não têm essa
função específica, como quando estão em causa normas que disciplinam matérias
integradas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, ou
seja, normas que claramente extravasem os poderes sobre os quais — e apenas
sobre os quais — devem incidir os estatutos das regiões autónomas (art. 227.°,
n.º 1, da Constituição).
Ora, o actual Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
dos Açores — que pretende ser, na prática, uma verdadeira 'Constituição' da
Região — contém várias normas que não têm tal função específica, e que,
inclusivamente, regulam matérias inseridas no âmbito da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República.
Um dos exemplos que poderá ser apontado é o das normas dos artigos
22.° e 23.° do Estatuto, que dispõem sobre o domínio público da Região e do
Estado na Região, e, consequentemente, sobre matéria reservada da Assembleia da
República [alínea v) do n.º 1 do art. 165.° da Constituição].
A Assembleia da República tem de poder aprovar, alterar ou suprimir
normas respeitantes às matérias que estejam na sua esfera de competência
reservada (e não respeitem portanto à autonomia regional), pelo menos no momento
em que a Região decide desencadear um procedimento de revisão do Estatuto.
A solução compromete a possibilidade de alcançar soluções de
conjunto que representem o equilíbrio de interesses — possível e desejável —
entre o órgão (regional) de iniciativa e o órgão (de soberania) decisor.
Tem, além disso, como pressuposto enquadrador o respeito pelo
princípio do não retrocesso quanto ao grau lícito de autonomia adquirido pelas
regiões autónomas. A Assembleia da República ficaria, na prática, de “mãos
atadas” para legislar em matérias que lhe estão desde logo constitucionalmente
reservadas. O único expediente que restaria à Assembleia da República para
contornar a situação seria a via da revisão constitucional, meio que
manifestamente se afigurará desproporcionado aos fins que visa atingir.
A reserva de iniciativa dos órgãos legislativos regionais é uma
reserva de impulso do procedimento legislativo, nas matérias próprias da
autonomia regional. Não impede os órgãos de soberania de legislarem sobre as
matérias que são da sua competência reservada, ainda que constantes dos
Estatutos.
O Estatuto contém, na norma do respectivo art. 140.°, n.º 2, uma
verdadeira limitação da competência legislativa da Assembleia da República, em
sede de revisão do Estatuto, que não encontra suporte, explícito ou implícito,
em nenhum momento do texto constitucional.
Consagra, pois, uma violação aos princípios e normas que se podem
extrair conjugadamente dos art.°s 161.º, alínea c), e 226.°, n.ºs 1 a 4, da
Constituição.
4. Resposta do órgão autor da norma
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos, o
Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos,
entregando cópia dos diversos documentos relativos aos trabalhos preparatórios
da Lei n.º 2/2009.
5. Despacho de junção
Dada a conexão entre os pedidos, todos eles relativos à Lei n.º
2/2009, de 12 de Janeiro, que aprovou a terceira revisão do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o Presidente do Tribunal
ordenou, por despacho, a junção dos autos relativos aos três processos.
6. Debate do memorando
Elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional o memorando a
que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), e
submetido o mesmo a debate, cumpre dar corpo à decisão em função da orientação
fixada pelo Tribunal sobre as questões a resolver.
II – Fundamentação
7. Questões decidendas
As questões de constitucionalidade postas ao Tribunal reportam-se às
seguintes temáticas:
A) Utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de
soberania que estejam situadas na Região (artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte);
B) Poderes da Região em matéria de política externa [artigo 7.º, n.º 1, alíneas
i) e j), 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2];
C) Criação de provedores sectoriais regionais [artigo 7.º, n.º 1, alínea o),
47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101, n.º 1, alínea n) e 130.º];
D) Audição dos órgãos regionais pelo Presidente da República, em caso de
dissolução da Assembleia Legislativa Regional (artigo 114.º);
E) Admissibilidade de um procedimento especial de audição qualificada (artigo
119.º, n.ºs 1 a 5);
F) Limitação dos poderes de revisão do Estatuto às normas estatutárias sobre as
quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias
correlacionadas (artigo 140.º, n.º 2).
Passemos a conhecer de cada uma delas, sendo certo que, embora em relação à
alínea D) os requerentes formulem, a final, o pedido de declaração de
inconstitucionalidade da norma do artigo 114.º do EPARAA sem qualquer restrição,
resulta da respectiva fundamentação que, apenas, questionam essa norma, na parte
em que se refere à dissolução da Assembleia Legislativa, devendo,
consequentemente, considerar-se o pedido limitado a este segmento da norma.
A) Utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos
de soberania que estejam situadas na Região (artigo 4.º, n.º 4)
O artigo 4.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
dos Açores aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, ficou, após a terceira
revisão, operada pela Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, com a seguinte redacção:
Artigo 4.º (Símbolos da Região)
1 — A Região tem bandeira, brasão de armas, selo e hino próprios, aprovados pela
Assembleia Legislativa.
2 — Aos símbolos da Região são devidos respeito e consideração por todos.
3 — A bandeira e o hino da Região são utilizados conjuntamente com os
correspondentes símbolos nacionais e com a salvaguarda da precedência e do
destaque que a estes são devidos.
4 — A bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de
soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles
tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores.
5 — A utilização dos símbolos da Região é regulada por decreto legislativo
regional.
A redacção, que constava da anterior versão do mesmo Estatuto e que
foi aprovada pelo artigo 2.º da Lei nº 9/87, de 26 de Março, era a seguinte:
Artigo 6º (Símbolos da Região)
1 – A Região tem bandeira, brasão de armas, selo e hino próprios, aprovados pela
Assembleia Legislativa Regional.
2 – Os símbolos regionais são utilizados nas instalações e actividades
dependentes dos órgãos de governo próprio da Região ou por eles tuteladas.
3 – Os símbolos regionais são utilizados conjuntamente com os correspondentes
símbolos nacionais e com salvaguarda da precedência e do destaque que a estes
são devidos, nos termos da lei.
A comparação entre estas duas disposições sugere as considerações
que se seguem.
A redacção do EPARAA, aprovada pela Lei n.º 2/2009, mantém a
afirmação de que a Região Autónoma tem símbolos próprios e que esses símbolos
são utilizados nas instalações e actividades dependentes dos órgãos de governo
próprio da Região ou por eles tuteladas e em conjunto com os correspondentes
símbolos nacionais, mantendo-se salvaguardada a precedência e o destaque que a
estes são devidos.
Foram, todavia, introduzidas duas alterações fundamentais:
(i) Onde, antes, se afirmava que 'os símbolos regionais são
utilizados nas instalações e actividades dependentes dos órgãos de governo
próprio da Região ou por eles tuteladas', agora acrescentou-se que a bandeira é
hasteada 'nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região […], bem
como nas autarquias locais dos Açores”;
(ii) Onde, anteriormente, se dizia que 'os símbolos regionais são
utilizados conjuntamente com os correspondentes símbolos nacionais e com
salvaguarda da precedência e do destaque que a estes são devidos, nos termos da
lei', agora retirou-se a expressão 'nos termos da lei' (que se referia à
utilização conjunta dos símbolos nacionais e dos símbolos regionais) e
acrescentou-se um novo número (restrito apenas à utilização dos símbolos
regionais) a esclarecer que 'a utilização dos símbolos da Região é regulada por
decreto legislativo regional'.
O requerente questiona a constitucionalidade do artigo 4.º, n.º 4,
na parte em se refere ao uso da bandeira regional nas instalações dependentes
dos órgãos de soberania.
A questão não se levantaria, porventura, caso se admitisse que o
sentido do artigo 4.º n.º 4, do EPARAA não seria senão o de admitir o possível
uso da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania,
nos termos definidos por lei devidamente aprovada pelos órgãos de soberania.
O alcance do n.º 4 do artigo 4.º do EPARAA parece, contudo, ser
outro.
Na verdade, ele situa-se numa sequência lógica que determina o seu sentido e que
não pode ser ignorada pelo intérprete. O n.º 3 do artigo 4.º, embora
salvaguardando a precedência e o destaque devidos à Bandeira Nacional,
estabelece a utilização desta em conjunto com a bandeira da Região. Depois, logo
de seguida, a 1.ª parte do artigo 4.º, prescreve que a bandeira da Região é
hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania.
Da conjugação do teor literal da 1.ª parte do n.º 4 do artigo 4.º
com o teor literal do número 3 desta mesma disposição resulta, assim, que a
bandeira regional é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de
soberania, em conjunto com a Bandeira Nacional.
Assim sendo, o n.º 4 do artigo 4.º, lido no seu contexto normativo,
suscita, inevitavelmente, a seguinte questão:
Poderá o Estatuto da Região Autónoma impor a utilização da bandeira
regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam,
territorialmente, situadas na região (artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte, e n.º 3)?
O problema está em saber se o Estatuto da Região, na medida em que
impõe o hasteamento da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos
de soberania situadas na Região sempre que aí seja hasteada a Bandeira Nacional,
pode restringir a liberdade dos órgãos de soberania regularem, livremente, as
regras de uso da Bandeira Nacional.
As instalações dependentes dos órgãos de soberania são o local por excelência
onde a Bandeira Nacional deverá ser hasteada. Ora, o uso da bandeira regional é
susceptível de interferir com as regras de utilização da Bandeira Nacional.
Desta forma, as regras que regulam a utilização da bandeira regional terão de se
relacionar com as que regulam a utilização da Bandeira Nacional. E terão, ainda,
que se lhes subordinar. Com efeito, a precedência e o destaque que deverão ser
conferidos à Bandeira Nacional, quando hasteada em conjunto com a bandeira
regional, têm expressão normativa na prevalência que deverá ser dada à lei da
Bandeira Nacional sobre o diploma que regula o uso da bandeira regional.
O Estado português é, em todo o seu território e fora dele,
representado, exclusivamente, pela Bandeira Nacional, dado que, nos termos
expressos pelo artigo 11.º, n.º 1, da Constituição, esta é 'símbolo da soberania
da República, da independência, unidade e integridade de Portugal'. E não será,
porventura, demais relembrar que a Bandeira Nacional é bandeira de toda a
comunidade política. Ela simboliza − com as suas cores, com as suas armas e com
a esfera armilar − Portugal e, consequentemente, também os Açores.
Como explicam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Vol. I, Coimbra 2007, p. 291),
'[Os símbolos nacionais] são valores de referência de toda a colectividade, de
comunhão cultural e ideológica, de identificação e distinção. Assumem, assim, um
alto relevo, sob o ponto de vista constitucional […].
A dimensão simbólica − soberania, unidade e integridade de Portugal − agora
claramente reafirmada no texto constitucional (na redacção da LC 1/89)
transporta imposições dirigidas aos responsáveis pelo uso da bandeira nacional
(cfr. Decreto-Lei n.º 150/87, de 30-03). Este uso só pode ser determinado pelos
órgãos de soberania […]'
Recorde-se, antes de mais, que o regime dos símbolos nacionais é da
exclusiva competência da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea s),
aditado na 4.ª revisão constitucional, de 1997].
Sendo assim, e como se afirmou recentemente no Acórdão n.º 258/07,
publicado no Diário da República I Série, de 15 de Maio de 2007, acolhendo a
doutrina aí identificada, «a inclusão de qualquer matéria na reserva de
competência da Assembleia da República, absoluta ou relativa, é in totum. Tudo
quanto lhe pertença tem de ser objecto de lei da Assembleia da República (…). Só
não se depara este postulado quando a própria Constituição estabelece
diferenciações por falar em ‘bases’, em ‘bases gerais’, ou em ‘regime geral’ das
matérias» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II,
Coimbra, 2006, págs. 516-517).
Deste modo, a sede própria da definição do uso da Bandeira Nacional
só pode ser uma lei que dê corpo normativo ao estatuto constitucional da
Bandeira enquanto símbolo nacional (artigo 11.º, n.º 1).
Anote-se, porém, que, não tendo a Assembleia da República legislado sobre esta
matéria após a referida revisão, se mantém o regime constante do diploma
conhecido por Lei da Bandeira Nacional (Decreto-Lei n.º 150/87, de 30 de Março).
Qualquer definição do uso da bandeira regional, em conjunto com a Bandeira
Nacional, deverá estar normativamente subordinada às regras de utilização da
Bandeira Nacional definidas pelos órgãos de soberania. Nesta linha se posta o
actual artigo 8.º, n.º 1, da Lei da Bandeira Nacional que regula o uso desta
Bandeira Nacional, em conjunto com outras bandeiras.
Abrangendo a reserva todo o regime do símbolo nacional, não é possível
inserir no Estatuto da Região uma regra que conduza à utilização conjunta, em
instalações dos órgãos de soberania, da Bandeira Nacional e da bandeira
regional.
Sendo a Bandeira Nacional símbolo da soberania da República, da
independência, unidade e integridade de Portugal (art.º 11.º, n.º1, da
Constituição), não podem os Estatutos, porque atinentes a parte do seu todo,
dispor sobre o regime da sua utilização.
A Assembleia da República tem competência para aprovar o Estatuto
Político-Administrativo da Região [artigo 161.º, alínea b), da Constituição] e
tem competência exclusiva para aprovar o regime de uso dos símbolos nacionais
[artigo 164.º, alínea s)].
Mas o que não pode fazer é impor, sob a forma de Estatuto, o uso de
símbolos regionais, nas instalações próprias dos órgãos de soberania (ou seja
fora do 'âmbito regional' de um ponto de vista institucional), na medida em que
tal exclui o seu poder de regular, com exclusividade, o uso dos símbolos
nacionais, nomeadamente quanto a saber quando deve e se deve ser hasteada
sozinha ou acompanhada de outros símbolos, livre de qualquer iniciativa das
Regiões.
É certo que o Estatuto pode autorizar o uso da bandeira regional nas
instalações dependentes dos órgãos de soberania. Mas o que não pode fazer é
impor essa utilização, pois por esse modo está a interferir na definição do
regime de utilização da Bandeira Nacional.
Nestes termos, impõe-se declarar a inconstitucionalidade do artigo
4.º, n.º 4, 1.ª parte, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
dos Açores, por violação do disposto nos artigos 11.º, n.º 1 e 164.º, alínea s),
da Constituição da República Portuguesa.
B) Poderes da Região em matéria de política externa [artigos 7.º,
n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2]
O artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores confere, à Região Autónoma dos Açores, 'o direito a uma
política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras,
nomeadamente no quadro da União Europeia e do aprofundamento da cooperação no
âmbito da Macaronésia'.
Neste quadro, em que se admite uma política própria de cooperação
externa com entidades regionais estrangeiras, o mesmo Estatuto
Político-Administrativo atribui à Região, logo de seguida, na alínea j) do mesmo
artigo, 'o direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades regionais
estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e
cooperação inter-regional'.
Dentro da mesma linha, o Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores confere, por outro lado, à Assembleia Legislativa Regional
dos Açores, a competência para 'aprovar acordos de cooperação com entidades
regionais ou locais estrangeiras que versem sobre matérias da sua competência ou
sobre a participação em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e
a cooperação inter-regional' [artigo 34.º, al. m)] e atribui ao Governo Regional
o poder de, em nome da Região, 'estabelecer ou aceder a acordos de cooperação
com entidades de outros Estados (artigo 124.º, n.º 2).
Nos termos expressos pelo corpo do artigo 7.º do EPARAA, esses poderes pretendem
estar para além dos poderes configurados no artigo 227.º da Constituição.
Poderá, então, questionar-se 'se' e 'até que ponto' tal será possível. É o que
de seguida se verá.
A Constituição da República Portuguesa atribui às Regiões Autónomas,
nomeadamente no artigo 227.º, poderes com incidência internacional.
Entre esses poderes conta-se o poder de participar na celebração de tratados e
acordos internacionais que lhes digam directamente respeito [artigo 227.º, n.º
1, alínea t), da Constituição].
Sobre a natureza e âmbito de tal poder diz Rui Manuel Moura Ramos (Da Comunidade
Internacional e do seu Direito, Coimbra 1996, pp. 203 e segs.):
'Não se trata evidentemente do reconhecimento do próprio treaty-making power,
mas de uma forma de participação no seu exercício, o que não é todavia
praticado, sequer, em todos os Estados federais […]
Precisa-se, no que respeita à sua concretização, que uma tal participação
traduzir-se-á na representação efectiva dentro da delegação nacional que
negociará o tratado ou acordo, bem como nas comissões de execução ou
fiscalização respectivas.'
Além deste poder de participação na celebração de acordos que lhes digam
directamente respeito, as Regiões Autónomas possuem, ainda, um poder de
estabelecer laços de cooperação com outras entidades regionais estrangeiras e
participar em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a
cooperação inter-regional, de acordo com as orientações definidas pelos órgãos
de soberania com competência em matéria de política externa [artigo 227.º, n.º
1, alínea u)].
Aqui, já não se trata, apenas, de um poder de participação. Por isso, a
Constituição é clara em estabelecer um limite que salvaguarde o princípio da
unidade do Estado no exercício da política externa, limite esse ínsito, aliás,
nos próprios termos em que o artigo 225.º, n.º 3, da Constituição configura a
autonomia político-administrativa regional, ao dispor que esta “não afecta a
integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição”.
A este propósito, discreteia Rui Manuel Moura Ramos (Da Comunidade Internacional
e do seu Direito, cit., p. 206) do seguinte modo:
'A legitimidade do estabelecimento de laços de cooperação entre as Regiões
Autónomas portuguesas e outras entidades regionais estrangeiras fica portanto
assente. E a previsão de uma tal hipótese permite claramente afirmar que não se
trata aqui apenas de laços a tecer exclusivamente por referência às formas do
direito privado, o que de todo o modo não estava em questão. A fórmula escolhida
leva pois a crer que são as Regiões Autónomas enquanto pessoas colectivas de
direito público que estão autorizadas a estabelecer esses laços com outras
entidades estrangeiras de natureza similar. Não se faz qualquer referência às
formas e à natureza que os instrumentos desta cooperação deverão revestir: é, no
entanto, certo que todo o processo deverá conformar-se com as orientações
definidas pelos órgãos de soberania competentes em matéria de política externa.
[…]
É igualmente reconhecido o poder de participar em organizações que tenham por
objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional, ainda que um tal poder
esteja subordinado, no seu exercício, às orientações definidas pelos órgãos de
soberania com competência em matéria de política externa'.
Os poderes das regiões autónomas, em matéria de política externa, não as
transformam, portanto, em entidades autónomas e diferenciadas do Estado
português, do ponto de vista do Direito Internacional Público. Desse ponto de
vista, elas integram-se no Estado português, como afirma, a este respeito, Jorge
Miranda (Direito Internacional Público, 3.ª ed. 2006, p. 205):
'[Os poderes das Regiões autónomas de incidência internacional], embora
originais e significativos, não envolvem a transformação das regiões em sujeitos
de Direito Internacional.
Na cooperação inter-regional verifica-se por certo uma actuação externa dos
órgãos de governo próprios das regiões. Todavia é uma cooperação com entidades
também desprovidas de personalidade jurídico-internacional e sempre de acordo
com as orientações definidas pelos órgãos de soberania'.
É esta compreensão das relações internacionais que se encontra vertida no
artigo 7.º da Constituição, no qual se acham consagrados os princípios
fundamentais em matéria de política externa e que subjaz, do mesmo passo, à
repartição da competência em razão da matéria entre os diversos órgãos de
soberania – Presidente da República (cf. artigo 135.º), Assembleia da República
[161.º, alínea i)] e Governo [197.º, n.º 1, alíneas b) e c), todos da
Constituição].
Na verdade, ao enunciar os diversos vectores em que se decompõem essas
relações internacionais, o preceito sedia-as, no que tange à sua titularidade,
no Estado.
Deste modo, a palavra em matéria de política externa cabe à República. Por
outro lado, a unidade de sentido da política externa exigida pelo artigo 7.º só
pode ser conseguida mediante a intervenção decisória, apenas, dos órgãos de
soberania que interpretam o interesse nacional, representando a injunção
estabelecida na parte final da alínea u) do n.º 1 do artigo 227.º da
Constituição, exactamente, um postulado de tal posição constitucional.
Nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, as Regiões
Autónomas podem 'estabelecer cooperação com outras entidades regionais
estrangeiras […]'.
Porém − em homenagem ao princípio da integridade da soberania do Estado −, devem
fazê-lo, nos termos da parte final do preceito “de acordo com as orientações
definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política
externa”.
Ora, como já se viu, o artigo 7.º do EPARAA pretende, expressamente,
através das alíneas i) e j) do seu n.º 1, ampliar os poderes da Região previstos
no artigo 227.º da Constituição, ao considerar como 'direitos da Região, para
além dos enumerados no n.º 1 do artigo 227.º da Constituição': 'o direito a uma
política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras'
[alínea i)] e 'o direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades
regionais estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo
e cooperação inter-regional [alínea j)].
O contraste entre o artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), do Estatuto e o
artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, em matéria de poderes com
incidência internacional, é evidente: a utilização da expressão 'política
própria' na alínea i) do artigo 7.º e a ausência, em ambas as alíneas i) e j),
de uma qualquer menção às 'orientações definidas pelos órgãos de soberania com
competência em matéria de política externa' como faz o artigo 227.º da
Constituição.
E como o corpo do artigo 7.º do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores explica que os direitos nele enunciados pretendem ir além
dos contidos na Constituição, não restam dúvidas: trata-se de alargar os poderes
da Região para além do que a Constituição prevê.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se tal será possível. Será a
matéria dos poderes das Regiões livremente disponível pelo legislador ordinário
ou será, pelo contrário, matéria de reserva de Constituição?
É evidente que o alargamento de poderes da Região, que o artigo 7.º do
EPARAA explicitamente pretende, é, neste caso, susceptível de afectar os poderes
estabelecidos na Constituição para os órgãos de soberania e para efectivação de
uma política externa comum. Ou seja, os termos em que a cooperação externa das
Regiões aparece consagrada no artigo 7.º, alínea i), implicam uma compressão dos
poderes dos órgãos de soberania que não é constitucionalmente possível (artigos
7.º e 110.º, n.º 2, da Constituição), sendo feita com restrição da unidade do
Estado e da integridade da soberania [artigos 6.º e 225.º, n.º 3, e 227.º, n.º
1, alínea u), da Constituição].
Esta disposição constitucional implica que não será possível ampliar os poderes
regionais constitucionalmente previstos, por via legislativa ou estatutária,
quando tal interfira com a competência dos órgãos de soberania em matéria da
definição do sentido da política externa.
Deste modo, o artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores padece de
inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 6.º,
7.º, 110.º, n.º 2, 225.º, n.º 3, e 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição.
Uma vez admitido que, ao invés do que resulta do confronto entre as alíneas i e
j) do n.º 1 do artigo 7.º do EPARAA e do artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da
Constituição, a cooperação externa terá de se fazer 'de acordo com as
orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de
política externa', não há obstáculo a considerar que as Regiões, enquanto
pessoas colectivas públicas, mantenham, através da Assembleia Legislativa
Regional, no âmbito das suas competências e sem prejuízo dos poderes próprios
dos órgãos de soberania, o poder de aprovar acordos de cooperação com entidades
regionais ou locais estrangeiras.
Assim, porque os artigos 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2, do mesmo Estatuto
colhem o seu directo fundamento no artigo 227.º, n.º 1, da Constituição, não
correspondendo a quaisquer concretizações do analisado “direito a uma política
própria”, eles não são atingidos pelo juízo de inconstitucionalidade imputado ao
artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j).
Nestes termos, não há que os declarar inconstitucionais.
C) Criação de provedores sectoriais regionais [artigos 7.º, n.º 1,
alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101, n.º 1, alínea n), e
130.º]
O Provedor de Justiça coloca a questão da constitucionalidade da
criação dos provedores sectoriais regionais.
Dispondo sobre aquele órgão constitucional, diz a Constituição:
Artigo 23.º
(Provedor de Justiça)
1. Os cidadãos podem apresentar queixas por acções ou omissões dos
poderes públicos ao Provedor de Justiça, que as apreciará sem poder decisório,
dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e
reparar injustiças.
2. A actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios
graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis.
3. O Provedor de Justiça é um órgão independente, sendo o seu
titular designado pela Assembleia da República, pelo tempo que a lei determinar.
4. Os órgãos e agentes da Administração Pública cooperam com o
Provedor de Justiça na realização da sua missão.
Do mesmo passo que institui o órgão constitucional Provedor de
Justiça, o preceito procede à conformação dos traços que, sob o ponto de vista
constitucional, enformam a sua verdadeira natureza e recortam o núcleo essencial
do seu estatuto.
No mais, próprio ou relativo ao seu estatuto, a Constituição
reservou à Assembleia da República a competência exclusiva para legislar sobre
ele. Na verdade, o artigo 164.º, alínea m), dispõe que é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre a matéria do “estatuto dos
titulares dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes
órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal” (itálico
aditado).
É evidente que o Provedor de Justiça é um órgão constitucional,
porquanto criado pela Constituição e cuja competência é, também, por ela
definida, pelos menos nos seus elementos constitucionalmente caracterizantes.
Segundo emerge daquele artigo 23.º, o Provedor de Justiça é um órgão
do Estado, de natureza independente, perante todos os demais órgãos
constitucionais, conquanto designado, pelo tempo que a lei determinar (quatro
anos – artigo 6.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril), pela Assembleia da República,
por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados presentes, desde que
superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
Enquanto órgão constitucional, é também a Constituição que define a
competência que o caracteriza enquanto tal. E fá-lo sob quatro ângulos
diferentes. De um lado, evidenciando a sua posição institucional em relação aos
cidadãos, dizendo que os cidadãos lhe podem apresentar queixas – é, assim, um
órgão aberto ao recebimento das queixas dos cidadãos, sem distinções, no todo do
Estado unitário; do outro, referindo que essas queixas podem ter por objecto
acções ou omissões dos poderes públicos; depois, estatuindo que o Provedor
apreciará essas queixas sem poder decisório e dirigindo aos órgãos competentes
as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças; e, finalmente,
dispondo que essa competência é levada a cabo de modo independente dos meios
graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis.
Como se vê, a competência constitucionalmente atribuída ao Provedor
de Justiça abrange todos os “poderes públicos” e, decorrentemente, assim, os
actos por estes praticados.
Pela sua própria natureza, ressalvam-se os actos jurisdicionais, em
face do disposto nos artigos 203.º e 205.º da Constituição.
De acordo com a configuração dada pelo legislador
constitucionalmente competente [artigo 164.º, alínea m)] ao estatuto do Provedor
de Justiça (Lei n.º 9/91), o terreno privilegiado da sua actuação é a
Administração, não estando excluído qualquer sector dela, abrangendo assim a
administração estadual, regional ou local, directa ou indirecta, civil ou
militar.
Conquanto a inserção constitucional do Provedor de Justiça na parte
geral dos direitos fundamentais mostre claramente que ele “é essencialmente um
órgão de garantia dos direitos fundamentais (de todos, e não apenas dos
direitos, liberdades e garantias) perante os poderes públicos, em geral, e
perante a Administração em especial” (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
op. cit., Volume I, p. 440), nada impede que ele actue, no terreno daquela
Administração, no domínio dos direitos económicos, sociais ou outros, conferidos
pelo legislador ordinário.
A questão que se coloca, no caso, é, todavia, a de saber se o órgão
Provedor de Justiça é um órgão do Estado de competência exclusiva nas matérias
incluídas no seu estatuto jurídico-constitucional ou se as mesmas podem ser
desdobradas ou repartidas através de provedores sectoriais ou especializados,
com base numa ideia de que assim se poderão obter maiores níveis de protecção
dos direitos dos cidadãos.
Na doutrina existe uma crítica generalizada à ideia de multiplicação
dos provedores sectoriais regionais.
É, muito em especial, o caso de Jorge Miranda (Artigo 23.º,
Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo I,
Coimbra 2005, p. 220), que sustenta:
'A lei não pode criar Provedores de Justiça especializados, como já
tem sido preconizado (Provedor para as Forças Armadas, Provedor Ecológico,
Provedor do Consumidor, Provedores Municipais, Provedor da Criança, Provedor das
Pessoa Idosas, Provedor da Saúde) ou como já chegou a ser estabelecido (Defensor
do Contribuinte).
A competência de um órgão constitucional decorre da norma
constitucional, explícita ou implicitamente, ou tem nela a sua base. Daí que não
possa o Provedor de Justiça, órgão constitucional, ser despojado de faculdades
que lhe pertençam, em proveito de outros órgãos, nem que possam as suas
competências ou as matérias delas objecto ser desdobradas ou repartidas através
de mais de um Provedor.
Não pode haver dois ou mais Provedores […]”.
Na mesma linha de pensamento vai Vieira de Andrade, ao declarar o
seu 'alinhamento incondicional com aqueles que defendem uma concepção unitária e
plurifuncional da instituição e se opõem à proliferação de provedores
especializados em função das várias áreas da actividade administrativa' ('O
Provedor de Justiça e a protecção efectiva dos direitos fundamentais', in O
Provedor de Justiça - Estudos, Lisboa 2006, p. 62).
Mas há, também, Autores que, com mais ou menos dúvidas ou limites
(cfr. João Caupers, in O Cidadão, o Provedor de Justiça e as Entidades
Administrativas Independentes, p. 88, e, reportando-se a provedores regionais,
Rui Medeiros, Tiago Fidalgo de Freitas e Rui Lanceiro, in Enquadramento da
Reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, p.
124), admitem não existir uma proibição constitucional de provedores
especializados.
Entende, porém, o Tribunal que, sendo a competência do órgão
constitucional, Provedor de Justiça, definida pela Constituição, não pode esse
órgão ser despojado das faculdades que lhe pertençam ou as matérias delas
objecto ser desdobradas através de mais de um Provedor.
A repartição, com outros órgãos, das faculdades inseridas na
competência com que foi dotado constitucionalmente o Provedor de Justiça, ainda
que respeitando as suas atribuições constitucionais e obrigando a agir em
coordenação ou de forma articulada com este, desfigura o órgão tal como foi
concebido pela Lei Fundamental, na medida em que introduz elementos
distorcedores da unidade da sua actuação para todo o território nacional e para
todos os poderes públicos.
A existência, ao lado, de um outro órgão, criado pelo legislador
ordinário, com atribuições decalcadas ou paralelas às do Provedor de Justiça,
especializadas ou não, ainda que de âmbito regional, não deixa de
descaracterizar o tipo constitucionalmente construído do mesmo órgão sem
agregação a quaisquer especialidades da matéria da sua competência ou a
quaisquer entes territoriais, antes atingindo todos os poderes públicos,
enfraquecendo, em termos de visibilidade e intensidade práticas, os poderes e
faculdades com que foi dotado o órgão constitucional.
Está vedada ao legislador ordinário a conformação de qualquer outro
órgão, a quem sejam, concomitantemente, atribuídas as funções de apreciar, sem
poder decisório, as queixas dos cidadãos por acções ou omissões dos poderes
públicos, e de dirigir aos órgãos competentes as recomendações necessárias para
prevenir e reparar injustiças.
Ora, é exactamente isso que sucede na situação recortada no artigo
130.º do EPARAA. É que os provedores sectoriais regionais recebem, com autonomia
em relação ao Provedor de Justiça, “queixas dos cidadãos por acções ou omissões
de órgãos e serviços da administração regional autónoma, de organismos públicos
ou privados que dela dependam, de empresas privadas encarregadas da gestão de
serviços públicos regionais ou que realizem actividades de interesse geral ou
universal no âmbito regional” e podem, igualmente com autonomia em relação ao
mesmo Provedor de Justiça, dirigir as recomendações que entenderem àquelas
entidades.
Temos, assim, que não podem deixar de ter-se por inconstitucionais,
por violação do artigo 23.º da Constituição, os artigos 7.º, n.º 1, alínea o),
47.º, n.º 4, alínea c), 67.º alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n) e 130.º do
Estatuto Político-Administrativo dos Açores.
D) Audição dos órgãos regionais pelo Presidente da República, em
caso de dissolução da Assembleia Legislativa Regional (artigo 114.º)
O artigo 114.º do EPARAA estabelece: “A Assembleia Legislativa, o
Presidente do Governo Regional e os grupos e representações parlamentares da
Assembleia Legislativa devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da
dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a realização de
eleições regionais ou de referendo regional”.
O Requerente contesta a constitucionalidade desta norma na medida em que impõe,
ao Presidente da República, deveres de audição adicionais para além dos já
previstos na Constituição, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa.
De facto, de acordo com o artigo 133.º, da Constituição, a Assembleia
Legislativa Regional pode ser dissolvida 'ouvidos os partidos nela representados
e o Conselho de Estado' [alínea j)] em paralelo total com o que sucede a
respeito da Assembleia da República [alínea e)]. O que o artigo 114.º do EPARAA
faz é introduzir um trâmite adicional no processo de dissolução daquele órgão.
Segundo esse artigo, terão de ser ouvidos não só o Conselho de Estado e os
partidos representados na Assembleia Legislativa, mas, ainda, a Assembleia
Legislativa, enquanto órgão colectivo no seu conjunto, e o Presidente do Governo
Regional, que passaria, assim, a ser titular de um direito de audição autónomo,
fora do Conselho de Estado, de que faz parte integrante, nos termos do artigo
142.º, alínea e), da Constituição.
O artigo 110.º, n.º 2, estabelece, porém, a taxatividade do quadro de
competências dos órgãos de soberania, nos termos que se seguem: 'A formação, a
composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os
definidos na Constituição'.
Daqui decorre − asseveram Gomes Canotilho e Vital Moreira − 'que a competência
dos órgãos de soberania - entre os quais se conta o Presidente da República - é
a que consta da Lei Fundamental' (Os Poderes do Presidente da República, Coimbra
1991, p. 35).
Essa taxatividade dos poderes do Presidente da República impede a sua ampliação
por lei, mas impede também, obviamente, a sua restrição por via legal. Trata-se
de uma matéria sujeita a “reserva de Constituição” (cf. Jorge Miranda, Manual de
Direito Constitucional, Tomo V, 3.ª ed. p. 198).
A taxatividade dos procedimentos a observar pelo Presidente da República
colhe-se, por outro lado, directamente do disposto no artigo 133.º, alínea j),
da Constituição, ao dispor que compete ao Presidente da República, relativamente
a outros órgãos, “dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas,
ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nelas representados, observado o
disposto no artigo 172.º, com as necessárias adaptações”, não sendo de lhe opor
a norma do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição que prevê um dever genérico de
audição das regiões, dado aquela norma regular exaustiva e especificamente o
procedimento em causa.
Nesta matéria, a lei nada pode fazer. A matéria é reserva de Constituição, ou
melhor, constitui reserva de competência do legislador constituinte.
Esta reserva de Constituição em matéria de poder do Presidente da
República e o carácter taxativo dos seus poderes compreende-se como expressão de
um princípio do equilíbrio institucional de poderes, cujos termos só o poder
constituinte poderá alterar. Nem o legislador ordinário nem o legislador
estatutário o poderão fazer.
Anote-se que o Tribunal já se pronunciou no Acórdão n.º 402/08,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, sobre uma questão algo paralela no
que tange à conexão que intercede entre uma norma constitucional atributiva de
competência e a norma constitucional que prevê um dever genérico de audição das
regiões (artigo 229.º, n.º 2, da Constituição).
Conclui-se, assim, que o artigo 114.º do EPARAA, ao prever que a Assembleia
Legislativa e o Governo da Região devem ser ouvidos, pelo Presidente da
República, antes da dissolução da Assembleia Legislativa Regional, é
inconstitucional, por violação dos artigos 133.º, alínea j), e 110.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa.
E) Procedimento de audição qualificada (artigo 119.º, n.ºs 1 a 5)
O Provedor de Justiça coloca, ainda, a questão da
constitucionalidade do artigo 119.º, nos 1 a 5, do EPARAA.
A sua argumentação vai, essencialmente, no sentido de que o artigo
229.º, n.º 2, da Constituição é insusceptível da interpretação maximalista que
lhe é dada pelo citado artigo 119.º do EPARAA.
Note-se que, nos termos do n.º 1, o procedimento de audiência
qualificada abrange os seguintes casos: a) “Iniciativas legislativas
susceptíveis de serem desconformes com qualquer norma do presente Estatuto”; b)
“Iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão, redução ou
supressão de direitos, atribuições ou competências regionais' e c) 'Iniciativas
legislativas destinadas à transferência de atribuições ou competências da
Administração do Estado para as autarquias locais dos Açores'.
O procedimento previsto no artigo 119.º contém exigências de tramitação,
nomeadamente nos seus n.º 2 e 4, cuja constitucionalidade terá de se questionar.
Nos termos do n.º 2, do artigo 119.º, do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma dos Açores, o procedimento de audição qualificada inicia-se com
o envio, para o órgão de governo próprio da região que seja no caso competente,
da proposta ou projecto de acto.
Ora, essa proposta ou esse projecto deve, segundo o mesmo preceito, estar
'acompanhado de uma especial e suficiente fundamentação […] à luz dos princípios
da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade”.
Ou seja, a Assembleia da República, para efeitos de procedimento, terá de
fundamentar a legislação, que é da sua exclusiva competência e que visa o todo
nacional, à luz dos princípios da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico
e da subsidiariedade que protegem a autonomia regional.
Note-se que não são os órgãos de governo regional que se pronunciam com base em
tais princípios, mas é, sim, a Assembleia da República que o deverá fazer.
O ónus da prova do facto negativo (não violação da primazia do Estatuto, do
adquirido autonómico e da subsidiariedade) fica do lado dos órgãos de soberania.
Não é a Região que deverá invocar os princípios que a favorecem, ao emitir o seu
parecer: é o órgão de soberania que deverá demonstrar que não existe, na solução
legislativa proposta, violação desses princípios.
É evidente que os órgãos de soberania deverão, naturalmente, respeitar os
princípios que exprimem a autonomia regional [artigo 6.º, 225.º, 227.º, 228.º e
288.º, alínea o)].
Mas o artigo 119.º, n.º 2, não se limita a especificar os princípios que os
órgãos de soberania devem respeitar ou ponderar: obriga-os a fundamentar a sua
proposta de âmbito nacional, perante os órgãos regionais, à luz dos princípios
de protecção da autonomia regional, como se eles não fossem uma parte do todo
nacional, mas antes um destinatário externo nele não integrado.
O regime da audição qualificada não se contém por aqui. Há mais aspectos a
considerar.
No caso de o parecer do órgão de governo próprio da Região ser desfavorável ou
de não-aceitação das alterações propostas pelo órgão de soberania em causa,
deve, nos termos do n.º 4 do artigo 119.º, constituir -se uma 'comissão
bilateral'.
Essa comissão bilateral deverá ser composta por um número igual de
representantes do órgão de soberania e do órgão de governo próprio e formular,
de comum acordo, uma proposta alternativa, no prazo de 30 dias (salvo acordo em
contrário quanto a este prazo).
Quer dizer, se a Região não emitir parecer favorável o procedimento deixa de ser
da audição conformada no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição e transforma-se
numa negociação.
Aqui, a relação constitucional de poderes desfigura-se: a Região não só será
ouvida, como poderá negociar e, eventualmente, impor a sua vontade, nomeadamente
quando o órgão de soberania, que seja no caso competente para decidir, possa
ter, a seu desfavor, a pressão do tempo de decisão.
É, aliás, o que caracteristicamente poderá suceder em matérias económicas e
financeiras.
Pode dizer-se que o órgão de soberania é livre, no final, de decidir como bem
entender (n.º 5 do artigo 119.º). Não poderia, aliás, deixar de ser assim. Mas a
verdade é que o órgão de soberania fica impedido de decidir nesse período de
tempo em que negoceia com a Região uma solução de âmbito nacional.
A norma contida no artigo 119.º, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma dos Açores é susceptível de subverter, totalmente, a lógica e o
fundamento do dever de audição, recortado no artigo 229.º, n.º 2, da
Constituição. Não se trata já de atender ao que o órgão regional diz a respeito
de actos normativos de alcance nacional, mas sim de negociar esses actos
normativos com a Região.
A ideia que ressalta, em tal situação, é a de que se está perante um processo de
co-decisão, com distorção, portanto, do sentido consagrado constitucionalmente
relativamente ao direito de audição no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição,
conduzindo, necessariamente, a que a Assembleia da República e o Governo fiquem
diminuídos da sua competência de dispor legislativamente sobre as matérias em
causa, a todo o tempo, cumprido que seja o dever genérico de audição e por esta
via a violar-se, também, a reserva de Constituição consagrada no art.º 110.º,
n.º 2, da Constituição.
O procedimento de negociação, durante 30 dias (salvo acordo de ambas as partes
em contrário), extravasa, claramente, o âmbito do dever de audição
constitucionalmente previsto no artigo 229.º, n.º 2.
Estando o n.º 2 e o n.º 4 do artigo 119.º do EPARAA em contradição com o sentido
do dever de audição estabelecido do artigo 229.º, n.º 2 da Constituição, resta
perguntar se poderão subsistir os restantes números do artigo 119.º. A resposta
é, porém, evidente: o n.º 1 delimita o âmbito material do dever de audição
qualificada que segue a tramitação dos n.ºs 2 e 4, o n.º 3 mais não faz do que
definir um prazo para a resposta da Região ao parecer que deveria ser emitido
nos termos do n.º 2 e o n.º 5 apenas se compreende à luz da solução
inconstitucional do n.º 4, com o qual literalmente se relaciona. Assim sendo, a
inconstitucionalidade dos n.ºs 2 e 4 terá de arrastar consigo a
inconstitucionalidade consequente dos n.ºs 1, 3 e 5.
Deste modo, impõe-se concluir pela inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, do artigo 119.º, n.º 1 a 5, do EPARAA, por violação dos
artigos 229.º, n.º 2, 110.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, da Constituição.
F) Limitação dos poderes de revisão do Estatuto às normas
estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às
matérias correlacionadas (artigo 140.º, n.º 2).
Relembre-se que o preceito estabelece que “os poderes de revisão do
Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias
sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias
correlacionadas”.
Ora, sobre a matéria dos Estatutos e leis eleitorais, dispõe o
artigo 226.º da Constituição:
1. Os projectos de estatutos político-administrativos e de leis
relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões
autónomas são elaborados por estas e enviados para discussão e aprovação à
Assembleia da República.
2. Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe
introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva Assembleia Legislativa para
apreciação e emissão de parecer.
3. Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à
discussão e deliberação final.
4. O regime previsto nos números anteriores é aplicável às
alterações dos estatutos político-administrativos e das leis relativas à eleição
dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Verifica-se, assim, que, apesar de caber à Assembleia da República,
no âmbito da sua competência política e legislativa, aprovar os estatutos
político-administrativos e as leis relativas à eleição dos deputados às
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, e respectivas alterações [art.º
161, alínea b), da Constituição], o certo é que o poder de impulso dessa
iniciativa legislativa não reside nela, mas nas Assembleias Legislativas das
regiões autónomas.
Resulta, todavia, dos n.ºs 2 e 3 do preceito constitucional que o
poder de discussão e aprovação dos estatutos e respectivas alterações não se
resume somente a um poder de concordância com os projectos elaborados pelas
Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Questão controvertida é a questão da existência dos limites à
revisão dos Estatutos por parte da Assembleia da República.
Abordando tal temática dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p.
847):
“a solução mais consentânea com o regime compartilhado de alteração dos
estatutos é a de que a AR não pode fazer alterações em áreas não envolvidas nas
propostas de alteração da assembleia regional. Contra isto pode argumentar-se
que isso constituiria uma limitação severa da liberdade legislativa e um
congelamento inadequado do estatuto. Mas, sendo certo que a AR não pode proceder
a nenhuma proposta de revisão sem iniciativa regional, não se compreenderia que
aproveitasse uma proposta de revisão de um aspecto menor para proceder a uma
revisão geral do estatuto contra a vontade da região; em segundo lugar, a AR
pode sempre condicionar a aprovação de uma revisão à proposta de revisão de
outras matérias; finalmente o estatuto pode sempre ser superado por via de
revisão constitucional”.
Num plano diametralmente oposto encontra-se a posição de Jorge Miranda
(Estatutos das Regiões Autónomas, págs. 799; Manual de Direito Constitucional,
Tomo III, 5.ª ed., pág. 306, nota 1):
'A Assembleia da República pode adoptar soluções diversas das preconizadas pelas
assembleias legislativas regionais; não tem apenas de aprovar ou rejeitar as
propostas estatutárias destas; pode aprovar propostas de alteração de iniciativa
(superveniente) de Deputados e grupos parlamentares.
E poderá tratar ex novo matérias não consideradas nas propostas de estatutos?
Designadamente, aditar novos preceitos ou fazer alterações aos estatutos em
vigor não constantes das propostas vindas das regiões?
Respondemos afirmativamente, por causa da rigidez e da restrição aos poderes do
parlamento − órgão com primado de competência legislativa − que envolveria a
posição contrária. De resto, perante quaisquer alterações introduzidas pela
Assembleia da República, as Assembleias legislativas regionais terão sempre
ainda a faculdade de se pronunciar [nos termos do artigo 226.º, n.º 2]'.
Num sentido parcialmente convergente defende Rui Medeiros (sub
Artigo 226.º, in Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Vol. III, Coimbra 2007, p. 289):
'Não se pode olvidar, por outro lado, que o princípio geral que vigora entre nós
é o de que as situações de iniciativa reservada a certos órgãos respeitam apenas
à iniciativa originária, pois o essencial se encontra nesta, a colaboração de
vários órgãos e sujeitos de acção parlamentar no aperfeiçoamento do texto
originário pode revelar-se muito útil e a própria ideia de racionalidade ligada
ao debate parlamentar justifica uma tal solução (consultar anotação ao artigo
167.º). Enfim, a própria referência do n.º 2 do artigo 226.º a propostas de
alteração tem, nos termos gerais, um sentido abrangente. Efectivamente, como
está bem evidenciado no artigo 142.º do Regimento da Assembleia da República, as
chamadas propostas de alteração podem ter a natureza, não apenas de propostas de
emenda (propostas que, conservando todo ou parte do texto em discussão,
restrinjam, ampliem ou modifiquem o seu sentido) e de eliminação (propostas que
se destinem a suprimir a disposição em discussão), mas também de propostas de
substituição (propostas que contenham disposição diversa daquela que tenha sido
apresentada) e de aditamento (propostas que, conservando o texto primitivo e o
seu sentido, contenham a adição de matéria nova)' (veja-se também, em sentido
análogo, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Estatuto Político Administrativo
da Região Autónoma dos Açores Anotado, Lisboa 1997, págs. 22-27)'.
O Autor acrescenta, porém, que esta posição não significa um poder
de revisão ilimitado:
'Não significa isto que a Assembleia da República possa desfigurar os projectos
de revisão dos estatutos político-administrativos enviados pelos parlamentos
regionais, introduzindo alterações substanciais nos projectos apresentados. Não
se trata, portanto, de sustentar que “a Assembleia da República goza de um poder
irrestrito de livre conformação do projecto de estatuto das Regiões Autónomas”
(cfr., criticamente, Lucas Pires / Paulo Castro Rangel, Autonomia e Soberania –
os poderes de conformação da Assembleia da República, pág. 417). Pelo contrário,
“pelo menos nas suas dimensões essenciais, a Assembleia da República não pode
introduzir alterações ao projecto de um estatuto manifestamente rejeitadas por
uma determinada região autónoma” [Gomes Canotilho, Os Estatutos, pág. 14; cfr.,
em sentido próximo, se bem que a propósito do poder de emenda dos Deputados à
proposta de orçamento apresentada pelo Governo, Tiago Duarte, A Lei por detrás
do Orçamento, Lisboa, 2004 (polic.), págs. 644 e segs.]. O que se contesta é que
um tal limite deva ser concretizado com base no critério puramente formal das
matérias objecto dos projectos elaborados pelos parlamentos regionais (cfr.,
para maiores desenvolvimentos, Rui Medeiros / Jorge Pereira da Silva, Estatuto,
págs. 20 e segs.)'.
Segundo esta posição, portanto, os deputados e grupos de deputados à
Assembleia da República seriam livres de introduzir alterações aos projectos de
revisão do estatuto apresentados, desde que não lhes introduzam alterações
substanciais.
Existem, assim, divergências sobre o limite dos poderes de revisão
dos Estatutos e das respectivas alterações por parte da Assembleia da República.
Ora, o preceito estatutário sobre exame veio conferir aos n.ºs 2 e 4
do artigo 226.º da Constituição o sentido de que os poderes de revisão do
Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias
sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias
correlacionadas.
Porém, tanto o âmbito das alterações dos estatutos
político-administrativos das regiões autónomas como os termos do procedimento em
que as mesmas devem desenvolver-se são os que se encontram vertidos nos n.ºs 2 a
4 do artigo 226.º da Lei Fundamental.
Ao dispor sobre o alcance e os termos em que o procedimento das
alterações estatutárias devem desenrolar-se, o preceito em causa acaba por
intrometer-se na delimitação ou definição dos poderes constitucionais da
intervenção da Assembleia da República sobre a matéria (art.º 110.º, n.º 2, da
Constituição).
Ora, o certo é que não pode uma norma de direito ordinário estatuir
o nível de rigidez de que a mesma norma se encontra revestida quando esse nível
de imperatividade decorra de uma norma de categoria superior, como a norma
constitucional.
Deste modo, o legislador ordinário está a usurpar poderes de
legislador constituinte.
O preceito viola, assim, o princípio da reserva de competência
constante das disposições conjugadas dos artigos 110.º, n.º 2, e 226.º, n.ºs 2 e
4, da Constituição.
III – Decisão
Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
A – Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral,
das seguintes normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos
Açores, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro:
1. Da norma constante do artigo 4.º, n.º 4, primeira parte, por violação
conjugada do disposto nos artigos 164.º, alínea s), e 11.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa;
2. Das normas constantes do artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), por violação
conjugada do disposto nos artigos 6.º, 7.º, 110.º, n.º 2, 225.º, n.º 3, e 227.º,
n.º 1, alínea u), da Constituição da República Portuguesa;
3. Das normas constantes dos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea
c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º, por violação do disposto
no artigo 23.º da Constituição da República Portuguesa;
4. Da norma constante do artigo 114.º, na parte relativa à dissolução da
Assembleia Legislativa, por violação conjugada do disposto nos artigos 133.º,
alínea j), e 110.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
5. Da norma constante do artigo 119.º, n.ºs 1 a 5, por violação conjugada do
disposto nos artigos 110.º, n.º 2, 229.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, da Constituição
da República Portuguesa;
6. Da norma constante do artigo 140.º, n.º 2, por violação conjugada do disposto
nos artigos 110.º, n.º 2, e 226.º, n.ºs 2 e 4, da Constituição da República
Portuguesa.
B – Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 34.º,
alínea m), e 124.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 2/2009, de
12 de Janeiro.
Lisboa, 30 de Julho de 2009
Benjamim Rodrigues
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Vitor Gomes
Carlos Pamplona de Oliveira. Vencido em parte, conforme declaração.
Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à declaração de
inconstitucionalidade da norma do artigo 140, n.º 2 do EPARAA, pelas razões
constantes da declaração de voto junta)
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, quanto à alínea A) 6 da decisão, conforme
declaração anexa)
Maria Lúcia Amaral (vencida em parte, conforme declaração de voto junta)
João Cura Mariano (vencido quanto ao ponto A1 da decisão, conforma declaração
anexa)
Maria João Antunes (vencida em parte, nos termos da declaração junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro Carlos Cadilha que não assina por
não estar presente.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido na parte em que a decisão se pronuncia pela inconstitucionalidade
das normas ínsitas no n.º 4 do artigo 4º e no n.º 2 do artigo 140º do Estatuto
dos Açores aprovado pela Lei n.º 2/2009 de 12 de Janeiro (EPARAA).
Quanto à primeira questão, entendo que os estatutos regionais são os diplomas
constitucionalmente vocacionados para conterem a disciplina das matérias do tipo
da que está em causa. Na verdade, o regime político-administrativo de cada uma
das Regiões que deriva – nos termos do artigo 225º n.º 1 CR – das
características geográficas, económicas, sociais e culturais próprias, deve
naturalmente condensar-se no estatuto de cada Região, salvo quanto às matérias
que a Constituição expressamente ressalva. Assim, os regimes autonómicos são
moldados, em primeiro lugar, pelas regras uniformes decorrentes do texto
constitucional e, depois, pelas normas específicas de cada estatuto. Aprovados
necessariamente por lei da Assembleia da República – artigo 226º n.ºs 3 e 4 CR –
e por maioria qualificada quanto às disposições que enunciam as matérias que
integram os poderes legislativos regionais – artigo 168º n.º 6 alínea f) CR –,
os estatutos podem, em princípio, com a já referida ressalva, conter normas
sobre todas as matérias da competência deste órgão de soberania, ainda que
exclusiva, desde que concernentes ao regime autonómico da Região a que
respeitem. A norma em causa, segundo a qual «a bandeira da Região é hasteada nas
instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de
governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias
locais dos Açores», trata de matéria que cabe na competência da Assembleia da
República, não está constitucionalmente subtraída ao estatuto, e reporta-se ao
regime político-administrativo dos Açores; não é, em meu entender, formalmente
inconstitucional.
No referido artigo 226º, a Constituição impõe uma forma especial de aprovação
das leis estatutárias, submetida à reserva de iniciativa das assembleias
legislativas regionais; a norma ínsita no n.º 2 do artigo 140º do EPARAA, ora em
análise, limita-se a reafirmar este princípio, razão pela qual também não é, em
meu entender, constitucionalmente desconforme.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão de declaração de
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto
Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei n.º
39/80, de 5 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro
(doravante, EPARAA), segundo a qual “Os poderes de revisão do Estatuto pela
Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais
incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas”.
Interessará começar por esclarecer que, contrariamente
ao aludido na correspondente parte do pedido do requerente, a norma em causa
tem apenas por objecto as “normas estatutárias” em sentido próprio, isto é, as
normas que sejam formal e materialmente estatutárias. Relativamente a normas
que, apesar de formalmente inseridas no Estatuto, não revestem a natureza de
normas estatutárias, continua a valer o entendimento, desde sempre acolhido por
este Tribunal, da “irrelevância” dessa inserção, mantendo a Assembleia da
República inteira liberdade para alterar ou revogar tais normas, designadamente
através de “lei comum”, sem dependência de prévia iniciativa da assembleia
legislativa regional.
Relativamente às normas estatutárias em sentido próprio,
tem sido discutida, na doutrina e na praxe legislativa, a existência de limites
à capacidade de decisão da Assembleia da República no quadro do procedimento de
revisão dos estatutos regionais, limites esses que se podem situar em dois
níveis: quanto ao âmbito ou objecto da intervenção da Assembleia da República e
quanto ao conteúdo ou sentido dessa intervenção. Isto é: questiona‑se quer a
possibilidade de a Assembleia da República introduzir alterações em preceitos
não incluídos no projecto de revisão, quer a possibilidade de, cingindo‑se a
esse objecto, vir a consagrar soluções que materialmente “desfigurem” o sentido
desse projecto.
No presente caso, está apenas em causa aquele primeiro
nível. A norma questionada visa tão‑só a delimitar o âmbito ou objecto da
intervenção possível da Assembleia da República, não pretendendo estabelecer
quaisquer constrangimentos quanto ao sentido ou conteúdo dessa intervenção.
A opção tomada corresponde à seguida no relatório da
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre as
alterações propostas ao decreto de revisão do EPARAA, relatado pelo Deputado
Almeida Santos (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 31, de 16 de
Janeiro de 1987, págs. 1280 e seguintes), onde se consignou:
“Tem sido aceite sem oposição a interpretação do artigo 228.º da
Constituição, segundo a qual a reserva de iniciativa das assembleias regionais
quanto aos estatutos da respectiva região se estende às alterações dos mesmos
estatutos, não podendo a Assembleia da República alterar, por seu turno,
dispositivos não abrangidos por aquela iniciativa.
A Comissão debateu o que deve entender‑se por unidade legislativa
sujeita a proposta de alteração (se cada artigo, se os respectivos números, se
as correspondentes alíneas), tendo‑se esboçado um entendimento em torno de que é
o artigo a unidade a considerar, sem se ter desenhado a necessidade de uma
tomada de posição a este respeito.”
E é posição que, na doutrina, tem sido defendida,
designadamente, por J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pp. 774‑778), J. J. Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição,
Coimbra, 1993, p. 847: “a solução mais consentânea com o regime comparticipado
de alteração dos estatutos é a de que a AR não pode fazer alterações em áreas
não envolvidas nas propostas de alteração da assembleia regional”); Francisco
Lucas Pires e Paulo Castro Rangel, “Autonomia e Soberania (Os poderes de
conformação da Assembleia da República na aprovação dos projectos de estatutos
das Regiões Autónomas”, em Juris et de Jure – Nos vinte anos da Faculdade de
Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Porto, 1998, pp. 411‑434:
“A Assembleia da República (…) não [pode], portanto, aditar novos preceitos ou
introduzir alterações em preceitos cuja modificação não tenha sido proposta
pela Assembleia Legislativa Regional, de acordo, aliás, com o n.º 4 do artigo
226.”; e Carlos Blanco de Morais, A Autonomia Legislativa Regional, Lisboa,
1993, p. 215: “Entendemos que a Assembleia da República não poderá
inovatoriamente alterar matérias do estatuto originário, não insertas no
projecto de revisão”.
Do exposto resulta que as normas constitucionais
pertinentes – n.ºs 2 e 4 do artigo 226.º – permitem o entendimento que veio a
ser consagrado na norma estatutária ora questionada, ao que acresce que o mesma
se apresenta como o mais conforme ao espírito que rege o regime constitucional
de aprovação e revisão dos estatutos regionais, que consagra um procedimento
concertado, que parte do reconhecimento de que “o direito à elaboração dos
estatutos e o direito de alteração dos estatutos são uma dimensão nuclear da
autonomia regional” (J. J. Gomes Canotilho, obra citada, p. 776). Rege nesta
matéria um princípio de cooperação dos órgãos de soberania e dos órgãos
regionais, sendo no quadro deste “espírito constitucional” que se deve
interpretar tal cooperação, referindo Francisco Lucas Pires e Paulo Castro
Rangel (local citado, p. 423): “O modelo da Constituição da República Portuguesa
é, por conseguinte, o modelo de um procedimento concertado – em linguagem de
direito comunitário não se lhe poderia decerto chamar «procedimento de
codecisão», mas poder‑se‑ia nomeá‑lo, sem forçar, como «procedimento de
cooperação». O que se pretende, numa palavra, é que cada órgão actue, pelo
menos, numa medida «suportável», «aceitável», «sustentável» para o outro”.
Ora, afigura‑se que a solução consagrada na norma ora
questionada, para além de ser compatível com a formulação constitucional, surge
como sendo a que melhor se adequa ao apontado “princípio da cooperação” em
matéria estatutária regional. Representaria, na verdade, um desrespeito desse
princípio, se, por exemplo, perante um projecto de revisão estatutária que se
limitasse, a propor alterações ao artigo relativo aos símbolos regionais, a
Assembleia da República aproveitasse o ensejo e introduzisse profundas
alterações noutros capítulos estatutários, de todo estranhos ao objecto do
projecto de revisão, como, por exemplo, procedendo a uma redução drástica da
enumeração das matérias de interesse regional. Em tal hipótese, não seria
lícito sustentar que fora respeitado, em termos materiais, a regra
constitucional que atribui às assembleias legislativas regionais o exclusivo do
poder de iniciativa da revisão estatutária.
Nem se diga que, dessa forma, se exaspera a chamada
“rigidez estatutária”. Esta “rigidez” resultou directa e exclusivamente de uma
opção do legislador constitucional, ao atribuir em exclusivo às assembleias
legislativas regionais o poder de iniciativa em matéria de aprovação e revisão
dos estatutos. Tal “rigidez” atingirá o seu grau máximo perante persistentes
atitudes de completa inércia de iniciativa regional. Nesta perspectiva, a
solução consagrada na norma agora em causa até pode contribuir, em termos
práticos, para a atenuação dessa rigidez, uma vez que não é de afastar que a
inibição, por parte das assembleias legislativas regionais, de apresentação de
projectos de revisão seja condicionada pelo temor de, a entender‑se consagrado
um poder ilimitado da Assembleia da República de alterar qualquer parte do
estatuto, correr o risco de, face a um projecto de revisão bem delimitado, serem
introduzidas, sem iniciativa da Região, alterações profundas e tidas por
regressivas da autonomia regional.
Refira‑se, por último, que a norma questionada não
representa qualquer “usurpação do poder constituinte”. A regulação do
procedimento legislativo de aprovação e revisão dos estatutos regionais não
consta de forma esgotante do texto constitucional, nenhum obstáculo havendo a
que seja igualmente desenvolvida nos estatutos regionais (desde que, obviamente,
em termos compatíveis com as regras constitucionalmente consagradas, mas então a
eventual desconformidade acarretaria inconstitucionalidade material, que não
“usurpação” pelos estatutos da competência do legislador constitucional).
Aliás, no recente Acórdão n.º 402/2008, em processo de fiscalização preventiva
do Decreto n.º 217/X, relativo à 3.ª revisão do EPARAA, este Tribunal considerou
admissível a inserção no Estatuto de regras relativas ao procedimento
legislativo de revisão estatutária, não se tendo pronunciado pela
inconstitucionalidade da regra do n.º 3 do artigo 47.º desse Decreto, que exigia
maioria qualificada para a aprovação dos projectos de estatuto.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da decisão, quanto ao ponto A-6, por considerar que o poder da
Assembleia da República de introduzir alterações nos projectos de revisão dos
estatutos elaborados pelas Assembleias Legislativas regionais (artigo 226.º, nºs
2 e 4, da CRP) se cinge às matérias sobre que tenha incidido a iniciativa destes
órgãos. Às Assembleias Legislativas das regiões autónomas não cabe apenas um
genérico poder de impulso que, uma vez exercido, ponha nas mãos da Assembleia da
República o poder de decidir sobre quaisquer matérias estatutárias, comportando
o poder de introduzir matéria nova, não contemplada no projecto recebido. O
poder de iniciativa daqueles órgãos regionais não se exerce no vácuo, tem como
referente objectivo cada uma das normas projectadas, a elas e só a elas abrange,
pelo que é de lhe atribuir valência delimitativa do âmbito material da decisão
da Assembleia da República.
Só esta interpretação está de acordo com o modelo constitucional de concertação
e de confluência de vontades entre os órgãos legiferantes regionais e o
nacional, em matéria de criação e de revisão dos Estatutos. Esse modelo é o de
uma competência partilhada, em que aos primeiros cabe a iniciativa e ao segundo
o poder decisório sobre a solução definitiva. Ora, se este poder estivesse
legitimado a incidir sobre as áreas não cobertas pelo projecto de alteração, as
normas que resultassem do seu exercício não teriam na sua base uma iniciativa
prévia da Assembleia Legislativa regional sobre os pontos que elas regulam, o
que contraria o balanceamento de poderes constitucionalmente traçado.
É claro que este regime de condicionamento recíproco dos poderes de normação
estatutária, com incidência, cada um deles, em distintas fases do iter
legislativo, dota os estatutos regionais de uma acentuado grau de rigidez,
trazendo consigo um risco forte de bloqueamento dos processos de revisão, por
mais aconselháveis que eles se possam afigurar. Mas, contrariamente ao afirmado
no acórdão, essa rigidez não é “superior à prevista na Lei Fundamental”,
correspondendo antes ao inevitável efeito reflexo do que por esta foi
intencionado. Em matéria tão delicada, de definição da “competência das
competências”, foi esse o meio encontrado de achar um ponto de equilíbrio entre
os poderes regionais e o da República. Uma outra opção, de total desvinculação
da Assembleia da República do objecto do projecto regional de revisão, importa a
intervenção do legislador constituinte.
De resto, pode duvidar-se de que a interpretação que fez vencimento contribua
para contrariar aquele bloqueamento. Pois não é ousado supor que o receio de um
aproveitamento, em sentido indesejado, de uma iniciativa de revisão desincentive
a Assembleia Regional de desencadear um procedimento de alteração. E, sem
iniciativa deste órgão, não há revisão.
Pelo exposto, ter-me-ia pronunciado pela constitucionalidade do artigo 140.º,
n.º 2, dos Estatutos da Região Autónoma dos Açores, na versão que lhe foi dada
pela Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro – norma formulada, aliás, em termos
abertos, com margem de flexibilidade aplicativa, na medida em que reconhece o
poder da Assembleia da República em adicionar novos preceitos em “matérias
correlacionadas” com as versadas no projecto regional.
Pode dizer-se, num outro plano, que, por fundada que seja esta interpretação do
disposto na Constituição, não cabe aos Estatutos afirmá-la. Mas o Tribunal
sempre tem entendido que preceitos infraconstitucionais repetitivos do que a
Constituição consagra não estão, por isso, feridos de inconstitucionalidade.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida quanto ao ponto 3 da decisão (declaração de
inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 7º, nº 1, alínea o),
47º, nº 4, alínea c), 67º, alínea d), 101º, nº 1, alínea n) e 130º dos
Estatutos: provedores sectoriais regionais) e quanto ao seu ponto 6 (declaração
de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 140º, nº 2: procedimento
de alteração dos estatutos), pelas razões seguintes.
2. O Tribunal entendeu que eram inconstitucionais as normas estatuárias que
previam a possibilidade de criação, por decreto legislativo regional, de
provedores sectoriais apenas para a região. Fê-lo com um único fundamento:
violação do artigo 23º da Constituição. Quer isto dizer que entendeu como
determinante para o juízo de inconstitucionalidade não a dimensão regional da
questão (não o facto de a previsão ser constante de norma estatutária) mas a sua
dimensão institucional-nacional, ou seja, o facto de o artigo 23º da
Constituição consagrar um Provedor único, para todo o território nacional, e
plurifuncional, ou com competências para a defesa não jurisdicional dos direitos
das pessoas sem acepção de matérias. Concordo inteiramente com o juízo do
Tribunal nesta parte. Não sendo a figura dos chamados “provedores sectoriais”
constitucionalmente proibida, nenhuma razão haveria para entender que os
estatutos não poderiam prever a sua criação só para a região, através de decreto
legislativo regional. O nó górdio do problema reside assim (tal como o entendeu
o Tribunal) na questão de saber se é inconstitucional a criação por acto
legislativo, qualquer que ele seja, de um “provedor” que seja “sectorial”. O
Tribunal entendeu que o era; foi desse julgamento que dissenti.
É certo que o artigo 23º da Constituição consagra, como órgão constitucional, um
Provedor de Justiça que é simultaneamente único e plurifuncional: as suas
competências de defesa não jurisdicional dos direitos das pessoas valem para
todo o território nacional, sendo os actos e omissões da Administração regional,
local ou estadual o “terreno privilegiado” da sua expressão, sem acepção de
matérias ou sem consideração dos bens substanciais tutelados pelo direitos a
defender. Por isso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, p. 172) é o Provedor de Justiça, nos
termos do artigo 23º, um provedor plurifuncional: provedor médico, provedor
militar, provedor do ensino ou provedor do ambiente.
Sendo tudo isto certo, creio no entanto que fica por demonstrar que seja
inconstitucional a criação – desde logo pelo legislador ordinário, qualquer que
ele seja - de provedores sectoriais.
Não o é, seguramente, por força do princípio formal-competencial de reserva de
constituição. O Provedor de Justiça a que se refere o artigo 23º da CRP foi
primeiro instituído por lei ordinária, e só depois (logo com a primeira versão
da CRP) recebido pela Constituição ou constitucionalizado. Tanto basta para
demonstrar que não estamos aqui perante “matérias” que sejam, pela sua própria
natureza ou por expressa imposição constitucional, reservadas à esfera de
normação própria do poder constituinte, com exclusão de qualquer intervenção
conformadora por parte do legislador ordinário. O facto de a Constituição
portuguesa, ao contrário de muitas outras, ter escolhido atribuir à instituição
do Provedor valor e dignidade constitucional, terá seguramente consequências
quanto à vinculação do poder legislativo; contudo, tais consequências
inserir-se-ão no âmbito do princípio substancial do primado da Constituição, e
não no âmbito do princípio formal-competencial da reserva de poder constituinte.
Assim, o essencial da argumentação deve encontrar‑se no ponto que segue.
Desta opção da CRP, de conferir valor e dignidade constitucional à instituição
“Provedor de Justiça”, decorrem vínculos seguros para o legislador ordinário.
Desde logo, e negativamente, é-lhe vedada a eliminação da instituição; depois, e
positivamente, é-lhe imposto um dever de conformação [da mesma instituição] em
harmonia com os fins e funções que constitucionalmente lhe são atribuídos. Ao
julgar como julgou, o Tribunal partiu do princípio segundo o qual a proibição da
existência de provedores sectoriais se incluiria no âmbito deste dever do
legislador de conformar a instituição “Provedor de Justiça” em harmonia com as
funções que lhe são constitucionalmente conferidas. A meu ver, porém, ficou por
demonstrar a necessária inclusão de uma coisa na outra. Como creio que a
interpretação da Constituição se não faz pela leitura isolada dos seus preceitos
– visto que nenhuma constituição se confunde com um “simples corpo articulado de
preceitos escritos” – penso que a demonstração, a poder ser feita, requereria
argumentos sistémicos fortes, que não vejam onde possam ser encontrados: nem na
“unidade de sentido dos direitos fundamentais”, razão maior para a existência,
constitucionalmente tutelada, do Provedor de Justiça, nem no tipo de
competências, não decisórias, que lhe são atribuídas, encontro tais argumentos.
Não se discute que a criação de provedores sectoriais poderá corresponder a uma
má política legislativa: como é evidente, as magistraturas de influência serão
tanto menos influentes quanto mais plurais forem. Também se não discute que, no
limite, a má política legislativa possa redundar na emissão de normas
inconstitucionais lesivas – i.a. – de um dever de boa administração. Contudo, o
que creio é que este último juízo, a fazer‑se, só poderá fundar‑se no exame da
instituição em concreto, de cada “Provedor Sectorial”. A condenação em bloco da
existência da figura, com fundamento em inconstitucionalidade, é que me parece
infundada.
3. Dissenti também do juízo que foi formulado a propósito da norma estatuária
referente ao procedimento a seguir quanto à alteração do próprio estatuto
(artigo 140º, nº 2). A questão que aqui se coloca é a de saber se há algum
espaço para a conformação do iter procedimental a seguir sempre que estiver em
causa a alteração do Estatuto Político‑Administrativo da região. Entre o poder
de impulso que, nos termos constitucionais, pertence em exclusivo à Assembleia
Legislativa da região, e o poder de deliberação que, nos mesmos termos, pertence
à Assembleia da República, existe espaço para uma ulterior regulação do
procedimento, nomeadamente quanto à competência para o agendamento das matérias
objecto da alteração? Em bom rigor, a pergunta subdivide-se em três questões
distintas: primeira, a questão de saber se a Constituição responde, ela própria,
ao problema; segunda, a questão de saber se pode o mesmo ser respondido pelas
normas estatutárias; terceira, a questão de saber se o modo como a norma contida
no nº 2 do artigo 140º, agora em juízo, a ele respondeu, ultrapassa, ou não, os
limites constitucionais que lhe são aplicáveis.
O Tribunal resolveu todas estas questões entendendo o seguinte:
(i) a Constituição responde, ela própria, a este problema; (ii) de qualquer
modo, nunca os Estatutos poderiam versar sobre a matéria (qualquer que fosse a
solução neles contida) porque é ela reservada à decisão constituinte.
Não creio que a Constituição tenha dado resposta ao problema. O que aparece
recortado no texto constitucional, com clareza, é que pertence só às regiões o
poder de iniciar o procedimento tendente à alteração dos estatutos; e que
pertence só à Assembleia da República a competência para sobre elas deliberar.
Entre o poder de impulso e o poder de deliberação existe, pois, um espaço para a
conformação ulterior do procedimento tendente à aprovação, pelo Parlamento, das
alterações estatutárias. É para mim natural que esse espaço venha a ser
preenchido pelas próprias normas estatutárias. Sendo os Estatutos
Político‑Administrativos das regiões precisamente aquilo que são – a norma
básica da região, que, no quadro dos limites constitucionais, concretiza e
organiza as regras fundamentais da autonomia – parece-me que pertencerá
naturalmente ao seu âmbito a concretização e a organização das regras de
procedimento relativas à alteração das suas próprias normas.
Se – diversamente do que foi o juízo maioritário do Tribunal – se partir do
princípio segundo o qual a Constituição, não respondendo ela própria ao
problema, deixa algum espaço para a conformação ulterior do iter procedimental,
nem outra conclusão se afigura possível: as normas estatutárias poderão ser o
lugar adequado para o preenchimento deste espaço.
No caso, determinava o nº 2 do artigo 140º do EPARAA que pertencesse à região,
não apenas o poder de impulso do procedimento legislativo nacional tendente à
aprovação das alterações das normas estatutárias, mas também o poder de
agendamento das matérias objecto de alteração. Não me parece que esta
conformação ulterior do procedimento legislativo ultrapassasse quaisquer limites
constitucionais. Pois que entendi que, não respondendo a Constituição ao
problema, deixava ela própria algum espaço para a solução ulterior dele,
seguramente que não considero – como considerou o Tribunal – que tenham sido
atingidos os limites decorrentes do nº 2 do artigo 110º e dos nºs 2 e 4 do
artigo 226º; mas também não vejo que outros limites constitucionais possam ter
sido lesados.
No modo de feitura dos Estatutos Político-Legislativos (e no modo de feitura das
suas alterações) exprime-se o princípio da cooperação entre órgãos de soberania
e órgãos da região (artigo 229º). É esse princípio que explica que, neste
procedimento legislativo atípico, a iniciativa legislativa esteja reservada a um
ente exterior ao Parlamento (o único caso paralelo em que tal acontece é o da
elaboração da lei do orçamento). Não me parece que seja consentânea com a razão
de ser desta reserva a sua redução a um esquálido impulso procedimental, sem
quaisquer consequências na fase ulterior do procedimento; e parece-me, pelo
contrário, que se inscreve ainda no seu âmago a possibilidade de agendamento,
por parte do titular do poder de inciativa legislativa, das matérias objecto de
alteração. Não vejo em que tal possa afectar as competências deliberativas da
Assembleia da República, atento precisamente o disposto no nº 2 e 4 do artigo
226º (poder de rejeição e poder de alteração por parte da AR).
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido a declaração de inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 4, do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que prevê a
utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de
soberania que estejam situadas naquela Região, por entender que essa previsão se
encontra abrangida pela reserva estatutária.
Assumindo os Estatutos a forma de lei estruturante da organização e
funcionamento das colectividades regionais, num papel complementar em relação à
Constituição, devem incluir a definição e protecção dos símbolos da região
(vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em “Constituição da
República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 291, da ed. de 2007, da Coimbra
Editora, e RUI MEDEIROS, TIAGO FREITAS e RUI LANCEIRO, em “Enquadramento da
reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, pág.
179-180, da ed. pol. de Dezembro de 2006), aí estando definidas as regras
essenciais da sua utilização.
Se é certo que a imposição do hasteamento da bandeira regional nas instalações
dependentes dos órgãos de soberania situadas na região interfere com a
apresentação e gestão destas, encontrando-se essas instalações em território da
região, os Estatutos Político-Administrativos são o diploma legislativo adequado
para contemplar tal matéria, na lógica duma autonomia cooperativa (vide, neste
sentido, RUI MEDEIROS, TIAGO FREITAS e RUI LANCEIRO, na ob. cit., pág. 181).
A circunstância de nessas instalações ser também hasteada a bandeira nacional,
tal como é hasteada nas instalações onde funcionam serviços da administração
das regiões autónomas, nos termos impostos pelo artigo 4.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 150/87, de 30 de Março, não é impeditivo que seja o Estatuto a
determinar que nessas instalações seja também hasteada a bandeira regional.
Na verdade, se o regime dos símbolos nacionais deve ser definido por lei da
Assembleia da República (artigo 164.º, s), da C.R.P.), nessa reserva de regime
não se inclui a admissão da utilização da bandeira regional, nos mesmos
edifícios onde é hasteada a bandeira nacional.
Ao incluir-se essa matéria no regime dos símbolos nacionais, com o argumento de
que lhe compete escolher a “companhia” para a bandeira nacional, já não se
estaria a regular a utilização dos símbolos nacionais, mas sim a utilização da
bandeira regional.
Se deve ser o regime dos símbolos nacionais a definir os termos como deve ser
compatibilizada a utilização nas mesmas instalações da bandeira nacional com
outras bandeiras, nomeadamente as regionais, como faz o artigo 8.º, do
Decreto-Lei n.º 150/87, de 30 de Março, não pode ser subtraído aos Estatutos o
poder de admitir o hasteamento da bandeira regional nas instalações situadas na
região, mesmo naquelas onde deva ser hasteada a bandeira nacional.
É o regime dos símbolos regionais que está em causa, o qual está incluído na
reserva estatutária, pelo que o artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, no meu entendimento, não
é inconstitucional.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da não inconstitucionalidade das normas constantes do artigo
4º, nº 4, primeira parte, e 140º, nº 2, do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma dos Açores.
1. Não acompanho a fundamentação do presente acórdão, por entender que a norma
constante do artigo 4º, nº 4, primeira parte, se limita a regular a utilização
de um símbolo regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na
Região.
Ainda que a regra de utilização da bandeira regional em questão contenda com
regras de utilização da Bandeira Nacional, sendo matéria da exclusiva
competência da Assembleia da República o regime dos símbolos nacionais (artigo
164º, alínea s), da Constituição), tal regra consta de lei deste órgão de
soberania (Lei nº 2/2009, de 12 de Janeiro, que aprova a terceira revisão do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores).
2. Relativamente ao artigo 140º, nº 2, votei vencida, pelas razões constantes da
declaração de voto do Senhor Conselheiro Mário Torres.
Maria João Antunes