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Processo n.º 662/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I ? Relatório
1. A., inconformado com a decisão sumária proferida a 7 de Setembro de 2009, vem
dela reclamar dizendo o seguinte:
?Da referida decisão sumária entende-se que o recurso não deverá ser admitido,
dado que o recorrente não terá preenchido um dos pressupostos processuais, não
tendo explicitado, clara e devidamente, o sentido em que o Tribunal da Relação
deveria ter interpretado as normas do Código de Processo Penal que diz terem
sido violadas, e de que forma essa interpretação, a ter ocorrido, impediria a
violação de princípios constitucionais.
O ora reclamante colocou duas questões ao Tribunal da Relação de Lisboa:
É nula a busca efectuada e respectiva apreensão realizada na habitação, já que,
o visado não poderia ter autorizado uma busca a uma residência que não era sua,
da qual não tinha disponibilidade, sendo este á data menor de 21 anos e tendo
dado o seu consentimento, o qual foi prestado sem a assistência de defensor?
II)
Deveria ter sido considerada como incidentes e respectivamente tributados, o
esclarecimento solicitado ao arguido, em sede de primeiro interrogatório de
arguido detido, e subsequente pedido de aclaração sobre o despacho que sobre
este recaiu?
QUANTO Á PRIMEIRA QUESTÃO:
O Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu que esta é uma situação em que podia e
devia ter sido realizada uma busca domiciliária, já que, existiam indícios de
que a mencionada pessoa aí guardava objectos relacionados com o crime e que
podiam servir de prova.
Tal busca, podia ser efectuada por órgão de polícia criminal porque o visado
tinha disponibilidade do local e deu o seu consentimento, o qual se mostrava
documentado.
Ao facto de o visado não deter a qualidade de arguido e de a busca não ser
considerada um acto processual em sentido estrito mas sim um acto de inquérito,
não lhe devem ser aplicadas as normas que visam a protecção dos arguidos,
particularmente débeis, nomeadamente aquela que exige a assistência de defensor
à prática de certos actos processuais.
Pelo que, ao não estar em causa qualquer noção de propriedade, domínio ou
titularidade do domicílio, mas sim o de privacidade, direito de personalidade
que apenas cabe ao próprio exercer, não houve incorrecta interpretação das
normas constantes no n° 5 do art° 58.º, alínea c) do n°1 do art° 64.º, n°1 e 2
do art° 174.º, n° 1, alínea b) do n°2 e n°3 do art° 177°, todos do Código do
Processo Penal, não tendo, por tal motivo, sido violados os princípios
constitucionais que proíbem a abusiva intromissão na vida privada e no domicílio,
consagrados no art° 26°, n°8 do art°32° e n°s 1, 2, 3, e 4 do art° 34° da
Constituição da República Portuguesa.
O reclamante não pode concordar com a referida interpretação, já que, o visado
não poderia ter autorizado uma busca a uma residência que não era sua, da qual
não tinha disponibilidade, na altura era menor de 21 anos e deu o seu
consentimento, o qual foi prestado sem a assistência de defensor oficioso.
Como é do conhecimento de Vossas Excelências, (...) de acordo com o n° 2 do
artigo 174° do Código de Processo Penal, uma busca apenas pode e deve ser
realizada quando houver indícios de que objectos relacionados com um crime ou
que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente
acessível ao público.
As buscas são, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade
judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no n.° 5 dessa
mesma disposição legal, ser efectuadas por órgão de polícia criminal sem a
mencionada ordem ou autorização.
Tratando-se de uma busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada a
competência para a ordenar ou autorizar esse acto pertence ao juiz (artigo 177°,
n.° 1), sem prejuízo de, em determinados casos, ele poder também ser ordenado
pelo Ministério Público ou efectuado por órgão de polícia criminal (n.° 3 desse
mesmo preceito).
Tal acontece, nomeadamente, quando «os visados consintam, desde que o
consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado» [alínea b) do n.°
5 do artigo 174° e n.° 3 do artigo 177° do Código de Processo Penal.
Mesmo que o visado pela busca não tenha ainda a qualidade de arguido, devem ser-lhe
aplicadas as normas que visam a protecção dos arguidos particularmente débeis,
nomeadamente aquela que exige a assistência de defensor à prática de certos
actos processuais [artigo 64°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal],
uma vez que dessa busca pode resultar a sua responsabilização criminal.
Se o visado pela busca for o arguido, o consentimento só pode ser prestado com a
assistência do defensor sempre que ele, nomeadamente, for analfabeto ou menor de
21 anos ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua
imputabilidade diminuída (artigo 64°)?. ? In Acórdão n° 6945/2008 - 3 de 22 de
Fevereiro de 2008 do Tribunal da Relação de Lisboa.
(....) As proibições de prova representam meios processuais de imposição da
tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que
têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva as
proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do
direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade
social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais».
As regras de proibição de prova constitucionalmente definidas ou concretizadas
pelo legislador ordinário na legislação processual penal, mormente o CPP,
servindo a tutela dos direitos fundamentais, dirigem-se em primeira mão às
instâncias formais de controle, designadamente aos investigadores, ministério
público e juiz de instrução.
Ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada
sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.°/3 do CPP indica o dever
dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que,
excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins
constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam
restrições aos direitos fundamentais (...)?. ? In Acórdão n°10210/2008 - 8 de 28
de Maio de 2009 do Tribunal da Relação de Lisboa.
Pelo exposto, o Tribunal da Relação de Lisboa, deveria considerar que o visado,
ora reclamante, menor de 21 anos, não poderia ter autorizado uma busca a uma
residência que não era sua e da qual não tinha disponibilidade e dar o seu
consentimento sem a assistência de defensor.
Desta forma, tendo a busca e respectiva apreensão sido efectuadas da forma
processual referida, está colocado, em crise, o direito de personalidade do
visado e violado o direito à liberdade da pessoa, dado que, o consentimento é
uma das condições ?sine qua non? da possibilidade de entrada no domicilio dos
cidadãos, fora dos casos de mandado judicial.
Não podendo aquele consentimento ser considerado válido, deu-se uma incorrecta
interpretação das normas constantes no n° 5 do art° 58°, alínea f) do art° 61°,
alínea c) do n°1 do art° 64°, alínea c) do art° 119°, n° 1 e alínea c) do n° 3
do art° 120.º, n°1 do art° 122°, alínea c) do n°3 do art° 126°, n° 6 do art° 141°,
n° 2 e alínea b) do n° 5 do art° 174°, n° 1, alínea b) do n°2 e n°3 do art° 177°,
todos do Código do Processo Penal, tendo, por tal motivo, sido violados os
princípios constitucionais que proíbem a abusiva intromissão na vida privada e
no domicílio, consagrados no n°1 do art° 26°, n°8 do art°32° e nos n.ºs 1, 2, 3,
e 4 do art° 34° da Constituição da República Portuguesa.
II) QUANTO À SEGUNDA QUESTÃO:
O Tribunal da Relação de Lisboa, refere que... ?a pergunta realizada ao arguido
é deslocada em relação ao objecto passível de esclarecimento pelo arguido, já
que, a pretender prestar declarações, deverá pronunciar-se sobre os factos que
contra si se mostrem indiciados e não sobre aspectos intencionais que a sua
Ilustre Mandatária teria em vista requerer.
Tendo sido proferido despacho a indeferir a colocação da pergunta e não sendo
aquele susceptível de recurso, a ?aclaração? para mais nos termos em que foi
feita, não deixa de constituir uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal
do processo e como tal tributável nos termos do art° 84° do Cód. das Custas
Judiciais.
Diversamente, o arguir das nulidades é direito que expressamente assiste ao
Defensor aquando da realização do primeiro interrogatório.
Se se vir a condenação depois proferida a essa luz (anormalidade na tramitação),
então a mesma não se poderá manter. Mas não é essa perspectiva que extraímos:
quanto a nós tal condição não resulta dessa circunstância, mas do decaimento em
si mesmo da invocação e pretensão formulada, em função do art°513, n°1 do Cód,
Proc. Penal?.
O ora reclamante entende que ao solicitar aquele esclarecimento pretendia que no
seu auto de interrogatório constasse, de alguma forma factualizada, os termos,
circunstancias e modo como foram realizadas a busca, a apreensão e o seu
reconhecimento, afim de, poder no final do seu interrogatório requerer a
nulidade da busca e do reconhecimento colocando, em crise, com tais
esclarecimentos, os meios de prova obtidos, nomeadamente a legalidade da busca,
apreensão e reconhecimento realizados.
Pelo que, não poderá ser considerada uma ocorrência anormal ao desenvolvimento
do processo o facto de se pretender que conste do respectivo auto de
interrogatório tais termos, circunstâncias e modo supra referidos, mediante
declarações proferidas pelo arguido, o qual é também sujeito de prova.
O objecto do primeiro interrogatório não é só a averiguação dos indícios que
pendem contra o arguido e a análise dos meios de prova recolhidos, é também o
controle jurisdicional sobre a forma e modo como os mesmos foram obtidos.
Ao não ser permitido o referido esclarecimento e posterior pedido de aclaração,
sobre o despacho que sobre este incidiu, entende-se que há uma errada
interpretação do disposto no art°61° e n°6 do art° 141° ambos do CPP,
consequentemente existe uma clara violação do princípio de defesa do arguido e
entre eles, o principio do contraditório, vertido nos n°1, 3 e 5 do art° 32° da
CRP.
Assim se considerando, nunca o esclarecimento poderia ser considerado deslocado
e indeferido, consequentemente o pedido de aclaração sobre tal despacho era
pertinente.?
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
?3. Entende-se ser de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional, por não se encontrarem preenchidos os
pressupostos necessários ao conhecimento do recurso, na medida em que o despacho
de admissão do mesmo, proferido pelo tribunal a quo, não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3, daquele diploma).
O recurso de constitucionalidade que o Recorrente pretendeu interpor pressupõe a
suscitação de questão de constitucionalidade normativa durante o processo, nos
termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. E deve aquele fazê-lo de modo
processualmente adequado (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional). Suscitar a questão de constitucionalidade normativa em moldes
processualmente adequados implica que o Recorrente enuncie o sentido atribuído
ao preceito legal ou bloco normativo que reputa inconstitucional e que pretende
ver apreciado no recurso de fiscalização concreta. Como observou Lopes do Rego,
?quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação
normativa, é indispensável que a parte identifique expressamente essa
interpretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir a
julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os
respectivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que
essa norma não pode ser aplicada com tal sentido? (O objecto idóneo dos recursos
de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º
3, Julho-Setembro de 2004, p. 8). Como se escreveu no Acórdão n.º 501/2004 (disponível
em www.tribunalconstitucional.pt) ?colocar verdadeiramente uma questão de
constitucionalidade reportada a um determinado sentido normativo de um preceito
é, muito mais do que isso, identificar esse sentido normativo que se considera
inconstitucional ? é enunciar um critério normativo susceptível de generalização.?
4. No caso em apreço, no entanto, não houve suscitação adequada de qualquer
questão de constitucionalidade normativa para os presentes efeitos ?
preenchimento de ónus relativos ao processo de fiscalização concreta da
constitucionalidade que se apresenta nos autos. Com efeito, o Recorrente limita-se,
durante o processo, a invocar a sua discordância com a interpretação dada pelo
Tribunal da Relação, às normas cuja inconstitucionalidade pretende agora invocar,
acenando com as normas constitucionais eventualmente aplicáveis mas sem nunca
enunciar, como lhe competia, relativamente às questões suscitadas, o sentido
inerente aos diversos blocos normativos, nos devidos termos de generalidade e
abstracção.
Em face do exposto, por falta de pressupostos, não pode conhecer-se do objecto
do recurso.?
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se
no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Com efeito, a
argumentação do Reclamante em nada abala a fundamentação da decisão sumária
reclamada. O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como sucede nos autos, depende
da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo
recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo,
constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem
como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Como foi referido na decisão sumária, a questão de constitucionalidade não foi
devidamente invocada. Não houve suscitação de qualquer questão de
constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado.
Na realidade, e como referiu o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, ?(?) este será
seguramente um dos casos em que o Tribunal Constitucional tem entendido que ?se
se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado
preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios
constitucionais, tem-se por certo que a questão da desarmonia constitucional é
imputada à decisão judicial?? (Acórdão n.º 128/2005).?
III ? Decisão
5. Assim, e, sem necessidade de maiores considerações, acordam, em conferência,
indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão
reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 19 de Outubro de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos