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Processo n.º 324/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e recorridos CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários,
B., C., S.A., D., S.A. e E., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos CMVM – Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários, B., C., S.A., D., S.A. e E., foi interposto
recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, relativamente ao despacho proferido pelo
Vice-Presidente, em representação do Presidente Supremo Tribunal de Justiça, em
07 de Janeiro de 2009 (fls. 56 a 58), nos termos do qual se indeferiu a
reclamação de despacho do Juiz-Relator junto do Tribunal da Relação de Lisboa
que rejeitou a admissão de recurso interposto ao abrigo do artigo 754º, do CPC,
posteriormente complementado por despacho de outro Vice-Presidente, em
representação do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 27 de
Fevereiro de 2009 (fls. 73 e 74), que rejeitou a arguição de nulidade daquele
despacho.
O recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade das normas
“invocadas para a prolação dos despachos recorridos” (fls. 86) que – segundo o
seu entendimento – correspondem às normas que foram arguidas de
inconstitucionais, “na parte XII do requerimento de 15.10.2008” (idem), bem como
“com o sentido invocado no requerimento de 15.10.2008, parte XI, nºs 1 e 6”
(fls. 88) ou seja, às normas extraídas dos seguintes artigos:
a) “artigo 688º, n.º 1, ao fixar de forma definitiva
e irremovível a competência para apreciar e decidir sobre a admissibilidade de
um recurso” (fls. 10, “ex vi” § 12, a fls. 86);
b) “artigo 688º, nº 3, que manda proferida a decisão
sobre a reclamação, no tribunal «a quo», não obriga que este se pronuncie sobre
as questões nela postas, designadamente sobre a arguição de nulidades de que
enferme o despacho reclamado, nos termos em que o faz o disposto no artigo 668º,
nº 4 do mesmo código; e essa omissão de pronúncia não é sancionada nos termos do
disposto no artigo 744º, nº 5, do dito código” (fls. 10, “ex vi” § 12, a fls.
86);
c) “a norma que regula a actividade instrutória a
que se refere a 2ª parte do nº 1 do artigo 689º - à revelia das partes” (fls.
10, “ex vi” § 12, a fls. 86);
d) “nº 2 do artigo 689º segundo a qual a decisão do
presidente não pode ser impugnada” (fls. 10, “ex vi” § 12, a fls. 86);
e) “nº 2 do artigo 689º segundo a qual se o
presidente manda admitir o recurso não obsta a que o tribunal ao qual o recurso
é dirigido decida em contrário” (fls. 10, “ex vi” § 12, a fls. 86);
f) “artigo 754º, nº 2, do CPC, com o sentido
invocado no requerimento de 15.10.2008, parte XI, nºs 1 a 6, e efectivamente
aplicado nos despachos recorridos” (fls. 88)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 91), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula
o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal,
pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos
de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que os mesmos não foram preenchidos, pode
proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do
artigo 78º-A da LTC.
3. A efectiva aplicação pela decisão recorrida das normas ou interpretações
normativas que constituem objecto do recurso de constitucionalidade constitui
condição indispensável para que o Tribunal Constitucional possa dele conhecer
(artigo 79º-C, da LTC). Ora, das decisões recorridas resulta que as
interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo recorrente não
foram, na verdade, aplicadas por aquelas, o que impede o conhecimento do objecto
do presente recurso.
O recorrente pretende que seja aferida a constitucionalidade da norma extraída
do n.º 2 do artigo 754º do CPC, “com o sentido invocado no requerimento de
15.10.2008, parte XI, nºs 1 a 6” (fls. 88), sendo que, nessa sede, tal norma foi
concebida nos seguintes termos:
“6. A norma da 1ª parte do nº 2 do artigo 754º do CPC, interpretada no sentido
de ser aplicável a decisões proferidas em 2ª instância que não têm por objecto
decisões da 1ª instância, em processo instaurado em 3.2.1999, infringe o
disposto na Constituição e os princípios nela consignados, designadamente no seu
artigo 2º, na medida em que nele se consagra a tutela da confiança e da
segurança jurídica inerente ao princípio do Estado de direito democrático.”
(fls. 8)
Sucede, porém, que os despachos recorridos não fundamentaram a rejeição da
reclamação do despacho que não admitiu o recurso naquele interpretação
normativa, mas antes – e exclusivamente – na circunstância de não se encontrarem
preenchidos os requisitos de interposição de recurso de agravo para o Supremo
Tribunal de Justiça previstos nos n.ºs 2, 2ª parte, e 3 do artigo 754º, do CPC,
ou seja, porque:
“Ora nem se alega que o acórdão de que se pretende recorrer está em oposição com
outro, nem tão pouco se fundamenta o recurso em violação de regras de
competência absoluta ou na ofensa do caso julgado.
Ainda não se ataca a decisão por discordância com o valor da causa. Finalmente a
questão não pôs termo ao processo.” (fls. 57)
Foram estes os verdadeiros fundamentos de rejeição da reclamação. E, como é bom
de ver, não correspondem – de modo algum – à interpretação normativa da 1ª parte
do n.º 2 do artigo 754º, do CPC, que o recorrente reputa de inconstitucional.
Quanto às diversas normas extraídas dos artigos 688º e 689º, ambos do CPC –
melhor supra identificadas nas alíneas a) a e) do Relatório –, importa notar que
as decisões recorridas também não as aplicaram enquanto “ratio decidendi”. Pelo
contrário, logo no despacho de 07 de Janeiro de 2009, o Vice-Presidente, em
representação do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, alertava para o
reduzido âmbito da sua intervenção, excluindo o conhecimento de questões que não
dissessem directamente respeito à admissibilidade do recurso anteriormente
interposto:
“Face ao teor da reclamação que nos foi apresentada adianta-se desde já que os
poderes de cognição do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação
da reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, limitam-se, nos
termos dos arts. 688.º e 689.º do CPC, à pronúncia sobre a sua admissibilidade;
dai, e por estranhos a esses poderes, não se tomar conhecimento das demais
questões suscitadas.” (fls. 56)
E – note-se –, mesmo após requerimento de arguição de nulidade daquele despacho,
através da qual o ora recorrente invocava uma omissão de pronúncia quanto a tais
questões, o Vice-Presidente, em representação do Presidente do Supremo Tribunal
de Justiça teve oportunidade de esclarecer, através do despacho de 27 de
Fevereiro de 2009, que a não apreciação de tais questões não era configurável
como “omissão de pronúncia”, uma vez que, naquele sede, apenas poderia
conhecer-se de questões relativas à admissibilidade do recurso:
“Na apreciação do requerimento agora apresentado, a única questão de que cabe
conhecer é a suscitada no ponto II, ou seja, a da nulidade imputada ao despacho
que indeferiu a reclamação, por omissão de pronúncia.
(…)
A competência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça quando aprecia as
reclamações, nos termos dos arts. 688.º e 689.º do CPC, apenas se cinge às
questões da admissibilidade e da retenção do recurso.
E mesmo nessas exceptuam-se aquelas cujo conhecimento fique prejudicado pela
solução dada a outras (arts. 660.º, n.º 2 e 666.º, n.º 3, ambos do CPC); daí,
uma vez que o recurso foi interposto ao abrigo do n.º 1 do art.º 754.º do CPC, e
ao entender-se no despacho questionado, que este preceito apenas delimita o
âmbito do recurso de agravo, houve necessidade de invocar os requisitos exigidos
pelo art. 754.º, n.º 2, 2ª parte e 3 do CPC (não alterados pelo Decreto-Lei n.º
375-A/99, de 20.09) para depois se concluir que a situação dos autos não cabia
em nenhuma das excepções aqui contidas.
Por este motivo, não se tomou conhecimento da questão posta no ponto 6 da
reclamação.
Houve assim pronúncia sobre todas as questões necessárias à decisão da
reclamação.” (fls. 73 e 74)
Do exposto, resulta que os despachos recorridos nunca aplicaram efectivamente as
interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo recorrente, tendo
fundado, a título exclusivo, a rejeição da reclamação deduzida nas normas
extraídas da 2ª parte do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 754º do CPC.
Independentemente da questão relativa a uma alegada (e pretendida) omissão de
pronúncia, certo é que tais decisões não aplicaram tais interpretações
normativas, pelo que o Tribunal Constitucional não dispõe de poderes para
sindicar, em sede de recurso de constitucionalidade, o juízo subjacente à opção
aplicativa seguida pelo tribunal “a quo”.
Como tal, em função do previsto no artigo 79º-C, da LTC, por as normas invocadas
pelo recorrente não terem sido aplicadas como “ratio decidendi” das decisões
recorridas, fica impedido este Tribunal de conhecer do objecto do presente
recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, veio o recorrente apresentar o seguinte
requerimento:
«1. No requerimento de interposição do recurso, de 16.3.2009, o recorrente
apresentou denúncia crime contra os autores dos despachos recorridos, e reiterou
denúncia crime já apresentada nos autos da Reclamação, contra a Relatora no
processo de que ela emerge.
2. Tal denúncia foi transmitida ao Ministério Público por efeito da decisão
proferida no mesmo despacho em que foi admitido o recurso, isto é, o despacho de
22.4.2009.
3. Por força do disposto no artigo 97° do CPC, também aplicável ao presente
recurso ex vi o disposto no artigo 69° da LTC, o Relator podia/devia sobrestar
na decisão sobre o recurso, ou decidir a questão crime que passou a ser objecto
de acção penal por efeito das supra referidas denúncias. Na verdade, dispõe-se
no nº 2 daquele artigo 97º, que, caso a suspensão da instância fique sem efeito,
o juiz da acção decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz
efeitos fora do processo em que foi proferida Sobre esta obrigação legal de
decidir a questão criminal prejudicial, escreveu o Prof. Alberto dos Reis:
suponhamos que o juiz não ordena a suspensão: não obstante a existência da
questão prejudicial de natureza criminal deixa seguir o processo. Isto significa
que se propõe decidir, ele próprio, a questão prejudicial (cf. Comentário ao
Código de Processo Civil, 1960, Vol. 1º, p.288). Sobre o poder/dever de
sobrestar na decisão, até que o tribunal competente se pronuncie, escreveu o
Prof. Antunes Varela: Quando, porém, a decisão a proferir na acção dependa da
resolução prévia de uma questão do foro criminal (questão prejudicial), o
tribunal da causa (civil) pode e deve, em princípio, fazê-lo, atento o interesse
que reveste a resolução da questão prejudicial pelo tribunal competente em razão
da matéria (cf. Manual de Processo Civil, 2 edição, pp 22 1/2).
4. Dispõe-se no artigo 78°-B, n° 1, da LTC, que compete ao Relator declarar a
suspensão da instância quando imposta por lei. Ora, na citada interpretação do
Prof. Antunes Varela, sobre a letra do artigo 97° do CPC, a suspensão da
instância até que se resolva uma questão prejudicial de natureza criminal é
imposta pela lei. Assim, o que o Recorrente esperava fosse decidido pelo Relator
no Tribunal Constitucional, era a suspensão da instância até que fossem
decididas as questões criminais prejudiciais resultantes das denúncias
apresentadas nos autos e que o despacho de 22.4.2009 ordenou fosse transmitida
ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 245° do Código
de Processo Penal (CPP).
5. As questões criminais ora em investigação no Ministério Público, são,
efectivamente, prejudiciais relativamente ao objecto do recurso de
constitucionalidade, e são, no processo cível, determinantes da
a) invalidade/inexistência jurídica/nulidade das decisões recorridas,
b) do próprio sentido das normas aplicadas nas decisões recorridas,
c) da inconstitucionalidade desse sentido.
6. Sumariando aqui, os factos integrantes das denúncias crimes apresentadas nos
autos, recorda-se:
a) As partes nos autos de recurso que subiu à Relação de Lisboa, em 29.9.2003,
de que emergem a Reclamação e o Recurso, são apenas, A. e COMISSÃO DO MERCADO DE
VALORES MOBILIÁRIOS;
b) Em 9.2.2006, um terceiro denominado BANCO F., S.A., sem sequer requerer a sua
admissão nos autos de recurso, “aparece” neles, a deduzir oposição às pretensões
do A.;
c) Tal conduta abusiva do dito Banco e do seu mandatário foi objecto de
impugnação do A.;
d) A impugnação do A. não foi objecto de decisão expressa;
e) O abuso consentido ao dito terceiro continuou a verificar-se;
f) A omissão de decisão sobre a impugnação do A. à ilícita intervenção do dito
terceiro, nos autos do recurso de agravo, foi objecto de arguição de nulidade
processual por omissão de acto imposto por lei — a pronúncia sobre os factos do
dito terceiro;
g) As decisões proferidas na Relação sobre questão que só se pôs nessa instância
— isto é, que não têm por objecto decisões da ia instância — não se encontram
abrangidas pelo disposto no artigo 754°, nºs 2 e 3, do CPC;
h) O recurso interposto de tais decisões, é, na jurisprudência e na doutrina,
designado de agravo novo por contraposição ao agravo continuado previsto no
artigo 756° do mesmo código;
i) Esta questão de direito processual é de fácil resolução: invocar o disposto
nos nºs 2 e 3 do artigo 754° do CPC, para impedir o acesso do Recorrente ao STJ,
constitui acto consciente contra direito para prejudicar o Recorrente e
beneficiar o terceiro que abusivamente “apareceu” nos autos, apenas na Relação,
e que tem gozado dos “favores” desta e dos Vice-Presidentes do Supremo Tribunal
de Justiça;
j) A invocação das normas dos nºs 2 e 3 do artigo 754° do CPC, manifestamente
inaplicáveis segundo a lei, a jurisprudência e a doutrina, no seu sentido
literal, são invocadas nas decisões recorridas em termos subsumíveis ao disposto
no artigo 369°, nºs 1 e 2, do Código Penal, e 204° da Constituição, como
critério decisório inovador.
7. A decisão sobre a alternativa prevista no artigo 97° do CPC, não pode deixar
de ser tomada antes de qualquer outra que tenha por objecto o requerimento de
interposição do recurso, e não pode, essa decisão, deixar de ser notificada ao
recorrente para os devidos efeitos legais. Assim, a omissão destes actos é
cominada de nulidade pelo disposto no artigo 20 1°, n° 1, do CPC, e determinante
de anulação dos termos subsequentes. Pelo que, o Recorrente REQUER ao Relator, o
suprimento dessa nulidade e a anulação dos termos subsequentes.
8. Cautelarmente, o Recorrente, ora Arguente de nulidade processual, sublinha,
com a devida vénia, que o presente requerimento não constitui reclamação contra
“decisão sumária”, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 78°-B da LTC, e argui
a inconstitucionalidade da norma que dele se possa extrair no sentido de que o
Relator pode “convolar” uma reclamação de nulidade processual deduzida ao abrigo
das competências legais do Relator, em reclamação para a conferência, por tal
norma infringir o disposto na Constituição e os princípios nela consignados,
designadamente nos seus artigos 1°, 2°, 20°, nºs 1 e 4, e 203°. Com efeito, essa
norma viola o princípio da autonomia privada que radica no respeito pela
dignidade da pessoa humana, e de que deriva o princípio do dispositivo vigente
em processo civil e no recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
das normas.» (fls. 115 a 117)
3. O recorrido Banco F., S.A., notificado do referido requerimento, veio
responder-lhe nos termos seguintes:
«1
O Recorrido, louva-se na decisão sumária proferida pela Exma. Conselheira
Relatora. Com efeito,
2
Tal decisão é clara e isenta de qualquer dúvida — o objecto do Recurso
interposto pelo Recorrente, é insusceptível de ser conhecido pelo Tribunal
Constitucional, visto que a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada, não
foi aplicada como fundamento das decisões recorridas.
3
Não se vislumbra qualquer omissão de pronuncia sobre as questões suscitadas pelo
Recorrente no seu Recurso, o qual também versa sobre alegada omissão de
pronúncia que, tal como muito bem decidido na decisão sumária em causa, é
insusceptível de ser apreciada em sede de recurso de constitucionalidade.
4
O requerimento ao qual se responde, é mais um reprovável expediente dilatório,
tendente a obstar ao trânsito em julgado de decisões que são manifestamente
desfavoráveis ao Recorrente.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Apesar de dirigir expressamente o requerimento de fls. 115 a 117 à Relatora
dos presentes autos, afigura-se evidente que o recorrente apenas pretende
colocar em crise a própria decisão sumária proferida, invocando uma pretensa
nulidade da mesma (a saber: a alegada omissão de declaração da suspensão da
instância, por força do artigo 97º do CPC, aplicável “ex vi” artigo 69º, da
LTC). Ora, ao contrário do que sucede em processo civil, o n.º 3 do artigo 78º-A
da LTC determina que o único meio admissível de impugnação das decisões sumárias
é a reclamação para a conferência. Tal não significa que, nessa sede, os
recorrentes não possam invocar quaisquer nulidades que entendam ter sido
praticadas pelo Relator, mas apenas que a apreciação de tais fundamentos de
impugnação devam ser apreciadas por um colectivo formado pelo Relator, pelo
Presidente ou Vice-Presidente e por outro juiz da respectiva secção.
Este tem sido, aliás, o entendimento unânime do Tribunal Constitucional que,
para além, de proceder, invariavelmente, à apreciação de alegadas nulidades, em
sede de reclamação (a título de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.º 431/2000, n.º
135/2003, n.º 26/2004, n.º 67/2004, n.º 367/2004, n.º 65/2006, complementado
pelo Acórdão n.º 282/2006, e n.º 283/2006, disponíveis in
www.tribunalconstitucional.pt), já teve mesmo oportunidade de frisar que a sede
própria para discussão de alegadas nulidades de decisões sumárias proferidas é
precisamente a reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78º-A,
da LTC (assim, ver Acórdãos n.º 541/06 e n.º 709/07, ambos disponíveis in
www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, sendo restaria saber, face ao uso indevido de um meio processual que não
se encontra previsto na lei que rege a tramitação dos recursos perante o
Tribunal Constitucional, se a Relatora deveria rejeitar liminarmente tal
requerimento – por manifesta ausência de previsão legal – ou se, pelo contrário,
tal acto processual poderia ser aproveitado, mediante convolação em reclamação
para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC.
A este propósito, o Acórdão n.º 541/06 já afirmou a seguinte linha de raciocínio
que ora se retoma:
“No caso dos presentes autos, optou‑se, em vez do não conhecimento do “falso
pedido de aclaração” com o consequente trânsito em julgado da decisão sumária,
pela qualificação do pretenso “pedido de esclarecimento” como “reclamação para a
conferência” da mesma decisão, o que ao Tribunal era lícito fazer, já que não
está condicionado pela qualificação jurídica feita dessa peça processual pela
parte apresentante, em manifesta desconformidade com a sua substância. Trata‑se,
no fundo, do cumprimento da regra, emergente do princípio da tutela
jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrado, que manda privilegiar as
decisões de mérito em detrimento das decisões de mera forma, e que corresponde
ao dever de os tribunais providenciarem oficiosamente pelo andamento regular e
célere do processo (artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – CPC),
determinando a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo
(artigo 265.º‑A do CPC), o que inclui a faculdade de convolação dos meios
processuais incorrectamente utilizados (cf., a título de exemplo, o disposto no
artigo 688.º, n.º 5, do CPC).
Nesta mesma linha jurisprudencial se inserem, por último, o Acórdão
n.º 379/2006, que decidiu tratar como reclamação para a conferência um
“requerimento de aclaração” de decisão sumária no qual não se apontava nenhum
problema de interpretação desta, mas apenas se revelava discordância quanto à
afirmação, nela contida, de que não fora definida pelo recorrente qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, e o Acórdão n.º 427/2006, que
desatendeu arguição de nulidade do Acórdão n.º 362/2006, arguição fundada em
este Acórdão ter decidido como reclamação para a conferência um requerimento
designado por “arguição de nulidade” de decisão sumária, referindo o Tribunal
que, não obstante tal requerimento não ter sido formalmente designado pelo
requerente como “reclamação para a conferência”, a verdade é que, atento o seu
conteúdo, era esse o meio processual a que correspondia, sendo, por outro lado,
inquestionável, desde logo por força dos princípios da economia e da adequação
processuais, que o tribunal que proferiu certa decisão tem o poder‑dever de
corrigir a incorrecta qualificação jurídico‑processual de certa pretensão do
recorrente, tratando‑a nos quadros da reclamação para a conferência quando, em
termos substanciais, apesar de invocadas pretensas ou ficcionadas nulidades, o
que se pretende é a pura e simples impugnação da decisão sumária proferida.”
Na linha da jurisprudência supra citada, reforça-se que a convolação do
requerimento apresentado em reclamação para a conferência insere-se precisamente
no pleno exercício dos poderes-deveres constitucionais que foram entregues a
este Tribunal e, em especial, do dever de respeito e de implementação do direito
de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva, necessariamente célere (artigo
20º, n.ºs 1 e 4, da CRP) e que se traduz, no plano infra-constitucional, nos
artigos 2º, n.º 1, 265º, n.º 1 e 266º, n.º 1, todos do CPC, aplicáveis “ex vi”
artigo 69º da LTC. Deste modo, impõe-se que este Tribunal conheça da questão
colocada, mesmo que não tenha sido deduzida – de forma expressa – reclamação
para a conferência.
5. Bem ciente da precedente jurisprudência consolidada neste Tribunal – e, como
tal, da inadmissibilidade do pedido que formula, indevidamente dirigido à
Relatora nos presentes autos –, o reclamante vem ainda frisar que não pretende
que o seu requerimento seja tratado como “reclamação para a conferência”,
invocando, “ad cautelam”, a alegada “inconstitucionalidade da norma que dele se
possa extrair no sentido de que o Relator pode “convolar” uma reclamação de
nulidade processual deduzida ao abrigo das competências legais do Relator, em
reclamação para a conferência, por tal norma infringir o disposto na
Constituição e os princípios nela consignados, designadamente nos seus artigos
1°, 2°, 20°, nºs 1 e 4, e 203°” (§ 8., a fls. 117).
Vejamos então se tal norma jurídica padece de inconstitucionalidade.
Fixando o objecto de apreciação, conforme já supra frisado, a norma jurídica
reputada de inconstitucional corresponde à que resulta da interpretação
conjugada do artigo 78º, n.º 3, da LTC, e dos artigos 2º, n.º 1, 265º, n.º 1 e
266º, n.º 1, todos do CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, no sentido de
que é admissível proceder-se à convolação de um requerimento de arguição de
nulidade de decisão sumária dirigido ao Relator que a proferiu numa reclamação
para a conferência.
Ora, desde logo, é manifesta a improcedência da invocação genérica dos artigos
1º e 2º da Constituição, dos quais o reclamante retira a contradição entre o
princípio da autonomia privada, ínsito na ideia de dignidade da pessoa humana, e
a possibilidade de convolação de um requerimento legalmente inadmissível numa
reclamação para a conferência, em estrita obediência ao n.º 3 do artigo 78º-A,
da LTC. Como é fácil de alcançar, o principio da dignidade da pessoa humana não
encerra, de modo algum, um direito a que as partes processuais possam ver
apreciados em tribunal – qualquer que ele seja – requerimento cuja
admissibilidade se encontra expressamente vedada pela respectiva lei processual.
Por outro lado, a invocação de uma alegada violação do direito à tutela
jurisdicional efectiva (artigo 20º, n.ºs 1 e 4, da CRP) afigura-se
incompreensível. É que, pelo contrário, a convolação de requerimento de arguição
de nulidade – legalmente inadmissível – em reclamação para a conferência visa
precisamente acautelar que o ora reclamante não ficasse privado de uma decisão
de mérito sobre a questão da nulidade processual por si invocada. Ora, na medida
em que o requerimento por si apresentado não encontra base legal, qualquer
solução que não passasse pela convolação do seu requerimento redundaria, essa
sim, numa automática rejeição do seu requerimento – por inexistência de suporte
legal –, sem que o Tribunal Constitucional procedesse ao conhecimento do mérito
da questão por si colocada.
Assim, a interpretação adoptada que extrai da conjugação do artigo 78º, n.º 3,
da LTC, e dos artigos 2º, n.º 1, 265º, n.º 1 e 266º, n.º 1, todos do CPC,
aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, a possibilidade de convolação do
requerimento de arguição de nulidade de decisão sumária em reclamação para a
conferência não só não contende com o princípio da tutela jurisdicional
efectiva, como antes o acautela do modo mais intenso e incisivo.
Por fim, também não se compreende que o reclamante invoque o artigo 203º da CRP,
para colocar em crise a constitucionalidade da interpretação normativa ora
acolhida. Não se vislumbra de que modo é que tal interpretação coloca em causa a
independência do Tribunal Constitucional – ou de qualquer outro tribunal – e,
por outro lado, é precisamente a sujeição deste Tribunal à lei que o impede de
conhecer de requerimentos que sejam legalmente inadmissíveis, salvo mediante
convolação, já que o único meio processual para impugnar uma decisão sumária é
precisamente a reclamação para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 78º-A,
da LTC.
Em suma, para que dúvidas não restem, a interpretação conjugada do artigo 78º,
n.º 3, da LTC, e dos artigos 2º, n.º 1, 265º, n.º 1, e 266º, n.º 1, todos do
CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, no sentido de que é admissível
proceder-se à convolação de um requerimento de arguição de nulidade de decisão
sumária dirigido ao Relator que a proferiu numa reclamação para a conferência,
não padece de qualquer inconstitucionalidade, razão pela qual se passará a
conhecer da única questão que o reclamante aponta como obstáculo ao trânsito em
julgado da decisão sumária, ou seja, a sua alegada nulidade.
6. Afirma então o reclamante que a decisão sumária padece de nulidade, na medida
em que o artigo 97º, n.º 1, do CPC, aplicável “ex vi” artigo 69º, da LTC, e o
artigo 78º-B, n.º 1, da LTC, impediria que a Relatora proferisse decisão
sumária, sendo aquela obrigada a suspender a instância recursiva “até que fossem
decididas as questões criminais prejudiciais resultantes das denúncias
apresentadas nos autos e que o despacho de 22.4.2009 ordenou fosse transmitida
ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 245° do Código
de Processo Penal” (fls. 116).
Sucede, porém, que apenas cabe ao Relator “declarar a suspensão da instância
quando imposta por lei” (artigo 78º-B, n.º 1, da LTC, com sublinhado nosso).
Ora, é por demais evidente que o n.º 1 do artigo 97º, do CPC, aplicável “ex vi”
artigo 69º, da LTC, não impõe qualquer dever de suspensão da instância em caso
de questão prejudicial de natureza criminal. Pelo contrário, aquele preceito
legal limita-se a prever uma faculdade de suspensão da instância (“pode o juiz
sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie”, com sublinhado
nosso), não inibindo a Relatora de proferir decisão sobre a questão de
constitucionalidade.
Para além do mais, a questão criminal em causa – a saber, a alegada denegação de
justiça por parte do Juiz-Relator junto do Tribunal da Relação de Lisboa (artigo
369º, n.º 2, do CP) – nem sequer é configurável como questão prejudicial face
aos presentes autos de recurso de constitucionalidade, na medida em que não diz
respeito ao sentido normativo que constitui objecto do presente recurso de
constitucionalidade. Razão acrescida para que não houvesse – nem haja – qualquer
dever por parte da Relatora nos presentes autos de suspensão da instância, sem
que fosse proferida decisão sumária.
Como tal, nem sequer seria possível invocar a nulidade da decisão sumária
proferida, por pretensa violação do n.º 1 do artigo 201º, do CPC, aplicável “ex
vi” artigo 69º, da LTC, na medida em que, nem a lei processual impõe à Relatora
um dever de suspensão da instância, nem tão pouco é possível afirmar que a mera
denúncia por denegação de justiça, deduzida contra o Juiz-Relator junto do
Tribunal da Relação de Lisboa constitua uma verdadeira questão prejudicial
relativamente à questão de constitucionalidade apreciada nos presentes autos.
Não se verifica, assim, qualquer nulidade da decisão sumária proferida nos
autos.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação,
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 30 de Julho de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos