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Processo nº 430/2008
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Por sentença do Tribunal Colectivo de Alcobaça foi A., cidadão da
Guiné-Bissau, condenado na pena de 10 anos de prisão pela autoria de um crime de
tráfico de estupefacientes agravado; na coima de 500.00 euros pela prática de
uma contra-ordenação; e na pena acessória de expulsão do território nacional por
5 anos.
Desta sentença recorreu A. para o Tribunal da Relação de Coimbra, que negou
provimento ao recurso.
Recorreu então o mesmo A. para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão
datado de 23 de Janeiro de 2008, concedeu provimento parcial ao recurso, fixando
a pena correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes em 9 anos de prisão
e mantendo no mais a decisão recorrida. Depois de ter requerido o esclarecimento
deste acórdão (requerimento que foi indeferido), veio A. arguir a nulidade do
mesmo, arguição essa desatendida pelo Supremo Tribunal de Justiça em sentença de
9 de Abril de 2008.
2. Interpôs então A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
No requerimento de interposição de recurso (fls. 463) foram
enunciadas quatro questões de constitucionalidade:
Na primeira, reportada ao “sistema normativo” composto pelos nºs 3 e
4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, pedia o requerente que o Tribunal
julgasse inconstitucional, por violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da
CRP, a interpretação segundo a qual “o recorrente não deveria ter sido
notificado da disponibilidade da transcrição da prova para poder cumprir os nºs
3 e 4 do citado artigo 412º.”
Na segunda, reportada ainda ao mesmo “sistema normativo”, pedia o
requerente que o Tribunal julgasse inconstitucional, sempre por violação do nº 1
do artigo 32º da CRP, a interpretação segundo a qual “a simples referência, por
mera remissão para a respectiva alínea ou número da matéria de facto (provada e
não provada), os factos [sic] que considera incorrectamente julgados sem indicar
as razões da sua discordância e os elementos de prova em que se funda (…) tem
como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao mesmo [arguido] seja dada a
oportunidade de suprir tal deficiência.”
Na terceira, reportada ao “sistema normativo” composto pelos 410, nº
2, 411º, nº 1, 412º, nº 1, ex vi artigo 434, do CPP, pedia o requerente que o
Tribunal julgasse inconstitucional, por violação do princípio do direito ao
recurso em matéria de facto consagrado no nº 1 do artigo 32º da CRP, a
interpretação segundo a qual “a ressalva do conhecimento dos vícios do artigo
410º, nº 2, contida no artigo 434º, não se reporta aos recursos previstos na
alínea c) do artigo 432º (…) mas sim aos recursos previstos nas alíneas a) e b)
do mesmo artigo, pois o âmbito dos poderes de cognição do STJ no caso da alínea
c) é fixado nessa alínea: «visando exclusivamente o reexame em matéria de
direito», expressão acrescentada na reforma processual de 1998, que
simultaneamente criou o recurso da matéria de facto para a Relação, limitando
consequentemente o recurso para o STJ à matéria de direito.”
Na quarta, reportada ao “sistema normativo” composto pelos artigos
99º, alíneas a), b) e c); 101º, nºs 1, 2 ,3 e 5; 102º, 105º 109º e 110,nºs. 1,
alínea b) e nº 2 do DL nº 244/98 e artigo 34º do DL nº 15/93, pedia o requerente
que o Tribunal julgasse inconstitucional, por violação do disposto no nº 4 do
artigo 30º da CRP, a interpretação segundo a qual “se opera a expulsão
automática de estrangeiro não residente com base exclusivamente em anterior
condenação”.
3. Em relação a todas estas quatro questões proferiu o relator no Tribunal
Constitucional Decisão Sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º‑A da Lei nº
28/82.
Quanto à primeira, dela se não conhecendo, por se ter entendido que
o requerente não cumprira o ónus de indicar, de modo claro e perceptível,
perante o tribunal que proferira a decisão recorrida, a exacta dimensão
normativa do preceito que considerava inconstitucional;
Quanto à segunda, não se concedendo quanto a ela provimento ao
recurso, por se ter entendido que era simples a questão a decidir face a
anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional;
Do mesmo modo em relação à terceira, que, tendo em conta a firme
jurisprudência constitucional já existente, se considerou manifestamente
infundada;
Em relação à quarta, dela se não conhecendo, por se ter entendido
que não fora, a seu respeito, suscitada uma qualquer questão de
constitucionalidade de normas.
4. Desta decisão reclama A. para a Conferência, nos termos do nº 3 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82.
Na sua reclamação, abandona A. a questão que formulara em quarto
lugar, relativa à “expulsão automática de estrangeiro não residente
com base exclusivamente em anterior condenação”. O reclamante não contesta,
portanto, a decisão de não conhecimento do recurso quanto a este ponto.
Em relação às outras três questões, funda-se a reclamação,
basicamente, no seguinte:
(i) Quanto à primeira, insiste o reclamante que não colocou em causa a
decisão recorrida (pontos 2 da reclamação); e que impugnou, de modo claro e
perceptível perante o tribunal a quo, a questão de constitucionalidade normativa
que pretendia ver apreciada (pontos 4 a 9 da reclamação);
(ii) Quanto à segunda, contesta (pontos 15, 16 e 17 da reclamação) a sua
qualificação como questão simples, fundamentalmente por entender que ao caso
deveria ser aplicada jurisprudência do Tribunal diversa da que foi invocada;
(iii) Quanto à terceira, diz não compreender a sua qualificação como questão
manifestamente infundada, por, inter alia, “o fundamento constante a fls. 14 da
decisão sumária é precisamente a fundamentação que o recorrente invoca, para
entender que a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez às citadas
disposições legais são inconstitucionais senão vejamos: o douto acórdão
recorrido entende, [sic] que só conhece os vícios do artigo 410º por sua própria
iniciativa, e nunca a pedido do recorrente” (ponto 21).
5. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos seguintes termos:
1º
A presente reclamação é manifestamente infundada
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da douta
decisão reclamada, no que toca à inverificação dos pressupostos e à evidente
improcedência das questões de constitucionalidade suscitadas.
II
Fundamentos
6. Determina o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional:
Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º só podem ser
interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou
da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Atento o disposto neste preceito, tem o Tribunal entendido, em jurisprudência
constante (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 367/94 e 178/95, publicados no
Diário da República, IIª série, respectivamente de 7 de Setembro de 1994 e de 21
de Junho de 1995) que é sobre o recorrente que incumbe o ónus de enunciar a
norma ou dimensão normativa do preceito que impugna, como inconstitucional,
perante o tribunal recorrido, de modo tal que “no caso de [a dimensão normativa]
vir a ser julgada inconstitucional, o Tribunal a possa apresentar na sua decisão
em termos de, tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores de
direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o
preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição”.
Entendeu a decisão reclamada que o reclamante não cumprira, quanto à 1ª questão
de constitucionalidade que colocara ao Tribunal, este ónus de suscitação precisa
e clara da norma ou dimensão normativa cuja inconstitucionalidade pretendia que
o Tribunal apreciasse.
Vem o mesmo reclamante contestar agora este entendimento, dizendo para tanto, e
basicamente, o seguinte:
(…)
4. No recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça escreveu o
requerente: “Mesmo que se entenda que o recorrente não deu integral cumprimento
ao disposto no artº 412º nº 3 e 4 do CPP, então conforme se referiu supra,
deveria o Tribunal recorrido ter concedido prazo ao recorrente para esse efeito
(conforme requerido foi), sob pena de ver postergado o direito ao recurso sobre
a matéria de facto nos termos do artº 32º nº 1 da CRP, fazendo-se uma
interpretação inconstitucional do citado artigo, o que desde já se alega para os
devidos e legais efeitos.”
5. Nesse momento foi pelo aqui requerente suscitada a interpretação
inconstitucional da norma pelo que não pode agora este Douto Tribunal vir
afirmar que sobre tal questão não poderá tomar conhecimento pela mesma o ter
sido suscitada.
Na verdade o recorrente quando suscitou a interpretação normativa do art.º 412º
nº 3 e 4 do CPP, no sentido de ser desproporcional a rejeição do recurso sobre
matéria e facto sem antes ter sido dada oportunidade ao mesmo para aperfeiçoa‑la
fê-lo com base na esteira e mediante, aliás douta, decisão do STJ, 3188/04, 5ª
Secção de 11 de Novembro de 2004, onde refere “não ter especificado os suportes
técnicos, quer no texto da motivação, quer nas conclusões”, o ónus de impugnação
é cumprido, quando o recorrente especificou os pontos de facto que originaram a
sua discordância, especificou as provas e transcreveu-as; só não fez tais
especificações reportadas aos suportes técnicos, mas tal falta já não contende
com a impugnação substancial por ele feita, tanto mais que a prova gravada foi
toda transcrita sob o controle do tribunal, com a garantia da fidedignidade. Daí
dizermos que o não conhecimento do recurso com base no cumprimento do
preceituado no artº 412º nº 3 e 4 do CPP seja manifestamente desproporcionada…”
6. E tanto ali como neste caso dúvidas não existem que existindo transcrição da
prova e tendo o recorrente impugnado os pontos de facto que considerou
incorrectamente julgados, e indicando as provas e o motivo da sua discordância
haveria de haver lugar, quando muito, a ser convidado a aperfeiçoar o seu
recurso.
É patente que a questão de constitucionalidade não é aqui suscitada de modo
processualmente adequado, ou de modo a que se possa ficar a saber, sem margem
para dúvidas, “qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado
por, desse modo, violar a Constituição”.
Nestes termos, merece confirmação, quanto a este ponto, a decisão sumária
reclamada.
7. Quanto à segunda questão de constitucionalidade colocada no requerimento de
interposição do recurso.
Como já se disse, entendeu a decisão sumária não conceder, neste ponto,
provimento ao recurso, por ser simples a questão a decidir. Fê-lo com fundamento
na jurisprudência fixada no Acórdão nº 120/2004, que decidiu “não julgar
inconstitucional a norma do artigo 412º, nºs 3 alínea b), e 4, do Código de
Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas
conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele
exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do
recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais
deficiências”. De acordo com a decisão reclamada, seria esta a jurisprudência
que, inteiramente transponível para o caso, deveria ser convocada para resolver
a questão de constitucionalidade que o reclamante colocara, no requerimento do
recurso, em segundo lugar.
Vem agora o reclamante contestar, na reclamação, este entendimento, nos termos
seguintes:
17. No presente processo constava impugnação de matéria de facto na motivação,
somente não se fazia referência às passagens precisas devido a não se encontrar
disponível a transcrição, o que fez com que o Douto Supremo Tribunal de Justiça
considerasse que não cumpriu adequadamente, o que de si só pressupõe que tenha
cumprido.
18. Independentemente do conhecimento pelo douto Tribunal Constitucional só
dizer respeito às normas e não às decisões em concreto, a análise dessas mesmas
normas terá sempre que ter presente o processo concreto, quanto às
fundamentações e a partir do momento em que o Douto Supremo Tribunal de Justiça
entendeu que o aqui requerente não tinha cumprido adequadamente veria tal
decisão ser atendida como tendo existido mas de uma forma carente, e nesse
sentido ser aplicado o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 529/2003 que
decidiu “julgar inconstitucional, por violação do art.º 32º, n° 1 da
Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412º, n.º 3,
do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas
suas alíneas a), b) e c) tendo como efeito o não conhecimento da impugnação da
matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao
mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência”...
19. Nesse sentido deveria ter sido declarada a inconstitucionalidade da norma no
sentido de que de acordo com a norma do n.º 4 do artigo 412º por violação do
artigo 32° nº 1 da CRP, interpretada no sentido de que a falta de enunciação dos
pontos transcritos constantes dos suportes técnicos a que se referem as
especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 do mesmo artigo tem como
efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do
recurso nessa parte, sem que tenha sido dada oportunidade de suprir a carência.
É de notar que, nesta passagem, o reclamante, ao invocar a necessidade de se
aplicar ao caso a jurisprudência fixada pelo Tribunal no Acórdão nº 529/2003,
acaba por enunciar (quanto a este ponto) uma “norma” ou “dimensão normativa”
diversa daquela que consta do requerimento de interposição do recurso (ponto 19
acima transcrito). Sendo, no entanto, o objecto do recurso de
constitucionalidade fixado pelo respectivo requerimento de interposição, a norma
que está sob juízo não pode ser outra que não aquela que convocou a aplicação,
ao caso, da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 120/2004. Assim sendo, tem
também, quanto a este ponto, razão a decisão reclamada.
8. Finalmente, contesta o reclamante a solução dada, pela decisão sumária
reclamada, à questão de constitucionalidade colocada em terceiro lugar no
requerimento de interposição do recurso.
Quanto a este ponto, diz-se na reclamação, fundamentalmente, o seguinte:
24. (…) é ou não verdade que a decisão sumária entende – entende e bem – que a
impugnação atinente à matéria de facto nos termos do nº 2 do 410º do CPP podem
ser invocados perante o tribunal de recurso?
25. É ou não é verdade que o STJ interpretou que os vícios constantes do art.º
410º nº 2 ex vi 434º do CPP só podem ser conhecidos pelo mesmo mas nunca a
pedido do recorrente.
26 É ou não é verdade que ficamos com esta interpretação limitados a impugnar os
vícios do art.º 410º nº 2 do CPP na medida em que, a final não podem ser dos
perante o tribunal de recurso?!...
27. E vai daí temos suscitado que essa interpretação viola as garantias do
direito a recurso, não fazendo sentido, assim sendo, o que consta da parte
inicial do artº 434º do CPP.
28. Daí perguntar-se se com esta interpretação não se estará – para nós está – a
fazer uma interpretação inconstitucional das alegadas normas, na medida em pelos
vistos mais uma vez o STJ entende perante o mesmo que não se pode invocar a
primeira parte do dispositivo legal constante do artº 434° ex vi 410º nº 2 do
CPP.
O reclamante pretende defender a tese segundo a qual decorre da Constituição a
necessária existência de um terceiro grau de recurso em matéria criminal.
É no entanto abundante a jurisprudência do Tribunal que vem demonstrando o
carácter não fundado de semelhante tese. O que sempre se tem dito – de forma de
tal modo reiterada que não vale a pena agora voltar a dizer onde – é que a
Constituição impõe o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria penal:
deve poder ser, sempre, reexaminada por tribunal superior qualquer situação da
qual decorra restrição ou limitação da liberdade ou da segurança das pessoas.
No caso, tal aconteceu: foi cumprido o princípio do duplo grau de jurisdição.
Assim, o que nele poderia estar em discussão – ou melhor, o que nele se
pretenderia que estivesse em discussão – seria apenas a questão de saber se, em
matéria penal, a existência de um terceiro grau de jurisdição não
corresponderia, ela própria, a uma imposição constitucional. Como é claríssima a
jurisprudência sobre o assunto, a decisão sumária reclamada não concedeu, quanto
a este ponto, provimento ao recurso, dado o carácter manifestamente infundado da
questão que aqui se colocava. O mesmo disse, aliás, o tribunal a quo: “[a]dmitir
como fundamento de recurso para o STJ do conhecimento desses vícios, quando já
apreciados pela Relação, constituiria a admissão de um duplo grau de recurso em
matéria de facto, o que a Constituição de forma alguma impõe e a lei não
estabelece.” (fls. 434 verso)
É portanto de confirmar, também quanto a esta última questão, a decisão
reclamada.
III Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 23 de Julho de 2009
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão