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Processo 577/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente A., Lda. e recorrida a Fazenda
Pública, foi interposto recurso de acórdão proferido pela Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em 06 de Maio de 2009 (fls. 391 a
394) para apreciação da constitucionalidade da ?norma contida no art. 152° do
CPTA, aplicável ex vi art. 2° do CPPT, na dimensão normativa encontrada pelo
despacho de fls 343 e confirmada pelo douto acórdão de 06 de Maio de 2009,
segundo o qual é inadmissível o recurso interposto por oposição de acórdãos
entre um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (acórdão recorrido) e um
Acórdão do Tribunal Central Administrativo (acórdão fundamento)? (fls. 402).
2. Notificada para tal pela Relatora, a recorrente produziu alegações, das quais
constam as seguintes conclusões:
«1. A norma contida no art. 152° do CPTA, aplicável ex vi art. 2° do CPPT, na
dimensão normativa encontrada pelo despacho de fls 343 e confirmada pelo douto
acórdão de 06 de Maio de 2009, segundo o qual é inadmissível o recurso
interposto por oposição de acórdãos entre um Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo (acórdão recorrido) e um Acórdão do Tribunal Central
Administrativo (acórdão fundamento) é inconstitucional.
2. A inconstitucionalidade da citada norma extraída do art. 152° do CPTA,
aplicável ex vi art. 2° do CPPT resulta do facto da mesma consubstanciar uma
violação dos mais elementares direitos e garantias que a Constituição confere à
ora recorrente.
3. Com efeito, no caso em apreço, o acórdão fundamento foi proferido em última
instância pelo Tribunal Central Administrativo Norte, dado que, para além da
questão de direito, foram suscitadas questões de facto.
4. O Acórdão recorrido, por sua vez, não obstante versar sobre a mesma questão
de direito, foi proferido pelo STA, dado que o respectivo recurso se fundamenta
exclusivamente em matéria de direito.
5. Atendendo que no contencioso tributário, o legislador estabeleceu apenas um
grau de recurso ordinário (conferindo ao TCA competência para apreciar, em
ultima instância, questões de direito) e tendo em conta que os recursos para
uniformização de jurisprudência têm por finalidade permitir que situações iguais
recebam o mesmo tratamento jurisprudencial, dúvidas não podem subsistir que o
legislador quis atribuir aos acórdãos proferidos pelo TCA, em sede de recurso, a
mesma dignidade que confere aos acórdãos proferidos pelo STA.
6. O que significa que não existe razão legal para diferenciar, no contexto
específico do contencioso tributário, os acórdãos anteriormente proferidos pelo
TCA em relação aos acórdãos proferidos posteriormente pelo STA, sobre a mesma
matéria.
7. Estamos, assim, perante uma situação que coloca a ora recorrente numa
situação de desigualdade de tratamento, pois perante a mesma questão suscitada,
foram proferidas duas soluções diferentes, não podendo a recorrente utilizar o
único meio que a lei lhe confere para que a decisão ora recorrida possa vir ser
alterada no sentido da jurisprudência assente no acórdão fundamento.
8. Consubstancia assim uma violação do princípio da igualdade, previsto e
tutelado no art. 13° da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual
todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
9. Consubstancia também uma violação ao direito e tutela jurisdicional efectiva,
previsto e tutelado no art. 20. ° da Constituição da República Portuguesa,
segundo o qual a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais ara
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.» (fls. 432 e 433)
3. A Fazenda Pública apresentou as seguintes contra-alegações:
«(?)
Não tem, porém, razão a recorrente, como abaixo, mais de espaço, deixaremos
provado.
Antes de mais porque a norma que no nosso sistema jurídico faz luz sobre a
técnica interpretativa ? o artigo 9° do Código Civil ? dispõe que ?não pode
porém ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na
letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente
expresso?. Ora o dispositivo posto em crise pela presente recurso, o nº 1 do
artigo 152° do CPTA, dispõe:
?As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal
Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão
impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência,
quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição.
a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente
proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;
b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.?
Daqui decorre, numa primeira leitura, que a oposição relevante para o efeito de
interposição de recurso para uniformização de jurisprudência é a que se verifica
entre um acórdão do TCA e outro anteriormente proferido ? e transitado em
julgado ? pelo mesmo tribunal ou pelo STA; ou entre um acórdão do STA e outro
anteriormente proferido ? e transitado, repetimos ? pelo mesmo STA.
É tão claro e explícito o sentido da norma posta em crise que o sentido
defendido pela Recorrente é manifestamente contra-legem. Claro que será mesmo
por isso que ela vem agora pôr a questão da sua pretensa inconstitucionalidade.
Vejamos pois se ela se verifica.
II
Assaca a Recorrente, ao sentido interpretativo dado pelo STA à norma posta em
crise, dois vícios geradores de inconstitucionalidade:
i) Violação do princípio da igualdade e
ii) Violação do direito a tutela jurisdicional efectiva
Quanto à violação do princípio da igualdade é óbvio que ele se não verifica. Se
alguma desigualdade de tratamento se pode divisar no caso dos autos ela não se
verifica entre cidadãos mas sim entre coisas ? acórdãos ? que são efectivamente
desiguais na medida em que provêm de entidades distintas, os distintos tribunais
que os proferiram. Ora a norma constitucional que consagra o princípio da
igualdade não o refere a coisas mas a cidadãos. Ou pretenderá a Recorrente que a
interpretação por ela atacada só é feita no seu caso e que outros recorrentes em
situação semelhante são tratados diferentemente, beneficiando do sentido
interpretativo que a recorrente defende presentemente? Se tal acontecesse,
ocorreria violação do princípio da igualdade. Mas a Recorrente não invoca tal e
muito menos faz a respectiva prova. Não se verifica, consequentemente, violação
do princípio da igualdade ou qualquer descriminação da recorrente em razão dos
critérios enunciados no n°2 do mesmo artigo 13° da CRP.
Quanto à violação do direito a tutela jurisdicional efectiva, igualmente se não
verifica. Na verdade o acesso à tutela jurisdicional efectiva é mediatizado pelo
conjunto dos meios que o sistema jurídico põe à disposição dos cidadãos. Ora o
sentido interpretativo extraído pelo tribunal, no acórdão recorrido, da norma
posta em crise não inibiu a Recorrente de utilizar vários meios jurisdicionais
de tutela dos seus direitos. Não pode, porém o sistema jurídico facultar aos
cidadãos um recurso ilimitado de tais meios.
Foi, aliás, a necessidade de racionalizar a utilização de tais meios que levou o
legislador a organizar os tribunais hierarquicamente, fixando competências
diferenciadas para tribunais de nível diferente, Ora é consabido que o STA é o
tribunal de fecho do conjunto do TAFs. E foi para não sobrecarregar o STA que
foram criados os TCAs. Daí que estes julguem os recursos que envolvam apreciação
da matéria de facto, reservando-se ao STA o julgamento dos recursos que envolvem
apenas matéria de direito. A redução dos recursos a duas instâncias não visou
tornar iguais os TCAs e o STA mas agilizar a justiça e torná-la acessível a
todos os cidadãos, O que vinha sendo problemático com a acumulação de processos
no STA.
Nem, pois, o facto de TCAs e STA julgarem em última instância faz deles
tribunais iguais e de idêntico nível de decisão, nem a manutenção da relação de
hierarquia entre eles implica qualquer inibição de uso de meios de tutela
jurisdicional à Recorrente.» (fls. 437 a 440)
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II ? FUNDAMENTAÇÃO
4. A questão em apreço nos presentes autos apresenta um carácter inovador, face
à precedente jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o recurso de
harmonização de jurisprudência, em sede de Direito Processual Administrativo.
Assim é, na medida em que o recorrente reputa de inconstitucional uma
interpretação normativa do artigo 152º, n.º 1, do CPTA que exclui a
possibilidade de admissão de um recurso para harmonização de jurisprudência
quando o ?acórdão fundamento? corresponda a uma decisão proferida por um
Tribunal Central Administrativo [TCA], em sede de processo tributário ? e,
portanto, com natureza definitiva em função da insusceptibilidade de recurso ? e
o ?acórdão recorrido? haja sido proferido pelo STA.
O preceito legal do qual foi extraída a interpretação normativa ora em apreço
determina o seguinte:
?Artigo 152º
Recurso para uniformização de jurisprudência
1 ? As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal
Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão
impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência,
quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição:
a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente
proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;
b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.
(?)?
Com efeito, do enunciado constante do artigo 152º, n.º 1 do CPTA parece resultar
que um acórdão proferido por um TCA apenas pode constituir ?acórdão fundamento?
quando o ?acórdão recorrido? haja sido, também ele, proferido por um TCA. Ora, a
tramitação processual vertida nos autos recorridos demonstra que o ?acórdão
recorrido? foi originariamente proferido pela Secção de Contencioso Tributário
do STA, em 17 de Dezembro de 2008 (fls. 293 a 295) e posteriormente
complementado por acórdão proferido pelo mesmo Tribunal e Secção, em 11 de
Fevereiro de 2009 (fls. 324 a 327-verso), a propósito de um pedido de aclaração
formulado pelo ora recorrente. Por sua vez, o ?acórdão fundamento? corresponde a
decisão proferida pelo TCA-Norte, em 18 de Dezembro de 2008, no âmbito do Proc.
n.º 1751/06.1BEVIS.
Ora, particularmente, em sede de processo tributário ? como é o caso dos autos ?
o artigo 280º do Código de Procedimento e Processo Tributário [CPPT] contém um
regime especial de interposição de recurso ordinário, limitando a possibilidade
da sua interposição para um tribunal de segunda instância e, como tal, tornando
como excepção a possibilidade de interposição de recurso para o STA. O preceito
legal em causa estabelece o seguinte:
?Artigo 280º
Recursos de decisões proferidas em processos judiciais
1 - Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, no
prazo de 10 dias, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou
embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por
qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal
Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito,
caso em que cabe recurso, dentro do mesmo prazo, para a Secção do Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
(?)?
Face a este último preceito, entende o recorrente que, em processo tributário,
sempre que um acórdão proferido por um TCA seja insusceptível recurso para o STA,
por não estar em causa matéria exclusivamente relacionada com a aplicação do
Direito, aquele primeiro deve ser considerado como definitivo e, como tal, deve
ser admitido como possível ?acórdão fundamento?, para efeitos de interposição de
recurso de harmonização de jurisprudência. Porém, mais do que isso, entende
ainda o recorrente que a interpretação normativa levada a cabo pelo tribunal ?a
quo? ? que não admite que acórdão proferido por um TCA seja tido por ?acórdão
fundamento? face a um ?acórdão recorrido? proferido pelo STA ? se encontra
ferida de inconstitucionalidade, por atentar contra o princípio da igualdade (artigo
13º, da CRP) e contra o direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20º, n.º
1, da CRP).
Vejamos, então, se assim é.
5. O recurso para uniformização de jurisprudência instituído pelo n.º 1 do
artigo 152º do CPTA assenta na verificação do trânsito em julgado, quer do ?acórdão
recorrido? quer do ?acórdão fundamento?, enquanto pressuposto processual do
mesmo (neste sentido, ver Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 5ª edição,
2004, p. 395; Mário Aroso de Almeida / Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, 2007, p. 883;
Teresa Violante, Os recursos jurisdicionais no novo contencioso administrativo,
in «O Direito», Ano 139.º, 2007, IV, p. 873) e visa solucionar situações de
conflito resultantes de contradições sobre a mesma questão fundamental de
Direito entre acórdãos de tribunais superiores, de modo a assegurar o tratamento
uniforme de situações substancialmente idênticas (Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa, cit., p. 396). Consequentemente, a função deste tipo de recurso
não assume uma natureza preventiva, visando apenas a resolução de conflitos
entre jurisprudência pré-existente (assim, vide Mário Aroso de Almeida / Carlos
Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, cit., p. 879).
Importa, porém, aferir quais os critérios efectivamente adoptados pelo
legislador para assegurar aquele tratamento uniforme de situações idênticas e,
deste modo, impedir a subsistência de incongruências e contradições entre
acórdãos divergentes.
Começando pela letra da lei, pode dela extrair-se que a opção do legislador
ordinário se encaminhou no sentido de apenas permitir que o ?acórdão fundamento?
haja sido proferido por um tribunal situado em instância superior ao do tribunal
que proferiu o ?acórdão recorrido? ou, pelo menos, que o ?acórdão fundamento?
haja sido previamente proferido pelo mesmo tribunal que proferiu o ?acórdão
recorrido? ? seja este último um TCA [artigo 152º, n.º 1, alínea a), do CPTA] ou
o STA [artigo 152º, n.º 1, alínea b), do CPTA]. À partida, da letra do preceito
legal em causa pode concluir-se que um acórdão proferido por um TCA não pode
constituir ?acórdão fundamento?, quando o ?acórdão recorrido? corresponda a
decisão proferida pelo STA, tendo, aliás, sido esse o entendimento sufragado
pela decisão ora recorrida (em sentido idêntico, ver Vieira de Andrade, A
Justiça Administrativa, cit., p. 395; Mário Aroso de Almeida / Carlos Fernandes
Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., p.
881; Teresa Violante, Os recursos jurisdicionais no novo contencioso
administrativo, cit., p. 872).
Com efeito, em momento algum do enunciado normativo constante das alíneas a) e b)
do n.º 1 do artigo 152º do CPTA, se pode extrair qualquer elemento literal que
autorize a invocação de um acórdão proferido por um TCA ? ainda que funcionando
como última instância de recurso, como sucede por força do n.º 1 do artigo 280º
do CPPT ? como ?acórdão fundamento? em recurso de harmonização de jurisprudência
interposto contra acórdão proferido pelo STA. Mas configurará tal opção
legislativa uma violação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) e do
direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20º, n.º 1, da CRP)?
6. A jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de direito ao recurso
jurisdicional ? em todos os ramos do Direito Processual ? é abundante e já
logrou a indispensável sedimentação na jurisprudência dos demais tribunais
portugueses e na prática judiciária, constituindo hoje uma garantia da segurança
jurídica dos próprios cidadãos, enquanto utilizadores dos mecanismos estatais de
Administração da Justiça. Ora, a propósito de um (eventual) direito fundamental
ao recurso, este Tribunal tem reiterado a afirmação de que não existe qualquer
imposição constitucional no sentido de garantir várias instâncias de recurso ou,
dito de outro modo, de um direito a um terceiro grau de recurso, mesmo em sede
de processo penal. Ilustrativo desse entendimento, cita-se, por comodidade de
argumentação, o bem recente Acórdão n.º 551/09, desta mesma 3ª Secção (disponível
in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«7. O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de
que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição se consagra o direito ao recurso em
processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas
também que a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um
duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na
discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à
mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis
ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado
reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos
casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa
ser aplicada (Cfr., entre muitos, a propósito da anterior redacção da alínea f)
do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na peculiar interpretação acima referida do que
era a pena aplicável, acórdão n.º 64/2006 (Plenário), publicado no Diário da
República, II Série, de 19 de Maio de 2006). Essa limitação do recurso apresenta-se
como ?racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o
Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como
sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o
referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver
reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por
outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação? (citado
Acórdão n.º 451/03).»
Esse entendimento é extensível, por maioria de razão ao direito de recurso nos
demais ramos do Direito Processual e, em especial no que importa ao presente
recurso, em sede de Direito Processual Administrativo e Tributário. Aliás,
recentemente, este Tribunal foi confrontado com uma questão que apresenta alguma
conexão com a que se aprecia nos presentes autos, qual seja a de determinar se a
alínea b) do n.º 1 do artigo 152º do CPTA suporta uma interpretação que impeça
que um acórdão proferido por Secção de Contencioso Administrativo do STA
constitua ?acórdão fundamento? de acórdão proferido pelo mesmo Tribunal Superior,
mas, desta feita, pela respectiva Secção de Contencioso Tributário. A esse
propósito, este Tribunal já teve oportunidade de afastar a inconstitucionalidade
de tal interpretação normativa, por duas vezes (cfr. Acórdão n.º 36/09, da 2ª
Secção, e Acórdão n.º 69/09, da 1ª Secção, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/),
com os seguintes argumentos que se extraem do primeiro dos citados arestos:
«O Tribunal Constitucional já se debruçou amiúde sobre o fulcro da questão da
inconstitucionalidade dos presentes autos ? direito ao terceiro grau de
jurisdição ? e concluiu invariavelmente que o direito de acesso à justiça não
comporta um irrestrito direito a aceder ao Supremo Tribunal de Justiça, muito
menos por via de recurso extraordinário.
Fê-lo, por exemplo, através do acórdão n.º 247/97, quando emitiu um juízo
negativo de inconstitucionalidade a respeito da interpretação normativa que,
mesmo em sede de processo criminal, vedava ao arguido o direito ao recurso
extraordinário de fixação de jurisprudência em caso de oposição de julgados
existente entre um acórdão do Tribunal da Relação e um acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (DR II Série, 17-5-1997).
Foi então avançado que o princípio constitucional da plenitude das garantias de
defesa do arguido, ainda que esteja em causa arguido condenado com uma pena
privativa de liberdade, se basta com a garantia de um segundo grau de jurisdição,
e que a mera oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito não
constitui motivo suficiente para impor ao legislador a previsão de um recurso
extraordinário para a fixação de jurisprudência em todas as hipóteses possíveis,
a nível de tribunais superiores, de oposição de decisões.
Esse juízo negativo de inconstitucionalidade foi reiterado pelo Tribunal
Constitucional a respeito de outras situações de inadmissibilidade de recurso
extraordinário para a uniformização de jurisprudência, nomeadamente, nos
acórdãos n.º 571/98 (DR II Série, 26-11-1999) e 168/2003 (DR II Série, 26-5-2003).
Esta orientação do Tribunal Constitucional sobre a extensão do direito de acesso
aos tribunais e do direito de recurso em processo criminal não sofreu alterações
até aos nossos dias, conforme se alcança da leitura do seu recente acórdão n.º
40/2008 (DR II Série, 28-2-2008), em especial da parte em que se reiterou que:
«Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais, constitui reiterado
entendimento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1, da CRP não decorre
um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se explicitou nos atrás
parcialmente transcritos Acórdãos n.ºs 489/95 e 1124/96. Como se referiu no
Acórdão n.º 638/98 (na senda do já exposto, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 210/92,
346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 715/96, 328/97, 234/98 e 276/98,
e explicitando orientação posteriormente reiterada em numerosos arestos,
designadamente nos Acórdãos n.ºs 202/99, 373/99, 415/2001, 261/2002, 302/2005,
689/2005, 399/2007 e 500/2007):
(...)
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo?se nele
também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e,
em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32.º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas
só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32.º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído
no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões
que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos,
mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos
Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão n.º 65/88,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no Acórdão n.º 202/90,
id., vol. 16.º, p. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro
Mendes (Direito Processual Civil, III ? Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126),
que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o
Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do
Tribunal Constitucional ? artigo 210.º), terá de admitir?se que «o legislador
ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios
recursos» (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17.º, p. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir?se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os citados
Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol.. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º
359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p. 605), n.º 24/88 (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º 450/89 (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais
condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que
tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente
reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na
conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a
faculdade de recorrer.?
Não se vislumbra nenhuma razão para abandonar aqui a referida jurisprudência,
mesmo que esteja em causa um alegado caso de oposição de julgados existente
entre acórdãos proferidos pela Secção de Contencioso Administrativo e pela
Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Mesmo na jurisdição administrativa e tributária, até por força de um argumento a
fortiori, o direito de acesso aos tribunais e a garantia jurisdicional
administrativa não vão além de um segundo grau de jurisdição, conforme já foi
reconhecido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 520/2007 (DR II Série, 5-12-2007).
No caso concreto, a sociedade recorrente viu a sua pretensão de impugnação de
liquidação tributária ser sucessivamente apreciada e julgada pelo Tribunal
Administrativo e Fiscal de Beja e pela Secção de Contencioso Tributário do
Supremo Tribunal Administrativo.
É assim possível concluir que o direito de acesso aos tribunais e o princípio da
plenitude da garantia jurisdicional administrativa foram adequadamente
assegurados pelo legislador ordinário e efectivamente gozados pela sociedade
recorrente para defesa dos seus direitos.»
Voltando ao caso em apreço, importa afirmar que não cabe ao Tribunal
Constitucional determinar qual a interpretação mais adequada das normas ou
interpretações normativas cuja inconstitucionalidade é suscitada nos autos,
cabendo-lhe apenas se a interpretação adoptada é contrária às normas e
princípios ínsitos na Lei Fundamental.
Dito isto, importa frisar que nada na interpretação normativa adoptada permite
concluir pela violação do direito de acesso à Justiça. Conforme já supra
demonstrado pela jurisprudência citada, não pode pretender-se retirar dos
artigos 20º, n.º 1 e 268º, n.º 4, da CRP, qualquer direito fundamental ao
recurso para harmonização de jurisprudência, em sede de Direito Processual
Administrativo ou Tributário. Mesmo em sede de processo penal, já foi por este
Tribunal entendido que o legislador ordinário não se encontra
constitucionalmente obrigado a prever um recurso para harmonização de
jurisprudência que abranja todas as hipóteses possíveis de contradição de
julgados proferidos por tribunais superiores (cfr. Acórdão n.º 247/97, já supra
citado). Para além disso, conforme decorre do Acórdão n.º 520/07 (já supra
citado), a ora recorrente apenas goza do direito a que a sua questão
juridicamente controvertida seja apreciada por um tribunal imparcial e
independente e, quando muito, que tal decisão seja reapreciada por um tribunal
de segunda instância. Ora, nos autos recorridos, a questão controvertida já foi
devidamente apreciada, não por um, mas por dois tribunais: o Tribunal
Administrativo e Tributário de Viseu e o TCA-Norte.
Como tal, sendo certo que a interpretação normativa adoptada pelo tribunal
recorrido quanto ao n.º 1 do artigo 152º do CPTA não abarca todas as hipóteses
possíveis de contradição entre acórdãos proferidos por tribunais superiores, não
se justifica considerá-la como inconstitucional, por violação do direito de
acesso à Justiça (artigos 20º, n.º 1 e 268º, n.º 4, ambos da CRP).
7. O mesmo se diga quanto à invocada inconstitucionalidade por violação do
princípio da igualdade (artigo 13º da CRP).
Pretende a recorrente que a circunstância de a mesma ter instaurado duas acções
tributárias que foram alvo de decisões divergentes, relativamente à mesma
questão jurídica, implica um tratamento desigual, por não lhe ser possível
lançar mão do mecanismo de harmonização de jurisprudências previsto no n.º 1 do
artigo 152º do CPTA. Não tem, porém, razão a recorrente.
O princípio da igualdade não impede a adopção de opções legislativas que
envolvam um tratamento diferenciado de situações diferenciadas, nem tão pouco
impede a diferenciação de soluções jurídicas aplicáveis a situações aproximadas,
desde que objectivamente justificadas e adequadas e necessárias ao fim que se
pretende prosseguir. Dito de outro modo: o princípio da igualdade impõe uma
verdadeira proibição de arbítrio, ou seja, exige que a opção legislativa assente
num fundamento racional (assim, ver a mero título de exemplo, Acórdãos n.º 39/88,
n.º 188/90 e n.º 98/01). Ora, ainda que se admitisse que a interpretação
normativa reputada de inconstitucional pudesse comportar um tratamento
diferenciado de situações similares, sempre seria evidente que tal diferenciação
assenta num critério objectivo e racional, in casu a restrição do mecanismo de
harmonização de julgados a decisões tomadas por um tribunal superior situado na
mesma instância ou em instância superior. Assim, os argumentos da recorrente não
seriam procedentes.
Pelo exposto, também não se vislumbra que a interpretação normativa acolhida
pela decisão recorrida seja inconstitucional.
III ? DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão