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Processo n.º 505/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Na presente acção de responsabilidade civil, que A. intentou contra o Estado
Português, veio o Autor recorrer para o Tribunal Constitucional do Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça que absolveu o réu do pedido.
Tendo sido proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso,
por não ter sido suscitada a questão de constitucionalidade que se pretendia ver
apreciada, perante o tribunal recorrido, o recorrente vem reclamar para a
conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 1030 e seguintes):
?[?]
4. Salvo o devido respeito, a perspectiva que vem de se descrever e que fundou a
decisão de rejeição do recurso de constitucionalidade é contrariada pelo
conteúdo das principais peças processuais que o reclamante, Autor nos autos, foi
apresentando ao longo deste processo cível, designadamente, na petição inicial,
nas alegações de direito apresentadas na 1.ª Instância, nas alegações de recurso
para o Tribunal da Relação e na contra-alegação para o Supremo Tribunal de
Justiça.
5. Pese embora o elevado número e diversidade das questões jurídicas
substanciais com influência para a decisão da causa, nunca ao longo do processo
o reclamante deixou de manifestar uma posição expressa acerca do relevo dos
princípios constitucionais enunciados para a aferição da legalidade da medida
processual privativa da liberdade a que foi sujeito.
6. Que tal questão nem sempre constituiu o eixo central e principal da
argumentação expendida pelo reclamante é circunstância perfeitamente natural,
atenta a pluralidade de pressupostos jurídicos com relevo para a procedência do
pedido e a maior atenção que a uns ou a outros se deveria dar nas referidas
peças processuais em função dos fundamentos de direito apresentados pelas
decisões objecto de recurso ou pelas posições manifestadas pelo Réu a que
cumpria responder.
7. Mas o que não pode deixar de reconhecer-se é que sempre, desde a petição
inicial, o reclamante sustentou a sua pretensão no entendimento de que a sua
detenção foi ostensivamente ilegal, em virtude, além do mais, da violação dos
princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e adequação que
devem conformar a aplicação das medidas coactivas estaduais na esfera dos
liberdades, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.
Senão veja-se:
8. No recurso interposto da sentença de 1.ª Instância, dirigido à Relação do
Porto, alegou-se o seguinte:
?Como de há muito acentua a doutrina penal alemão mais reputada ? cf., inter
alia, Lenckner, Schmidhäuser, Maurach, Zipf, Jescheck e Weigend ? condição para
a afirmação da licitude da conduta do funcionário restrititiva de direitos,
liberdades e garantias fundamentais do cidadão é que a mesma se mantenha ?dentro
dos limites impostos pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, que
em geral devem orientar a intromissão dos órgãos estaduais na esfera jurídica
dos particulares? (cf. n.os 1 e 2 do art. 18.º da CRP).
Nessa medida, revelando-se o acto oficial materialmente desnecessário para a
prossecução da finalidade que lhe é legalmente apontada ? como, aliás, aqui
sucedeu de forma paradigmática ? impõe-se a conclusão de que esse acto, in casu
de detenção, apesar de formalmente acobertado por uma autorização legal,
constituiu, numa perspectiva substancial, um facto ilícito? (ponto 25., pág. 15).
9. Acrescentou-se ainda, no ponto 30. daquela alegação apresentada perante a
Relação do Porto (p. 17 e s.; retomando-se, sinteticamente, nas conclusões, em b.1.1),
p. 37 e s.):
?De notar que a exigência constante da nova redacção dada ao art. 257.º-1 do CPP
? ?? quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não
apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe
fosse fixado? não constitutiu senão ?uma explicitação do princípio
constitucional da proibição do excesso, fundamentalmente na sua vertente de
necessidade, que deve orientar e condicionar qualquer forma de coacção estadual
na esfera dos direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas. Nessa
medida, a referida exigência devia considerar-se também imposta pelo regime
anterior como pressuposto da detenção fora de flagrante delito? (Nuno Brandão,
Medidas de Coacção: O Procedimento de Aplicação na Revisão do Código Penal, 2007,
in: www.cej.mj.pt, p. 4)?.
?Aduziu-se ainda nos pontos 39. e 40. daquela alegação de recurso que ?atender à
mera literalidade dos mandados, para valoração da sua legalidade, tal como
pudesse admitir-se no momento da sua emissão, prescindindo de ponderar a
legalidade da detenção no momento em que esta ocorre e para efeitos de validação,
é omitir o dever de controlo da necessidade da compressão de direito fundamental,
tal como entendido face à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Estaríamos, pois, em interpretação materialmente inconstitucional do regime dos
artigos 254.º, 257.º e 261.º do C.P.P., por violação daquelas normas
supranacionais do art. 5.º, n.º 4, da C.E.D.H. e artigos 27.º e 28.º da
Constituição da República Portuguesa com referência ao artigo 18.º do mesmo
texto fundamental? (p. 21 e s.; argumento retomado nas conclusões, no ponto d),
pág. 39 e s.)?.
10. Em face desta argumentação expendida na alegação de recurso para a Relação,
não se vê como possa admitir-se que nunca o reclamante ao longo do processo
suscitou a concreta questão de constitucionalidade que vem agora apresentar a
este Tribunal Constitucional.
11. Então não se diz ali que o respeito pelos princípios constitucionais da
necessidade e da proporcionalidade constitui condição da licitude da restrição
de liberdades fundamentais do cidadão?
12. E não se diz também que neste concreto caso, e até de forma paradigmática, o
acto oficial privativo da liberdade foi materialmente desnecessário e nessa
medida constitui, numa perspectiva substancial, um facto ilícito?
13. Não vai aqui já contida uma alegação, fundada em inconstitucionalidade,
substancialmente idêntica à da questão de constitucionalidade identificada no
requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional?
14. A prova de que esta questão expressamente suscitada pelo reclamante foi tida
como relevante para a decisão da causa é dada pelo conteúdo do Acórdão da
Relação que logo começou por identificar como questões objecto de recurso, entre
outras, a ?necessidade da compressão de direito fundamental? e a ?interpretação
materialmente inconstitucional do regime dos arts. 254, 257 e 261 do C.P. Penal?
(cf. pág. 6 desse douto Acórdão).
15. Mais, o Acórdão da Relação do Porto decidiu a favor da pretensão do
reclamante justamente porque integrou como parâmetro e critério da decisão para
apreciar a legalidade da medida processual de detenção o respeito pelos
princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação:
?Deve recordar-se que a detenção em causa era fora de flagrante delito e o
carácter excepcional das medidas de privação da liberdade atrás enunciado, sendo
certo não se vislumbrar qualquer situação de urgência, quer da detenção quer até
do interrogatório, como, de certo, veio logo a seguir a ser constatado pelo juiz
e expresso no despacho de libertação.
Esse dever de controlo pelo juiz está, aliás, expresso também no art. 261.º, n.º
1 do C.P. Penal, onde se impõe um dever de libertação (extensível também ao M.P.
e à autoridade policial), logo que se tornar manifesto que a medida de detenção
se tornou desnecessária.
Portanto, diremos nós, que em caso de manifesta desnecessidade da detenção para
os fins por ela visados, qualquer daquelas autoridades se devia abster de a
efectivar, se aquela desnecessidade, de forma manifesta, se revelasse antes da
detenção.
Nestes termos, a detenção executada a mando do M.P. apesar de formalmente se
fundar em mandado legalmente emitido, por provir de autoridade com competência
para o efeito, e dentro dos parâmetros previstos no art. 258 (embora no
condicionamento já atrás apreciado), era materialmente desnecessária, e como tal
ilegítima pelas razões atrás aduzidas.
É essa a interpretação que melhor se adequa à defesa do princípio constitucional
do direito à liberdade e da admissão da sua limitação apenas em casos
excepcionais e por razões de urgência, bem como aos princípios constitucionais
da proporcionalidade, da da necessidade e da adequação aludidos no despacho de
libertação do A.
Por isso, não deveria ter sido validada, como foi, pelo Juiz que proferiu tal
despacho.
A detenção foi pois ilegal e a sua validação posterior enferma da mesma
ilegalidade?.
16. No recurso que interpôs daquele Acórdão da Relação do Porto, o próprio Réu,
o Estado Português, reconheceu que ?há um princípio de tipicidade das privações
da liberdade (¼), ao que acresce que, as privações de liberdade, sendo
excepcionais, estão sujeitas aos requisitos materiais da necessidade, da
adequação e da proporcionalidade? (pág. 11).
17. Ou seja, o Réu aceitou que a necessidade, a adequação e a proporcionalidade
constituíam pressupostos de legalidade da medida e por isso o que cumpria apurar,
considerando a matéria provada, era a sua concreta violação no caso presente (págs.
11 e 12 das alegações de recurso do MP perante o STJ).
18. Exactamente por isto é que na sua contra-alegação o reclamante colocou a
ênfase não tanto na questão que já parecia absolutamente pacífica para todos os
intervenientes do processo, a da aplicabilidade dos sub-princípios da proibição
do excesso à verificação da legalidade de uma medida de detenção, mas mais na
concreta infracção a esses pressupostos de legalidade considerando a matéria
dada como provada.
19. Não obstante, na sua contra-alegação perante o STJ o reclamante não deixou
de pronunciar-se expressamente sobre o relevo dos princípios da necessidade,
proporcionaldiade e adequação, aos quais apontou dignidade constitucional, para
a aferição da legalidade de uma detenção fora de flagrante delito.
20. Fê-lo em vários passos da sua contra-alegação, invocando as normas e
princípios constitucionais pertinentes e louvando-se em jurisprudência do
Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sempre a
propósito das condições de legalidade da detenção:
?11.º
no momento em que ocorre e pelo tempo em que se mantém, ocorreu uma omissão de «dever
de análise acerca da manutenção ou não dos pressupostos que determinaram a sua
emissão, e, ao fim e ao cabo, um dever de controlo sempre actualizado da
necessidade ou não da compressão do direito fundamental, o direito à liberdade.
(¼)
13.º
mesmo sem necessidade de equacionar o problema à luz da nova lei processual
penal ? e a acção foi intentada no domínio da lei anterior ?, o que se pretendeu
vincar foi que, a lei constitucional, ao tempo, também exigia que se atentasse
na necessidade e proporcionalidade (cfr. argumento doutrinário e jurisprudencial
constantes de fls. 12 e sua nota 1).
(¼)
19.º
?ainda que o legislador deva ter querido fazer uma interpretação declarativa
lata, veio a explicitar o que já fluía da ideia da necessidade e
proporcionalidade ? artigo 18 da C.Rep ? num caso de medida excepcional e
compressiva de um direito fundamental - artigo 27, nº 3, também da lei
fundamental.
(¼)
21.º
Se cessara a razão da necessidade da detenção para fazer comparecer quem para
tal se apresentara espontaneamente, logo que teve conhecimento desse interesse
processual,
22.º
e disso tinham conhecimento ?todos os operadores judiciários que intervieram na
execução dos mandados e respectiva validação? (sic a fls. 9 do douto acordão),
23.º
a detenção deixara de ser legal, , pois havia que aferir da proporcionalidade da
privação da liberdade, da duração e das condições em que se verificou a
restrição de liberdade ? ? Acs. T.Const. referidos pelo Ilustre recorrente a fls.
11.
24.º
Estamos perante uma ilegalidade manifesta na execução e manutenção da detenção,
por inverificadas as ?circunstâncias em que pode ter lugar a detenção?, para
usar expressão do autor referido a fls.17 das doutas alegações de recorrente. A
isto alude a douta decisão recorrida falando em ?detenção materialmente
desnecessária e, como tal, ilegítima? (fls. 11 da mesma).?
21. E no art. 26.º da contra-alegação chegou mesmo a citar-se e a transcrever-se
jurisprudência constitucional (Ac. do TC n.º 363/00), para manifestar o
entendimento de que ?como acentuam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit.,
loc. cit.) 'o direito à liberdade, enquanto «direito, liberdade e garantia»,
está sujeito às competentes regras do art. 18º, nºs 2 e 3, o que quer dizer,
entre outras coisas, que só podem ser estabelecidas restrições para proteger
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se
ao necessário para os proteger. Tais princípios vinculam o legislador na
definição dessas medidas e o aplicador (designadamente o juiz) delas? (negrito
nosso)
22. Perante o teor desta contra-alegação não se compreende o entendimento
expresso nesta douta decisão sumária de que o reclamante não suscitou naquela
conta-alegação a questão de constitucionalidade constante do seu recurso para o
Tribunal Constitucional.
23. Se, efectivamente, a contra-alegação pode parecer não conter uma formulação
absolutamente igual àquela que depois veio a integrar no seu requerimento de
recurso de constitucionalidade,
24. não é menos certo que nela já se encontra perfeitamente expressa a posição
de que para a afirmação da legalidade de uma medida cautelar de detenção
dependia da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, sob pena de violação
constitucionalmente inadmissível do direito fundamental à liberdade e dos
princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
25. Não é razoável pretender que o reclamante ? que vinha de conhecer um Acórdão
que deu provimento ao seu pedido indemnizatório e se confrontava com uma
alegação do MP que reconhecia a necessidade, a adequação e a proporcionalidade
como requisitos da detenção; e antes sequer de conhecer, pela própria natureza
das coisas, os termos e o modo como o STJ iria tratar os problemas colocados à
sua consideração ? enunciasse logo na sua contra-alegação a questão de
constitucionalidade de um modo literalmente tão enxuto e ?cirúrgico? como aquele
que veio a formular na sua arguição de nulidade e depois neste recurso para o
Tribunal Constitucional, em que já conhecia o conteúdo da decisão do Supremo.
26. Ora, o que não se pode negar é que na contra-alegação não estivesse já
contido aquilo que de essencial e substancial avulta neste problema de
constitucionalidade que ora se dirige ao Tribunal Constitucional,
27. de molde a que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse pronunciar-se
expressamente sobre a questão, como pressupõem os arts. 70.º-1, b), e 72.º da
Lei do Tribunal Constitucional.
28. Exactamente por entender que da sua contra-alegação resultaria para o STJ o
dever de apreciar a correlação entre os pressupostos legais da detenção fora de
flagrante delito e os princípios constitucionais da necessidade,
proporcionalidade e adequação, tendo em conta que através dela haveria lesão do
direito fundamental à liberdade,
29. é que o reclamante, tendo visto o STJ afirmar, na pág. 21 do douto Acórdão,
que ?só por excesso de justificação interessa abordar a questão da adequação,
proporcionalidade e necessidade da medida? e ainda que ?a falta destes
requisitos não integra o conceito de ilegalidade?, veio ?recordar? o STJ de que
na sua contra-alegação suscitara a desconformidade constitucional de um tal
entendimento, a qual todavia não chegou a ser apreciada no Acórdão, o que
justificou a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.
30. Arguição que, como se vê, não disse respeito a uma qualquer questão
processual à ?boleia? da qual se tivesse enxertado pela primeira vez a questão
de constitucionalidade para viabilizar depois o recurso de constitucionalidade,
31. mas referiu-se, isso sim, ao próprio problema de constitucionalidade que já
emergia da contra-alegação e que, na sua perspectiva, o STJ não havia conhecido.
32. Aqui chegados, e sempre com o devido respeito, crê-se demonstrado o
desacerto do entendimento do Exmo. Senhor Conselheiro Relator de que o
reclamante não suscitou previamente a questão de constitucionalidade nos termos
determinados pelos arts. 70.º-1, b), e 72.º da LTC.
Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio,
33. Mesmo que improceda o que vai alegado e se considere que o reclamante não
suscitou prévia e devidamente o problema de constitucionalidade que o seu
recurso,
34. nem por isso há motivo para rejeitar o recurso, como se decidiu na douta
Decisão Sumária objecto da presente reclamação.
35. Isto porque não seria exigível, para efeito do previsto nos arts. 70.º-1, b),
e 72.º da LTC, que o reclamante suscitasse a inconstitucionalidade nos termos
tão apertados que parecem exigir-se na Decisão Sumária.
36. Na realidade, como se viu, o reclamante acabava de receber uma decisão do
Tribunal da Relação que afirmava, categoricamente e como fundamento para a
procedência do recurso, que a legalidade da detenção fora de flagrante delito
dependia do cumprimento dos requisitos, de natureza constitucional, da
necessidade, proporcionalidade e adequação;
37. e deparava-se com uma alegação do réu Estado Português, subscrita por uma
Procuradora-Geral Adjunta que perfilhava esse entendimento.
38. O reclamante admitia como teoricamente possível que o Supremo, à semelhança
da 1.ª Instância, desse provimento ao recurso do MP em virtude de considerar que
no presente caso, e atentos os seus concretos circunstancialismos, a detenção
não fora desnecessária, desadequada ou desproporcional.
39. Hipótese que não estava absolutamente arredada das suas cogitações
precisamente porque levava suposta a premissa de que aqueles corolários do
princípio da proibição do excesso constituíam pressuposto de qualquer detenção
fora de flagrante delito.
40. Mas jamais o reclamante supôs que o Supremo Tribunal de Justiça viesse a
decidir como decidiu, i. e., no sentido da afirmação da legalidade da detenção
que o reclamante sofreu, com base na ideia de que ?só por excesso de
justificação interessa abordar a questão da adequação, proporcionalidade e
necessidade da medida?, uma vez que ?a falta destes requisitos não integra o
conceito de legalidade?.
41. Na verdade, esta fundamentação decisória contraria de um modo tão ostensivo,
para não dizer mesmo aberrante, o ideário de um Estado de Direito democrático e
liberal,
42. que nunca o o reclamante pensou que o Supremo Tribunal de Justiça do Estado
Português declarasse que a legalidade de uma detenção não não depende da sua
adequação, proporcionalidade e necessidade.
43. Pensamento que nunca antes se viu ser sufragado pelo Supremo Tribunal de
Justiça ? repare-se que o Acórdão recorrido não invoca qualquer outro acórdão do
STJ nesse sentido; e qualquer pesquisa jurisprudencial em busca de um acórdão do
STJ com tal conteúdo será seguramente infrutífera, pela simples razão de que,
pelo menos ao que o reclamante apurou, nenhum acórdão mais existe que se tenha
pronunciado nessa direcção de que à legitimidade da detenção é alheio o
princípio da proibição do excesso ?;
44. e que está em franca oposição com tudo aquilo que a jurisprudência
constitucional vem decidindo e que a doutrina nacional e estrangeira mais
reputada vem defendendo nesta matéria.
45. Apelando a uma imagem penal, impõe-se a pergunta:
46. numa perspectiva objectiva ex ante, reportada ao momento da elaboração da
contra-alegação, seria previsível que o Supremo viesse a entender que para
aferir da legalidade de uma detenção se poderia dispensar a verificação da sua
necessidade, proporcionalidade e adequação?
47. A resposta só pode ser negativa, tão descabida e destituída de sentido se
afiguraria uma tal hipótese!
48. A interpretação dada pelo STJ às disposições conjugadas dos arts. 225.º, 254.º-1,
a), 257.º, 258.º e 261.º do CPP, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, no
sentido de que a adequação, a proporcionalidade e a necessidade da medida não
constituem pressupostos da legalidade da detenção fora de flagrante delito é tão
absolutamente surpreendente que configura uma autêntica decisão surpresa,
dispensando nessa medida o ónus da sua prévia arguição de inconstitucionalidade
? cf. Guilherme da Fonseca / Inês Domingos, Breviário de Direito Processual
Constitucional, 2.ª ed., p. 52; e Ac. do TC n.º 426/2002.
49. Razão pela qual, subsidiariamente, deverá deferir-se a presente reclamação?.
O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional (fls. 1039 e seguinte),
pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Na decisão sumária ora reclamada considerou-se que não podia conhecer-se do
objecto do presente recurso de constitucionalidade por o recorrente não ter
suscitado, perante o tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade da
interpretação que constitui tal objecto ? ou seja, da interpretação, reportada
aos artigos 225º, 254º, n.º 1, alínea a), 257º, 258º e 261º do Código de
Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, segundo a
qual a adequação, a proporcionalidade e a necessidade da medida não constituem
pressupostos da legalidade da detenção fora de flagrante delito -, o que é
exigido pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional.
Na reclamação ora em análise, o recorrente insurge-se contra esta conclusão,
declarando, em síntese, que desde o momento da apresentação da petição inicial
sustentara a sua pretensão ?no entendimento de que a sua detenção foi
ostensivamente ilegal, em virtude, além do mais, da violação dos princípios
constitucionais da necessidade, proporcionalidade e adequação que devem
conformar a aplicação das medidas coactivas estaduais na esfera dos direitos,
liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos?, transcrevendo depois os
excertos da peça processual por si produzida perante a Relação do Porto, que, na
sua perspectiva, comprovam a suscitação da concreta questão de
inconstitucionalidade agora submetida ao Tribunal Constitucional.
Mas, como é evidente, esta argumentação irreleva, pois que o artigo 72º, n.º 2,
da Lei do Tribunal Constitucional exige que a suscitação da questão de
inconstitucionalidade tenha lugar perante o tribunal recorrido, que é, no
presente caso, o Supremo Tribunal de Justiça. Dito de outro modo: mesmo que se
admita que, no recurso de apelação, o ora recorrente haja suscitado a questão de
inconstitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso, a verdade é
que tal não bastaria para que se considerasse cumprida a exigência daquele
preceito legal, na medida em que era necessário que, nas contra-alegações da
revista, o recorrente a suscitasse.
Portanto, para que a presente reclamação procedesse era necessário que o ora
recorrente demonstrasse que, nas contra-alegações que produziu perante o Supremo
Tribunal de Justiça, sustentou a inconstitucionalidade da interpretação,
reportada aos artigos 225º, 254º, n.º 1, alínea a), 257º, 258º e 261º do Código
de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto,
segundo a qual a adequação, a proporcionalidade e a necessidade da medida não
constituem pressupostos da legalidade da detenção fora de flagrante delito.
Mas tal demonstração não é feita. Como o próprio reclamante reconhece, nessas
contra-alegações apenas se pronunciou ?sobre o relevo dos princípios da
necessidade, proporcionalidade e adequação, aos quais apontou dignidade
constitucional, para a aferição da legalidade de uma detenção fora de flagrante
delito?: ora esta pronúncia do reclamante sobre a ilegalidade ou
inconstitucionalidade de uma detenção manifestamente não equivale à suscitação
da inconstitucionalidade de uma concreta interpretação de preceitos legais, ou
seja, à imputação, a certa interpretação de certos preceitos legais, da violação
de normas ou princípios constitucionais.
E não se trata de mera divergência de formulações, como dá o reclamante a
entender, quando afirma que ?a contra-alegação pode parecer não conter uma
formulação absolutamente igual àquela que depois veio a integrar no seu
requerimento de recurso de constitucionalidade?: o que sucede é que, como se
disse, nas contra-alegações do recurso de revista o ora recorrente não se
pronunciou sobre a questão de inconstitucionalidade que constitui o objecto do
presente recurso, mas sobre a ilegalidade (e, porventura, a
inconstitucionalidade) da detenção a que fora submetido, o que é uma realidade
diferente.
Como também observa o Ministério Público na resposta à presente reclamação, nas
contra-alegações do recurso de revista faz-se referência à legalidade da
detenção, a normas e princípios constitucionais e à jurisprudência
constitucional, mas não se formula a questão de inconstitucionalidade normativa
que agora é colocada ao Tribunal Constitucional.
Daí também que não possa compreender-se a afirmação do reclamante (cfr. ponto 29
da reclamação) de que ?na sua contra-alegação suscitara a desconformidade
constitucional de um tal entendimento, a qual todavia não chegou a ser apreciada
no Acórdão, o que justificou a arguição de nulidade por omissão de pronúncia?.
Finalmente, e de modo subsidiário, sustenta o reclamante que ?não seria exigível,
para efeito do previsto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º da LTC, que o
reclamante suscitasse a inconstitucionalidade nos termos tão apertados que
parece exigir-se na decisão sumária?, pois que não era previsível que o Supremo
Tribunal de Justiça viesse a entender que para aferir da legalidade de uma
detenção se poderia dispensar a verificação da sua necessidade,
proporcionalidade e adequação.
Não pode, todavia, concordar-se com este argumento, pois que a interpretação
perfilhada pelo tribunal recorrido fora, como o próprio reclamante admite, por
si censurada no recurso de apelação perante o Tribunal da Relação do Porto: daí
que, neste processo, a adopção dessa interpretação não colheu o recorrente de
surpresa, impedindo-o de suscitar antes a sua inconstitucionalidade. Tal como
fizera no recurso para o Tribunal da Relação do Porto, também no recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça podia o recorrente ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade, e a circunstância de a decisão da Relação lhe ter sido
favorável não pode naturalmente significar a imprevisibilidade da decisão do
Supremo, atendendo à possibilidade de, em qualquer recurso, ser revogada a
decisão do tribunal recorrido.
Em suma: não pode aceitar-se que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça tenha
assentado numa interpretação que o ora recorrente não podia esperar, quando essa
interpretação já havia sido censurada pelo próprio recorrente, se bem que em
outro momento processual; nestes casos, o carácter inesperado da decisão mais
não traduz do que o funcionamento das regras gerais sobre recursos (sendo uma
delas a de que o tribunal superior pode revogar a decisão recorrida, por adoptar
outra fundamentação).
Termos em que, por improceder a argumentação do reclamante, deve manter-se a
decisão sumária.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, desatende-se a presente reclamação,
mantendo-se a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 30 de Setembro de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão