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Processo n.º 856/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Na presente de acção de condenação que A., S. A. intentou contra a Câmara
Municipal de Miranda do Douro, em vista ao pagamento de importâncias devidas no
âmbito da execução de contratos de prestação de serviços e exploração das
estações de tratamento de águas de abastecimento do município e das estações de
tratamento de águas residuais, a ré recorreu para o Supremo Tribunal
Administrativo da decisão condenatória proferida pelo Tribunal Administrativo de
Círculo, alegando, além do mais, a nulidade dos contratos celebrados entre as
partes por violação do regime de delimitação dos sectores, então vigente, que
vedava às empresas privadas o exercício da actividade económica em causa.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 24 de Outubro de 2006, embora
reconhecendo a nulidade dos contratos, pela invocada razão, atribuiu à
declaração de nulidade mera eficácia ex nunc, admitindo que estes mantivessem os
seus efeitos como se fossem válidos durante o período da sua execução, por
equiparação com o que sucede nos casos de resolução dos contratos privados de
execução continuada ou periódica e de nulidade do contrato de trabalho, por
aplicação do disposto nos artigos 434º, n.º 2, do Código Civil e 115º, n.º 1, do
Código de Trabalho.
A Câmara Municipal de Miranda do Douro interpôs então recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1- Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a ilegalidade da aplicação,
por equiparação, das normas constantes do artigo 115°, n.° 1, do Código do
Trabalho e do artigo 434°, n.° 2, do Código Civil, a contratos administrativos
que o próprio Supremo Tribunal Administrativo, no douto acórdão em questão,
qualificou de nulos, por violarem lei imperativa, publicada para dar cumprimento
a um princípio constitucional,
2- Ou seja, que seja declarada a inconstitucionalidade dessas normas, se
interpretadas no sentido de o seu dispositivo se aplicar a contratos
administrativos que estejam nas condições referidas no número anterior.
3- A recorrente entende que o douto acórdão recorrido, que decidiu aplicar as
normas em causa, por equiparação, ao caso dos autos, violou o disposto nos
artigos 3°, n.° 3, 202°, n.° 2, e 204.° da Constituição da República Portuguesa.
4- A recorrente suscitou a questão da nulidade dos ditos contratos na alegação
de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, mas não era possível ter
invocado a inconstitucionalidade das referidas normas (se interpretadas no
sentido agora posto em causa) uma vez que a aplicação de tais normas ao caso
discutido nos autos apenas foi decidida no acórdão recorrido, nunca antes tendo
sido aventada tal hipótese.
5- Também não foram discutidas nos autos, de nenhuma outra forma, as
consequências da nulidade dos referidos contratos, precisamente porque essa
nulidade, invocada pela recorrente, apenas foi verificada no mencionado acórdão.
6- Na sua alegação de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo a
recorrente invocou, porém, a ilegalidade dos contratos e defendeu que, em
consequência, a solução para o caso era a aplicação do princípio da proibição do
enriquecimento sem causa.
7- Na opinião da recorrente foram enunciados pela recorrente, nessa peça
processual, os elementos essenciais de uma questão de constitucionalidade
normativa, tendo o Tribunal apreciado e decidido substancialmente a questão,
reconhecendo que assistia razão à recorrente, mas não retirando as consequências
que a mesma recorrente entende que são devidas.
O relator remeteu o processo para alegações com a indicação de que, em seu
parecer, o objecto do recurso deveria considerar-se circunscrito à questão de
constitucionalidade referenciada no número 2 do requerimento de interposição,
por não ser possível, por incompetência material do Tribunal, apreciar os
aspectos mencionados nos números 1 e 3 desse requerimento.
A Câmara Municipal de Miranda do Douro apresentou alegações em que formulou as
seguintes conclusões:
1- A legislação violada que está em causa neste processo (e que torna os
contratos nulos) foi concebida em obediência e para concretização de um comando
explícito da Constituição;
2- As suas normas são fiéis à filosofia desse comando e da CRP no seu conjunto;
3- Tratou-se de violação clara dessas normas e não de um desvio de
interpretação;
4- As alterações que o diploma legal em questão sofreu ao longo do tempo foram
precedidas da revisão da Constituição e foram concretizadas mediante
autorizações da Assembleia da República ao Governo para legislar sobre a
matéria, com condições e limites específicos;
5- A abertura da actividade económica em causa à iniciativa privada só foi
permitida, e com condicionantes, depois da revisão constitucional de 1992,
alterado que foi profundamente o paradigma da organização económica do país;
6- Tal como a Administração não pode apagar os efeitos da nulidade dos actos
'regularizando os actos nulos' e o legislador, mesmo em face de motivações de
indiscutível interesse público que aconselhem a alteração do quadro jurídico
para evitar a 'desordem jurídica' só o pode fazer respeitando os ditames
constitucionais, o intérprete também não pode afrontar esses ditames, mesmo
quando entenda ser justa outra solução;
7- O regime do Código do Trabalho é específico desse ramo do direito e as
soluções do seu artigo 115.º de não aplicar o regime geral da nulidade
estabelecido nos arts. 288.º a 294.º do Código Civil, têm acolhimento
precisamente em preceitos constitucionais;
8- A solução de a nulidade apenas operar ex nunc, produzindo os contratos os
seus efeitos como se fossem válidos durante o tempo em que estiveram em execução
não pode ser aplicada quando tal nulidade advém da violação de normas
constitucionais, sob pena de ofensa grave à segurança jurídica e enfraquecimento
do Estado de Direito;
9- A regra da conclusão anterior aplica-se, pelas mesmas razões, às normas
legais ditadas por comandos constitucionais e que sejam fiéis a esses comandos e
à filosofia aplicável da Lei Fundamental;
10 – A complacência ou, mais gravemente, a regularização pelo intérprete de
violações graves dessas leis significaria o suicídio do Estado de Direito;
11- A defesa do núcleo legislativo plasmado na Constituição e nas leis que dela
derivam directamente, implica que em situações de violação, tratando-se de
contratos, estes sejam tratados como se fossem inexistentes;
12- A CRP, embora revista, é hoje a de 1976 e não pode deixar de considerar-se
inconstitucional uma norma legal se interpretada de molde a contrariar a versão
original daquela, quando aplicada a factos ocorridos quando vigorava essa
versão;
13- Se assim não fosse o Estado de Direito não seria coerente com ele próprio e
não se poderia esperar que as gerações vindouras respeitem as nossas actuais
opções;
14- Sendo inconstitucional a norma legal explícita, por maioria de razão o serão
outras que foram criadas para outros fins, se interpretadas para aplicação
analógica a casos que cairiam dentro do campo abarcado pela
inconstitucionalidade;
15- As normas do n.º 2 do art. 434.º do Código Civil e do n.º 1 do art. 115.º do
Código do Trabalho são inconstitucionais, se interpretadas no sentido de o seu
dispositivo se aplicar a contratos administrativos nulos por violarem lei
imperativa publicada para dar cumprimento a um princípio constitucional, porque,
sendo aplicadas, contrariam a letra e o espírito das normas inseridas nos
artigos 277.º, n.º 1, 204.º e 3.º, n.º 3, da Constituição.
A A., S. A., ora recorrida, contra-alegou, concluindo, por seu turno, do
seguinte modo:
I O Recorrente carece de legitimidade para interpor o presente recurso em
virtude de não ter suscitado perante o Tribunal Recorrido a questão da
inconstitucionalidade, por esse motivo, deve o mesmo ser indeferido, o que se
requer nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 3 do artigo 76.° da Lei
n.° 28/82.
II. A Lei dos Sectores Vedados — Lei n.° 46/77, de 8 de Julho - não é uma norma
constitucional, trata-se, tão só, de uma norma legal que concretiza um comando
constitucional por conseguinte, a celebração de contratos em desconformidade com
as disposições legais contidas nesse diploma poderá traduzir-se, apenas num
vício de violação de lei, e nada mais.
III. A declaração de nulidade com efeitos ex nunc é admissível no âmbito do
Direito Administrativo — nos termos previstos no n.° 3 do artigo 134.° do CPA- ,
não é uma solução com acolhimento legal específico em apenas alguns ramos de
direito.
IV. As normas que possibilitam a atribuição de efeitos ex nunc à declaração de
nulidade encontram a sua fundamentação em princípio gerais e estruturantes do
nosso ordenamento jurídico: o princípio da segurança jurídica e da tutela da
confiança.
V. De resto, o legislador constituinte eleva o princípio da segurança jurídica
ao ponto de considerar que o mesmo pode justificar uma limitação dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade, conforme se prevê no n.° 4 do artigo 282.°
da CRP.
VI. Ora, se este princípio justifica a limitação dos efeitos de uma declaração
de inconstitucionalidade, por maioria de razão justificará uma limitação dos
efeitos de uma declaração de nulidade.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Questão prévia
2. Na sua contra-alegação, a recorrida suscita a questão da ilegitimidade
processual activa para a interposição do recurso, por considerar que recorrente
não cumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade no decurso do
processo e não preenche, por conseguinte, o requisito processual a que se
referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional.
E, na verdade, na alegação de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, a
recorrente limitou-se a arguir a nulidade dos contratos de prestação de serviços
celebrados entre as partes sem equacionar a inconstitucionalidade da
interpretação normativa que viesse a ser adoptada pelo tribunal de recurso no
sentido da limitação da eficácia da declaração de nulidade, questão que está
agora em causa.
No entanto, a recorrente invocou, no requerimento de interposição de recurso que
a questão da nulidade dos contratos nunca tinha sido antes aventada no processo,
e foi arguida apenas em sede de recurso, e a sua perspectiva, como decorre das
respectivas alegações, é a de que nunca seriam aplicáveis ao caso, no plano das
consequências jurídicas da declaração de nulidade, normas que têm um campo
aplicativo restrito às relações de direito contratual privado ou do direito
laboral.
Como se sabe, a exigência da prévia suscitação da questão de constitucionalidade
decorre da própria natureza do recurso para o Tribunal Constitucional e do seu
específico âmbito objectivo, tendo em consideração que o recurso incide sobre
normas e não sobre decisões; o que pressupõe que o tribunal a quo tenha aplicado
na decisão recorrida a norma cuja constitucionalidade se questiona e tenha, por
isso, sido confrontado com essa matéria ainda antes da prolação da sua decisão,
em termos de estar obrigado a dela conhecer.
Todavia, o tribunal tem entendido que o ónus de prévia suscitação não é
aplicável nas situações em que o recorrente não tenha tido oportunidade
processual de formular, perante o tribunal recorrido, a questão da
constitucionalidade da interpretação normativa que tenha sido adoptada, o que
sucede, designadamente, nos casos em que o interessado se depara com uma
decisão-surpresa, isto é, com uma interpretação com a qual não poderia
razoavelmente contar.
No caso em apreço, sendo embora certo que não está afastada, no domínio do
contencioso administrativo, a possibilidade de aplicação de princípios gerais
que emergem de outros ramos do direito ou do ordenamento jurídico globalmente
considerado, é aceitável que o interessado possa invocar a não previsibilidade
de uma solução normativa que tenha sida extraída de um regime legal que não
seria, à partida, directamente aplicável.
Entende-se, assim, ser de rejeitar o invocado fundamento de ilegitimidade
activa.
Delimitação do objecto do recurso.
3. A apreciação da matéria de fundo justifica, no entanto, que se efectue uma
precisão quanto ao objecto do recurso.
No requerimento de interposição de recurso, a recorrente não suscita apenas a
questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 115º, n.º 1, do Código
do Trabalho e 434º, n.º 2, do Código Civil, mas também a inconstitucionalidade
da própria decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 3º, n.º 3,
202º, n.º 2, e 204º da Constituição da República, e, bem assim, a sua
ilegalidade por violação das normas que definem o regime legal de delimitação de
sectores.
Como se deixou antever, e consta do despacho interlocutório do relator, a
competência do Tribunal Constitucional está circunscrita às questões de
constitucionalidade normativa, pelo que não pode conhecer-se do objecto de
recurso na parte em que nele se pretende obter um controlo do mérito da própria
decisão recorrida.
Acresce que, no âmbito da fiscalização concreta da legalidade, o Tribunal
Constitucional apenas pode conhecer de decisões que recusem a aplicação de
normas constantes de acto legislativo por violação de lei de valor reforçado ou
por violação do estatuto de uma região autónoma (artigo 281º, n.º 2, da
Constituição), pelo que não é também possível conhecer do recurso na parte em
que se pretende a verificação da legalidade da decisão quanto à aplicação aos
contratos administrativos, por equiparação, das disposições dos artigos 115°,
n.° 1, do Código do Trabalho e 434°, n.° 2, do Código Civil.
Por outro lado, mesmo no que se refere à questão de constitucionalidade
normativa que está em causa, importa notar que a pronúncia do tribunal recorrido
foi não no sentido da aplicação tout court das normas dos artigos 115º, n.º 1,
do Código do Trabalho e 434º, n.º 2, do Código Civil, mas no sentido da
aplicação de um princípio jurídico de limitação da eficácia da declaração de
nulidade dos contratos extraído dessas disposições.
É o que decorre com evidência do seguinte excerto do acórdão recorrido:
Concordamos, inteiramente, com a ideia de que a eficácia ex nunc é a melhor
solução. Na verdade, pelas razões expostas, a regra do art. 289º, n.º 1, do
Código Civil, que como vimos, se aplicada com efeitos ex tunc no domínio dos
contratos de execução continuada de serviços se mostra inadequada à sua própria
teleologia, carece de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é
desigual, isto é, deve ser objecto de redução teleológica (cfr. Karl Larenz, ob.
cit., págs. 450/457), de molde a que, nos contratos de execução continuada em
que uma das partes beneficie do gozo de serviços cuja restituição em espécie não
é possível, a nulidade não abranja as prestações já efectuadas, produzindo o
contrato os seus efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual
esteve em execução, a exemplo do que, como afloramento da mesma ideia, está
expressamente consagrado na nulidade, por equiparação, resultante da resolução
dos contratos de execução continuada ou periódica (arts. 433º e 434º, n.º 2, do
Código Civil) e na nulidade do contrato de trabalho (art. 115º, n.º 1, do Código
do Trabalho).
Não há, por conseguinte, uma aplicação directa ao caso dos autos das referidas
normas do Código do Trabalho e do Código Civil, mas antes a aplicação de um
critério legal de que existem afloramentos nessas disposições e que se pode
considerar como um princípio geral que se torna extensivo ao contencioso dos
contratos administrativos.
Mérito do recurso
4. Como resulta dos elementos dos autos, a ré, ora recorrente, adjudicou à
autora a prestação de serviços de exploração das estações de tratamento de águas
de abastecimento público e de águas residuais.
Os contratos foram celebrados em 28 de Janeiro de 1992.
A ré não procedeu ao pagamento de diversas facturas vencidas relativas a
serviços prestados no âmbito dos referidos contratos, no montante global de €
335 082,98.
Por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo, a ré foi condenada a pagar à
autora a referida importância, acrescida de juros moratórios.
Em recurso jurisdicional interposto perante o STA, a ré invocou a nulidade dos
contratos celebrados entre as partes, por violação da «lei de delimitação dos
sectores», que vedava às empresas privadas o acesso às actividades que
constituíam o objecto contratual.
Apesar da questão da nulidade ter sido suscitada pela primeira vez em sede de
recurso, e não ter sido, por isso, objecto de pronúncia pelo tribunal de
primeira instância, o STA considerou que lhe cumpria conhecer da questão, por se
tratar de matéria de conhecimento oficioso; e, tendo reconhecido que os
contratos em causa foram celebrados contra disposição legal imperativa, declarou
a nulidade desses contratos nos termos do artigo 294º do Código Civil, aplicável
por força do artigo 185º, n.º 3, alínea b), do Código de Procedimento
Administrativo; no entanto, atendendo a que se tratava de contratos de execução
continuada que foram efectivamente executados, o tribunal de recurso procedeu à
redução teleológica do disposto no artigo 289º, n.º 1, do Código Civil, que era
aplicável ao caso, atribuindo à declaração de nulidade mera eficácia ex nunc, em
termos tais que considerou que os contratos produziram todos os seus efeitos
pelo período correspondente à sua execução, como se fossem válidos, com o que se
estabelece no âmbito da resolução dos contratos civis de execução continuada ou
periódica (artigos 433º e 434º, n.º 2, do Codigo Civil) e em caso de nulidade do
contrato de trabalho (artigo 115º, n.º 1, do Código do Trabalho).
Deste modo, o acórdão recorrido, apesar do reconhecimento da nulidade dos
contratos, considerou que não havia motivo para julgar procedente o recurso e
confirmou a sentença condenatória.
A recorrente insurge-se contra o assim decidido, dizendo, em resumo, que a norma
imperativa que determinou a nulidade dos contratos (constante da Lei n.º 46/77,
de 8 de Julho) resulta da concretização de um comando explícito da Constituição,
relativo à delimitação dos sectores, vigente à data em que os contratos foram
celebrados, pelo que a atribuição de eficácia ex nunc à declaração de nulidade
constitui ofensa ao princípio da segurança jurídica e ao primado do Estado de
Direito, concluindo que as normas do n.º 2 do artigo 434.º do Código Civil e do
n.º 1 do artigo 115.º do Código do Trabalho são inconstitucionais, quando
interpretadas no sentido de serem aplicáveis a contratos administrativos nulos,
por contrariarem o disposto nos artigos 277.º, n.º 1, 204.º e 3.º, n.º 3, da
Constituição.
Já vimos num momento precedente, que o tribunal recorrido não efectuou uma
aplicação directa das referidas normas da lei civil e da lei laboral e
considerou antes aplicável um princípio geral, segundo o qual, em caso de
contratos administrativos de execução continuada, em que uma das partes tenha
beneficiado dos serviços prestados que já não poderão ser objecto de restituição
em espécie, a declaração de nulidade não abrange as prestações efectuadas; com a
consequência de se manter, em relação ao co-contratante, o dever de pagamento do
preço correspondente.
Importa notar, por outro lado, que a recorrente, como fundamento de
inconstitucionalidade, limita-se a aludir a normas constitucionais de garantia
que não possuem um relevo autónomo como parâmetro de constitucionalidade. De
facto, o artigo 3.º, n.º 3, da Constituição consagra um princípio de
conformidade dos actos do Estado e das demais entidades públicas com a
Constituição, o que constitui uma consequência directa da juridicidade dos
poderes estaduais e da força normativa da Constituição enquanto lei fundamental
da ordem jurídica; é em concretização desse mesmo princípio que a Constituição
assegura, por sua vez, a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das
leis e permite que os tribunais recusem a aplicação de normas que sejam
inconstitucionais, tal como resulta dos citados artigos 204º e 277º (cfr. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol.,
4ª edição, págs. 217-218).
O reconhecimento da existência de um princípio de constitucionalidade não é,
todavia, bastante para se considerar verificado, em relação à norma aplicada
pelo tribunal recorrido, o vício de desconformidade com a Constituicão.
É necessário que se identifique o princípio ou preceito constitucional
substantivo que possa ter sido violado pela interpretação normativa que
constitui objecto do recurso.
E nesse plano, o único princípio que pode ser chamado à colação e servir de
parâmetro de constitucionalidade é o da segurança jurídica, como decorrência do
Estado de direito, a que a recorrente se refere na conclusão 8.ª das suas
alegações.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito,
a que alude o artigo 2º da Constituição, «mais do que constitutivo de preceitos
jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e
princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de
sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos
liberdade, igualdade e segurança». E, como acrescentam os mesmos autores, não
está excluído que dele se possam colher normas que não tenham expressão directa
em qualquer dispositivo constitucional, mas que se apresentam «como consequência
imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito
democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio
e a injustiça (especialmente por parte do Estado)» (ob. cit., págs. 205-206).
É assim que se compreende que o princípio da segurança jurídica surja como uma
projecção do Estado de direito e se torne invocável, como critério
jurídico-constitucional de aferição de uma certa interpretação normativa, a
partir do próprio conceito de Estado de direito ínsito no falado artigo 2º da
Constituição.
Mas sendo assim, o único princípio constitucional que é susceptível de ter sido
violado, face aos termos em que a questão é colocada no processo, é o princípio
da segurança jurídica, a que se reconduz a concomitante referência que é feita
nas alegações de recurso ao princípio do Estado de direito, sendo, pois, esse o
único parâmetro de constitucionalidade que interessa analisar.
5. A garantia de segurança jurídica inerente ao Estado de direito corresponde,
numa vertente subjectiva, a uma ideia de protecção da confiança dos particulares
relativamente à continuidade da ordem jurídica. Nesse sentido, o princípio da
segurança jurídica vale em todas as áreas da actuação estadual, traduzindo-se
em exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e,
especialmente, ao legislador.
Referindo-se à protecção da confiança dos particulares relativamente à
manutenção de um certo regime legal, Reis Novais defende, em tese geral, que «os
particulares têm, não apenas o direito a saber com o que podem legitimamente
contar por parte do Estado, como, também, o direito a não verem frustradas as
expectatitvas que legitimamente formaram quanto à permanência de um dado quadro
ou curso legislativo, desde que essas expectativas sejam legítimas, haja
índicios consistentes de que, de algum modo, elas tenham sido estimuladas,
geradas ou toleradas por comportamentos do próprio Estado e os particulares não
possam ou devam, razoavelmente, esperar alterações radicais no curso do
desenvolvimento legislativo normal» (Os princípios constitucionais estrutrantes
da República Portuguesa, Coimbra, 2004, pág. 263). No entanto, face ao valor
constitucional contraposto do interesse público, a que o legislador está também
vinculado, o autor reconhece que «o alcance prático do princípio da protecção da
confiança só é delimitável através de uma avaliação ad hoc que tenha em conta as
circunstâncias do caso concreto e permita concluir, com base no peso variável
dos interesses em disputa, qual dos princípios deve merecer prevalência». E no
plano da ponderação do peso das posições relativas dos particulares, acentua que
«as expectativas têm de ser legítimas», excluindo que possam assumir qualquer
relevo valorativo às posições sustentadas «em ilegalidades ou em omissões
indevidas do Estado» (ob. cit., págs. 264 e 267)
Também o Tribunal Constitucional tem já firmado o entendimento de que o
princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da
confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do
Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas
e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à
consideração de que «a normação que, por natureza, obvie de forma intolerável,
arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança
jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como
dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida
como não consentida pela a lei básica» (entre outros, o acórdão n.º 303/90, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pág. 65).
6. Segundo o disposto no artigo 289º, n.º 1, do Código Civil, «tanto a
declaração de nulidade como a anulação de negócio têm efeito retroactivo,
devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em
espécie não for possível, o valor correspondente». O que é, em geral, entendido
como significando que há lugar à reposição das coisas no estado anterior ao
negócio, com a consequente repetição do indevido e não apenas daquilo com que
qualquer das partes se tenha locupletado.
O tribunal recorrido efectuou, contudo, uma redução teleológica e considerou
que, tratando-se de contratos de execução continuada, a declaração de nulidade
não abrangia as prestações já realizadas, sendo esta a interpretação normativa
que se alega ser passível de violar o princípio da segurança jurídica.
O que se verifica, porém, no caso em apreço, é que a ré, ora recorrente, tomou
ela própria a iniciativa de outorgar com a autora, aqui recorrida, os contratos
de prestação de serviços relativos a actividades económicas que, nos termos do
disposto na Lei n.º 46/77, de 8 de Julho, estavam vedadas a empresas privadas.
E, na sequência da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo,
que a condenou no pagamento de importâncias referentes às contra-prestações
devidas pelos serviços prestados, veio invocar, em recurso jurisdicional, a
nulidade dos contratos por terem sido celebrados contra disposição legal
imperativa.
Neste condicionalismo, foi a ré, na sua qualidade de contraente público e
entidade adjudicante, que deu azo à outorga dos contratos administrativos
feridos de invalidade, ao escolher como co-contratante uma entidade que, pela
sua natureza, estava impedida de realizar, nos termos da lei, as prestações que
constituiam o objecto da relação contratual.
A ré criou motu proprio a situação de ilegalidade que determinou a declaração de
nulidade dos contratos, e agiu, por conseguinte, em desconformidade com a lei e,
como tal, em claro desrespeito pelo princípio da legalidade, que se encontra
constitucionalmente consagrado e constitui uma regra basilar de todo e qualquer
procedimento administrativo (cfr. artigos 266º, n.º 2, da Constituição e 3º, n.º
2, do Código de Procedimento Administrativo).
Transpondo para o caso dos autos os princípios acabados de expor quanto à tutela
da confiança, facilmente se constata que não existe qualquer expectativa
legítima, por parte da entidade administrativa, relativamente a uma
interpretação normativa que não implique a destruição retroactiva do negócio
jurídico e a consequente restituição do indevido, quando a declaração de
nulidade é decorrente da própria actuação ilícita dessa entidade.
E, de resto, qualquer outra interpretação do artigo 289º do Código Civil que
conduzisse à liquidação dos contratos em termos que permitisse à ré eximir-se ao
pagamento das contra-prestações devidas pelos serviços prestados em execução do
negócio nulo, corresponderia a um verdadeiro abuso de direito na modalidade de
venire contra factum proprium, na medida a que implicaria a violação do seu
próprio dever de restituição resultante da conformação do contrato viciado (que
a eficácia ex tunc da declaração de nulidade sempre impunha) e,
consequentemente, um injustificado enriquecimento à custa do co-contratante que
teria derivado de uma actuação ilícita que lhe é directamente imputável.
O que bem evidencia a inexistência, na esfera jurídica da ré, de qualquer
posição jurídica que devesse ser salvaguardada através de uma outra
interpretação da lei.
Não há, pois, nenhum motivo para considerar verificada a violação do princípio
da segurança jurídica.
III. Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
Sem custas, por não serem devidas, tendo em conta que o processo foi instaurado
antes da entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º
324/2003, de 24 de Fevereiro (artigo 14º, n.º 1).
Lisboa, 12 de Março de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão