Imprimir acórdão
Processo n.º 835/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I − Relatório
1. O Ministério Público, inconformado com a decisão do Tribunal da Relação de
Évora que, mantendo o despacho do Tribunal Judicial de Santarém, não declarou a
inconstitucionalidade do artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal,
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto a este
Tribunal, concluiu o seguinte:
“1. A regra geral da publicidade do inquérito – a que regime estabelecido no
artigo 86°, n° 3, do CPP, constitui uma excepção – não é constitucionalmente
aceitável.
2. Por isso, a norma do n° 3 do artigo 86°, na parte em que sujeita à validação
pelo juiz de instrução da determinação do Ministério Público em aplicar ao
processo o segredo de justiça é inconstitucional por violação dos artigos 20°,
n° 3, 32°, n° 5, e 219° da Constituição.
3. Mas mesmo que se não questione a regra geral da publicidade do inquérito,
aquela intervenção do juiz de instrução não só se revela desadequada e
desnecessária como violadora dos artigos 32°, n° 5 e 219° da Constituição, pelo
que a norma do artigo 86°, n° 3, do CPP, na dimensão atrás referida e por
violação destes preceitos constitucionais, é inconstitucional.
4. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Constitui objecto do recurso de constitucionalidade a norma constante do
artigo 86.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, que apresenta a seguinte
redacção:
Artigo 86.º
1. […]
2. […]
3. Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou
os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação
ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa
decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas.
Pretende o Ministério Público, ancorando-se na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.°
da Lei do Tribunal Constitucional, ver apreciada a inconstitucionalidade da
referida norma, por violação dos artigos 2.°, 32.°, n.º 5, e 219.º, todos da
Constituição, na parte em que a mesma sujeita à validação, pelo juiz de
instrução, da determinação do Ministério Público, em aplicar ao processo,
durante a fase do inquérito, o segredo de justiça.
Não compete ao Tribunal Constitucional apreciar da maior ou menor correcção ou
maior ou menor adequação das escolhas feitas pelo legislador.
Com efeito, a competência deste Tribunal cinge-se apenas à conformidade
jusconstitucional das normas legais ou dimensões normativas. Desde que a opção
legislativa se situe dentro da margem dessa mesma conformidade constitucional,
tudo o mais dirá respeito a juízos de politica legislativa que excedem as
atribuições e competências do Tribunal Constitucional.
Na situação em apreço e, como resulta dos termos em que a questão da
constitucionalidade foi colocada perante o tribunal recorrido e por ele decidida
e que, seguidamente veio a ser delineada no requerimento de interposição de
recurso, está em causa, tão-somente, a apreciação da conformidade constitucional
do critério normativo contido no artigo 86.º, n.° 3, do Código de Processo
Penal, nos termos do qual a regra geral da publicidade do inquérito pode ser
afastada, a requerimento do Ministério Público, ficando tal decisão sujeita a
validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
Assim sendo, e, estabelecendo como parâmetros de análise da questão os
constantes dos artigos 2.°, 32.°, n.º 5, e 219.° da Constituição, verifica-se
que cumpre analisar, na perspectiva assinalada, as questões relativas à direcção
do inquérito, por parte do Ministério Público, e a intervenção do juiz de
instrução na fase pré-acusatória, tendo como pressuposto a estrutura acusatória
do processo penal.
O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar, longamente, e, por
diversas vezes, sobre o estatuto do Ministério Público na fase preliminar do
processo penal, na vigência do Código de Processo Penal de 1987, bem como sobre
a articulação desses poderes com a exigência constitucional constante do artigo
32.º, n.º 4, da Constituição. (vide, v.g., o Acórdão n.º 395/2004 (publicado no
Diário da República, II Série, de 9 de Julho de 2004).
Nessa jurisprudência, a intervenção do juiz justifica-se para salvaguardar a
liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo-crime e para
garantir que a prova carreada para o processo foi obtida com respeito pelos
direitos fundamentais.
Colocada, assim, a questão importa analisar em que papel surge, para os fins
tidos em vista no artigo 86.°, n° 3, do Código de Processo Penal, o juiz de
instrução
A resposta é-nos dada pelo citado Acórdão n.º 428/2008 (publicado no Diário da
República, II Série, de 30 de Setembro de 2008)
“A regulação do segredo de justiça em processo penal — quer na vertente interna,
respeitando aos participantes processuais directamente envolvidos na concreta
relação processual, quer na vertente externa, reportado à generalidade das
pessoas, estranhas a essa relação processual — convoca, com particular acuidade,
‘a tarefa de concordância prática das finalidades, irremediavelmente
conflituantes, apontadas ao processo penal: a realização da justiça e a
descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos
fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da
paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade
da norma violada’. (MARIA JOÃO ANTUNES, ‘O segredo de justiça e o direito de
defesa do arguido sujeito a medida de coacção’, em Liber Discipulorum para Jorge
de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 1237-1268).”
Verifica-se, que o juiz de instrução surge como o garante dos direitos
fundamentais dos diversos intervenientes no processo, não controlando, ao invés,
o exercício da acção penal, nem a bondade dos interesses invocados para
justificar a determinação do segredo que pertence, por inteiro, ao Ministério
Público.
Pelo que fica dito, e, face às funções diversas desempenhadas pelo Ministério
Público e pelo juiz de instrução na fase do inquérito, facilmente se verifica
que as suas competências se mantiveram, na situação em apreço, sem qualquer tipo
de colisão, já que a intervenção judicial se circunscreveu à validação de um
despacho do Ministério Público, em que era requerida a aplicação do segredo de
justiça, e, em que, naturalmente, competia ao juiz de instrução dirimir o
conflito existente entre os eventuais interesses da investigação e direitos
fundamentais em presença, estabelecendo a “concordância prática das
finalidades”.
E, neste contexto, é de salientar a posição sustentada por Pedro Vaz Patto (in,
O Regime do Segredo de Justiça no Código de Processo Penal Revisto, Revista do
CEJ, n.º 9):
«A respeito de uma eventual situação de divergência entre o juiz e o Ministério
Público quanto à publicidade ou carácter secreto do inquérito, parece-me de
considerar o seguinte. Serão, normalmente, os interesses da investigação a
justificar a posição do Ministério Público no sentido da sujeição do processo a
segredo de justiça (interno e externo, pois esses interesses da investigação
reclamam estas duas facetas deste regime). O Ministério Público é o dom/nus
desta fase processual, é ele quem dirige o inquérito e é responsável pela
investigação. Seria insólito que o juiz de instrução sobrepusesse o seu critério
a respeito dos interesses da investigação ao critério do Ministério Público a
esse respeito (estaria a “meter a foice em seara alheia”). A função do juiz de
instrução, no nosso sistema, é garantista (o “juiz das liberdades”), não de
concorrência ou sobreposição em relação às funções do Ministério Público no
inquérito. A responsabilidade indeclinável do juiz de instrução prende-se,
antes, com o balanço e a ponderação entre as exigências da investigação
(aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as
configura), por um lado, e o direitos de defesa do arguido, por outro lado. São
este tipo de juízo e de ponderação (não o juízo e ponderação a respeito dos
interesses da investigação, por si só) que são específicos da função do juiz de
instrução. Portanto, o que pode levar o juiz a divergir do Ministério Público
não é uma sua divergência a respeito dos interesses da investigação, como se
devesse ajuizar a respeito desses interesses, mas uma ponderação entre esses
interesses (aceitando-os como o Ministério Público os configura) e os direitos
de defesa do arguido.”
Efectivamente, como se afirma na decisão recorrida:
“Tendo em vista tal finalidade, sem pôr em causa a investigação (e o papel do
Ministério Público enquanto titular da acção penal), a sujeição de processo ao
segredo de justiça deve ser abordada casuisticamente (como a lei processual
penal exige) e no caso de se afirmar a necessidade processual de aplicação de
tal regime, a compreensibilidade da intervenção do juiz de direitos, liberdades
e garantias alcança-se da noção de que o segredo de justiça não pode eliminar as
garantias de defesa do arguido. Trata-se de questão que contende com direitos
fundamentais, que, como tal, legitima a intervenção do Juiz de Instrução,
funcionando, também nesta sede, a regra de controlo os direitos, liberdades e
garantias individuais, própria de todo o sistema processual penal português.
Por conseguinte, em nosso entender e sem prejuízo de melhor opinião, a norma do
artigo 86.°, n° 3, do Código de Processo Penal, admite ainda uma interpretação
conforme à Constituição da República Portuguesa, designadamente ao princípio da
estrutura acusatória do processo penal, quando exige a validação judicial de uma
decisão do Ministério Público de determinação do segredo de justiça ao processo
com base nos interesses da investigação, servindo a indicação e fundamentação
destes, não para o juiz elaborar um qualquer juízo de oportunidade ou de
relevância, mas para alcançar o grau de lesão que para eles implicará a
publicidade dos autos, de tal modo legitimador da aplicação do regime
excepcional do segredo de justiça e constrangedor dos direitos de defesa do
arguido, sem perder de vista, porém, que o tempo do contraditório no processo
penal é diferido, vigorando de pleno apenas em fases processuais subsequentes.
Nesta perspectiva, não há sobreposição de decisões de duas autoridades
judiciárias distintas.”
Não foram, assim, violados os artigos 2.°, e 219.° do nosso texto fundamental,
no que concerne ao desenho processual traçado ao Ministério Público e ao juiz de
instrução, na fase do inquérito, como igualmente não foi o artigo 32.°, n.° 5,
da Constituição.
Com efeito, na linha sustentada por Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição
Portuguesa Anotada, 2005, Tomo 1, p. 359), “a estrutura acusatória do processo
significa, no que é essencial, o reconhecimento do arguido como sujeito
processual a quem é garantida efectiva liberdade de actuação para exercer a sua
defesa face à acusação que fixa o objecto do processo e é deduzida por entidade
independente do tribunal que decide a causa. O processo de estrutura acusatória
procura assegurar a parificação do posicionamento jurídico da acusação e da
defesa em todos os actos jurisdicionais, ou seja, a igualdade material de meios
de intervenção processual (igualdade de armas) pelo menos nas fases
jurisdicionais. (...) O sistema acusatório não é incompatível com momentos ou
fases inspiradas no inquisitório, desde que justificadas pela procura da verdade
e sempre submetidas ao dever de lealdade para com o arguido, o que limita os
meios de prova admissíveis (…).”
III – Decisão
Assim, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em negar provimento ao
recurso de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Março de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes (vencida, nos
termos da declaração junta)
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido
essencialmente pelas razões que fundamentam a declaração de voto da Exma.
Conselheira Maria João Antunes, para a qual, com a devida vénia, remeto.)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Lê-se na fundamentação desta decisão que a norma em apreciação neste processo
é o nº 3 do artigo 86º do Código de Processo Penal, na parte em que sujeita à
validação, pelo juiz de instrução, a determinação do Ministério Público em
aplicar ao processo, durante a fase de inquérito, o segredo de justiça.
Entendo que a norma apreciada nos presentes autos é inconstitucional, face às
disposições conjugadas dos artigos 32º, nºs 4 e 5, e 219º, nºs 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa, pelas razões que de seguida se expõem.
Chego a este juízo de inconstitucionalidade à margem de uma qualquer valoração,
do ponto de vista jurídico-constitucional, da regra da publicidade da fase de
inquérito (artigos 86º, nº 1, do Código de Processo Penal e 20º, nº 3, e 32º, nº
5, primeira parte, da Constituição).
2. Uma das garantias constitucionalmente consagradas é a estruturação do
processo criminal segundo um modelo acusatório (nº 5 do artigo 32º). A estrutura
acusatória, enquanto impõe a repartição das funções de investigação, acusação e
julgamento entre entidades distintas, realiza-se “por divisão de funções
processuais entre o juiz ou tribunal, de um lado, e o ministério público, do
outro, e não por qualquer outra forma, nomeadamente por divisão entre o juiz do
julgamento e o juiz de instrução” (Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos
processuais no novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal,
Almedina, 1988, p. 23). A repartição das funções de investigar e acusar e de
julgar entre magistraturas distintas, entre a magistratura do ministério público
e a magistratura judicial, é imposta quer pelo artigo 219º, nºs 1 e 2, da
Constituição, nos termos do qual compete ao Ministério Público exercer a acção
penal, gozando de autonomia; quer do artigo 32º, nº 4, da Constituição, segundo
o qual toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode delegar noutras
entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com
os direitos fundamentais (neste sentido, cf., entre outros, os Acórdãos do
Tribunal Constitucional nºs 7/87, publicado no Diário da República, I Série, de
9 de Fevereiro de 1987, e, de forma muito impressiva, 581/2000, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Esta concretização do princípio da acusação, constitucionalmente imposta, supõe
que ao juiz de instrução caberá, de todo o modo, durante o inquérito, o
exercício de funções jurisdicionais (artigos 32º, nº 4, parte final, e 202º, nºs
1 e 2, da Constituição e 17º do Código de Processo Penal). Ou seja, “praticar,
ordenar ou autorizar actos processuais singulares que, na sua pura objectividade
externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas
constitucionalmente protegidos” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 16. No mesmo
sentido, cf., entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
7/87, já citado, 23/90 e 395/2004, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
3. Face a este modelo de repartição de funções processuais, não acompanho o
juízo de não inconstitucionalidade da norma em apreciação. A validação, pelo
juiz de instrução, da determinação do Ministério Público em aplicar ao processo,
durante a fase de inquérito, o segredo de justiça, quando os interesses da
investigação o justifiquem, põe em causa a repartição constitucional das funções
de investigação e acusação, por um lado, e julgamento, por outro. Quando o
Ministério Público, em nome dos interesses da investigação, determina a
aplicação ao processo do segredo de justiça, durante a fase processual cuja
direcção lhe está constitucionalmente reservada, a tal determinação não
corresponde um ataque a direitos, liberdades e garantias que justifique uma
intervenção ulterior do juiz de instrução, no exercício da função processual que
a Constituição lhe reserva em sede de inquérito (sobre isto, distinguindo os
casos em que a aplicação do segredo de justiça é determinada em benefício dos
direitos dos sujeitos processuais das hipóteses em que esta aplicação é
determinada em nome dos interesses da investigação, cf. Costa Andrade,
«‘Bruscamente no verão passado’, a reforma do Código de Processo Penal –
Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente»,
Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3949, p. 228 e ss.).
4. O juízo de não inconstitucionalidade tem como pressuposto que a intervenção
do juiz de instrução visa “dirimir o conflito existente entre os eventuais
interesses da investigação e direitos fundamentais em presença”. Citando Pedro
Vaz Patto e transcrevendo uma passagem do despacho do Tribunal Judicial de
Santarém, de 4 de Julho de 2008, que deu origem à decisão recorrida nos
presentes autos (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de Outubro de
2008), a fundamentação desta decisão acaba, porém, por reconduzir aqueles
direitos ao direito de defesa do arguido.
Considerando o que implica a publicidade do processo – assistência, pelo público
em geral, à realização dos actos processuais; narração dos actos processuais, ou
reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social; e consulta do
auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele
(artigo 86º, nº 6, do Código de Processo Penal) – não é detectável qualquer
limitação ou restrição do direito de defesa do arguido, quando o Ministério
Público determina, em nome dos interesses da investigação, a aplicação ao
processo do segredo de justiça. Na parte que é relevante para o direito de
defesa, é de assinalar que, durante o inquérito, ainda que o processo passe a
estar em segredo de justiça, o arguido não deixa de ter, em regra, a
possibilidade de consultar o auto e de obter cópias, extractos e certidões
(artigo 89º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Maria João Antunes