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Processo 425/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes o Ministério Público, com
natureza obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da CRP
e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, ambos da LTC, e ERC – Entidade
Reguladora para a Comunicação Social, e recorrida A., S.A., foram interpostos
recursos, respectivamente, em 17 de Janeiro de 2008 (fls. 197) e em 24 de
Janeiro de 2008 (fls. 198), de sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e
Fiscal de Sintra, em 9 de Janeiro de 2008 (fls. 186 a 192), que desaplicou as
normas constantes dos artigos 3º, n.º 3, alínea a), e 4º do Anexo I que consagra
o Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social,
aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, por as ter considerado
inconstitucionais, por violação do princípio da legalidade tributária (no
sentido da exigência de lei em sentido formal) consagrado nos nºs 2 e 3 do
artigo 103º e na alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa.
2. Notificado para tal pela Relatora, o Ministério Público, na sua qualidade de
recorrente, produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
“1º
A parte final da alínea i) do nº 1, do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa prevê a existência de uma terceira categoria tributária, ao lado das
taxas “stricto sensu” e dos impostos, permitindo incluir nas contribuições
financeiras a favor de entidades públicas as “taxas colectivas” que funcionam
como contrapartida do serviço prestado – embora em termos não estritamente
individualizáveis – por uma entidade pública a favor de um círculo ou categoria
de pessoas, que beneficiam colectivamente da actividade daquela.
2º
A taxa de regulação e supervisão, criada e regulada pelos artigos
50º, alínea b), e 51º dos Estatutos Anexos à Lei nº 53/05, de 08/11, e pelos
artigos 3º, nº 3, alínea a), e 4º do Regime de Taxas, aprovado pelo Decreto-Lei
nº 103/06, de 7 de Junho, insere-se na figura dos referidas “taxas colectivas”,
estando consequentemente sujeita a reserva de lei parlamentar apenas quanto ao
respectivo “regime geral”.
3º
Os traços fundamentais de tal taxa resultam, em termos bastantes, da
Lei nº 53/05, suportando o respectivo desenvolvimento em diploma editado pelo
Governo, no exercício da sua competência legislativa própria.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.” (fls. 221 e 222)
3. Por sua vez, igualmente notificada para tal, a recorrente ERC produziu
alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«
A. A decisão recorrida não
pode manter-se na nossa ordem jurídica porquanto – ao contrário do que concluiu
sumariamente o tribunal a quo - a taxa de regulação e supervisão constitui uma
verdadeira taxa, criada de acordo com as regras constitucionais e no estrito e
rigoroso cumprimento da lei, designadamente do disposto na Lei n.º 53/2005, de 8
de Novembro, no D. L. n.º 103/2006 e na Portaria n.º 653/2006, de 29 de Junho.
B. Em cumprimento do
preceituado no artigo 39.º da CRP, incumbe à ERC a tarefa de proceder à
regulação do sector da comunicação social o que, naturalmente, exige uma
intervenção dituturna em garantia do pluralismo, da liberdade de expressão dos
cidadãos e da liberdade de imprensa dos meios de comunicação social, do
equilíbrio entre valores contrapostos e entre os interesses do mercado e as
finalidades do serviço público ou as exigências da actuação na esfera pública.
C. A distinção entre as
figuras da taxa e do imposto tem sido objecto de abundante jurisprudência do
Tribunal Constitucional e assenta, em síntese, nos critérios estruturais da
bilateralidade e da proporcionalidade a que a taxa de regulação e supervisão dá
integral cumprimento.
D. A letra do artigo 4.º
do D.L. n.º 103/2006 é, por si só, elucidativa quanto à existência de uma
contraprestação e quanto à respectiva natureza: mediante o pagamento da taxa de
regulação e supervisão, os operadores beneficiam de um serviço público que se
consubstancia na regulação e supervisão do sector onde se insere, i.e., na
monitorização e acompanhamento contínuo e regular, que assegura aos regulados –
como a ora recorrida – a conservação das condições institucionais de pluralismo,
liberdade de expressão e até de concorrência, indispensáveis ao cumprimento das
garantias constitucionais em sede de liberdade de imprensa ou comunicação
social.
E. Concretamente, a
recorrida beneficiou desta contraprestação por parte da ERC.
F. No que se reporta ao
critério da proporcionalidade, não subsistem quaisquer dúvidas que a relação
entre o valor a pagar a título de taxa e o serviço concretamente prestado pela
ERC se orienta por uma pauta de estrita proporcionalidade, ou que – delimitando
o critério pela negativa como se faz na jurisprudência prolatada pelo Tribunal
Constitucional – não se verifica, in casu, uma «desproporção manifesta ou
flagrante» entre o custo do serviço e a sua utilidade para os meios de
comunicação social
G. Com efeito, o cálculo
da taxa de regulação e supervisão é efectuado por reporte a um escrupuloso
catálogo de categorias de meios de comunicação social e subcategorias de acordo
com a diferente intensidade das actividades de regulação e supervisão postuladas
em cada situação, o que implica que pagará mais, a título de taxa, quem obriga a
ERC a uma actividade mais intensa de regulação e supervisão.
H. Para mais, o facto de o
legislador ter estabelecido uma taxa anual para a remuneração global dos
serviços de regulação e supervisão em nada belisca a natureza de taxa do tributo
em apreço nos presentes autos, nem tão-pouco o transmuta num «imposto de
repartição», pois nada impede que se opte por um modelo de pagamento global de
um conjunto de serviços em detrimento de uma quantificação casuística do valor a
pagar.
I. Todavia, ainda que
não entendesse que a taxa de regulação e supervisão se consubstancia numa
verdadeira taxa – hipótese levantada à cautela por mero dever de patrocínio – a
receita em causa apenas poderia ser incluída na terceira categoria tributária
prevista na CRP: «contribuições financeiras a favor de entidades públicas» (cf.
al. i) do n.º 1 do art. 165.º da CRP), categoria esta que tem agora na
Constituição um tratamento em tudo igual e paralelo ao que é dado pela Lei
Fundamental às taxas.
J. Na verdade, com a
consagração deste terceiro tipo de tributos, o legislador constitucional veio
assim dar cobertura ao conceito de parafiscalidade, admitindo a existência de
figuras híbridas que partilham a natureza dos impostos e, ao mesmo tempo, a
natureza das taxas, facto que resulta logo da leitura dos trabalhos
preparatórios da revisão constitucional de 1997 quanto ao tratamento e natureza
que o legislador constitucional pretendeu atribuir às chamadas contribuições
financeiras.
K. É, de resto, opinião de
Cardoso da Costa, Gomes Canotilho e Vital Moreira, que a configuração e o regime
das contribuições financeiras poderá ser efectuado por diploma governamental e
regulado por via regulamentar, desde que observados os condicionalismos da
lei-quadro competente, circunstância que, naturalmente, garantiria, em qualquer
caso, a conformidade constitucional da taxa de regulação e supervisão.
L. Acrescente-se ainda que
esta inovação constitucional de 1997 veio, aliás, corroborar uma corrente
jurisprudencial do próprio Tribunal Constitucional que, de há muito e sob formas
variadas, reconhecia a plena legitimidade de um tertium genus; o qual, não
configurando uma taxa em sentido estritamente técnico, também repelia a
aplicação do regime mais gravoso e exigente dos impostos.
M. De nada vale brandir o
argumento de que uma tal qualificação só colheria se já houvesse uma lei
parlamentar que definisse o regime geral das ditas contribuições financeiras,
porquanto a verdade é que inexiste também uma lei definidora do regime geral das
taxas e isso não impede – nem nunca impediu – a sua legítima criação por
decreto-lei ou por outro instrumento normativo.
N. O argumento à luz do
qual a impostação de que a lei de autorização apenas previa uma taxa e já não
uma contribuição financeira carece em absoluto de sentido uma vez que, do ponto
de vista constitucional, tais figuras estão rigorosamente equiparadas, ao que
acresce que actualmente, em face da inexistência de leis parlamentares que
recortem o regime geral de cada uma delas, essa equiparação é, ao nível da
Constituição, integral.» (fls. 242 a 245)
4. Por sua vez, a recorrida juntou aos autos as correspondentes contra-alegações
cujas conclusões são as seguintes:
“A. A ERC, na sua actividade, não está a prestar qualquer serviço às
entidades fiscalizadas;
B. Trata-se de uma simples função de “polícia” (no sentido etimológica e
tradicional do termo) de prossecução de um interesse da “polis;
C. De um interesse geral, consubstanciado na protecção dos interesses e
direitos do público em geral.
D. Pelo que não se verifica a primeira característica das taxas — a
prestação de um serviço individualizado, directa e indirectamente às entidades
fiscalizadas.
E. Não havendo também qualquer direito das entidades fiscalizadas a
exigir um comportamento da ERC, ao arrepio de exigência feita pelo Tribunal
Constitucional.
F. Aliás a lei nem sequer se preocupa em demonstrar de qualquer modo que
os operadores que mais taxas pagam exigem maior esforço de actividade de
regulação.
G. O atributo em causa também não pode ser qualificado de taxa com
referência ao seu montante.
H. O artigo 8. ° determina que a taxa específica por serviços prestados
deve ser calculada com base no custo efectivo do serviço prestado, tendo em
consideração a natureza dos actos, a sua complexidade, o tempo despendido, os
meios técnicos empregues e a qualidade profissional dos funcionários envolvidos,
o que não se verifica no caso em presença.
I. Estamos inequivocamente, perante uma situação semelhante à de
qualquer imposto em que o que se leva em conta — neste caso de maneira presumida
— é a riqueza ou rendimento do contribuinte, como base de incidência da matéria
tributável.
J. Se, enquanto nos impostos em geral, essa matéria colectável é
assumida como tal, aqui tenta-se disfarçá-la através de serviços prestados, mas
cuja retribuição não depende efectivamente do montante desses serviços mas sim
está directamente relacionada com a capacidade contributiva geral presumida do
contribuinte.
K. É uma situação semelhante àquela que referimos — e que foi criticada
pelo Tribunal Constitucional — dos emolumentos notariais em que o que estava em
causa não era o serviço prestado mas sim efectivamente a capacidade contributiva
presumida do contribuinte.
L. Pelo que também não se verifica a segunda característica das taxas — a
proporcionalidade da medida da taxa.
M. Verifica-se que o montante desta taxa é medido pela capacidade
contributiva em geral, pela capacidade da entidade de pagar “taxas”. Na
realidade, pela capacidade contributiva verificada nos impostos.
N. E não pelo custo dos serviços prestados que é apresentado unicamente
como um pretexto, uma capa; e não como um efectivo parâmetro do montante da
taxa.
O. A integração da taxa de regulação e supervisão na categoria dos
tributos unilaterais — impostos — determina a inconstitucionalidade das normas
que a instituem, pois viola o princípio da legalidade fiscal através, de um
defeito de autorização.
P. Foi o Governo que veio regular uma matéria de competência reservada a
Assembleia da República, sem que tenha havido qualquer autorização legislativa
para isso. Viola-se assim o disposto nos artigos 165. °, n.º 1, alínea i) e
103.° n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
Q. Não é só aqui que há uma inconstitucionalidade, pois a instituição de
novos tributos unilaterais sobre as entidades reguladas pela ERC, seja sob que
forma de tributo for, deve tomar em consideração a distribuição da carga fiscal
pelos contribuintes, não esquecendo os numerosos tributos que os regulados em
causa já suportam, de modo pelo menos equivalente aos outros contribuintes, não
havendo qualquer justificação de racionalidade ou de justiça que levem a
impor-lhes um novo tributo (ou impor-lhes uma nova taxa).
R. Por outro lado, também há que levar em conta que o tratamento fiscal
dispensado ao regulado viola o principio da neutralidade fiscal que obriga o
Estado a actuar sem provocar destruições significativas à concorrência, violando
também o princípio da proibição do estrangulamento tributária previsto no n.º 3
do artigo 7. °da LGT.
S. Quanto à hipótese subsidiária levantada pela Recorrente de se
qualificar este tributo como uma contribuição financeira a favor de uma entidade
pública, lembre-se que não se poderá nunca admitir, em qualquer circunstância
(segundo o entendimento destes tributos como impostos ou corno um tertium
genus), que ao abrigo do artigo 165. ° n.º 1 alínea i) da Constituição se venham
a criar, como sucedeu no caso em discussão, por decreto-lei simples tributos com
natureza jurídica deste tipo.
T. De referir ainda que independentemente de se entenderem aquelas
contribuições como meros impostos, quer como verdadeiras contribuições, sempre
falecerá nesta última hipótese a medida das mesmas e o respeito pelo princípio
da equivalência, de onde se concluirá estarmos sempre a final perante impostos
ocultos, sujeitos às exigências legais supra expendidas e não cumpridas no caso
em análise.» (fls. 290 a 292)
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Com o objectivo de clarificar o regime de financiamento da ERC – Entidade
Reguladora para a Comunicação Social – , importa começar por averiguar a
natureza jurídico-constitucional desta entidade.
Após a revisão constitucional de 2004, o legislador constituinte expressou, de
forma inequívoca, um comando ao legislador ordinário para que fosse criada uma
“entidade administrativa independente” [n.º 1 do artigo 39º, da CRP], mediante
lei de valor reforçado da Assembleia da República [n.º 2 do artigo 39º e n.º 3
do artigo 112º, ambos da CRP], sujeita a uma votação qualificada de 2/3 dos
Deputados presentes, desde que superior à maioria qualificada dos Deputados em
efectividade de funções [alínea a) do n.º 6 do artigo 168º, da CRP], sendo os
respectivos membros eleitos igualmente sujeitos a uma votação favorável de 2/3
dos Deputados presentes, desde que superior à maioria qualificada dos Deputados
em efectividade de funções [alínea h) do artigo 163º, da CRP].
A referida entidade administrativa independente viria a ser criada através da
Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, substituindo a extinta AACS – Alta Autoridade
para a Comunicação Social (criada pela Lei n.º 15/90, de 30 de Junho), que por
sua vez, havia sucedido aos Conselhos de Informação para a RTP – Rádio Televisão
Portuguesa, para a RDP – Rádio e Difusão Portuguesa e para a ANOP – Agência
Nacional de Notícias de Portugal (aprovado pela Lei n.º 76/77, de 26 de Outubro)
e ao Conselho de Comunicação Social (aprovado pela Lei n.º 28/83, de 06 de
Setembro) – para um maior desenvolvimento sobre os antecedentes da ERC, ver o
recente Acórdão n.º 365/2008, deste Tribunal (disponível in
www.tribunalconstitucional.pt), bem como a doutrina nele citada, designadamente,
José Lucas Cardoso, “Autoridades Administrativas Independentes e Constituição”,
Coimbra, 2002, págs. 261 a 280; Luís Brito Correia, “Direito da Comunicação
Social”, Vol. I, Coimbra, 2000, págs. 439 a 445.
Da sua configuração constitucional, retira-se que aquela “entidade
administrativa independente” não se limita a integrar o leque de pessoas
colectivas públicas dotadas de funções administrativas de mera regulação e
supervisão de um determinado mercado económico, antes se configurando – e em
principal medida – como uma entidade administrativa dotada de funções de defesa
e salvaguarda de direitos fundamentais, maxime, dos direitos directamente
relacionados com o princípio do pluralismo político, com a liberdade de
expressão e de informação e com a liberdade de imprensa. Tal resulta, desde
logo, das várias atribuições que o legislador constituinte entendeu
conferir-lhe. Porventura, com excepção da alínea e) do n.º 1 do artigo 39º da
Constituição, todas as demais alíneas daquele preceito constitucional afastam a
“entidade administrativa independente” da categoria das pessoas colectivas
públicas, exclusiva ou predominantemente, vocacionadas para a mera regulação e
supervisão de determinado mercado económico (reforçando esta função de defesa de
direitos fundamentais, ver Gomes Canotilho / Vital Moreira, “Constituição da
República Portuguesa Anotada”, Vol. I, Coimbra, 2007, págs. 598 e 599).
Assim, as especiais funções constitucionalmente atribuídas àquela “entidade
administrativa independente” reforçam as exigências de independência, de
imparcialidade e de autonomia face aos demais poderes públicos (designadamente,
face ao Governo e face à Assembleia da República), de modo a assegurar que
aquela entidade administrativa não funcione como mera correia de transmissão de
qualquer pensamento político circunstancialmente colocado em funções de
governação. Sendo certo que, no plano do Direito Comparado, o surgimento das
entidades administrativas independentes – v.g., das “agencies” norte-americanas
e, no plano europeu, das agências comunitárias – visou sempre retirar poder de
decisão aos órgãos executivos, colocando na mão de peritos reconhecidos pelos
sectores a regular a função administrativa de regulação e supervisão de mercados
económicos determinados (a este propósito, ver, entre outros, José Lucas
Cardoso, “Autoridades Administrativas Independentes e Constituição”, ob. cit.,
pp. 41 a 211; Vital Moreira / Maria Fernanda Maçãs, “Autoridades Administrativas
Independentes – Estudo e Projecto de Lei-Quadro”, Ministério da Reforma do
Estado e da Administração Pública, 2002, págs. 3 a 14), mais razões justificam
uma especial cautela no regime jurídico aplicável a uma “entidade administrativa
independente” que não só exerça funções de mera regulação económica, como ainda
esteja predominantemente vocacionada para a defesa dos direitos e liberdades
fundamentais.
6. Ora, o grau de autonomia financeira não pode deixar de se
afigurar como um dos critérios decisivos na aferição da efectiva independência
de uma entidade administrativa não sujeita a qualquer tipo de poderes de
controlo por parte do Governo. O regime de financiamento instituído pelo
Decreto-Lei n.º 103/2006, de 07 de Junho, traduz pois a própria natureza mista
da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Na medida em que todos os membros da comunidade residente em
território nacional são beneficiários directos da actividade administrativa da
ERC, enquanto pessoa colectiva pública especialmente vocacionada para a
protecção dos direitos, liberdades e garantias nos meios de comunicação social,
é a própria lei [cfr. alínea a) do artigo 50º dos Estatutos da ERC, aprovados
pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro] que determina que uma parte substancial
do orçamento próprio daquela entidade seja assegurada mediante verbas a
transferir do Orçamento de Estado, de cada ano, ou ainda mediante a participação
nas taxas de utilização do espectro radioeléctrico pagas ao ICP-ANACOM, a título
de remuneração por utilização de um bem do domínio público [cfr. alínea a) do
artigo 50º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de
Novembro]. Como é evidente, ao contrário do que sucede com outras entidades
administrativas reguladoras, não seria expectável – ou sequer compatível com o
princípio da proporcionalidade – que os regulados pela ERC fossem exclusivamente
onerados com os custos financeiros (“excessive burden”) da sua actuação. Pelo
contrário, no caso da ERC, a actividade administrativa desempenhada vai muito
para além de uma clássica função de mera regulação e supervisão económica do
mercado da comunicação social, pelo que sempre será exigível que a toda a
comunidade contribua, através dos impostos liquidados por cada contribuinte,
para suprir os custos financeiros da actividade daquela entidade administrativa
independente.
Mas, para além de assumir a sua função de entidade administrativa de
defesa dos direitos e liberdades fundamentais, a ERC actua igualmente enquanto
entidade encarregue da regulação e da supervisão do sector económico da
comunicação social. Como tal, outra parcela significativa do orçamento próprio
da ERC não pode deixar de ser sustentada por taxas (e outras contribuições
financeiras) a cobrar junto das entidades que prosseguem actividades de
comunicação social e, como tal, se encontram sujeitas à actividade reguladora
daquela entidade administrativa independente. Na medida em que a actividade da
ERC também visa assegurar a promoção de um mercado mais eficiente, transparente
e de sã concorrência, torna-se inevitável que os próprios regulados participem
nos custos financeiros daquela actividade.
Resta assim verificar se, tal como entendido pela decisão recorrida,
a participação dos regulados não pode ser feita mediante pagamento de uma “taxa
de regulação e supervisão”, na medida em que as normas constantes dos artigos
3º, n.º 3, alínea a), e 4º do Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º
103/2006, de 7 de Junho, são inconstitucionais, por violação do artigo 103º, nºs
2 e 3, e da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa.
7. Antes de avançar, importa transcrever os preceitos legais em
apreciação:
“Artigo 3.º
(Natureza e espécies de taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação
Social)
(…)
3 - As taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social integram-se
nas seguintes categorias:
a) Taxa de regulação e supervisão;
(…)
Artigo 4.º
(Taxa de regulação e supervisão)
1 - Ao abrigo da alínea b) do artigo 50.º e do n.º 1 do artigo 51.º dos
Estatutos da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados pela
Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, a taxa de regulação e supervisão visa
remunerar os custos específicos incorridos pela ERC - Entidade Reguladora para a
Comunicação Social no exercício da sua actividade da regulação e supervisão
contínua e prudencial.
2 - Estão sujeitas à taxa de regulação e supervisão todas as entidades que
prossigam, sob jurisdição do Estado Português, actividades de comunicação
social, sendo o quantitativo da taxa calculado em conformidade com a categoria
em que se inserem e com a subcategoria de intensidade reguladora necessária.
Ora, a decisão recorrida afirmou que:
“Dificilmente se poderá considerar o tributo em causa como uma taxa atent[a] a
falta de uma contrapartida específica e individualizada em relação ao seu
sujeito passivo e em concreto, na pessoa do respectivo operador da área da
comunicação social sua beneficiária. Efectivamente, aquela não tem por
fundamento a prestação concreta de um serviço público, antes visam assegurar os
interesses públicos postos a seu cargo pelo Estado, não se concretizando numa
utilização individualizada pelo sujeito passivo de bens públicos ou
semi-públicos, com contrapartida numa actividade do credor especialmente
dirigida ao mesmo.” (fls. 189 a 190).
Tal concepção de “taxa”, exclusivamente ancorada na verificação de
uma contrapartida expressa através da prestação de um serviço público, aparenta
desconsiderar que o n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária configura como
taxa não só aqueles tributos que visam retribuir a prestação de um serviço
público, mas também a utilização de um bem do domínio público ou a remoção de um
obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares. Porém, não cabe, neste
momento, aprofundar um juízo sobre a qualificação jurídico-tributária a atribuir
à “taxa de regulação e supervisão”, prevista artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º
do Anexo I relativo ao Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho.
Independentemente de tal qualificação ser susceptível de
controvérsia – tendo, aliás, sido colocada em causa pela recorrente ERC, em sede
de alegações –, não cabe, nos presentes autos, desenvolver este tema. É que, por
força do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a
constitucionalidade de normas que tenham sido efectivamente desaplicadas pelos
tribunais recorridos. Ora, neste caso concreto, a decisão recorrida apenas
desaplicou as normas constantes dos referidos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º,
quando interpretadas no sentido de que a referida “taxa de regulação e
supervisão” se reconduz a uma “contribuição financeira” a favor de uma entidade
pública e não a uma “taxa”.
Procede-se, então, ao conhecimento da questão de
inconstitucionalidade suscitada pela desaplicação normativa adoptada pela
decisão recorrida.
8. Qualquer que seja a terminologia adoptada pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, ou a
conclusão a que se chegue acerca da discussão sobre a natureza de “taxa” – em
função da sua maior ou menor sinalagmaticidade –, importa notar que a actual
redacção da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, após a revisão
constitucional de 1997, distingue claramente “impostos”, de uma parte, de
“taxas” e “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, de
outra parte (para um maior desenvolvimento, veja-se o Acórdão n.º 365/2008,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Se quanto aos “impostos”, é fixada uma reserva de competência legislativa
parlamentar quanto à respectiva criação, já quanto às “contribuições financeiras
a favor das entidades públicas” apenas é exigível a fixação parlamentar do
respectivo regime geral, aproximando-as, a final, do regime aplicável às
“taxas”.
9. Ora, como já notado por este Tribunal (cfr. Acórdão n.º 365/2008, disponível
in www.tribunalconstitucional.pt), na falta de um regime geral fixado por lei
parlamentar, deve dar-se por suficientemente protector da reserva de lei
parlamentar o preceituado na própria lei de valor reforçado que criou a ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social. É que o legislador parlamentar,
através do n.º 1 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º
53/2005, de 8 de Novembro, não se limitou a remeter para o legislador
governamental a fixação das taxas (e demais contribuições financeiras –
acrescenta o Tribunal) devidas àquela “entidade administrativa independente”.
A criação de taxas e demais contribuições financeiras, para efeitos de inclusão
nas receitas da ERC, consta expressamente da alínea b) do artigo 50º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro. Sucedeu
apenas que, nos termos do já referido n.º 1 do artigo 51º do mesmo diploma, se
remeteu para decreto-lei do Governo a determinação de: i) critérios de
incidência; ii) requisitos de isenção; iii) valor das taxas. Daqui decorre que
foi a Assembleia da República quem, mediante lei de valor reforçado [cfr. n.º 3
do artigo 112º e alínea a) do n.º 6 do artigo 168º, ambos da CRP] criou
expressamente as taxas e demais contribuições financeiras a suportar pelas
entidades sujeitas à regulação e supervisão da ERC, remetendo para decreto-lei a
sua concretização.
Mas, ainda mais relevante, o próprio legislador parlamentar não se furtou a
fixar estritos limites de conteúdo ao diploma legal regulamentador das taxas e
demais contribuições financeiras. Pelo contrário, o legislador parlamentar fixa
os princípios fundamentais a respeitar pela legislação densificadora, a saber:
a) Critérios para fixação das taxas (e demais
contribuições financeiras), de acordo com princípios de objectividade,
transparência e proporcionalidade – cfr. n.º 2 do artigo 51º dos Estatutos da
ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08 de Novembro;
b) Delimitação dos sujeitos passivos das taxas (e
demais contribuições financeiras) – cfr. n.º 4 do do artigo 51º dos Estatutos da
ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08 de Novembro;
c) Tendencial sinalagmaticidade entre a actividade de
regulação gerada pelo sujeito passivo e o montante da taxa (e demais
contribuições financeiras) a suportar – cfr. n.º 4 do artigo 51º dos Estatutos
da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08 de Novembro;
d) Periodicidade da liquidação e pagamento das das
taxas (e demais contribuições financeiras) – cfr. n.º 5 do do artigo 51º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08 de Novembro.
Em suma, da análise da concreta configuração da lei de valor reforçado que criou
a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, resulta que deve dar-se
por preenchida a exigência de previsão parlamentar de um regime geral das
contribuições financeiras, sendo que – neste caso concreto – a definição
parlamentar dos princípios gerais aplicáveis ao regime de taxas e demais
contribuições financeiras se apresenta até mais pormenorizado do que seria
exigível a um regime geral fixado por lei parlamentar (neste sentido
pronunciou-se este Tribunal, no já citado Acórdão n.º 365/2008, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, independentemente da discussão sobre a natureza jurídico-tributária da
“taxa de regulação e supervisão”, e apreciando exclusivamente a interpretação
normativa desaplicada pela decisão recorrida, que considerou que aquela
integraria a categoria de “contribuição financeira devida a entidade pública”,
conclui-se que as normas extraídas dos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º do
Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, não são
inconstitucionais, pois não violaram os nºs 2 e 3 do artigo 103º e da alínea i)
do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, nem se
vislumbram outros fundamentos de inconstitucionalidade, pelo que deve ser
concedido provimento aos recursos interpostos, com a necessária reforma da
decisão recorrida, nos termos do n.º 2 do artigo 80º da LTC.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Conceder provimento aos recursos apresentados;
E, em consequência:
b) Remeter os autos ao tribunal recorrido para que seja reformulada a
decisão recorrida, em conformidade com o precedente juízo de não
inconstitucionalidade, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 80º da LTC
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão