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Processo n.º 565/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., Recorrente nos autos, foi acusado pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, previsto então pelo artigo 24.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Decreto-Lei
n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de
Novembro, ora previsto no artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT), aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 5 de
Junho. Na sequência de requerimento de abertura de instrução, foi proferida
decisão instrutória, tendo o arguido sido pronunciado pela prática do tipo
indicado.
Remetidos os autos para julgamento, foi apreciada pelo Juiz de julgamento
questão prévia atinente à entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2007, da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro, que, tendo aprovado o Orçamento de Estado para
2007, introduziu várias alterações ao RGIT tendo, nomeadamente, modificado a
redacção do artigo 105.º, n.º 4. Pode-se ler no despacho então proferido:
“Confrontado o regime anterior (RGIT) com aquele que entrou em vigor no
transacto dia 1 de Janeiro para que se verifique um crime de abuso de confiança
fiscal, é sempre necessário, para além do decurso do prazo de 90 dias, sobre o
termo do prazo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na
sequência de uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento
da prestação comunicada à administração fiscal, acrescida de juros e o valor da
coima aplicável.
No RGIT tal faculdade só era concedida se o valor do imposto não excedesse 2000
euros (artº 105º nº 6 na redacção da Lei 60-A/2005, de 30/12).
Está-se assim, face a esta nova redacção da alínea b) do nº 4 do artº 105º
perante a existência de uma verdadeira sucessão de leis penais impondo-se assim
a aplicação do disposto no artº 2º nº 4 do Cod. Penal.
[…]
Pelo exposto, por força desta sucessão de leis penais e do princípio da
aplicação da lei mais favorável, plasmado no artº 2º nº 4 do Cod. Penal,
ordena-se a notificação dos arguidos para os termos da al.b) do nº 4 do artº
105º do RGIT alterado pela Lei 53-A/2006 de 29/12 que entrou em vigor no dia 1
de Janeiro de 2007.”
2. O arguido A., não se conformando com o despacho anterior, interpôs recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do artigo 427.º, do Código de
Processo Penal, com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:
“I. Não existe fundamento legal para o tribunal do julgamento ordenar a
notificação do Arguido, ora Recorrente, para os termos da alínea b) do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT.
II. É manifestamente ilegal, por violação dos mais elementares e historicamente
importantes princípios estruturantes do Estado de Direito (designadamente, da
separação de poderes, da independência dos tribunais e do acusatório),
constitucionalmente consagrados e com expressão legal, o entendimento segundo o
qual o tribunal do julgamento pode ordenar a realização da notificação prevista
na alínea b) do n.º 4 da versão actual do artigo 105.º do RGIT, comportando-se
como um órgão acusador ou que supre as lacunas da acusação ou da pronúncia.
III. É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art.32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP), a norma, que se retira da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e
4, do RGIT e 311.º, n.º 1, do CPP, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi
notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e
do valor da coima aplicável, não constando da acusação ou da pronúncia que tenha
sido notificado para esse efeito, pode o tribunal do julgamento ordenar a
realização de tal notificação.
IV. É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art.32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP), a norma, que se retira da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e
4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, segundo a qual, nos casos em
que o sujeito tributário passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas
e não foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável, não constando da acusação ou da
pronúncia que tenha sido notificado para esse efeito, o arguido não deve ser
absolvido ou o processo arquivado.
V. Conforme resulta da interpretação subjectiva, sistemática e teleológica, a
nova versão do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, introduzida pela Lei n.º
53-A/2006, de 29.12, revogou a versão anteriormente em vigor, descriminalizando
os casos de não entrega da prestação tributário quando o sujeito tributário
passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas previstas na primeira
parte da alínea b) do referido número e não foi notificado nos termos da parte
final da mesma alínea.
VI. A factualidade histórica actualmente existente imputável ao Arguido, ora
Recorrente, não integra todos os pressupostos de punibilidade previstos na
actual versão do artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, uma vez que, como reconhece
o douto despacho recorrido, o mesmo não foi notificado para proceder ao
pagamento da prestação tributária, respectivos juros de mora e valor da coima
aplicável.
VII. A factualidade imputada e a factualidade actualmente existente imputável ao
Arguido, ora Recorrente, não preenche o tipo legal (designadamente, de garantia)
do crime de abuso de confiança fiscal previsto na actual versão do artigo 105.º
da RGIT, não constituindo a prática de um crime, tendo, designadamente, em conta
as noções legais previstas nos artigos 1.º, n.º 1, do Código Penal e 1.º, alínea
a) do Código de Processo Penal.
VIII. Não se pode considerar consumada a prática do referido crime, uma vez que
não se encontra preenchido aquele novo elemento do respectivo tipo legal.
IX. O douto despacho recorrido assenta, assim, numa errada interpretação e
aplicação das normas consagradas na anterior e na actual versão do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT, nos n.ºs 2 e 4 do artigo 2.º do Código Penal, violando
flagrantemente, entre outros, os princípios constitucionais da não
retroactividade da penalização (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do acusatório (art.
32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa (art. 32.º n.º1, da
CRP), da separação de poderes (art. 2.ºda CRP), da independência dos tribunais
(art. 203.ºda CRP) e do exercício da acção penal pelo Ministério Público (art.
219.º n.º1, da CRP).
X. É inconstitucional, por violação do princípio constitucional da não
retroactividade da penalização (art. 29.º n.º1, da CRP) a norma, que resulta da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do art.
105.º do RGIT e do n.º 4 d artigo 2.º do Código Penal, segundo a qual constitui
crime a não entrega da prestação tributária por sujeito tributário passivo que
cumpriu a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.º 4 mas
não foi notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea.
XI. Não existe, pois, fundamento legal para ordenar o prosseguimento dos autos e
não absolver os arguidos ou determinar o arquivamento dos autos.
XII. O douto despacho recorrido deve ser revogado, absolvendo-se os arguidos ou
determinando-se a sua substituição por outro que determine o arquivamento dos
autos.”
3. Por acórdão de 16 de Abril de 2008, aquele Tribunal veio negar provimento ao
recurso assentando tal decisão, nomeadamente, nos fundamentos que se passam a
transcrever:
“[…] aquela alínea b) – que aqui nos traz mais uma vez, quiçá por erro de
revisão do legislador – mais não é que uma nova condição objectiva de
punibilidade; e nunca representou uma opção clara pela descriminalização das
condutas sob apreciação, quer pelo anteriormente dito, quer por não ter sido
essa, decididamente, a intenção legislativa:
Assim é, porque nenhuma alteração foi operada na tipologia do ilícito tal como
estava e se mantém descrito na previsão do n.º 1 do Art. 105º, do RGIT, nem o
legislador revelou o propósito de operar qualquer descriminalização das
anteriores condutas em que não foram entregues à administração tributária as
prestações deduzidas nos termos da lei e que os arguidos estavam legalmente
obrigados a entregar: Ac. desta Relação, de 3.10.2007, www.dgsi.pt,nº
RP200710030612240.
Cai assim por terra a tese do arguido, em relação ao arquivamento imediato dos
autos.
Mas o arguido pretende ainda que não teria de ser ordenada a sua notificação, no
âmbito da já tão referida alínea b), no sentido de pagar a prestação comunicada,
acrescida dos respectivos juros e do valor da coima no prazo de 30 dias.
Pretende ainda o arguido que o Tribunal, ao ordenar tal notificação, está a
ultrapassar as suas competências e a violar o princípio constitucional da
separação de poderes.
Com efeito, o citado Art. 105º nada diz sobre qual a entidade que deve proceder
a tal notificação. Mas também não nos parece lícito afastar, à partida, a
possibilidade de ser o próprio Tribunal a ordenar a mesma, uma vez estando o
processo no seu domínio (isto é. em fase de julgamento), sob pena de se criarem
situações de injustiça relativa: se os autos ainda se mantiverem na
administração fiscal, cabe a esta proceder à notificação; se os autos já se
encontram no Tribunal – na tese do arguido nada pode ou deve ser feito...
Tem-se entendido que – nestes casos – um de dois caminhos se deve seguir: ou o
próprio Tribunal faz a referida notificação, ou devolve os autos à administração
fiscal, para esta proceder à mesma.
Não nos parece, nem prática, nem correcta, nem justa, nem exequível a segunda
opção: se os autos se encontram já em fase de julgamento, terá de ser o próprio
Tribunal, enquanto órgão de soberania com poderes próprios e suficientes, quem
deve ordenar a notificação a que se refere aquela alínea.
Certo é que a mesma deve ter lugar e não se viola qualquer norma constitucional,
com tal actividade judicial (bem pelo contrário, com ela protegem-se os direitos
do arguido).
Afinal, são os Tribunais os órgãos a que a Constituição confere os poderes de
administrar a Justiça em nome do povo e é dentro destes poderes que se deve
encarar a acção em estudo; se o arguido (que já o é, efectivamente, neste
momento processual) pagar as prestações em dívida, o processo é arquivado; se o
não fizer, o processo segue para julgamento.
Não se vislumbra, mau grado toda a argumentação do recurso, qualquer
inconstitucionalidade, nomeadamente violação do princípio do acusatório (Art.
32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa), da plenitude das garantias
de defesa dos arguidos (Art. 32º. nº 1, da CRP), da separação de poderes (Art.
2º da CRP), ou – muito menos – da independência dos tribunais (Art. 203º da
CRP):
Não é violado o princípio do acusatório, porque o Tribunal não se está a
substituir ao Ministério Público, sendo a notificação em causa prevista na lei
e, aliás, em benefício do próprio arguido – que bem pode terminar o processo,
com o pagamento. Com efeito, a alteração ao Art. 105.º do RGIT veio possibilitar
a extinção do procedimento criminal, quanto aos crimes nele previstos e em que
esteja em causa o pagamento de quantias em dívida, independentemente do seu
valor, ao contrário do que acontecia antes daquela alteração, em que tal
faculdade era permitida apenas quando o seu valor fosse até um determinado
montante, desde que o arguido efectue o pagamento de tais quantias.
Não é violada qualquer garantia de defesa do arguido, pelas mesmas razões,
estando-lhe até garantido o direito de recurso, como aqui ocorreu.
Não é violado o princípio da separação de poderes, porque o Tribunal não está a
fazer ou a criar qualquer lei, nem a obedecer a qualquer ordem ilegítima de
outro órgão de soberania.
Finalmente. Não se mostra violado o princípio da independência dos Tribunais,
porque o tribunal está tão-só a respeitar as normas constitucionais, que lhe
impõem apenas o respeito pela lei e pelas decisões dos Tribunais superiores.
Deste modo, não constitui a notificação a que alude a alínea b), do nº 4, do
Art.. 105º, do RGIT, elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal
imputado ao arguido; e não prevendo a lei a condição dela constante na data em
que a acusação (ou a pronúncia) foi deduzida, integrando os factos descritos
nesta peça todos os elementos constitutivos do crime em questão, é forçoso
concluir que existe fundamento para o despacho a ordenar tal notificação.
O procedimento correcto a adoptar, aquando da conclusão dos autos para a
prolação do despacho a que alude o Art. 311º do Código de Processo Penal, seria
o de decretar que tal notificação se efectuasse, para posteriormente determinar,
consoante ocorresse ou não o pagamento, se os autos deviam ou não seguir para
julgamento – tal como foi ordenado no despacho em crise.”
4. Inconformado, veio então o arguido interpor recurso de constitucionalidade,
ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
para apreciação das seguintes normas:
a) Da que se retira da interpretação conjugada da anterior e da
actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e 311.º, n.º 1, do CPP,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu cumprimento às
suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação
tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, não
constando da acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado para esse
efeito, pode o tribunal do julgamento ordenar a realização de tal notificação;
b) Da que se retira da interpretação conjugada da anterior e da
actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do
Código Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu
cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a
prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, não constando da acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado
para esse efeito, o arguido não deva ser absolvido ou o processo arquivado
2. A norma referida na alínea a) supra viola os princípios constitucionais do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP).
3. A norma referida na alínea b) supra viola os princípios constitucionais do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP).
5. Na sequência de despacho do Relator, o Recorrente apresentou alegações que
concluiu nos seguintes moldes:
“I. Ainda que na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT esteja prevista uma
condição objectiva de punibilidade, não pode o Tribunal do Julgamento criar as
condições para a sua ocorrência ou não ocorrência, sob pena de violar os
princípios do acusatório, da plenitude de garantias de defesa dos arguidos, da
separação de poderes e da independência dos tribunais, consagrados nos artigos
2.º, 32.º, n.ºs 1 e 5, e 203.ºda CRP.
II. Com efeito, de harmonia com esses princípios, os factos materiais de que
depende a punição hão-de estar já verificados aquando da dedução da acusação e
da pronúncia, de modo a evitar que o arguido fique sujeito a imprevisíveis
alterações da sua situação jurídica.
III. Relativamente a esses factos materiais, há que assegurar ao arguido todas
as garantias de defesa, designadamente o direito de requerer a abertura da
instrução e o direito a um julgamento imparcial.
IV. Ao Tribunal de Julgamento não cabe suprir as deficiências da acusação ou da
pronúncia e, muito menos, criar ou contribuir para a criação de factos materiais
empíricos de que depende a punição dos arguidos (mesmo que esses factos
configurem condições objectivas de punibilidade), sob pena de se estarem a
substituir a outros órgãos do Estado com funções de natureza executiva e, ao
julgar, não estarem objectivamente investidos da devida imparcialidade e
independência.
V. É, assim, inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do
acusatório, da plenitude de garantias de defesa dos arguidos, da separação de
poderes e da independência dos tribunais, consagrados nos artigos 2.º, 32.º,
n.ºs 1 e 5, e 203.º da CRP, a norma, que se retira da interpretação conjugada da
anterior e da actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e 311.º, n.º 1,
do CPP, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu
cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a
prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, não constando da acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado
para esse efeito, pode o tribunal do julgamento ordenar a realização de tal
notificação.
VI. Por violação dos mesmos princípios, é também inconstitucional a norma, que
se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo
105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, segundo a
qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu cumprimento às suas
obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação tributária,
acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, não constando da
acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado para esse efeito, o arguido
não deve ser absolvido ou o processo arquivado.
VII. Consequentemente, deverá ser determinada a reforma do douto Acórdão
recorrido.
6. Nas contra-alegações, o Recorrido Ministério Público concluiu pela não
inconstitucionalidade das normas dos artigos 105.º, n.ºs 1 e 4 (na actual
versão) e 311.º, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que
pode o Tribunal de Julgamento ordenar a notificação aí prevista.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
7. Integram o objecto do recurso as questões indicadas no requerimento de
interposição referenciadas aos parâmetros constitucionais integrados pelo
princípio do acusatório, da plenitude das garantias de defesa dos arguidos, da
separação de poderes e da independência dos tribunais, constantes,
respectivamente, nos artigos 32.º, n.ºs 5 e 1, 2.º, e 203.º, todos da
Constituição da República Portuguesa. Assim, importa analisar:
– face à redacção do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, introduzida pela Lei n.º
53-A/2006, e do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, se pode o tribunal de
julgamento determinar a notificação aí prevista;
– face à mesma redacção do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, por confronto com a
anterior redacção e com a norma contida no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal,
se não constando da acusação ou da pronúncia que o arguido tenha sido notificado
para proceder ao pagamento da prestação tributária em falta, deverá ou não o
arguido ser absolvido ou o processo arquivado
8. O Acórdão n.º 409/2008, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de
Setembro de 2008, debruçou-se sobre questão idêntica à que versam os presentes
autos. Tal aresto, que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo
105.º, n.º a, alínea b), do RGIT, na redacção resultante da Lei n.º 53-A/2006,
de 29 de Dezembro, interpretada no sentido de que o tribunal de julgamento pode
determinar a notificação aí prevista, começou por efectuar o enquadramento da
evolução legislativa que se operou na matéria e que, por clarificadora, se
transcreve:
“2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime
de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total
ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é
dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava
legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4 deste preceito,
os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem
decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para
2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a
condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova
alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se
“a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências
doutrinais e jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido
interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio
a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de
Abril de 2008 (Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p.
2672), que fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
“A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na
redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição
objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código
Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em
consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o
agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea
b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).”
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por
assinalar que, na sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo
105.º do RGIT, surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação relativamente
à sua interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de uma nova
condição de punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A
primeira orientação – uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ –
considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a),
foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do
tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de
abuso de confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do
prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de
tipicidade; porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º,
n.º 4, do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais
favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo
pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce
à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda orientação
– defendida por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de
ilícito se reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora
simples punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade – entende que o
legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma circunstância que,
por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se
encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo
do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal e que se
traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo
confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o
legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto
material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu
estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado
– concluindo, consequentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela
primeira linha de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora
recorrido. E em ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para
2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção entre, por um
lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada
ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou
pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que
foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há
uma maior gravidade decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários
à Administração Fiscal”, postura esta que já não se verificaria nas situações em
que a “dívida” é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em
que há o reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do
necessário pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de
distintos desvalores de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com
assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório,
“ser valoradas criminalmente de forma diferente”. E acrescenta‑se: “neste
sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo
cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em
prazo a conceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso
de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do
Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.
A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram
a que no citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que –
perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de
manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o
agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do
pagamento, se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo
concedido – nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a
conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A
alteração legal produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é,
todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como
condição objectiva de punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que
configure um regime concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim,
o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção
publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o
objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da
sua conduta omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe
proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua
vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por
desnecessidade de aplicação de uma pena”, pelo que “a conclusão da aplicação da
lei nova é iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
9. Em apreciação da questão de constitucionalidade então colocada,
consubstanciada na interpretação do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, na redacção
actual, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação
aí prevista, por violação dos princípios da legalidade e da separação de
poderes, consagrados nos artigos 202.º, e 219.º, da Constituição, pronunciou-se
então o Tribunal Constitucional de forma negativa, assentando a decisão nos
seguintes fundamentos:
“Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à
definição da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério
Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos de soberania
com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes,
nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério
Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei
determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida
pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio
da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para
determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT
é a entidade titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério
Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a
fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa
notificação, em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo
com o princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma
reserva da Administração.(…)
Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação
pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente
dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção
penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da
reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da
separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do
“princípio da legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a
absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer
tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal
princípio, neste contexto).”
10. É esta fundamentação que cumpre transpor para o recurso ora em análise. E o
juízo de não inconstitucionalidade mantém-se mesmo face aos restantes parâmetros
que, integrando o objecto dos presentes autos, não foram apreciados no citado
aresto.
11. No que se refere às garantias de defesa, enquanto “todos os direitos e
instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e
contrariar a acusação” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 516), não se vê
como poderá a notificação para proceder ao pagamento da prestação tributária,
por ordem do juiz de julgamento, constituir qualquer violação das mesmas. O
arguido mantém ao seu alcance todos os mecanismos processuais para efectuar a
sua defesa e reagir às imputações que lhe são feitas. A notificação,
compreendendo-se no âmbito dos poderes e competências do juiz de julgamento
(atenta a fase processual), foi entendido como visando efectivar o preenchimento
de condição [adicional face à anterior redacção do tipo] objectiva de
punibilidade, não sendo o arguido, em momento algum, coarctado nos seus
mecanismos de defesa.
12. De igual modo, também no que respeita ao princípio acusatório, segundo o
qual se impõe, por via constitucional, um processo penal assente na total
divisão de tarefas entre quem acusa e quem decide, não se verifica qualquer
ofensa na medida em que, como claramente resulta do citado Acórdão n.º 409/2008,
a determinação da notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do
RGIT, está compreendida no âmbito das atribuições constitucionais da entidade
que dirige o processo ou o procedimento – seja a Administração Fiscal, em fase
graciosa, seja o Ministério Público, juiz de instrução ou de julgamento,
durante, respectivamente, o inquérito, a instrução ou a fase de julgamento.
13. Por último, e relativamente à invocada violação do princípio da
independência dos tribunais, do qual decorre a proibição absoluta de ingerência
de outros poderes do Estado no exercício da função judicial, encontrando-se os
juízes apenas e somente sujeitos à lei, também aqui improcedem as alegações do
Recorrente. Ao determinar a notificação em apreço o juiz de julgamento,
movendo-se ainda no âmbito dos poderes que lhe assistem no âmbito das
respectivas funções, não se encontra sujeito à ingerência ou influência de
qualquer outro poder do Estado, nomeadamente do executivo. Age, ainda, no
exercício da função jurisdicional com a autonomia e independência que se impõem.
14. Já no que se refere à segunda questão de constitucionalidade que o
requerente pretende colocar a este Tribunal, e independentemente se a sua
formulação preenche os requisitos quanto à natureza normativa da questão
suscitada, o certo é que a mesma sempre será manifestamente infundada já que a
Constituição não exige que a decisão seja necessariamente de arquivamento ou
absolvição nos casos em que existam elementos que não constem da acusação ou da
pronúncia, desde que, naturalmente, estejam asseguradas as garantias de defesa
do arguido.
Por tudo isto, face ao exposto, conclui-se pela improcedência do recurso.
III – Decisão
15. Nestes termos acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, negar
provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 22 de Outubro de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos