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Processo n.º 457/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A A., Lda. e B., inconformados com a decisão sumária proferida neste Tribunal
a 3 de Julho de 2008 que determinou o não conhecimento do recurso de
constitucionalidade previamente interposto, vêm agora deduzir reclamação para a
conferência, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, pela seguinte forma:
“§ 3° A natureza normativa da questão em apreciação
18. O referente da norma é, como se verificou, um conjunto típico. Mas isso não
afasta o seu carácter normativo nem, como veremos, permite a recusa da
admissibilidade na jurisdição do Tribunal Constitucional.
19. Não lhe retira carácter normativo, porque normatividade não se confunde com
ausência de pormenor. O pormenor não é, por natureza, abstracto ou concreto, já
que a abstracção pode consistir na categorização de um número indeterminado de
casos – os casos sobre os quais o legislador percebe uma necessidade de
regulação; os casos sobre os quais a jurisprudência é obrigada a encontrar
solução jurídica no sistema, ainda que os preceitos não a indiquem de forma
directa na sua expressão declarativa.
20. Por isso, ninguém contesta a abstracção da norma que proíbe e comina com
sanção penal o homicídio por envenenamento (cfr. artigo 132.°, n.° 2, alínea i),
do CP), ou, de modo ainda mais pormenorizado, a que proíbe e comina com sanção
penal a cópula sobre pessoa inconsciente, aproveitando-se do seu estado de
incapacidade (artigo 165°, n.° 2, do CP).
21. Ou seja, não são os elementos descritivos do tipo que lhe retiram a
tipicidade, antes a enformam reforçando o grau de certeza jurídica que a
Constituição propugna. É esse referente-tipicidade que constitui a
normatividade. Ou seja, no caso concreto dos crimes – e cingimo-nos, ainda que
necessariamente de modo artificial, aos tipos qua tale (conceptualização útil
para o trabalho hermenêutico) e não às normas sobre normas da parte geral do CP
–, a normatividade só o é porque é tipicidade, pelo que esta se define enquanto
expressão daquela.
22. Assente que é de normas que se fala na tipicidade penal, vejamos se a norma
aplicada pelo Tribunal da Relação não comunga da mesma natureza.
23. Trata-se de uma norma sobre o processo, mais precisamente, sobre validade da
prova, mas não deixa de configurar uma realidade típica. Não é o caso de A ou B
que está em causa, mas uma categoria típica de situações a que se subsume o
problema colocado pelos recorrentes. Ou seja, é um modo de obtenção de prova
configurado como referente que não se confunde com a realidade em si mesma, mas
ao qual esta se subsume, que está em causa.
24. É, aliás, um referente típico que não se distingue sequer na sua estrutura
linguístico-referencial da articulação permissiva do artigo 187.°, n.° 1, do
CPP, sendo quanto ao pormenor descritivo muito menos chão do que o artigo 188.°
do CPP conjugado com o artigo 190.°.
25. Pelo que não pode deixar de ser considerado «um critério normativo, dotado
de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de
uma pluralidade de situações concretas» (para citar a jurisprudência do Tribunal
Constitucional acolhida no recente Acórdão n.° 183/ 2008 – in http://www.
tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/200801 83 .html ?impressao=1, § 4.
–, cuja estrutura tópica assumimos como referência na articulação do presente
requerimento).
26. Assim, não se vê como não é considerado normativo um critério de
inadmissibilidade da prova obtida através da audição, por sistema de
intercomunicação, designadamente telefónico, de comunicações entre presentes,
mesmo tratando-se de prova obtida por iniciativa do ofendido ou de terceiro
perante a actualidade da prática do crime.
27. Voltando à objecção com que iniciámos esta reclamação, não se funda
certamente a decisão sumária no facto de tal norma não o ser por servir como
critério decisório de um caso concreto.
28. É que a jurisprudência encontra normas, ainda que implícitas, no sistema
precisamente no exercício do seu múnus constitucional de aplicação do Direito.
29. Ou seja, se é verdade, como se começou supra por dizer, que a aplicação a um
caso concreto não destitui uma norma do seu carácter normativo, também é certo
que a descoberta de uma norma por interpretação não lhe retira esse mesmo
carácter, ou não fosse a interpretação, afinal, a única forma de descoberta das
normas, sejam elas expressões declarativas dos preceitos, sejam elas expressões
heurísticas da teleologia de um sistema normativo ou dos seus segmentos.
30. Só assim faz sentido a fiscalização concreta da constitucionalidade de
normas, tanto nos casos em que as mesmas resultam de modo evidente de uma
aproximação declarativa aos preceitos, como nos casos das normas implícitas, ou
das encontradas nos processos de integração de lacunas (cfr., sobre o problema
das “normas implícitas” como objecto idóneo de fiscalização da
constitucionalidade, RUI MEDEIROS, “A força expansiva do conceito de norma no
sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade”, in
Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, p. 187
ss., para o qual também remete o Acórdão do Tribunal Constitucional n.°
183/2008).
§ 4° Admissibilidade da fiscalização de normas que se referem a realidades
típicas não configuradas pelo legislador
31. Aqui entronca a segunda questão fundamental deste requerimento: a da
admissibilidade da fiscalização da constitucionalidade de normas, encontradas
pela jurisprudência a propósito de um caso concreto, que se referem a realidades
típicas não configuradas pelo legislador.
32. Ora, desde logo, para responder a essa questão, há que convocar a relevância
do princípio da legalidade penal (artigo 29.° da Constituição da República
Portuguesa — CRP) na fiscalização concreta.
33. É absolutamente inútil a consagração de tal princípio se, ainda que tendo
por assente que o juiz ordinário está autorizado pela Constituição a julgar tão
bem como pode, mesmo que seja mal (para usar as palavras de SOUSA E BRITO,
citado por Rui MEDEIROS, ibidem), considerarmos que a criação de novos tipos
(novas normas de proibição com sanção penal, portanto) não está sujeita, em sede
de fiscalização concreta, à jurisdição do Tribunal Constitucional.
34. O jus imperii que caracteriza o direito penal explica, aliás, que seja aos
tribunais, que aplicam a lei penal, que se dirija, em primeira linha, o comando
constitucional nuilum crimen sine lege (stricta), até porque são estes -
permita-se a transliteração óbvia do artigo 29.° da CRP - que podem sentenciar
criminalmente alguém.
35. O exemplo do direito penal substantivo ilustra bem o que não pode deixar de
ser o escopo do complexo normativo sobre admissibilidade de recursos para o
Tribunal Constitucional, valendo necessariamente – porque a lei não distingue –
para toda a normatividade configurada jurisprudencialmente que se reporta a
realidades típicas não configuradas pelo legislador.
36. Valendo, por isso, também para a norma processual penal enunciada pelos
recorrentes e que o Tribunal da Relação aplicou: a não ser nos casos e termos em
que a lei processual a permite às autoridades judiciais, não é admissível, em
caso algum, a utilização de prova obtida através da audição, por sistema de
intercomunicação, designadamente telefónico, de comunicações entre presentes,
mesmo tratando-se de prova obtida por iniciativa do ofendido ou de terceiro
perante a actualidade da prática do crime.
37. Por outro lado, afigura-se fundamental não esquecer que “a fiscalização da
constitucionalidade por acção, para cumprir o seu objectivo, não pode
reconduzir-se a um simples controlo de preceitos ou de disposições, devendo,
pelo contrário, abranger as normas que deles resultam através da interpretação,
O artigo 75.°-A da LTC, quando exige que o recorrente identifique a norma cuja
constitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie, não
impede, neste sentido, que, havendo impossibilidade de identificar um concreto
preceito ou preceitos como base da norma impugnada (v.g., contestação da
validade da derrogação tácita de uma disposição da Lei das Finanças Locais que
prevê a compensação dos municípios, através de verba a inscrever no Orçamento do
Estado, da isenção ou redução de impostos municipais, através da pura e simples
não previsão na lei do orçamento subsequente da verba em causa), o recorrente se
limite a enunciar a norma cuja constitucionalidade se questiona e a fonte, ainda
que meramente indirecta, a partir da qual ela foi descoberta. Com efeito, se a
norma implícita ou virtual cuja validade se discute não estiver concretamente
amarrada a nenhuma disposição ou conjunto de disposições, recusar o recurso para
o Tribunal Constitucional porque o recorrente, embora tenha identificado a norma
cuja constitucionalidade questiona, não identificou oportunamente o preceito ou
preceitos donde ela se extrai, afigura-se injustificado. Na realidade, para além
de se dever acolher um entendimento do direito ao recurso consentâneo com o
princípio pro actione, não se pode obliterar que o sistema de fiscalização da
constitucionalidade se encontra, em Portugal, centrado no controlo de normas — e
não necessariamente de disposições” (JORGE MIRANDA / Rui MEDEIROS, Constituição
anotada, III, PÁG. 781).
38. Ora, no presente caso, o Tribunal da Relação de Lisboa apoiou-se justamente
num conjunto de disposições para extrair deles uma norma – segundo a qual, a não
ser nos casos e termos em que a lei processual a permite às autoridades
judiciais, não é admissível, em caso algum, a utilização de prova obtida através
da audição, por sistema de intercomunicação, designadamente telefónico, de
comunicações entre presentes, mesmo tratando-se de prova obtida por iniciativa
do ofendido ou de terceiro perante a actualidade da prática do crime –, cuja
legitimidade constitucional é justamente questionada pelos recorrentes. E, no
sistema de português de fiscalização da constitucionalidade, o direito de
recorrer para o Tribunal Constitucional, contestando um comando geral e
abstracto aplicável, no futuro, a uma potencialidade de situações tipicamente
semelhantes, não pode ser recusado.
Pelo que, nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão,
deve ser deferida a presente Reclamação, revogando-se a douta decisão sumária de
não conhecimento do objecto do recurso, proferida pelo Exmo. Senhor Juiz
Conselheiro Relator, e ordenando-se, em consequência, o prosseguimento do
presente recurso de constitucionalidade, notificando os Recorrentes para
apresentar alegações.”
2. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado da
reclamação, pronunciou-se, por um lado, no sentido de atender razão aos
Reclamantes no que tange à verificação do pressuposto atinente ao carácter
normativo do recurso, e, por outro, no sentido da manifesta falta de fundamento
do mesmo.
3. B., Recorrido nos autos, respondeu no sentido de não se encontrar preenchido
o pressuposto processual atinente à suscitação de uma questão de
constitucionalidade normativa.
4. Notificada a reclamante do teor da pronúncia do Ministério Público,
nomeadamente do carácter manifestamente infundado da questão, nada disse.
5. A fundamentação constante da decisão reclamada, e no que ora importa, tem o
seguinte teor:
“3.2. É assente que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar directamente a
decisão recorrida. O recurso de constitucionalidade no nosso sistema é um
recurso normativo, versando sobre norma, segmento de norma ou dimensão
interpretativa. Este critério normativo há-de igualmente ter sido acolhido
enquanto ratio decidendi da decisão recorrida de modo a que a apreciação da
questão de constitucionalidade, atenta a instrumentalidade do recurso, assuma a
virtualidade de operar um reflexo útil nos autos.
Importa, portanto, ter presente a distinção entre o que é norma, para efeitos
dos artigo 280.º, n.º 1, da Constituição, e 70.º, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, e, por outro lado, aquilo que constitui já a actividade
judicativa e hermenêutica do tribunal a quo que culminou na resolução do caso
concreto.
A Recorrente apresenta como objecto do recurso, o enunciado de que “A não ser
nos casos e termos em que a lei processual a permite às autoridades judiciais,
não é admissível, em caso algum, a utilização de prova obtida através da
audição, por sistema de intercomunicação, designadamente telefónico, de
comunicações entre presentes, mesmo tratando-se de prova obtida por iniciativa
do ofendido ou de terceiro perante a actualidade prática do crime”, retirando-o
das disposições conjugadas dos artigos 194.º, n.º 2, do Código Penal, com os
artigos 125.º, 126.º, 187.º, n.º 1, alínea a), 188.º, 189.º e 190.º, do Código
de Processo Penal, bem como dos artigos 26.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 8, e 34.º,
n.ºs 1 e 4, da Constituição.
3.3. Assim apresentado, fácil é de concluir que o objecto do recurso não versa
uma qualquer norma. A formulação utilizada visa a decisão judicial propriamente
dita que determinou a nulidade da prova assente nos depoimentos das testemunhas
C., D. e E.. O critério decisório radicou, portanto, na resolução da questão
concreta atinente à validade de tais depoimentos, face à Constituição e às
normas legais aplicáveis e não, ao invés, como se impunha de forma a lograr
obter o conhecimento do recurso tentado interpor, na resolução de qualquer
questão de constitucionalidade normativa, abstracta e genericamente formulada
face às irrepetíveis circunstâncias do caso concreto. Assim, o trecho que vem
indicado como objecto do recurso, que pretensamente terá sido aplicado enquanto
ratio decidendi do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não pode ser
qualificado como norma para efeitos de fiscalização concreta da
constitucionalidade.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Os Reclamantes impugnam o fundamento que obstou ao conhecimento do objecto do
recurso e que radicou no facto de o respectivo objecto não configurar, para os
efeitos que importam em sede de recurso de constitucionalidade, uma norma ou
critério normativo. Assim, e porque o Tribunal entende que o objecto do recurso
identificado pelos Recorrentes – ora Reclamantes – reveste, efectivamente, das
necessárias características de generalidade e abstracção aptas a erigi-lo como
preceito de conduta extraído do bloco normativo em causa, é de deferir, nesta
parte, a Reclamação deduzida.
Deste modo, assenta o objecto do recurso no critério, extraído do bloco
normativo devidamente identificado pelos Recorrentes, segundo o qual não é
permitido o acesso a comunicação telefónica, directa ou indirectamente, a não
ser que se encontrem observados os pressupostos definidos na lei processual
penal, nomeadamente a prévia autorização e o controlo jurisdicional sobre tal
meio de obtenção de prova.
7. É patente, no entanto, a manifesta falta de fundamento do recurso interposto.
Com efeito, o direito do assistente a intervir no processo penal, abrangendo
igualmente o seu direito à prova, com assento constitucional no artigo 32.º, n.º
7, não reveste um carácter absoluto, devendo conformar-se não só com as
restrições que a lei ordinária lhe vier a atribuir (dentro, claro está, dos
limites admitidos pela Constituição), como verá também o seu conteúdo
pré-determinado em função dos ditames previstos desde logo na Lei Fundamental no
que se refere às proibições de prova. Assim, e prescrevendo o artigo 32.º, n.º
8, da Constituição a nulidade das provas obtidas com ofensa da reserva da
intimidade da vida privada e da inviolabilidade da correspondência ou das
telecomunicações, sendo abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos
previstos na lei e sem intervenção judicial (cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Ed. revista,
Coimbra Editora, 2007, p. 524), é óbvio que o direito do ofendido a participar
do processo não poderá ser exercido fora de tal configuração normativa,
nomeadamente, sem a prévia intervenção e autorização da autoridade judicial.
Face ao exposto, conclui-se que a questão de constitucionalidade suscitada é
manifestamente infundada.
III – Decisão
Nestes termos, acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional:
a) Deferir a reclamação no que respeita ao conhecimento do
objecto do recurso, e consequentemente conhecendo
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelos Reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC.
Lisboa, 13 de Novembro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos