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Processo n.º 1170/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
A., SA, interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra a sentença do Tribunal do
Comércio de Lisboa, de 19 de Setembro de 2007, que julgou improcedente o
recurso deduzido contra o despacho da Autoridade da Concorrência (AdC), de 28 de
Março de 2007, que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades
apresentado, em 26 de Janeiro de 2007, pela ora recorrente, relativas às buscas
e apreensão de documentos que foram efectuadas nas suas instalações, em 16 de
Janeiro de 2007, no âmbito do processo de contra‑ordenação em que é arguida.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso,
a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse a
inconstitucionalidade: (i) “da norma que resulta da interpretação do artigo
17.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º
18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao Ministério
Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas
colectivas, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da
CRP e do princípio da reserva de juiz nele consagrado”; (ii) “da norma que
resulta da interpretação conjugada do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º
18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
(CPP), no sentido de conferir competência ao Ministério Público para apreender
ou autorizar a apreensão de correspondência, por violação dos artigos 32.º, n.º
8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP”; e (iii) “da norma que resulta da
interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de
Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no
sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio
electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser
apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional, por
violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP”. Estas três
questões de inconstitucionalidade teriam sido suscitadas pela recorrente,
respectivamente, nos artigos 79.º e 80.º e na conclusão IX, no artigo 67.º e na
conclusão VII e nos artigos 82.º, 85.º, 86.º, 90.º, 92.º e 110.º e conclusões
XI, XII e XIII da impugnação judicial endereçada ao Tribunal do Comércio de
Lisboa.
No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho
para apresentação de alegações, acrescentando que as partes deveriam
pronunciar‑se, querendo, sobre a eventualidade de o Tribunal vir a decidir não
conhecer do objecto do recurso: (i) na parte respeitante à segunda questão de
inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição de recurso,
por a decisão recorrida não ter aplicado, como ratio decidendi, o critério
normativo arguido de inconstitucional; e (ii) na parte respeitante à terceira
questão de inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição
de recurso, por, nos locais indicados aí pela recorrente como sendo aqueles em
que suscitou tal questão perante o tribunal recorrido, não ter colocado nenhuma
questão de inconstitucionalidade normativa (não reportando a normas de direito
ordinário ou a qualquer interpretação dessas normas, devidamente identificada,
a violação de normas ou princípios constitucionais), antes imputando
directamente à actuação da AdC, em si mesma considerada, a violação de comandos
constitucionais.
A recorrente apresentou alegações, em que, reconhecendo
que a decisão recorrida não chegara a aplicar o critério normativo que
integrava a referida segunda questão de inconstitucionalidade, abandonou esta
questão, mas, ao invés, sustentou a adequada suscitação da terceira questão
como uma questão de inconstitucionalidade normativa, tal como viria, aliás, a
ser entendida claramente pelo tribunal recorrido e por ele efectivamente
apreciada. Circunscrevendo as suas alegações às mencionadas primeira e terceira
questões de inconstitucionalidade, a recorrente sintetizou o aí aduzido nas
seguintes conclusões:
“1. No âmbito da aplicação da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, que
aprovou o regime jurídico da concorrência, e em sede de processo
contra‑ordenacional, a Autoridade da Concorrência realizou em 16 de Janeiro de
2007, ao abrigo de um mandado emitido por uma magistrada de turno do Ministério
Público, diligências de busca na sede e instalações da recorrente, tendo
apreendido correspondência diversa (designadamente circulares e mensagens de
correio electrónico) no decurso das buscas.
2. O entendimento, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual as
buscas realizadas pela Autoridade da Concorrência na sede de pessoas
colectivas, ao abrigo dos poderes de inquérito que lhe são conferidos pelas
normas do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de
Junho, não constituem buscas domiciliárias, pelo que a entidade competente para
emitir os mandados correspondentes é o Ministério Público, é materialmente
inconstitucional por violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da CRP
e do princípio da reserva de juiz aí consagrado.
3. A generalidade da doutrina constitucionalista admite que, por si
só (imediatamente) ou em conjugação com outros direitos fundamentais (como,
nomeadamente, o direito de iniciativa económica, o direito à propriedade ou o
direito à tutela do segredo comercial), a garantia de inviolabilidade do
domicílio é extensível às pessoas colectivas, designadamente as pessoas
colectivas de direito privado, como é o caso da ora recorrente.
4. Para além de considerar que o âmbito de protecção da garantia de
inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 34.º da CRP se estende à sede
e instalações das pessoas colectivas, a doutrina converge em sentido idêntico
no que respeita à titularidade deste direito subjectivo fundamental,
considerando que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da CRP, a
inviolabilidade do domicílio não é indissociável da personalidade humana ou da
pessoa física, sendo, portanto, compatível com a específica natureza das
pessoas colectivas.
5. As empresas devem beneficiar de uma esfera específica de reserva
e sigilo merecedora de tutela equiparável à que é conferida à «habitação» das
pessoas físicas, nomeadamente em atenção ao facto de que é na sede e
instalações destas pessoas colectivas que se concentram as suas actividades
industriais, comerciais ou de investigação; os seus dados de negócio e
documentação contabilística e financeira; os haveres pessoais dos seus
funcionários, administradores e trabalhadores; informação sobre clientes e
fornecedores; planos de negócios e orçamentos; registos de declarações fiscais;
documentação bancária e relativa a créditos e financiamentos, etc.
6. O facto de, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas
colectivas gozarem dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza,
por direito próprio, corresponde a uma limitação, consensualmente reconhecida,
ao princípio do carácter individual destes direitos.
7. A circunstância de ser incriminada, nos termos do artigo 187.º do
Código Penal, a violação de bens jurídicos e valores eminentemente pessoais
específicos de pessoas colectivas (como o prestígio, a confiança e a
credibilidade) reforça o entendimento segundo o qual a garantia de
inviolabilidade do domicílio é compatível com a natureza das pessoas jurídicas.
8. Acresce que, nos termos da jurisprudência mais recente do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a protecção do domicílio decorrente do
artigo 8.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais estende‑se inequivocamente à «sede e delegações» das
empresas (cf. acórdão Colas Est v. França, de 16 de Abril de 2002, que concluiu
pelo carácter desproporcionado das disposições de um regime legal de direito
francês, aplicáveis a investigações a empresas no âmbito da fiscalização de
práticas anti‑concorrenciais, segundo as quais não seria necessária autorização
judicial prévia para diligências de busca na sede e instalações de pessoas
colectivas).
9. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
constitui um elemento hermenêutico de enorme importância na densificação,
normativa e jurisprudencial, das normas consagradoras de direitos fundamentais,
quer a nível nacional quer a nível comunitário (neste segundo plano, o valor das
normas da Convenção Europeia e da aludida jurisprudência enquanto padrões de
interpretação do direito comunitário foi, inclusivamente, reforçado com a adesão
formal da União Europeia àquela Convenção por via do Tratado de Lisboa, de 13 de
Dezembro de 2007 – cf. nova redacção dos n.ºs 2 e 3 do artigo 6.º do Tratado da
Comunidade Europeia), pelo que não poderá deixar de ser tida em conta na
interpretação do disposto no artigo 34.º da CRP.
10. Aplicando‑se a garantia de inviolabilidade do domicílio à sede e
instalações das pessoas colectivas, verifica‑se que a realização de buscas e
apreensões nas instalações da recorrente é, nos termos do disposto no n.º 2 do
artigo 34.º da CRP, um acto sujeito a reserva de juiz (o que é confirmado, na
legislação ordinária, pelas disposições do artigo 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1,
alínea a), do Código de Processo Penal, na redacção vigente à data em que foram
autorizadas e tiveram lugar aquelas diligências), pelo que a interpretação do
artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no
sentido de que a «autoridade judiciária» referida nesta última norma não tenha
de ser, necessariamente, um magistrado judicial é materialmente
inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.º
2, da CRP.
11. Acresce não ser possível recorrer subsidiariamente ao conceito
de «autoridade judiciária» constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do CPP
porquanto em processo contra‑ordenacional, em especial na fase anterior à
aplicação da coima pela autoridade administrativa, nenhuma autoridade
judiciária tem competência decisória, pelo que falta à norma contida no n.º 2
do artigo 17.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, a indispensável definição, em
norma expressa habilitante, de qual deva ser a autoridade judiciária competente
para efeitos de autorização de buscas e apreensões, inexistindo, ademais,
qualquer elemento interpretativo, legal ou constitucional, que aponte para que
a referida autoridade possa ser, no âmbito das diligências de investigação
reguladas no regime jurídico da concorrência, o Ministério Público.
12. Quanto ao facto de a Autoridade da Concorrência ter apreendido
correspondência (mensagens de correio electrónico e circulares, arquivadas em
suporte informático em computador pessoal) na sede da recorrente, a decisão
recorrida propugnou o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade
da correspondência apenas vale para correspondência «fechada» (devendo a
correspondência já «aberta» seguir o regime aplicável aos documentos em geral).
13. Tal entendimento é materialmente inconstitucional, por violação
do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, norma que admite excepcionalmente a
ingerência na correspondência apenas nos «casos previstos na lei em matéria de
processo criminal».
14. Por conseguinte, em processo contra‑ordenacional vigora uma
garantia de inviolabilidade absoluta da correspondência ou telecomunicações –
como resulta, a nível da legislação ordinária, do disposto no artigo 42.º, n.º
1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas –, encontrando‑se vedado o
recurso a meios de obtenção mais gravosos, como a apreensão de correspondência,
apenas possível em sede de investigação criminal nos termos previstos no artigo
179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
15. Não existe qualquer motivo justificativo de um tratamento
diferenciado entre correspondência «fechada» e correspondência «aberta», pelo
que a circunstância de uma mensagem de correio electrónico poder já ter sido
lida e arquivada (em versão impressa ou em suporte informático) releva apenas
para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime previsto e punido no artigo
194.º do Código Penal (violação de correspondência ou telecomunicações), não
tendo utilidade para efeitos de determinação da amplitude da tutela da
correspondência em sede de processo contra‑ordenacional.
Nestes termos, deverão ser julgadas inconstitucionais as normas
constantes:
a) do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho,
na interpretação segundo a qual o Ministério Público é competente para
autorizar buscas à sede e instalações de pessoas colectivas, por violação dos
artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP e do princípio da reserva
de juiz neles consagrado;
b) dos artigos 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de
Junho, e 42.º, n.º 1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas, aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na interpretação segundo a qual a
correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e
documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e
utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional, por violação dos
artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP,
revogando‑se, consequentemente, a decisão recorrida e mandando‑se
baixar os autos ao Tribunal do Comércio de Lisboa com as consequências legais.”
A recorrida AdC apresentou contra‑alegações,
manifestando concordância com o não conhecimento das segunda e terceira questões
de inconstitucionalidade, e formulando, a final, as seguintes conclusões:
“A) A recorrente não configurou como inconstitucionalidade normativa
a interpretação da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1,
alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do
RGCO, no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de
correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos)
pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em processo
contra‑ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos
da CRP. Só nesta sede o fazendo.
B) Considerou, e configurou, que a AdC violou a proibição de
ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagradas no n.º 4 do
artigo 34.º da CRP, violando igualmente o disposto no n.º 1 do artigo 42.º do
RGCO (artigo 110.º da impugnação), violando também os termos do mandado (artigo
111.º da impugnação) e as conclusão XII e XIII são igualmente bem
esclarecedoras do que defende.
C) Como tal considerou a actuação da AdC como violadora das
garantias constitucionais de inviolabilidade de correspondência com a
consequente nulidade de obtenção de prova. Não configurando, como ora pretende,
uma inconstitucionalidade normativa.
D) Pelo que não deve ser conhecida a inconstitucionalidade ora
invocada por ser a primeira vez que o vem fazer.
E) A Autoridade, nos termos dos artigos 1.º e 4.º dos Estatutos da
Autoridade da Concorrência aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 10/2003, de 18 de
Janeiro, e que dele fazem parte integrante, tem como missão assegurar a
aplicação das regras da concorrência nacionais e comunitárias, no respeito pelo
princípio da economia de mercado e de livre concorrência, com vista ao
funcionamento eficiente dos mercados, à repartição eficaz dos recursos e aos
interesses dos consumidores.
F) No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à
Autoridade identificar e investigar as práticas susceptíveis de infringir a
legislação da concorrência nacional e comunitária, proceder à instrução e
decidir sobre os respectivos processos, aplicando, se for caso disso, as sanções
previstas na lei, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 7.º dos Estatutos
supra mencionados.
G) No caso dos autos, e salvo melhor, não foram efectuadas buscas
domiciliárias e, igualmente, não foi apreendida qualquer correspondência, logo
o mandado foi emitido pela autoridade judiciária competente.
H) Com efeito, o conceito de domicílio deve ser «dimensionado e
moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na
sua vertente de intimidade da vida privada» (Acórdão n.º 67/97, in ATC, 36.º
vol., p. 247), não está seguramente essa «intimidade» em causa na sede da
empresa, nem este é «aquele espaço fechado e vedado a estranhos onde recatada e
livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos
característicos da vida privada e familiar» (Acórdão n.º 452/89, in ATC, 13.º
vol., tomo I, p. 543).
I) Pelo que toda argumentação da recorrente deve improceder, não
existindo qualquer inconstitucionalidade decorrente da inviolabilidade do
domicílio das pessoas colectivas e da alegada busca «domiciliária» à «sede» da
recorrente, em razão do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, que prevê que «as pessoas
colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua
natureza».
J) Tal preceito não consagra um princípio de equiparação entre
pessoas físicas e pessoas colectivas no tocante à titularidade de direitos
fundamentais, nem o mesmo é defendido por Gomes Canotilho e Vital Moreira.
K) O Tribunal Constitucional rejeita expressamente uma tal
equiparação, sendo a este propósito exemplar o Acórdão n.º 569/98, no proc. n.º
505/96, de 7 de Outubro de 1998.
L) Da norma do n.º 2 do artigo 12.º decorre uma «limitação»: as
pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza,
alicerçada na ligação íntima dos direitos fundamentais ao valor supremo da
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
M) Disto resulta que o n.º 2 do artigo 12.º da CRP não determina a
atribuição directa, por extensão, dos direitos fundamentais às pessoas
colectivas, mesmo os seus representantes sendo pessoas singulares, o que obriga
a uma análise sempre casuística e sempre temperada com o facto de inexistir um
catálogo «prévio» de direitos fundamentais que possam ser invocados pelas
pessoas colectivas.
N) O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o conceito
constitucional do domicílio acolhido no artigo 34.º da CRP, entendendo, a esse
propósito, no Acórdão n.º 452/898 (in Diário da República, I Série, de 22 de
Julho de 1989), e reiterado no Acórdão n.º 67/97, proc. n.º 602/96, de 4 de
Fevereiro de 1997.
O) Ou seja, o conceito constitucional de domicílio é dimensionado e
moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na
sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com
o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP.
P) E tanto é igualmente confirmado no douto Parecer n.º 127/2004 do
Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República, de 17 de Março de 2005.
Q) No mesmo sentido o Parecer da mesma Procuradoria com o n.º
86/1991, no ponto 7.4, onde se assume que as buscas na sede das pessoas
colectivas não configuram buscas domiciliárias, ou seja, «em casa habitada ou
numa sua dependência fechada».
R) As buscas efectuadas pela Autoridade da Concorrência nos
presentes autos não são enquadráveis no conceito de buscas domiciliárias
previsto no artigo 177.º do CPP, não sendo, consequentemente, acto subsumível à
previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 269.º do CPP.
S) Assim sendo, e nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º da Lei
n.º 18/2003, de 11 de Junho, a Autoridade goza dos mesmos direitos, faculdades e
deveres dos órgãos de polícia criminal e tem competência para proceder a buscas
nas instalações das empresas, desde que obtenha um despacho da autoridade
judiciária competente para a sua realização.
T) Por aplicação subsidiária do CPP, ex vi artigo 19.º da Lei n.º
18/2003 e do artigo 41.º do RGCO, e porque estas diligências têm lugar na fase
de inquérito, a entidade competente para a emissão dos mandados é o Ministério
Público, nos termos dos artigos 267.º e 2.º do CPP.
U) Também toda a invocação dos Acórdãos do TEDH não colhe, porque
não tem aplicação ao caso concreto e todos os princípios consagrados na Carta
dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem vêm
expressamente previstos e sufragados na Constituição da República Portuguesa.
V) Contudo, caso não seja este o entendimento deste douto Tribunal,
sempre se dirá que não foi apreendida nenhuma correspondência.
W) Os documentos apreendidos e classificados como correspondência
não violam o direito ao sigilo da correspondência, consagrado
constitucionalmente como garantia fundamental que encontra sua recriminação, no
âmbito penal, no artigo 194.º do Código Penal.
X) Decorre, assim, do normativo supra que o legislador ordinário, ao
pretender acautelar o bem jurídico constitucionalmente garantido – o direito à
privacidade e a garantia da comunicação –, veio proibir, antes de mais, a
própria «abertura» de um escrito que «se encontre fechado», e isto
independentemente de o seu conteúdo versar ou não sobre matéria privada, ou
mesmo de se tomar ou não conhecimento desse mesmo conteúdo. Ou seja, é a própria
«abertura» que é punida de per se.
Y) Não é abrangida pela proibição prevista naquele normativo – e
logo não é considerada violação de correspondência ou de telecomunicações – a
visualização ou apreensão de encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se
encontre aberto, porque, para efeitos da tutela penal e (não obstante o termo
literal utilizado), o legislador penal distinguiu entre «correspondência» – a
fechada, e respectiva violação – e os restantes «objectos» que, para o efeito,
não são correspondência, mas, nomeadamente, documentos, nos termos previstos no
artigo 178.º do CPP.
Z) Tal resulta, aliás, expressamente, do mandado emitido pela
entidade judiciária competente.
AA) Assim, contrariamente ao que alega a requerente, no âmbito das
diligências de busca realizadas, não foi feita qualquer apreensão de
«correspondência», com violação daquelas disposições.
BB) A protecção legal visada pelo artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, tal
como o artigo 179.º do CPP, se deve circunscrever, tal como no artigo 34.º, n.º
1, da CRP, apenas a escritos fechados.
CC) Termos em que, não pertencendo a documentação recolhida pelos
funcionários da Autoridade da Concorrência à área da tutela da incriminação nos
termos definidos tanto no direito contra‑ordenacional como no direito penal e
direito processual penal, não ocorreu, in casu, qualquer violação do artigo
42.º, n.º 1, do RGCO nem do artigo 179.º do CPP: este, aliás, como é sabido,
sendo inaplicável em termos absolutos no processo contra‑ordenacional, dado que
o RGCO não admite de todo a apreensão de «correspondência» – quando
efectivamente de correspondência se trate – ainda que com mandado do juiz.
DD) O mesmo se dirá quanto à correspondência electrónica, porquanto
não existe no ordenamento jurídico português um regime jurídico específico para
a apreensão de correspondência sob a forma electrónica.
EE) Também neste caso, toda a «documentação» apreendida pelos
funcionários da Autoridade da Concorrência circunscreveu‑se, tão‑só, a
documentos já visualizados pela empresa e que se encontravam a circular, por
conseguinte, abertos, através de sistemas de correspondência internos, em
formato papel ou electrónico, sem que, em qualquer dos casos, se estivesse
perante a «intromissão de correspondência» que requeresse especial protecção
legal.
FF) Donde carece de fundamento qualquer uma das argumentações da
recorrente quanto à obtenção ilegal, nula e inconstitucional de todo e qualquer
documento, como a mesma pretende, e que, por razões de defesa, vem invocar como
sendo correspondência.
GG) Não existe qualquer violação do disposto nos artigos 17.º, n.ºs
1 e 2, da Lei n.º 18/2093; artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, e ainda, artigos 126.º,
n.ºs 1 e 3, 174.º, 178.º e 179.º do CPP e artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1,
2, 3 e 4, da CRP, na delimitação do conceito de correspondência aos documentos
fechados.
HH) Há uma efectiva diferença entre o que se entende por
correspondência aberta e fechada, sendo que só a primeira se enquadra dentro da
previsão constitucional.
Nestes termos, deve julgar‑se improcedente o presente recurso e, em
consequência:
– não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação
do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela
Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao
Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de
pessoas colectivas, por considerar que não existe violação dos artigos 32.º,
n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e
do princípio da reserva de juiz neles consagrado.
E, caso entenda conhecer da terceira inconstitucionalidade invocada,
deve igualmente julgar improcedente o recurso neste ponto e, em consequência:
– não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação
do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do
artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, no sentido de que a correspondência aberta
(circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados
em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova
em processo contra‑ordenacional, por considerar que não existe violação dos
artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP.”
Também o representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou contra‑alegações, igualmente preconizando o não
conhecimento das segunda e terceira questões de inconstitucionalidade, e
concluindo:
“1.º – A sede e instalações de uma pessoa colectiva não correspondem
ao conceito de domicílio para efeitos do artigo 34.º da Constituição da
República Portuguesa.
2.º – O conceito de domicílio previsto no artigo 34.º da
Constituição não configura a possibilidade de uma equiparação entre domicílio de
pessoa (singular) e de pessoa colectiva, nomeadamente para efeitos de
intervenção de juiz (reserva de juiz).
3.º – A interpretação do artigo 17.º, n.º 2, da Lei de Concorrência
segundo a qual o Ministério Público é competente para autorizar buscas em sede
de pessoa colectiva não viola qualquer comando constitucional, nomeadamente o
artigo 34.º”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir, com exclusão,
desde já, da referida “segunda questão de inconstitucionalidade” (reportada à
“norma que resulta da interpretação conjugada do artigo 17.º, n.º 1, alínea c),
da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 179.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal (CPP), no sentido de conferir competência ao Ministério Público
para apreender ou autorizar a apreensão de correspondência, por violação dos
artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP”9, abandonada pela recorrente
nas suas alegações.
2. Fundamentação
2.1. A questão da inconstitucionalidade da norma que
resulta da interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Regime
Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no
sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à
sede e domicílio profissional de pessoas colectivas.
2.1.1. Na impugnação judicial do despacho da AdC, de 28
de Março de 2007, que indeferira requerimento de arguição de nulidades, a
recorrente suscitou a presente questão de inconstitucionalidade nos seguintes
termos, condensados nas conclusões V a IX dessa peça processual:
“V – As buscas e apreensões nas instalações da recorrente, a 16 de
Janeiro de 2007, foram realizadas ao abrigo de mandado emitido pelo Ministério
Público, o que viola o disposto no n.º 2 do artigo 34.º da CRP (garantia de
inviolabilidade do domicílio).
VI – Resulta desta norma da Constituição que a realização de buscas
e apreensões na sede ou domicílio profissional de pessoas colectivas é um acto
sujeito a reserva de juiz, não se admitindo que este tipo de diligências de
obtenção de prova possa ser decidido e autorizado por um magistrado do
Ministério Público.
VII – Qualquer interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do
regime jurídico da concorrência (aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de
Junho), bem como do artigo 179.º, n.º 1, do CPP, no sentido de conferir
competência ao Ministério Público para apreender ou autorizar a apreensão de
correspondência redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação
dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP, inconstitucionalidade
que se deixa agora alegada.
VIII – Não é aplicável, para efeitos de preenchimento do conceito de
«autoridade judiciária», referido no n.º 2 do artigo 17.º do regime jurídico da
concorrência, a definição de autoridade judiciária constante do n.º 1 do artigo
1.º do Código de Processo Penal.
IX – Qualquer interpretação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do regime
jurídico da concorrência, no sentido de conferir competência ao Ministério
Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional da recorrente
redundará em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos
32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP, inconstitucionalidade que se
deixa agora alegada, como aliás foi desde logo alegada, para os devidos efeitos,
no requerimento de 26 de Janeiro de 2007.”
2.1.2. Esta questão de inconstitucionalidade foi
desatendida pela sentença recorrida com base na seguinte argumentação:
“Da natureza das buscas e da autoridade judiciária competente para
as ordenar.
Para apreciar a questão que aqui se coloca, vamos começar por
traçar, em linhas gerais, o direito nacional aplicável para, depois, determinar
se a interpretação que do direito nacional se faz colide com o artigo 8.º da
CEDH e/ou com alguma interpretação que do mesmo é feita.
A Lei n.º 18/2003 equipara a AdC aos órgãos de polícia criminal,
conferindo‑lhe designadamente competência para proceder a buscas nas
instalações das empresas (artigo 17.º, n.º 1, alínea c)). Precisa, porém, o n.º
2 do mesmo preceito que a realização das buscas depende de despacho da
autoridade judiciária que autorize a sua realização.
Dado o modo como o legislador regulou esta matéria, há que recorrer
ao direito processual penal, aplicável, como se referiu supra, subsidiariamente.
Resulta do artigo 174.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que,
sempre que haja indícios da prática de uma infracção criminal e de que num
determinado local, reservado ou não livremente acessível ao público, se
encontram quaisquer objectos relacionados com o crime ou que possam servir de
prova, pode ter lugar uma busca, precedida do necessário despacho da autoridade
judiciária competente (despacho que pode ser, num primeiro momento e em
determinadas situações, dispensado, casos que não vão ser objecto de análise por
não relevarem para os autos).
Como regra, as buscas têm lugar no decurso do inquérito, fase
processual destinada à prática dos actos de investigação reputados necessários
com vista à decisão sobre a acusação (artigo 262.º do Código de Processo Penal).
Sendo este o objectivo do inquérito, nele estão compreendidas todas as
diligências destinadas a investigar a existência de um crime, a identificar os
seus agentes e respectiva responsabilidade e a descobrir e recolher a prova
necessária.
O titular da acção penal é o Ministério Público, a ele cabendo a
direcção do inquérito (artigo 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), ou
seja, é ao Ministério Público que cabe seleccionar e recolher a prova, assistido
pelos órgãos de polícia criminal. Por conseguinte, quando o artigo 174.º, n.º 2,
faz depender as buscas de prévio despacho da autoridade judiciária competente,
está‑se a referir ao Ministério Público (cf. artigo 267.º e, quanto à definição
de autoridade judiciária, artigo 2.º, ambos do Código de Processo Penal).
Há, porém, determinados actos que, quando praticados na fase de
inquérito, dependem de autorização do juiz de instrução. Trata‑se daqueles
actos que, em razão da sua natureza e gravidade, contendem directamente com
direitos fundamentais (artigo 268.º do Código de Processo Penal).
Dentro do núcleo de actos da competência do juiz de instrução na
fase de inquérito incluem‑se as autorizações para realização de buscas
domiciliárias: A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode
ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as sete e as vinte e uma
horas, sob pena de nulidade (artigo 177.º do Código de Processo Penal).
O cerne da questão sub judice é precisamente definir o que se
entende por busca domiciliária, sendo certo que, para dar resposta a esta
questão, há que interpretar o artigo 34.º da Constituição da República
Portuguesa, que consagra como direito fundamental a inviolabilidade do
domicílio e da correspondência, e que, por conseguinte, está em estreita
conexão com a regra processual em análise.
Dispõe o citado preceito constitucional, nos seus n.ºs 1 e 2, que:
«1 – O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de
comunicação privada são invioláveis.
2 – A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode
ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas
previstos na lei.»
Sobre o conteúdo deste direito, Gomes Canotilho e Vital Moreira
ensinam: «A Constituição continua a regular no mesmo preceito, desde a redacção
originária, o direito à inviolabilidade de domicílio e o direito à
inviolabilidade de correspondência (e outros meios de comunicação privada). A
proclamação destes direitos como ‘invioláveis’ e a sua associação para efeitos
de positivação normativo‑constitucional justifica‑se por haver, em ambos os
direitos, a protecção de bens jurídicos fundamentais comuns (dignidade da
pessoa, desenvolvimento da personalidade e, sobretudo, garantia da liberdade
individual, autodeterminação existencial, garantia da privacidade, nos termos do
artigo 26.º)» (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol.
I, p. 539).
Os mesmos autores, reconhecendo as dificuldades na definição do
objecto da inviolabilidade, acrescentam: «Tendo em conta o sentido
constitucional deste direito, tem de entender‑se por domicílio, desde logo, o
local onde se habita – a habitação –, seja permanente, seja eventual; seja
principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido
civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas, certamente
incluindo também as habitações precárias, como tendas, roulottes, embarcações),
abrangendo também a residência ocasional (como o quarto de hotel) ou, ainda, os
locais de trabalho (escritórios, etc.). Dada a sua função constitucional, esta
garantia deve estender‑se quer ao domicílio voluntário geral, quer ao domicílio
profissional (Código Civil, artigos 82.º e 83.º). A protecção do domicílio é
também extensível, na medida do que seja equiparável, aos locais de trabalho
(escritórios, etc.).» (op. cit., p. 540).
O domicílio é, pois, visto como a projecção espacial da pessoa,
pretendendo‑se, com a consagração da sua inviolabilidade, assegurar a protecção
da dignidade humana, ou seja, a protecção do domicílio radica na personalidade
humana e na necessidade de garantir o direito à reserva da intimidade da vida
privada e familiar. Em suma, está em causa o direito à liberdade da pessoa.
O Tribunal Constitucional tem definido o domicílio a que se alude
neste artigo como «a habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a
estranhos, onde, recatada e livremente, se desenvolve uma série de condutas e
procedimentos característicos da vida privada e familiar» (Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 452/89, publicado no Diário da República, I Série, de 22 de
Julho de 1989, citado em abundância por outros arestos daquele Tribunal).
Assim configurado o direito em análise, não podemos deixar de acatar
o entendimento dos já citados autores de que «Os titulares do direito à
inviolabilidade de domicílio são as pessoas físicas que habitam uma residência,
independentemente das relações jurídicas subjacentes (ex.: propriedade,
arrendamento, posse) e da respectiva nacionalidade. Esta titularidade
estende‑se a todos os membros da família e a pessoas com estatuto especial (ex:
detidos, internados), devendo as eventuais restrições resultar da lei e serem
justificadas pelas razões constantes deste preceito constitucional (matéria de
processo criminal).» (op. cit., p. 541).
Aqui chegados, importa agora analisar em que medida este direito é
extensível às pessoas colectivas através da equiparação de domicílio à sede
social.
É indiscutível que também as pessoas colectivas são titulares de
direitos fundamentais. Com efeito, dispõe o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição
da República Portuguesa que: «As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão
sujeitas aos deveres compatíveis com sua natureza». Adoptou, pois, a nossa
Constituição uma concepção de direitos fundamentais não centrada
exclusivamente sobre os indivíduos.
Mas desta atribuição de direitos fundamentais às pessoas colectivas
não decorre, directa e necessariamente, que lhes seja aplicável a garantia da
inviolabilidade do domicílio, nem o mesmo é defendido por Gomes Canotilho e
Vital Moreira na última edição da obra supra citada. A propósito do artigo 12.º,
n.º 2, dizem estes autores que «As pessoas colectivas não podem ser titulares
de todos os direitos e deveres fundamentais; mas, sim, apenas daqueles que sejam
compatíveis com a sua natureza (n.º 2, in fine). Saber quais são eles, eis um
problema que só pode resolver‑se casuisticamente. Assim, não serão aplicáveis,
por exemplo, o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir
família; já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de
domicílio (pelo menos em certa medida) (ver nota ao artigo 34.º), o segredo de
correspondência, o direito de propriedade. (...) É claro que o ser ou não ser
compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da
própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis
aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas
físicas, com os indivíduos ...» (op. cit., pp. 330‑331).
Continuando a citar os mesmos constitucionalistas, «Já é muito
duvidoso que a protecção da sede das pessoas colectivas (Código Civil, artigo
159.º) ainda se enquadre no âmbito normativo constitucional da protecção do
domicílio, porque, em princípio, não está aqui em causa a esfera da intimidade
privada e familiar em que se baseia a inviolabilidade do domicílio. (...) Já
quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às respectivas
instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra devassas externas
não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja justificação não
compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção do direito de
propriedade e de outros direitos que podem ser afectados, como a 1iberdade de
empresa (...)» (op. cit., pp. 540‑541).
Tendo em mente a natureza do direito assegurado pela garantia da
inviolabilidade do domicílio, não se pode deixar de concluir que o mesmo não é
compatível com a natureza das pessoas colectivas. Estando em causa no artigo
34.º o domicílio visto como a projecção espacial da pessoa e pretendendo‑se com
a proibição consagrada assegurar a protecção da dignidade humana e garantir o
direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (ideia que sai ainda
mais reforçada se atentarmos no n.º 3 do artigo 34.º), não pode aceitar‑se que a
sede de uma pessoa colectiva esteja aqui incluída.
Neste sentido se pronunciou Martins da Fonseca que, depois de
aludir à referência que o n.º 2 do artigo 34.º faz ao «domicílio dos cidadãos»,
e concluir que do mesmo estão forçosamente excluídas as pessoas colectivas, e à
referência que o n.º 3 do mesmo artigo faz à «noite», e concluir que do mesmo
resulta que se quis proteger a intimidade do cidadão e a sua liberdade
individual e familiar, é peremptório ao afirmar que «as sedes das pessoas
colectivas não são abrangidas pela garantia prevista na disposição em apreço. De
anotar, em relação às pessoas colectivas, que aí nunca se pretende acautelar a
privacidade do cidadão. Trata‑se de direito de que uma pessoa colectiva não
pode em caso algum ser titular.» («Conceito de domicílio face ao artigo 34.º da
Constituição da República», in Revista do Ministério Público, n.º 45, pp.
62‑63).
Também a Procuradoria‑Geral da República, em parecer emitido a
propósito do enquadramento jurídico das buscas a efectuar no domínio do direito
da concorrência, adopta este entendimento, patente no seguinte trecho: «As
buscas e apreensões não domiciliárias, nomeadamente nas instalações de empresas
ou das associações de empresas envolvidas ...» (Parecer n.º 127/2004, p. 52). De
igual modo, no parecer da mesma Procuradoria n.º 86/1991 se assume estarem as
buscas na sede das pessoas colectivas arredadas da definição de buscas
domiciliárias, dado que estas são aí identificadas como as buscas «em casa
habitada ou numa sua dependência fechada» (ponto 7.4).
Por todo o supra exposto, a conclusão do Tribunal é a de que, face
ao direito nacional, as buscas efectuadas na sede das pessoas colectivas não são
buscas domiciliárias.
Ora, se não estão em causa buscas domiciliárias, então a entidade
competente para emitir os competentes mandados é o Ministério Público, nos
termos do citado artigo 267.º, dado que a intervenção do juiz de instrução nesta
sede se restringe às buscas domiciliárias (face ao disposto no artigo 41.º do
RGCOC, que remete expressamente para o Código de Processo Penal, não tem que
haver uma qualquer norma a atribuir competência expressa ao Ministério Público
para ordenar e emitir mandados de busca em processos de contra‑ordenação, sendo
de aplicar, subsidiariamente, a norma do Código de Processo Penal que lhe
atribui tal competência).
Esta conclusão não é posta em causa pelo disposto no artigo 8.º da
CEDH, que dispõe que:
«1 – Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada
e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2 – Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício
deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir
uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a
segurança nacional, para a segurança pública, para o bem‑estar económico do
país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da
saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.»
Os tribunais comunitários mantêm uma jurisprudência constante nesta
matéria, sempre ancorada no Ac. Hoescht, de 21 de Outubro de 1989, amiúde citado
em jurisprudência mais recente (inclusive nacional, acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de 2007, Proc. n.º 807/06), de que se passa
a transcrever o seguinte trecho:
«17 – Tendo a recorrente invocado também as exigências decorrentes
do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, deve referir‑se que, se
é verdade que o reconhecimento desse direito quanto ao domicílio privado das
pessoas singulares se impõe na ordem jurídica comunitária como princípio comum
aos direitos dos Estados‑membros, o mesmo não sucede quanto às empresas, uma
vez que os sistemas jurídicos dos Estados‑membros apresentam divergências não
desprezíveis no que se refere à natureza e grau de protecção das instalações
comerciais face às intervenções das autoridades públicas.
18 – Conclusão diversa não pode, aliás, ser retirada do artigo 8.º
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo n.º 1 estabelece que
‘qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do
seu domicílio e da sua correspondência’. O objecto de protecção deste artigo é o
desenvolvimento da liberdade pessoal do homem, não podendo, por isso, ser
alargada às instalações comerciais. (...)
19 – Não é menos verdade, porém, que em todos os sistemas jurídicos
dos Estados‑membros as intervenções do poder público na esfera da actividade
privada de qualquer pessoa, seja singular ou colectiva, devem ter fundamento
legal e justificar‑se por razões previstas na lei, e que esses sistemas
estabelecem, em consequência, embora de formas diferentes, uma protecção contra
as intervenções arbitrárias ou desproporcionadas. A exigência dessa protecção
deve, assim, ser reconhecida como princípio geral do direito comunitário.»
Esta doutrina tem vindo a ser desenvolvida, designadamente no Ac.
Colas, nos termos do qual a protecção do domicílio visada pelo artigo 8.º da
CEDH pode ser estendida, em determinadas circunstâncias, a essas instalações.
Sucede que este acórdão não é de todo contraditório com o Ac.
Hoescht. É que a hipótese nele configurada não é idêntica à que estava em causa
no Ac. Hoescht nem tão‑pouco à que está em causa nestes autos.
Com efeito, no Ac. Colas, estavam em causa buscas realizadas na sede
de uma pessoa colectiva, em França, no âmbito de uma legislação nacional que
previa a sua realização sem necessidade de qualquer autorização judicial, ou
seja, as buscas podiam ser determinadas pelos inspectores que instruíam o
processo administrativo de contra‑ordenação, sendo estes quem definia a sua
extensão, empresas e locais abrangidos, sem qualquer restrição ou supervisão
(cf. ponto 22).
Em tal situação, afigura‑se‑me claro que o artigo 8.º da CEDH deverá
ser objecto de uma interpretação mais lata de modo a que, por via dele, se
garanta minimamente a defesa dos direitos das pessoas colectivas,
designadamente à protecção dos seus bens. Isto mesmo resulta do acórdão quando
refere que a legislação e a prática nacional deveriam ter acautelado garantias
adequadas e efectivas contra abusos (cf. ponto 48), e que por tais garantias
inexistirem na legislação nacional havia uma violação ao artigo 8.º em
apreciação.
Do exposto resulta que não há qualquer contradição entre o Ac.
Hoescht do TJ e o Ac. Colas do TEDH, já que este mais não faz do que consagrar a
tese de que deve ser reconhecido como princípio geral do direito comunitário a
protecção das pessoas colectivas contra intervenções arbitrárias ou
desproporcionadas.
Sucede que não é esta situação face à nossa lei nacional, O nosso
regime processual impõe que as buscas sejam sempre autorizadas por uma
autoridade judiciária, ou seja, a lei nacional acautela a salvaguarda dos
direitos das empresas, garantindo a necessária protecção contra as intervenções
arbitrárias ou desproporcionadas. O Ministério Público é uma autoridade
judiciária cuja actividade é pautada pela conformidade com a Constituição, por
critérios de legalidade e objectividade e não por razões de oportunidade ou
conveniência. Consequentemente, o facto de as buscas dependerem de despacho do
Ministério Público garante integralmente os direitos que se podem considerar
aplicáveis às empresas por via do artigo 8.º da CEDH: o da protecção das
pessoas colectivas contra intervenções arbitrárias ou desproporcionadas.
Ora, se assim é no domínio do processo penal, por maioria de razão
também o é no domínio do processo contra‑ordenacional, onde os bens jurídicos
protegidos auferem de menor dignidade constitucional.
Acresce que, no domínio concreto das contra‑ordenações da
concorrência, a AdC, quando solicita a necessária autorização para realizar
buscas, fá‑lo através de requerimento fundamentado (artigo 17.º, n.º 2, da Lei
n.º 18/2003), o que permite ao Ministério Público aferir da necessidade e
proporcionalidade da diligência solicitada, sendo certo que, se não ficar
convicto de que há indícios da prática de um ilícito e de que num dado local
poderá haver elementos de prova relevantes, não autorizará a diligência.
Face a todo o exposto, entende o tribunal que as buscas às sedes das
pessoas colectivas não são equiparadas a buscas domiciliárias e, por
conseguinte, a sua realização não depende de autorização do juiz, mas sim do
Ministério Público.
Regressando ao caso dos autos, verifica‑se que as buscas assentaram
em mandados emitidos no dia 10 de Janeiro de 2007 pelo Ministério Público.
Significa isto que, no caso concreto, foram respeitados todos os requisitos
formais previstos na lei, não padecendo as buscas de qualquer vício.
Consequentemente, uma vez que no caso dos autos as buscas se
realizaram na sequência de despacho e mandados emitidos pelo Ministério
Público, é forçoso concluir que não houve violação nem do artigo 177.º do Código
de Processo Penal nem dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º da Constituição da
República.”
2.1.3. Resulta da conjugação dos termos em que a
presente questão foi suscitada pela recorrente perante o tribunal recorrido,
dos termos em que este a decidiu e dos termos em que aquela a configurou no
requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade e nas
subsequentes alegações que não estão em causa as alíneas a), b), d) e e) do
referido n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 18/2003 (que conferem aos órgãos e
funcionários da AdC poderes de inquirição e de solicitação de documentos e
outros elementos de informação, de selagem de locais e de requisição de
colaboração a outros serviços da Administração Pública), mas apenas a sua alínea
c) – e esta somente no segmento que se reporta às buscas –, pelo que, quanto a
esta questão, o objecto do recurso cinge‑se às normas do artigo 17.º, n.ºs 1,
alínea c) (na parte que se refere a buscas), e 2, da Lei n.º 18/2003, que
dispõem:
“Artigo 17.º
Poderes de inquérito e inspecção
1 – No exercício dos poderes sancionatórios e de supervisão, a
Autoridade, através dos seus órgãos ou funcionários, goza dos mesmos direitos e
faculdades e está submetida aos mesmos deveres dos órgãos de polícia criminal,
podendo, designadamente:
(…)
c) Proceder, nas instalações das empresas ou das associações de
empresas envolvidas, à busca, exame, recolha e apreensão de cópias ou extractos
da escrita e demais documentação, quer se encontre ou não em lugar reservado ou
não livremente acessível ao público, sempre que tais diligências se mostrem
necessárias à obtenção de prova;
(…)
2 – As diligências previstas na alínea c) do número anterior
dependem de despacho da autoridade judiciária que autorize a sua realização,
solicitado pela Autoridade, em requerimento devidamente fundamentado, devendo a
decisão ser proferida no prazo de quarenta e oito horas.
(…).”
A questão da inconstitucionalidade (por alegada violação
da exigência de autorização judicial para a efectivação de tais buscas, que
derivaria dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP) do critério
normativo, extraído do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c) (na parte que se refere a
buscas), e 2, da Lei n.º 18/2003, segundo o qual as buscas realizadas por
funcionários da AdC em instalações de uma empresa podem ser autorizadas pelo
Ministério Público foi apreciada por esta 2.ª Secção no Acórdão n.º 593/2008,
Proc. n.º 397/08, da presente data, que concluiu no sentido da não
inconstitucionalidade, com base em fundamentação que se reproduz e inteiramente
se subscreve:
“9. Vem alegado que as normas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 17.º da
Lei n.º 18/2003, interpretadas no sentido de conferirem competência ao
Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de
pessoas colectivas, ofendem o princípio da reserva de juiz.
A alegação põe em confronto directo o disposto no n.º 2 daquele
preceito com o direito à inviolabilidade do domicílio (artigo 34.º, n.º 1, da
CRP) e as condições legitimantes da sua restrição, fixadas no n.º 2 do mesmo
artigo. Na verdade, a norma questionada faz depender a realização das
diligências previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 17.º de «despacho da
autoridade judiciária» que as autorize, ao passo que, nos termos
constitucionais, «a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só
pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as
formas previstas na lei» (artigo 34.º, n.º 2).
A apreciação do eventual desrespeito desta disposição requer, como
questão prévia, a definição rigorosa do objecto da inviolabilidade do
domicílio. O que deve entender‑se, para este efeito, por domicílio?
Não é fácil a resposta, até porque o conceito técnico de domicílio,
compreendido como a «residência habitual» (artigo 80.º do Código Civil), é aqui
imprestável, por demasiado restritivo, atentos o sentido e a função da tutela
constitucional. Seguro é apenas que, no âmbito do artigo 34.º da CRP, o
conceito vem dotado de maior amplitude, abarcando, sem margem para dúvidas,
qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em
edifício ou em instalações móveis. Mas já não é consensual a extensão da
protecção ao domicílio profissional (em sentido afirmativo, Gomes Canotilho /
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed.,
Coimbra, 2007, 540; contra, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de
Processo Penal, Lisboa, 2007, 478-479).
Mas, quando se extravasa da esfera domiciliária das pessoas físicas,
entrando no campo de actividade das pessoas colectivas, afigura‑se que saímos
também para fora do âmbito normativo de protecção da norma constitucional, pois
decai a sua razão de ser.
Como expressam os primeiros Autores a que fizemos referência (ob.
cit., 541):
«Já quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às
respectivas instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra
devassas externas não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja
justificação não compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção
do direito de propriedade e de outros direitos que possam ser afectados, como a
liberdade de empresa, no caso das empresas (…).»
Essa conclusão decorre do substrato e das conexões valorativas do
direito à inviolabilidade do domicílio, «ainda um direito à liberdade da pessoa
pois está relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência,
com o direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no
artigo 26.º), considerando‑se o domicílio como projecção espacial da pessoa
(…)».
O bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de
valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso
dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar
da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir
livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.
Dando conta desta identificação do domínio protegido com a esfera da
intimidade do ente humano, afirmou-se no Acórdão n.º 67/97:
«Parece incontroverso que o conceito constitucional de domicílio
deve ser dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela
dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida
familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR –
assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem
consentimento do próprio titular do direito.»
Não se ignora que, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as
pessoas colectivas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que
compatíveis com a sua natureza. E não custa reconhecer que o direito à
privacidade não é incompatível, em absoluto, com a natureza própria das pessoas
colectivas, pelo que a titularidade desse direito não lhes pode, a priori, e em
todas dimensões, ser negada.
Mas, como acentua Jorge Miranda, reportando‑se, em geral, à
titularidade «colectiva» de direitos fundamentais, «daí não se segue que a sua
aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a
mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares» (Jorge
Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005,
113). É esta uma orientação firme, tanto da doutrina (cf., também, Gomes
Canotilho / Vital Moreira, ob. cit., 331, e Vieira de Andrade, Os direitos
fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2007,
126-127), como da jurisprudência (cf. os Acórdãos n.ºs 198/85 e 24/98).
A susceptibilidade, em princípio, de extensão da tutela da
privacidade às pessoas colectivas não implica, pois, que ela actue, nesse campo,
em igual medida e com a mesma extensão com que se afirma na esfera da
titularidade individual. Dessa tutela estarão excluídas, forçosamente, as
dimensões nucleares da intimidade privada, que pressupõem a personalidade
física.
É o que acontece com a inviolabilidade do domicílio, uma
manifestação particular e qualificada da tutela da intimidade da vida privada,
dirigida, como vimos, à realização da personalidade individual e ao resguardo da
dignidade da pessoa humana.
E, não estando em causa uma invasão do domicílio, a autorização
prévia do Ministério Público para as buscas é o bastante para excluir, sem
margem para dúvidas, estarmos perante uma «abusiva intromissão na vida privada»
(cf., nesse sentido, o Acórdão n.º 192/2001, citando o Acórdão n.º 7/87).
É neste ponto, na exigência de despacho da autoridade judiciária
autorizativo da realização das diligências de busca «nas instalações das
empresas», que a lei da concorrência se afasta decisivamente da lei francesa,
em relação à qual foi proferido, em 16 de Abril de 2002, o acórdão do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, no Affaire Colas, invocado pela recorrente em
defesa da sua tese.
Como resulta da transcrição, no ponto 22, da legislação aplicável ao
caso, os agentes da direcção geral do comércio interior e dos preços tinham
«livre acesso às instalações que não constituam a habitação do comerciante», sem
qualquer controlo de uma entidade judiciária independente. Em face desses dados
normativos, o tribunal concluiu que a legislação e a prática francesas não
ofereciam «garantias adequadas e suficientes contra os abusos» (ponto 48), como
o exigia a tutela do domicílio, consagrada no artigo 8.º da CEDH.
Não é essa, como se viu, a situação normativa vigente entre nós, em
que a salvaguarda da privacidade das pessoas colectivas está acautelada, na
justa medida, pela necessidade de autorização do Ministério Público, entidade a
quem cabe, nos termos constitucionais, «defender a legalidade democrática»
(artigo 219.º, n.º 1, da CRP).
Pode, pois, concluir‑se que a interpretação normativa questionada
não viola o disposto nos artigos 34.º, nºs 1, 2, 3 e 4, e 32.º, n.º 8, da CRP.”
2.2. A questão da inconstitucionalidade, por violação
dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP, da norma que resulta da
interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003 e do artigo
42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, no sentido de que a correspondência
aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos,
arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio
de prova em processo contra‑ordenacional.
No despacho do relator que determinou a apresentou de
alegações foi suscitado o não conhecimento desta questão por, nos locais
indicados pela recorrente, no requerimento de interposição de recurso, como
sendo aqueles em que teria suscitado tal questão perante o tribunal recorrido
(artigos 82.º, 85.º, 86.º, 90.º, 92.º e 110.º e conclusões XI, XII e XIII da
impugnação judicial endereçada ao Tribunal do Comércio de Lisboa), não ter
colocado nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa (não reportando a
normas de direito ordinário ou a qualquer interpretação dessas normas,
devidamente identificada, a violação de normas ou princípios constitucionais),
antes imputando directamente à actuação da AdC, em si mesma considerada, a
violação de comandos constitucionais.
Enquanto, nas alegações apresentadas, quer a AdC quer o
Ministério Público manifestam concordância com o não conhecimento desta parte do
recurso, pelo fundamento invocado, já a recorrente, admitindo embora não se ter
expresso provavelmente do modo mais feliz, sustenta ter suscitado, oportuna e
explicitamente, perante o tribunal a quo, a inconstitucionalidade, por violação
do artigo 34.º, n.º 4, da CRP, da interpretação de normas legais que identificou
(artigos 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Concorrência e 42.º, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.º 433/82), tendo tal questão de inconstitucionalidade normativa
sido entendida claramente pelo tribunal recorrido e por ele efectivamente
apreciada.
Na impugnação judicial do despacho da AdC, de 28 de
Março de 2007, que indeferira requerimento de arguição de nulidades, a
recorrente, a propósito da questão ora em causa, sintetizou a sua argumentação
nas seguintes conclusões (sendo certo que, no teor da impugnação, nada mais de
relevante se aduz para efeito da caracterização da questão suscitada como de
inconstitucionalidade normativa):
“XI – Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, a
inviolabilidade da correspondência e telecomunicações é, em sede de processos
contra‑ordenacionais, absoluta, tendo o legislador ordinário reafirmado a
abrangência desta tutela através de idêntica proibição constante do artigo 42.º,
n.º 1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas aprovado pelo Decreto‑Lei
n.º 433/82, de 27 de Outubro.
XII – Em processo contra‑ordenacional é, por conseguinte, proibido o
recurso a meios de prova mais gravosos, como a apreensão de correspondência ou a
ingerência nas telecomunicações, tendo as diligências de busca e apreensão
realizadas pela Autoridade da Concorrência violado o disposto no n.º 4 do artigo
34.º da CRP e no n.º 1 do artigo 42.º do regime geral das contra‑ordenações e
coimas.
XIII – Para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP e no
n.º 1 do artigo 42.º do regime geral das contra‑ordenações e coimas, o conceito
de correspondência deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo
correspondência «externa» bem como «interna», correspondência pessoal e
profissional, independentemente de a mesma se encontrar, ou não, ainda em
sobrescrito fechado.
XIV – As buscas e apreensões efectuadas pela Autoridade da
Concorrência violam, também, os termos do próprio mandado de busca – na medida
em que este incorpora textualmente as limitações decorrentes dos artigos 32.º,
n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP e 42.º do regime geral das contra‑ordenações e
coimas – bem como os limites temporais subjacentes à respectiva fundamentação.”
Como é patente, a recorrente não suscitou, quanto a este
ponto, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não identificando
adequadamente qualquer critério normativo que reputasse violador da
Constituição, antes imputando esta violação directamente ao comportamento
procedimental da AdC, que desrespeitaria concomitantemente normas legais e
normas constitucionais.
Assim, por falta de adequada suscitação, pela
recorrente, perante o tribunal recorrido, da questão de inconstitucionalidade
agora em causa – o que constitui um requisito da sua legitimidade para recorrer
(artigo 72.º, n.º 2, da LTC), pelo que a sua falta é insusceptível de ser
considerada suprida pelo eventual conhecimento oficioso da questão na decisão
judicial impugnada –, dela não há que conhecer.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da
interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Regime Jurídico da
Concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de
conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e
domicílio profissional de pessoas colectivas;
b) Não conhecer da questão da inconstitucionalidade da
norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º
18/2003 e do artigo 42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no
sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio
electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser
apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional; e,
consequentemente,
c) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos