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Processo n.º 589/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. formulou diversos pedidos de concessão de apoio judiciário, na modalidade
de dispensa de taxa de justiça e demais encargos judiciais, que vieram a ser
indeferidos pelos serviços de segurança social de Coimbra, por decisão datada de
10 de Agosto de 2007.
Tendo sido deduzida impugnação judicial na qual a impugnante veio requerer a
final a produção de prova testemunhal, o juiz do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Coimbra, por sentença de 18 de Abril de 2008, julgou materialmente
inconstitucional, por violação do artigo 20° da Constituição da República, a
norma do artigo 27º, n° 2, da Lei n.º 34/04 de 29 de Julho, na parte em que
estatui que é apenas admissível, para efeito da dedução do pedido de impugnação,
prova documental.
A decisão encontra-se fundamentada, na parte que mais interessa considerar, nos
seguintes termos:
Na presente impugnação judicial, interposta da decisão de não concessão do apoio
judiciário, ao abrigo do art. 27°, n° 2, da Lei n° 34/04, de 29 de Julho, a
impugnante A. arrolou prova testemunhal.
A referida norma apenas admite prova documental.
A impugnante A. veio alegar factos que carecem de prova testemunhal.
Além disso acrescem factos que só através deste meio de prova poderá
demonstrá-los.
São estes: vive em casa emprestada pelos sogros; vive com ajuda económica dos
pais para a satisfação das necessidades básicas dos seus filhos menores uma vez
que não tem emprego nem rendimentos para além da prestação mensal de 200 € que
recebe do seu marido de quem está separada de facto desde finais de 2006.
Acontece, porém que a norma que regula este tipo de recurso não admite prova
para além da documental (art. 27°, n° 2, da Lei 34/04, de 29 de Julho, que nesta
parte não sofreu alterações com a Lei n° 47/07, de 28 de Agosto).
Contudo, afigura-se-nos que tal norma à luz da Constituição da República
Portuguesa poderá ser inconstitucional, em concreto violando o art. 20º da Lei
Fundamental.
Com efeito tem-se entendido que a efectiva garantia de acesso ao direito e aos
Tribunais importa a consagração de um verdadeiro «direito de prova» e «a
eliminação de disposições especiais que (...) limitassem o tipo de meios
probatórios admissíveis»’
Não se pretende, como é claro, que o princípio seja interpretado corno a
consagração constitucional da livre admissibilidade dos meios de prova. A lei
ordinária consagrava várias limitações ao exercício do direito de defesa no
acesso aos meios probatórios umas de índole material, (como as dos arts. 364° e
393° do Código Civil) e outras adjectivas, com finalidades como a eficácia e
celeridade processuais.
No presente caso a lei determina que “recebida a impugnação, esta é distribuí1a
e imediatamente conclusa ao juiz, que por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide” por conseguinte a produção da prova testemunhal não é
incompatível com tal procedimento.
Apesar de o prazo para tal efeito não ter sido fixado na lei, ele não poderá ser
menor que aquele que está previsto para os processos urgentes, e, também, não se
vê que a eficácia da actuação da administração ou do cidadão saia prejudicada.
Diga-se por fim que, no âmbito do processo tributário, inúmeros processos
urgentes (recurso da decisão do órgão de execução fiscal, arrolamentos e
arresto) comportam prova testemunhal sem qualquer prejuízo para a celeridade
processual.
A oportunidade da admissão deste meio de prova é, no direito tributário,
concretamente ponderada pelo juiz, que poderá dispensar ou não as provas através
de um juízo de prognose sobre a necessidade da mesma.
Por outro lado, ainda sob a motivação de descongestionamento dos tribunais foi
substancialmente reformulado o regime decorrente dos DL°s 387/87, de 29 de
Dezembro, e 391/88, de 26 de Outubro, através da Lei 30-E/00, de 20 de Dezembro,
e das Portarias n°s 1200C/2000, de 20 de Dezembro, e 1223-A/2000, de 29 de
Dezembro, atribuindo aos serviços de segurança social a apreciação dos pedidos
de concessão de apoio judiciário, mas manteve sempre a prova da insuficiência
económica por qualquer meio idóneo, também a prova testemunhal, não se olvidando
que a mais das vezes esta é a prova mais adequada e a única para determinados
factos que estão em apreciação no âmbito da necessidade de apoio judiciário.
Não há dúvida que uma tutela efectiva tem de passar também pela consagração
efectiva de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas na
tramitação processual, como decorre do n° 4 do art. 20° da Lei Fundamental.
Não é, por isso, difícil descortinar que a prova testemunhal nestes processos,
em que está em causa insuficiência ou até ausência de meios económicos para
assegurar a defesa dos seus direitos em tribunal, se apresente como a mais
adequada e até a única capaz de esclarecer alguns dos factos controvertidos.
Desta feita, julgando-se materialmente inconstitucional, à luz do art. 20° da
Constituição, a norma do art. 27, n° 2, da Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, na
parte em que estatui que: «sendo apenas admissível prova documental», impede o
recurso à prova testemunhal, admito a inquirição da prova arrolada.
Desta decisão, interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do
Tribunal Constitucional, vindo a apresentar, no seguimento do processo, as
seguintes alegações:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto de decisão – proferida no Tribunal
Administrativo e Fiscal de Coimbra, em processo de impugnação judicial do
indeferimento administrativo de apoio judiciário, intentado por A. – que recusou
aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma constante do artigo
27º, nº 2, da Lei nº 34/04, de 29/07, na parte em que apenas admite a produção
de prova documental nos processos em que – como nos presentes autos – o
interessado questiona a legalidade do indeferimento da pretensão que dirigiu à
Segurança Social.
Sobre questão idêntica corre termos o p. nº 559/08.
Na verdade – e por força da norma desaplicada – no pedido de impugnação apenas é
admissível prova documental, cuja obtenção pode ser requerida através do
tribunal – não prevendo o artigo 28º a possibilidade de o juiz determinar, mesmo
oficiosamente, a ponderação de outro tipo de provas – que considere necessárias
ou adequadas à natureza dos factos controvertidos, uma vez que (nº 4 do citado
artigo 28º) a impugnação é “imediatamente conclusa ao juiz que, por meio de
despacho concisamente fundamentado, decide”.
O Tribunal Constitucional teve oportunidade, em aresto recente – o Acórdão nº
157/2008 – de se pronunciar sobre a relevância constitucional do “direito à
prova”, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, fazendo uma
abordagem aprofundada da jurisprudência constitucional sobre este tema.
Tais considerações são, de pleno, transponíveis para a situação dos autos: na
verdade, a absoluta e tabelar exclusão de todos os meios de prova, com excepção
da prova documental, do âmbito do processo de impugnação do indeferimento de
apoio judiciário – sem qualquer consideração pela natureza dos factos a provar
pelo impugnante e pela efectiva possibilidade de este obter, mesmo com a
cooperação do tribunal, documentos relevantes e suficientes para a demonstração
dos factos essenciais à sua pretensão – é susceptível de afectar
desproporcionadamente o seu direito de acesso à justiça, em matéria que se situa
precisamente no “núcleo fundamental” do artigo 20º da Constituição da República
Portuguesa.
Não parece, por outro lado, que esta drástica restrição seja necessária e
adequada para a tutela de outros valores constitucionais equiparáveis,
nomeadamente a celeridade processual: por um lado, sempre assistiria ao juiz a
possibilidade de valorar o interesse e a necessidade de produção de outros meios
probatórios (nomeadamente, a prova testemunhal), de modo a evitar diligências
dilatórias ou abusivas do requerente; e, por outro lado, não se vê que a audição
eventual de testemunhas arroladas possa constituir, só por si, entrave bastante
à dirimição do litígio em tempo útil.
Note-se, finalmente, que a circunstância de o Tribunal Constitucional, no
Acórdão nº 395/89, ter emitido um juízo de não inconstitucionalidade sobre a
norma que então constava da Base III, nº 1, da Lei nº 7/70 e do artigo 7º, nº 1,
do Decreto-Lei nº 562/70, de 28 de Novembro, na parte em que exigiam dos
requerentes de assistência judiciária (que não gozassem de presunção legal de
insuficiência económica) a demonstração desta mediante “certidão de deliberação
da junta de freguesia ou câmara municipal da sua residência”, não colide com o
entendimento ora propugnado.
É que a prova documental e “indiciária”, ali prevista, não precludia a
possibilidade de, no âmbito do incidente, o juiz ordenar a produção das
diligências que lhe parecessem indispensáveis (artigo 12º do citado decreto).
Não se tratava, deste modo, de precludir a produção de todas as provas que não
tivessem natureza documental, mas de fazer assentar o início do processo
incidental de obtenção do apoio judiciário num verdadeiro acto administrativo,
em que a competente autarquia certificava a invocada insuficiência económica,
sendo plenamente viável, na fase jurisdicional do incidente, produzir –
oficiosamente ou a requerimento dos interessados – todos os meios probatórios
que se revelassem necessários e adequados à demonstração dos factos
controvertidos.
2. Conclusão:
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º A norma constante do nº 2 do artigo 27º da Lei nº 34/04, de 29/07, na parte
em que estabelece uma limitação absoluta à prova documental a apresentar pelo
interessado que pretende impugnar o indeferimento pela Segurança Social do apoio
judiciário, independentemente da natureza dos factos controvertidos e das
efectivas possibilidades probatórias do requerente, envolve restrição ou
limitação substancial ao conteúdo do direito de acesso aos tribunais, consagrado
no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
na decisão recorrida.
Não houve contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2. Através da decisão ora recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Coimbra, no âmbito de uma impugnação judicial da decisão dos serviços de
segurança social que indeferiu à requerente o pedido de apoio judiciário,
recusou a aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 27º da Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, na parte em que torna apenas admissível a prova
documental, considerando a referida norma inconstitucional por violação do
direito de acesso a justiça e à tutela jurisdicional consagrado no artigo 20º da
Constituição da República.
De acordo com a factualidade que decorre dos elementos dos autos, a impugnante
apresentou, em 12 de Julho e 17 de Setembro de 2007, vários pedidos de protecção
jurídica em vista à propositura de acção de divórcio e de regulação de poder
paternal e à dedução de oposição em acções executivas, tendo declarado
encontrar-se desempregada, não possuir quaisquer rendimentos e viver em economia
comum com os seus dois filhos menores que constituem o agregado familiar, sem
juntar qualquer documentação comprovativa.
Os serviços de segurança social realizaram oficiosamente diligências
instrutórias, mediante a consulta de bases de dados, concluindo existirem
registos salariais relativos à actividade profissional da impugnante na
qualidade de sócia gerente de uma firma, pelo que, em sede de audiência de
interessado, e para efeito de «se comprovarem devidamente os rendimentos
actuais do [seu] agregado familiar», notificaram a requerente, nos termos do
artigo 3º, n.º 1, da Portaria n.º 1085-Q/2004, de 31 de Agosto, para vir juntar
ao processo cópias da declaração de IRS relativa ao ano de 2006, do pacto social
da firma «B., Lda», da acta de renúncia à gerência ou da sua destituição ou
prova de que deixou de ser gerente remunerada da firma, e documento emitido
pels Serviço de Finanças que comprove a eventual cessação da actividade da
firma.
Não tendo a requerente juntado os documentos solicitados nem apresentado
qualquer esclarecimento sobre a sua situação económica, os serviços de segurança
social indeferiram o pedido de apoio judiciário, por considerar que não foram
«avaliados os rendimentos anuais líquidos do [seu] agregado familiar e, do,
mesmo modo, não se comprovou a [sua] insuficiência económica».
A requerente deduziu então impugnação judicial contra o despacho de
indeferimento, alegando que se encontra separada de facto desde Dezembro de
2006, vive por tolerância e a título precário em casa cedida pelos sogros,
aufere apenas a quantia de € 200 a título de alimentos devidos aos filhos
menores, encontra-se desempregada desde que a empresa cessou a sua laboração e
desde há muito que já não recebia as remunerações de gerência.
Requereu para o efeito a produção de prova testemunhal, que o juiz veio a
admitir, pela decisão ora recorrida.
O tribunal recorrido efectuou entretanto diversas diligências complementares em
vista a apurar a situação actual da empresa «B., Lda», tendo sido informado pelo
serviço de finanças que não foi comunicada até ao momento a cessação de
actividade, ainda que não existam indícios de que a empresa se mantenha em
laboração.
3. Os requerimentos de apoio judiciário deram entrada em Julho e Setembro de
2007, pelo que o regime aplicável é o da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na sua
redacção originária, ainda que entretanto, e já na pendência da impugnação
judicial, tenha entrado em vigor a Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que
introduziu diversas alterações ao regime jurídico do acesso ao direito e aos
tribunais.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a
ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou
cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício
ou a defesa dos seus direitos (artigo 1º, n.º 1).
Conforme ainda o disposto no artigo 8º, n.º 1, encontra-se em situação de
insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de natureza
económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo.
A prova e a apreciação da insuficiência económica é feita de acordo com os
critérios estabelecidos no anexo à Lei, tomando por base o rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica, calculado nos termos definidos pela Portaria
n.º 1085-B/2004, de 31 de Agosto (entretanto revogada pela Portaria n.º 11/2008,
de 3 de Janeiro).
A Lei regula ainda o procedimento de protecção jurídica, que decorre perante os
serviços de segurança social da área da residência ou sede do requerente,
prevendo que a decisão de indeferimento possa ser objecto de impugnação judicial
nos termos dos artigos 27º e 28º.
É este artigo 27º que está agora particularmente em causa, ao dispôr:
1 - A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não
carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de
segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou no conselho
distrital da Ordem dos Advogados que negou nomeação de patrono, no prazo de 15
dias após o conhecimento da decisão.
2 - O pedido de impugnação deve ser escrito, mas não carece de ser articulado,
sendo apenas admissível prova documental, cuja obtenção pode ser requerida
através do tribunal.
3 - Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o conselho distrital
da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido
de protecção jurídica ou, mantendo-a, enviar aquela e cópia autenticada do
processo administrativo ao tribunal competente.
Em consonância com o assim estabelecido, o subsequente artigo 28.º, no seu n.º
4, determina que «[r]ecebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso
disso, e imediatamente conclusa ao juiz, que, por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade
ou manifesta inviabilidade.
4. Conforme tem sido afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal Constitucional,
o direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica «um direito a uma
solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com
observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando‑se,
designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em
termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de
direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e
discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (acórdão n.º 86/1988,
reiterado em jurisprudência posterior e, por último, no acórdão n.º 157/2008).
No entanto, como tem sido também sublinhado, o direito à prova não implica a
total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova
utilizáveis, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e
respeitadoras do princípio da proporcionalidade. Dentro desta linha de
entendimento, o Tribunal Constitucional não se pronunciou no sentido da
inconstitucionalidade no tocante a diversas disposições legais que em relação a
certos procedimentos jurisdicionalizados apenas admitem um específico tipo de
prova (assim, os acórdãos n.ºs 395/89, 209/95, 452/2003; uma recensão da
jurisprudência constitucional, com sucinta referência à argumentação em cada
caso aduzida, no já citado acórdão nº 157/2008).
Acresce – como esclarece Teixeira de Sousa - que as próprias normas de direito
probatório constantes do Código Civil ou do Código de Processo Civil estabelecem
certas limitações quanto aos meios de prova permitidos em direito, em qualquer
tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio, e mesmo certas
limitações quantitativas na produção de determinados meios de prova, sem que a
sua constitucionalidade algo vez tenha sido posta em causa - assim, por exemplo,
os artigos 353º e 354º do Código Civil, sobre a eficácia e admissibilidade da
declaração confessória, os artigos 393.º e 394.º do mesmo Código sobre a
admissibilidade da prova testemunhal, e, bem assim, os artigos 632º e 633º do
Código de Processo Civil sobre o limite de número de testemunhas a arrolar pela
parte e que podem ser inquiridas por cada facto (As partes, o objecto e a prova
na acção declarativa, Lisboa, 1995, pág. 228).
A questão essencial que se coloca – tal como se expendeu no acórdão nº 646/2006,
que também abordou esta temática - é, pois, a de saber se, na emissão de uma
norma restritiva do uso dos meios de prova, o legislador respeitou,
proporcionada e racionalmente, o direito de acesso à justiça na sua vertente de
direito de o interessado produzir a demonstração dos factos que, na sua óptica,
suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso aos
tribunais. Uma resposta negativa a essa questão apenas pode perspectivar-se,
neste contexto, quando se possa concluir que a norma em causa determina, para a
generalidade de situações, que o interessado se veja constrito à impossibilidade
de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
5. Revertendo ao caso concreto, não pode deixar de reconhecer-se que o regime
legal decorrente da mencionada norma do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004,
ao circuncrever a prova a produzir apenas à de natureza documental, é, em regra,
susceptível de garantir ao interessado a demonstração da sua situação de
insuficiência económica, visto que as declarações de rendimentos a entregar
perante o serviço de finanças, bem como as declarações contributivas para efeito
de aplicação do regime de segurança social, que apresentam sempre um suporte
documental, fornecerão normalmente uma indicação suficientemente precisa quer
quanto à situação laboral do requerente do apoio judiciário, quer quanto ao
nível dos respectivos proventos económicos.
Deve notar-se, a este propósito, que a opção legislativa tem certamente por base
a consideração de que os meios de prova documentais são os que se apresentam
como possuindo maior eficácia e fiabilidade de que quaisquer outros e que são
também os que melhor se compadecem com a natureza instrumental do processo, que
tem unicamente em vista assegurar, com a necessária celeridade, que o requerente
possa obter a protecção jurídica para efeito de defender os seus direitos e
interesses em acção judicial. E importa igualmente reter duas outras
circunstâncias: por um lado, os documentos exigíveis encontram-se ao dispor dos
interessados, por respeitarem a declarações pessoais que decorrem do cumprimento
de deveres fiscais e contributivos, podendo ser obtidos, por isso, sem grande
dificuldade, por outro lado - como decorre do contexto verbal do citado artigo
27º -, o pedido de impugnação judicial pode ser formulado directamente pelo
interessado, não exigindo a constituição de advogado, nem carecendo de ser
articulado, podendo o impugnante limitar-se a requerer ao tribunal a obtenção da
prova documental adequada (cfr. nºs 1 e 2 dessa disposição).
Ou seja, embora a lei imponha a utilização de um certo meio de prova, não faz
incidir sobre o impugnante o ónus processual de apresentar essa prova – ao
contrário do que sucede no regime geral que decorre do Código de Processo Civil
(cfr. artigos 523º e 524º) -, impondo antes ao tribunal um dever oficioso de a
realizar, desde que o interessado indique quais os elementos documentais que
considera demonstrativos da sua situação de insuficiência económica.
Sem dúvida que se não encontra excluída a possibilidade de, em certas situações,
a prova documental não permitir efectuar a demonstração dos factos em que
assenta o pedido impugnatório. Poderá ser o caso em que tenha ocorrido a perda
ou diminuição dos meios de fortuna do interessado que se não encontre ainda
patenteada nas declarações tributárias, que apenas se referem aos anos fiscais
transactos; ou que tenha havido despesas que devam ser ponderadas para efeito da
apreciação do pedido de apoio judiciário e que não sejam susceptíveis de prova
documental.
Será necessário avaliar, em qualquer dessas hipóteses, se o regime probatório
restritivo do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004 – excluindo, à partida e em
todos os casos, a prova testemunhal – não poderá afectar de forma intolerável o
exercício do direito de acesso aos tribunais.
Mas não é seguramente esse o caso dos autos.
O que se constata, na situação vertente, é que a requerente do apoio judiciário
não juntou, com o requerimento inicial, qualquer documentação atinente à sua
situação económica, e absteve-se de satisfazer a notificação feita, na fase de
audiência do interessado, no sentido de apresentar documentos que fossem
suscepíveis de esclarecer qual o montante de rendimentos que poderia auferir,
tais como a declaração de IRS, o pacto social da firma de que era gerente, a
acta de renúncia ou destituição da gerência, o documento de comunicação de
cessação da actividade da firma (todos eles especificamente identificados no
ofício de notificação).
Por outro lado, no pedido de impugnação judicial, a requerente alegou certos
factos indiciários da sua insuficiência económica – encontra-se separada de
facto desde Dezembro de 2006, vive por tolerância e a título precário em casa
cedida pelos sogros, aufere apenas a quantia de € 200 a título de alimentos
devidos aos filhos menores, encontra-se desempregada desde que a empresa cessou
a sua laboração e desde há muito que já não recebia as remunerações de gerência
-, mas absteve-se de apresentar ou requerer a obtenção de prova documental,
limitando-se a solicitar a inquirição de testemunhas.
Ou seja, a impugnante prescindiu, na fase procedimental, de demonstrar
documentalmente a sua situação de desemprego e de carência de rendimentos, e
pretende agora através do pedido de impugnação judicial efectuar a prova
substitutiva mediante a comprovação, por inquirição de testemunhas, de factos
indiciários da insuficiência económica quando essa demonstração poderia ser
feita desde logo por via documental e estava ainda em tempo de ser efectuada por
esse meio na fase de impugnação judicial.
Não restam dúvidas de que estaria ao alcance da impugnante preencher e
apresentar no competente serviço fiscal a declaração de rendimentos relativa ao
ano de 2006, bem como a declaração de cessação de actividade da empresa, tal
como poderia obter através do serviço de segurança social próprio o documento
comprovativo da sua situação de desempregada. Podendo demonstrar-se a
insuficiência económica através de prova documental – que a requerente poderia
ter obtido facilmente através do cumprimento de qualquer dessas formalidades -,
e tendo até sido dada oportunidade, na fase procedimental, de satisfazer essas
exigências probatórias, não é possível afirmar – como faz a sentença recorrida –
que a prova testemunhal era a mais adequada e até única capaz de esclarecer os
factos controvertidos. Na verdade, a impugnante não pretende mais do que fazer a
prova, através da inquirição de testemunhas, de factos instrumentais que
indiciariamente permitam ao juiz concluir, através de presunção judicial, pela
existência de uma situação de insuficiência económica – facto essencial de que
depende a procedência da pretensão deduzida em juízo -, quando a esse mesmo
resultado probatório poderia ser obtido, desde logo, por via de elementos
documentais que evidenciariam directamente essa situação de carência económica.
Não é possível, por conseguinte, extrair a ilação – tal como se concluiu, em
situação algo similar, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/89 – de que
a exigência de prova documental como único meio de prova admissível no âmbito da
impugnação judicial do indeferimento do pedido de protecção jurídica é
susceptível de pôr em causa o direito de acesso aos tribunais e à tutela
jurisdicional efectiva.
Estamos, em todo o caso, perante uma situação muito díspar daquela que foi
analisada no acórdão n.º 157/2008, que julgou inconstitucional, por violação do
direito à tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade, a
norma constante do n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro,
interpretada no sentido de restringir aos de natureza documental os meios de
prova utilizáveis para o reconhecimento dos períodos contributivos para a
segurança social verificados nos ex-territórios ultramarinos; o Tribunal
chegou a esse juízo de inconstitucionalidade, por ter constatado, no caso, uma
absoluta indisponibilidade de meios de prova documentais, por virtude da
extinção da instituição de previdência para a qual o interessado terá efectuado
contribuições e do subsequente desaparecimento dos correspondentes arquivos,
vindo a concluir, em conformidade, que a exclusão total e abstracta da
admissibilidade de meios de prova não documental era susceptível de afectar
desproporcionadamente a efectividade da tutela jurisdicional de um direito
constitucionalmente consagrado – o de ver relevar, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho, independentemente do sector de
actividade em que tiver sido prestado (artigo 63.º, n.º 4, da CRP).
Tais premissas não são de todo transponíveis para o caso dos autos, nada
justificando, por tudo o que anteriormente se expôs, a manutenção do julgado.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional, por violação do artigo 20° da Constituição da
República, a norma do artigo 27º, n° 2, da Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, na sua
redacção originária, na parte em que estatui que é apenas admissível, para
efeito da dedução do pedido de impugnação judicial, prova documental, quando a
obtenção dessa prova estava ao alcance do requerente do apoio judiciário e este
prescindiu de a apresentar;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar a a decisão
recorrida para ser reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade agora
formulado.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Novembro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão