Imprimir acórdão
Processo n.º 907/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
Relatório
A Santa Casa da Misericórdia de Vila Nova de Gaia foi autuada pela Inspecção
Geral do Trabalho, imputando-lhe a prática de uma contra ordenação muito grave
prevista no artigo 596.º do Código do Trabalho e punida nos termos dos artigos
689.º e 620.º, nº 4, b), do mesmo diploma legal.
O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes
e Similares do Norte foi admitido como assistente.
Por decisão final, proferida no processo de contra ordenação que correu termos
na Delegação do IDICT do Porto, foi aplicado à arguida a coima de € 4.000,00.
A arguida impugnou judicialmente a decisão, tendo o Tribunal de Trabalho de
Vila Nova de Gaia, após julgamento, proferido sentença a julgar procedente o
recurso, a revogar a decisão administrativa e, em consequência, a absolver a
arguida.
Inconformado, veio o assistente recorrer para o Tribunal da Relação do Porto,
pedindo a revogação da sentença e a confirmação da decisão administrativa que
aplicou à arguida a coima de € 4.000,00.
O Tribunal da Relação do Porto julgou o recurso procedente e, em consequência,
revogou a sentença recorrida e confirmou a decisão administrativa que havia
condenado a arguida na coima de € 4.000,00, por violação do disposto no artigo
596.º, do Código de Trabalho.
A arguida recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional nos seguintes
termos:
“…não podendo conformar-se com o douto acórdão proferido nos autos, dele vem
interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea
b) do n° 1 do art. 70° da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com fundamento em
inconstitucionalidade dos art. 596°, n° 2, e art. 601° do Código do Trabalho, na
interpretação que naquele lhes foi dada, por violação do disposto nos art. 13° —
princípio da igualdade; 24° — direito à vida; art. 25° — direito à integridade
pessoal; art. 26° — direito à dignidade pessoal; art. 63° — direito à segurança
social e art. 64° — direito à protecção da saúde, todos da Constituição da
República Portuguesa.
A sobredita interpretação dos preceitos cuja constitucionalidade se põe em crise
é questão nova no processo, pois que apenas levantada no acórdão recorrido, de
que não cabe recurso ordinário, estando por via disso a recorrente impedida de
dar cumprimento ao disposto no art. 75°-A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional…”.
O Desembargador Relator proferiu despacho de não admissão do recurso por não ter
sido suscitada previamente a questão de constitucionalidade que o recorrente
pretende ver apreciada.
Deste despacho reclamou a recorrente, alegando o seguinte:
“Inconformada com o teor do sobredito acórdão, a Recorrente dele apresentou
oportunamente recurso para o Tribunal Constitucional.
O M.mo Juiz Desembargador-Relator indeferiu o requerimento de recurso,
considerando-o inadmissível com o fundamento de “nunca ter sido suscitada a
questão da inconstitucionalidade das normas do Código do Trabalho referidas no
sobredito acórdão” - os art. 596, n.º 2 e 601 do Código do Trabalho.
Acontece que, como melhor resulta dos autos e do próprio requerimento de
interposição do recurso, o que está verdadeiramente em causa não são as normas
em si mesmas consideradas, as quais, se adequada e correctamente interpretadas,
tendo nomeadamente em conta a ratio legis, a unidade do sistema e hierarquia das
fontes, não ferem a Constituição da República.
O que está em causa é, com o devido respeito, a insólita e imprevisível
interpretação que das mesmas faz o próprio acórdão recorrido.
“…Perante a não comparência dos trabalhadores designados para assegurar os
serviços mínimos à arguida só restavam dois caminhos: ou fazer uso do disposto
no n.º 2 do art. 506º do C. do Trabalho ou do disposto no art. 601 do mesmo
diploma legal” (sic)
Isto é, o tribunal recorrido, surpreendentemente, entende que sejam quais forem
as condições concretas e os direitos que estejam em jogo, com exclusão de
quaisquer outras, há duas únicas formas de uma entidade patronal reagir
legitimamente à falta de comparência dos trabalhadores designados para
assegurarem serviços mínimos: pedir a requisição ou mobilização civil;
contratar uma empresa que os venha prestar.
Salvo o devido respeito, tal interpretação é intoleravelmente discrepante nos
seus resultados com a aplicação dos princípios e a observância das regras
constitucionais enunciados no requerimento ora indeferido.
No caso dos autos, como destes documentalmente melhor resulta provado, a
recorrente foi notificada do despacho ministerial que decreta a realização de
serviços mínimos às 15 horas e 26 minutos do dia 22 de Março, dia anterior ao da
greve.
Face ao incumprimento por parte do sindicato convocante da obrigação de
designação dos trabalhadores adstritos à realização de serviços mínimos, a
recorrente viu-se obrigada a efectuar tal designação, o que fez pelas 18 horas e
16 minutos desse mesmo dia 22 de Março, cerca de seis horas antes do início da
greve.
Os trabalhadores designados para a prestação de serviços mínimos não
compareceram, como deviam, para satisfazer as necessidades sociais
impreteríveis que estão na base da decisão governamental de observância desses
mesmos serviços, quais sejam, assegurar que às muitas dezenas de utentes dos
lares de idosos da recorrente, a maioria dos quais em completo estado de
dependência de terceiros para a realização das necessidades humanas mais
básicas, fossem prestados cuidados de higiene, conforto, alimentação e saúde,
bem como de acompanhamento, guarda e vigilância.
Constatada tal ausência às 07,00 horas da manhã do dia da greve e, por via
disso, confrontada a recorrente com uma séria ameaça de lesão de bens e
interesses superiormente tutelados, como sejam a vida e a integridade moral e
física dessas mesmas pessoas, segundo o douto acórdão de que se pretende
recorrer, por força da interpretação dada ao disposto nos art. 506º e 601º do
Código do Trabalho, nada mais restava à recorrente do que contratar uma empresa
ou, melhor ainda, fazer reunir o Conselho de Ministros para que fosse decretada
a requisição ou mobilização dos trabalhadores.
Ainda que tal não fosse fisicamente possível àquelas horas da manhã, nem nas
horas ou dias mais próximos... e sabendo-se que estava em jogo, sob pena de
abandono, conseguir de imediato e, como é bom de ver-se, sem interrupção, a
prestação dos cuidados pessoais, de acompanhamento e de vigilância, necessários
para a protecção do direito à vida, à integridade e à dignidade pessoal, à
segurança social e à protecção da saúde dos referenciados utentes dos
equipamentos sociais da recorrente, postos em causa pelo comportamento dos
faltosos.
Vale isto por dizer que tal interpretação é uma questão absolutamente nova no
processo, não sendo sequer razoável supor-se que a recorrente a poderia ou
deveria ter adivinhado ou figurado, tão anómalos, graves e perversos seriam os
resultados a que objectivamente conduz.
Resulta do exposto que o despacho sob reclamação deixa a recorrente desarmada,
porque absolutamente privada do direito de defesa perante os órgãos judiciais,
em clara violação dos princípios constitucionais do estado de direito
democrático e do contraditório, na justa medida em que lhe nega o acesso ao
tribunal competente para analisar e decidir se o sentido e alcance dos art.
506º e 601º do Código do Trabalho, perfilhados no acórdão, violam, ou não, a
Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, por se tratar de um caso excepcional em que ao recorrente não foi
dada oportunidade para suscitar anteriormente a questão da constitucionalidade,
conforme, aliás, é jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, deve
julgar-se procedente a presente reclamação por inaplicabilidade, no caso, do
pressuposto para admissão de recurso a que se reporta a alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da Lei 28/82 e, consequentemente, revogar-se o despacho ora
reclamado, ordenando-se, ao invés, a admissão do recurso interposto pelo
recorrente para o Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação
apresentada.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade
perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se
considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma
legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão
recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o
recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo
essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de
constitucionalidade.
Pretende o reclamante que neste caso se encontrava dispensado de suscitar
perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora pretende
ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, uma vez que essa interpretação foi
totalmente inesperada.
Contudo, da análise dos autos, constata-se que a interpretação seguida pelo
acórdão recorrido, como sua ratio decidendi, seguiu a posição já proposta pelo
assistente nas suas alegações de recurso, a qual cabe, aliás, perfeitamente na
letra da lei, pelo que a arguida teve oportunidade de nas contra-alegações
apresentadas suscitar a questão de constitucionalidade que agora pretende ver
julgada pelo Tribunal Constitucional, de modo a permitir ao Tribunal da Relação
do Porto a sua apreciação.
Não o tendo feito, quando teve oportunidade para o fazer, incumpriu um requisito
essencial ao conhecimento do recurso de constitucionalidade pelo Tribunal
Constitucional, pelo que se mostra correcta a decisão de não admitir o recurso
interposto para este Tribunal.
Assim sendo, deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pela Santa Casa da
Misericórdia de Vila Nova de Gaia do despacho que não admitiu o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional.
*
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel de Moura Ramos