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Processo n.º 241/08
Plenário
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1. O Presidente do Governo Regional da Madeira pede ao Tribunal Constitucional
que declare, com força obrigatória geral, a ilegalidade dos n.ºs 1 e 2 do artigo
13.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2008), na
parte em que se refere à administração regional da Madeira, e dos artigos 14.º
n.º 1 da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2007) e
11.º n.º 1 da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento de Estado para
2006), na mesma parte, na medida em que estas normas ainda produzam efeitos
jurídicos. O teor das normas em questão é o seguinte:
Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro
Artigo 13.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 – É suspensa, até 31 de Dezembro de 2008, a possibilidade de destacamento, de
requisição e de transferência de funcionários da administração regional e
autárquica para a administração directa e indirecta do Estado.
2 – A suspensão determinada no número anterior mantém-se relativamente à
mobilidade prevista na lei que, na sequência da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 109/2005, de 30 de Junho, defina e regule os novos regimes de
vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções
públicas.
Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro
Artigo 14.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 – É suspensa, até 31 de Dezembro de 2007, a possibilidade de destacamento, de
requisição e de transferência de funcionários da administração regional e
autárquica para a administração directa e indirecta do Estado.
Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro
Artigo 11.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 – É suspensa, até 31 de Dezembro de 2006, a possibilidade de destacamento, de
requisição e de transferência de funcionários da administração regional e local
para a administração central.
2. Invoca o Requerente o seguinte:
'No uso do direito consagrado na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º, da
Constituição da República Portuguesa, o Presidente do Governo Regional da Região
Autónoma da Madeira vem requerer a declaração de ilegalidade, com força
obrigatória geral, de normas da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro, e da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, no
tocante, respectivamente, aos artigos 13.º, 14.º e 11.º das identificadas Leis,
por violação do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, alterado pela
Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, e Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho, pelas razões
e fundamentos que se passam a expor:
1.º – Pelo n.º 1 do artigo 13.º, da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro,
diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 2008, determina-se que, até 31 de
Dezembro de 2008, fica suspensa a possibilidade de destacamento, requisição e de
transferência de funcionários designadamente, da administração regional para a
administração directa e indirecta do Estado, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo,
que tal suspensão se mantenha relativamente à mobilidade prevista na lei que
venha a regular os novos regimes de vinculação, carreiras e remunerações dos
trabalhadores que exerçam funções públicas.
2.º – Ora, ao determinar a suspensão das supra referidas formas de mobilidade de
pessoal da administração regional para a administração directa e indirecta do
Estado, necessariamente, estabelece-se um regime de suspensão de direitos que
colide com a garantia de mobilidade profissional e territorial, estatuída no
artigo 80.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
3.º – Tal como sucede com o disposto no n.º 1 do artigo 14.º, da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro, bem como com o n.º 1 do artigo 11.º, da Lei n.º
60-A/2005, de 30 de Dezembro, diplomas estes que, respectivamente, aprovaram o
Orçamento do Estado para 2007 e para 2006 e que impuseram a mesma suspensão da
mobilidade de pessoal da administração regional para a administração directa e
indirecta do Estado, em termos idênticos aos que constam do artigo 13.º da Lei
n.º 67-A/2007, relativamente ao ano corrente.
4.º – O que está em causa nos artigos supra identificados é a consagração de um
regime que, de forma clara e directa, preclude, suspendendo, um direito
estatutário, relativo à mobilidade entre quadros da Administração Pública
regional e central.
5.º – De resto, tal direito encontra-se regulado no Decreto-Lei n.º 85/85, de 1
de Abril, com o qual se tornou plenamente exequível.
6.º – Ora, um direito garantido por norma consagrada no Estatuto
Político-Administrativo de uma Região Autónoma, como é o caso da Madeira, não
pode ser suspenso por norma inserida noutra sede, visto que o Estatuto de uma
Região Autónoma se configura como uma lei de valor reforçado, no sentido de que
a sua observância pelas demais se impõe relativamente aos direitos da Região ali
consagrados.
7.º – Ao suspender a possibilidade de destacamento, requisição e transferência
de funcionários da administração regional para a administração directa e
indirecta do Estado, bem como das formas de mobilidade que nos termos da lei
venham a suceder a estas, conforme se dispõe nos números 1 e 2 do artigo 13.º,
da Lei n.º 67-A/2007, viola-se clara e frontalmente, o direito à mobilidade
profissional e territorial, direito este respeitante à Administração Pública da
Região e garantido no artigo 80.º, do respectivo Estatuto
Político-Administrativo.
8.º – A violação do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira, contida nos números 1 e 2 do artigo 13.º, da Lei n.º
67-A/2007, de 31 de Dezembro, acarreta a ilegalidade destes normativos.
9.º – De ilegalidade padecem também, pelos mesmos motivos, o n.º 1 do artigo
14.º, da Lei n.º 53- A/2006, de 29 de Dezembro, e o n.º 1 do artigo 11.º, da Lei
n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, ilegalidade que deve ser declarada, com força
obrigatória geral, na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos
jurídicos, designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das
mesmas.
De acordo com o exposto, requer-se:
a) A declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos números 1 e 2
do artigo 13.º, da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, na parte que se refere
à administração regional;
b) A declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do artigo
14.º, da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e do n.º 1 do artigo 11.º, da Lei
n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, na parte que se refere à administração
regional, na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos jurídicos,
designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das mesmas.'
3. Notificado para os termos do pedido, conforme o disposto nos artigos 54.º
e 55.º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da
República ofereceu o merecimento dos autos.
4. Submetido a debate o memorando a que se reporta o n.º 1 do artigo 63º da
Lei do Tribunal Constitucional, fixada a orientação do Tribunal sobre as
questões a resolver e distribuído o processo, cumpre fazer reflectir essa
orientação no presente aresto.
II. Fundamentação
5. O Requerente pede a apreciação e declaração da ilegalidade das
normas dos artigos 14.º, n.º 1, da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 11.º,
n.º 1, da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que já não se encontram em
vigor, 'na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos jurídicos,
designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das mesmas'.
Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que não deve conhecer,
em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, dos pedidos de
declaração de invalidade de normas revogadas (por exemplo, mais recentemente,
Acórdãos n.º 19/2007 e 497/2007 in DR, II série, de 14 de Fevereiro e de 21 de
Novembro de 2007, respectivamente), a menos que, por alguma específica razão
relativa à aplicação da lei do tempo, seja de esperar que a norma em causa venha
a aplicar-se ainda a um número significativo de casos, ou quando 'tal se mostre
indispensável para corrigir ou eliminar efeitos entretanto produzidos durante o
período da respectiva vigência'.
Haverá, então, que averiguar se subsiste algum interesse, ou utilidade, no
conhecimento do pedido de fiscalização abstracta sucessiva da ilegalidade das
referidas normas dos Orçamentos de Estado para 2006 e 2007; é que, conforme
reconhece o Requerente, as normas impugnadas já não estão em vigor, tendo
cessado a sua vigência no último dia do ano a que se referia o respectivo
Orçamento de Estado.
Acontece que a vocação temporária de tais normas levou a que tivessem esgotado a
força normativa durante o período da sua vigência, razão pela qual não
produziram efeitos para futuro. Por outro lado, se algum acto lesivo foi
praticado com fundamento nessas normas, o seu destinatário teve possibilidade de
o impugnar contenciosamente e, porventura, de recorrer para o Tribunal
Constitucional em sede de fiscalização concreta da ilegalidade da norma, nos
termos do artigo 70.º n.º 1 alínea f) da Lei do Tribunal Constitucional.
É, assim, de concluir que a declaração com força obrigatória geral da invalidade
dessas normas não teria utilidade prática, nem qualquer outro interesse. O
Tribunal não vai, portanto, conhecer da questão da ilegalidade do artigo 14.º,
n.º1, da Lei do Orçamento de Estado para 2007 e do artigo 11.º, n.º 1, da Lei do
Orçamento de Estado para 2006.
6. É, pois, a questão da ilegalidade do artigo 13.º n.ºs 1 e 2 da Lei do
Orçamento de Estado para 2008, na parte em que se refere à administração
regional da Região Autónoma da Madeira, que o Tribunal irá apreciar.
Já se viu que o artigo 13.º da Lei n.º 67-A/2007 de 31 de Dezembro
determina, no seu n.º 1, que é 'suspensa, até 31 de Dezembro de 2008, a
possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários
da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta
do Estado'.
Segundo o Requerente, este preceito, incluído no Orçamento de Estado
para 2008, está, na parte em que se refere à administração regional da Madeira,
em clara contradição com o artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, alterado
pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, e Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho (EPARAM)
que estabelece: 'Aos funcionários dos quadros de administração regional e da
administração central é garantida a mobilidade profissional e territorial entre
os respectivos quadros, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de
antiguidade e carreira'.
E, na verdade, o artigo 13.º do Orçamento de Estado para 2008 não se
limitou a acrescentar condicionamentos à mobilidade dos funcionários públicos,
através de uma suspensão de algumas das formas de mobilidade previstas no
Decreto-Lei n.º 85/85, de 1 de Abril [diploma entretanto revogado e substituído
pela Lei nº 12-A/2008 de 27 de Fevereiro, que instituiu o actual regime de
vínculos carreiras e remunerações da Função Pública], que regulamentava o
referido artigo 80.º do EPARAM, e da previsão de um regime alternativo, para o
ano de 2008. Tal norma veio efectivamente impedir, durante o seu período de
vigência, o destacamento, a requisição e a transferência de funcionários da
administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do
Estado, contrariando, nesta parte, o regime de mobilidade consagrado no artigo
80.º EPARAM e excluindo a possibilidade de o Governo poder apreciar os pedidos
formulados no âmbito dos seus poderes de órgão superior da administração
pública.
Cumpre, agora, avaliar, à luz das regras de hierarquia e competência fixadas na
Constituição, se é possível a uma norma orçamental com o teor da norma impugnada
contrariar uma norma estatutária como aquela que consagra o aludido regime de
mobilidade.
6.1. Segundo o Requerente, a norma põe em causa um direito relativo à
mobilidade entre quadros da administração regional e da administração central
que é garantido por uma norma constante do Estatuto Político-Administrativo e
que não pode ser suspenso por uma norma inserida em outra sede, visto que o
Estatuto se configura como uma lei de valor reforçado.
A norma que garante aos funcionários dos quadros de administração
regional e da administração central a mobilidade profissional e territorial
entre os respectivos quadros, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de
antiguidade e carreira, insere-se no já referido artigo 80º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, diploma cujas normas têm
efectivamente um valor reforçado.
Na verdade, a Constituição permite que certas leis apresentem um valor
(absolutamente) reforçado quando, como é o caso, 'devam ser respeitadas' pelas
outras leis (artigo 112º n.º 3 da Constituição). A força vinculativa das suas
normas determina a ilegalidade das normas inscritas em actos legislativos que as
violem (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 281º da Constituição). Os Estatutos
das Regiões Autónomas são efectivamente leis especiais que a Constituição gradua
entre as leis constitucionais e as leis ordinárias (artigo 161º alínea b) da
Constituição) e, achando-se submetidas a um especial regime de aprovação e de
alteração, não podem ser modificadas senão pela forma prevista artigo 226º n.º 4
da Constituição. Esta circunstância impõe que se reconheça às suas disposições
normativas maior perenidade, não só em face da rigidez do seu processo de
alteração, mas também por ser uma lei onde se desenvolvem os princípios
constitucionais respeitantes à autonomia regional e se concentram as bases dos
poderes regionais (artigo 227º n.º 1 e 228º n.º 1 da Constituição).
A aludida rigidez decorre da circunstância de a Constituição haver concedido às
Assembleias Legislativas das Regiões o exclusivo da iniciativa legislativa em
matéria de Estatutos, reservando, simultaneamente, de forma absoluta, à
Assembleia da República, a competência para a sua aprovação. O sistema permite
supor que as matérias com assento estatutário resultam tendencialmente de um
compromisso, pelo menos formal, entre cada uma das Regiões e a República, que se
materializa no respectivo Estatuto e que constitui o fundamento da restrição ao
poder de livre iniciativa legislativa na Assembleia da República.
Esta restrição, no entanto, há-de ser aceite a título excepcional, pois não
decorre de um critério relativo à separação e interdependência dos poderes
soberanos do Estado, mas da adopção de um princípio de cooperação no
relacionamento entre órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio das
Regiões.
E a verdade é que o Tribunal já recusou carácter estatutário a normas inscritas
em preceitos dos Estatutos das Regiões. O Tribunal considerou, por exemplo, que
não podem haver-se como materialmente estatutárias as normas respeitantes a
matérias relativas ao direito eleitoral (Acórdão n.º 1/91), à organização e
funcionamento dos tribunais administrativos (Acórdão n.º 460/99) e às relações
financeiras entre a República e as Regiões Autónomas (Acórdãos n.ºs 567/04,
11/07, 581/07 e 238/08). Nestes casos, o Tribunal verificou que as matérias
tratadas se incluíam no âmbito da reserva de competência legislativa da
Assembleia da República, tendo concluído que a sua inclusão nos Estatutos afecta
essa reserva, por força da regra da iniciativa originária exclusiva das
assembleias legislativas das Regiões. Para recusar atribuir natureza estatutária
à norma, o Tribunal encontrou, portanto, um fundamento directamente retirado da
Constituição que inevitavelmente ligaria a matéria tratada ao livre exercício da
competência legislativa reservada aos órgãos de soberania, designadamente à
Assembleia da República. Na verdade, a Constituição considera que são matéria de
reserva de competência legislativa da Assembleia da República as referentes a
'eleições dos deputados às Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da
Madeira' (artigo 164.º, alínea j)), a organização e competência dos tribunais
(artigo 165.º, n.º 1, alínea p)) e ao regime de finanças das Regiões Autónomas
(artigo 164,º, alínea t) e artigo 229.º, n.º 3). Como explica Jorge Miranda
'competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações (como bem
se compreende) à Assembleia Legislativa regional (art. 226.º), se o estatuto
pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de
iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do
Governo da República (art. 167.º)' (Manual de Direito Constitucional, Tomo V,
Coimbra 2004, p. 373).
6.2. Mas o Tribunal também já reconheceu que a disciplina jurídica de
determinadas matérias há-de necessariamente incluir-se nos Estatutos. É o caso
do estatuto dos deputados regionais (os seus específicos deveres,
responsabilidades e incompatibilidades, assim como os seus direitos, regalias e
imunidades), matéria obrigatoriamente regulada nos Estatutos, conforme dispõe o
artigo 231.º, n.º 7 da Constituição. O Tribunal pronunciou-se, nos Acórdãos n.º
92/92 e n.º 637/95, pela inconstitucionalidade de todas as normas de decreto
aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira que introduzia
«alterações ao estatuto do deputado» à margem do respectivo Estatuto
Político-Administrativo. Em concordância ainda com o carácter estatutário desta
matéria, o Tribunal pronunciou-se, no Acórdão n.º 382/07, pela
inconstitucionalidade do artigo 1.º do Decreto n.º 121/X, de 17 de Maio de 2007,
da Assembleia da República, que alterava 'o regime de incompatibilidades e
impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos” e,
posteriormente, pela inconstitucionalidade do decreto que estabelecia o “Regime
de Execução das Incompatibilidades e Impedimentos dos Deputados à Assembleia
Legislativa da Madeira” aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma
da Madeira em 22 de Novembro de 2007. No acórdão n.º 10/2008, o Tribunal
reiterou, mais uma vez, a sua anterior jurisprudência, afirmando que a matéria
das incompatibilidades e impedimentos dos deputados às Assembleias Legislativas
das Regiões Autónomas é necessariamente estatutária, pelo que nenhum outro tipo
de diploma, que não o Estatuto Político-Administrativo, a pode regular.
6.3. O Tribunal tem também admitido que são materialmente estatutárias as
normas dos estatutos que se referem aos poderes das Regiões Autónomas
decorrentes do artigo 227.º da Constituição. Assim, nos Acórdãos n.º 162/99 e
291/99, o Tribunal considerou inconstitucional o 131º do Código das Custas
Judiciais 'na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais, o
produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem nas regiões
autónomas'; entendeu-se, então, que a Assembleia da República não podia legislar
sobre o destino a dar às coimas cobradas em juízo na Região, por se tratar de
'matéria estatutária'. E a matéria era 'estatutária' por conjugação do preceito
constitucional que conferia às regiões 'poder tributário próprio'
(correspondente ao actual artigo 227.º, n.º 1, alínea i)) e o preceito que
conferia às Regiões 'o poder de, nos limites da respectiva lei-quadro, definir
ilícitos de mera ordenação social e de lhes fixar as respectivas sanções'
(correspondente ao actual artigo 227.º, n.º 1, alínea q)).
De facto, os Estatutos estão ancorados, como explica Gomes Canotilho, 'num
princípio aberto: o princípio da autonomia regional' (Direito Constitucional e
teoria da Constituição, p. 774 e 'Os Estatutos da Regiões Autónomas. Em Torno de
um Conceito Material de Estatuto', p. 11). É no conteúdo aberto desse princípio
autonómico e nas exigências de adaptação dos estatutos às características
próprias de cada região e não numa definição das matérias estatutárias a priori
e em abstracto que se deverá procurar o critério de determinação do carácter
estatutário de uma norma (Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Tomo III, Coimbra 2003, artigo 226.º, p. 293).
6.4. O caso que agora se aprecia, relativo ao regime de destacamento, de
requisição e de transferência de funcionários da administração regional e local
para a administração central, não é matéria relativa às 'bases do regime e
âmbito da função pública' e não se inclui no âmbito das matérias de competência
legislativa reservada dos órgãos de soberania.
Na verdade, o Tribunal tem entendido que o âmbito da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República, em matéria de bases do regime e âmbito
da função pública – artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição –, se
circunscreve à 'definição das grandes linhas de inspiração da regulação legal da
função pública e a demarcação do âmbito institucional e pessoal da aplicação
desse específico regime jurídico. A reserva compreende, assim, o estabelecimento
do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulação, dos seus
princípios reitores ou orientadores – princípios esses que caberá depois ao
Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro
mais ou menos amplo – e dos princípios que constituirão, justamente, o parâmetro
e o limite deste desenvolvimento, concretização e particularização' (Acórdão n.º
184/08 in DR, I Série, de 22 de Abril de 2008), ou, conforme diz o Acórdão n.º
620/07 (DR, I série, de 14 de Janeiro de 2008): '... Como tais [bases do regime
da função pública] devem entender-se aquelas que, num acto legislativo, definam
as opções político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se
justifique que seja ainda efectuada por via legislativa'.
Ora, a matéria em causa não constitui uma cláusula que deva inscrever-se nas
'opções político-legislativas fundamentais', ou que respeite ao estabelecimento
'do quadro dos princípios básicos fundamentais' da regulação legal da função
pública.
E o certo é que ainda recentemente, quando a Assembleia da República aprovou a
Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, já referida, que estabelece os regimes de
vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções
públicas, fê-lo ao abrigo da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, isto é,
no exercício da competência legislativa genérica, conforme, aliás, tinha
ocorrido com a aprovação da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, (regime comum de
mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da administração pública).
E quando o Governo legislou especificamente sobre mobilidade entre administração
regional e estadual, através do já referido Decreto-lei n.º 85/85, de 1 de Abril
(como se disse, revogado pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro), fê-lo,
também, ao abrigo da competência legislativa genérica definida no artigo 201.º
n.º 1 alínea a) da Constituição.
Não pode, portanto, dizer-se que a norma do artigo 80.º do EPARAM discipline
matéria relativa a 'bases do regime e âmbito da função pública' abrangida pela
reserva prevista no artigo 165.º alínea t) da Constituição, o que significa que
não é proibido que essa norma esteja sedeada no EPARAM.
6.5. Decorre do que já atrás se afirmou que a matéria em causa também se não
inclui naqueles casos cuja disciplina jurídica há-de obrigatoriamente
incluir-se nos Estatutos, por não resultar da Constituição qualquer vinculação
do legislador nesse sentido.
No entanto, a consagração da garantia de mobilidade dos funcionários entre as
administrações regional e do Estado foi, desde o inicio, incluída nos Estatutos
de ambas as Regiões.
Com efeito, quanto à Madeira, ela já constava do artigo 49º n.º 4 do Estatuto
provisório (Decreto-Lei n.º 318-D/76 de 30 de Abril), com uma redacção
semelhante ('assegurar-se-á a possibilidade do ingresso dos funcionários dos
serviços regionais nos quadros gerais do Estado e vice-versa, sem prejuízo dos
direitos adquiridos em matéria de antiguidade e categoria profissional'). Com o
mesmo teor, a norma foi incluída no Estatuto provisório da Região Autónoma dos
Açores (Decreto-Lei n.º 318-B/76 de 30 de Abril, artigo 49º n.º 4), transitando,
com redacção idêntica à do actual artigo 80º do Estatuto da Madeira, para os
artigos 76º, 89º e 93º respectivamente das versões do EPARAA aprovadas pela Lei
n.º 39/80 de 5 de Agosto, pela Lei n.º 9/87 de 26 de Março e pela Lei n.º 61/98
de 27 de Agosto.
Ora, esta garantia de mobilidade, explicável pela preocupação, também traduzida
nos Estatutos, de conservar a identidade de regras de provimento e de estatuto
profissional fixadas na lei geral para os funcionários do Estado (artigo 79º do
EPARAM e artigo 92º do EPARAA), radica, afinal de contas, no princípio da
unidade do Estado, garantido no artigo 6º da Constituição, e espelhado, por
exemplo, na imposição, que inicialmente a Constituição tornou expressa (artigo
230º), de vedar às Regiões Autónomas a possibilidade de: 'a) restringir os
direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores; b) estabelecer restrições ao
trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional, salvo,
quanto aos bens, as ditadas por exigências sanitárias; c) reservar o exercício
de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou
residentes na região'.
Deve, por isso, reconhecer-se não só que esta garantia de mobilidade corresponde
a uma característica essencial das administrações públicas regionais, mas também
que o Estatuto de cada uma das Regiões é local adequado para ela se inserir,
dada a força paramétrica das suas disposições, que vinculam simultaneamente as
Regiões e a República.
Em conclusão, a disposição constante da Lei do Orçamento não pode
prevalecer sobre a norma do artigo 80º do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira, nem pode suspender a sua vigência.
III - Decisão
7. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer da questão da ilegalidade do 14.º, n.º1 da Lei n.º 53-A/2006, de
29 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2007) e do artigo 11.º, n.º 1 da Lei
n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2006).
b) Declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade, por violação do
disposto no artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
da Madeira, do artigo 13.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro
(Orçamento de Estado para 2008), na parte relativa à administração regional da
Região Autónoma da Madeira.
Lisboa, 29 de Outubro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes (vencido quanto à al. b) da decisão,
conforme declaração anexa)
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, conforme, no
essencial, a declaração de voto do Conselheiro
Carlos Cadilha)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à alínea b)
da decisão de acordo com a declaração de voto em anexo).
Maria João Antunes (Vencida quanto à alínea b)
da decisão, pelas razões constantes da declaração do Senhor
Conselheiro Carlos Cadilha)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à alínea b) da decisão, em síntese, pelo seguinte:
Divergindo do acórdão neste ponto (n.º 6.4 do acórdão), entendo que o artigo
80.º do EPARAM, na medida em que rege um aspecto nuclear do âmbito da mobilidade
profissional dos trabalhadores que exercem funções públicas, incide sobre
matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da
República prevista na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Com
efeito, disciplinar entre que quadros podem os trabalhadores transitar sem perda
de direitos em termos de antiguidade e carreira, estabelecer se essa mobilidade
é interna (intrapessoal) ou externa (interpessoal) – apenas dentro dos serviços
da mesma pessoa colectiva (no seio dos quadros da Administração central, de cada
Administração regional ou de cada ente de Administração local) ou também entre
quadros de pessoas colectivas distintas –, respeita a uma opção
político-legislativa fundamental quanto à definição de um elemento essencial da
relação de emprego que é a determinação subjectiva do vínculo pelo lado do
empregador público. Com este conteúdo, a norma estatutária incide sobre um
elemento caracterizador da mobilidade profissional na função pública – o âmbito
em que ela se verifica – que é matéria de bases do respectivo regime.
Assim, sendo da competência reservada de órgãos de soberania, não pode a
matéria ser abarcada pelos Estatutos autonómicos, porque isso a iria subtrair à
livre iniciativa legislativa, face ao especial valor paramétrico dos Estatutos e
às suas regras de iniciativa de alteração (vid. n.º 6.1 do presente acórdão).
Nesta perspectiva, seja pela via da irrelevância da inserção da norma no
Estatuto (construção que o tribunal vem adoptando), seja pela recusa de
aplicação com fundamento em inconstitucionalidade por excesso de forma ou
excedência estatutária (como entendo mais rigoroso), nunca poderá reconhecer-se
valor paramétrico ao artigo 80.º do EPARAM, pelo que não declararia a
ilegalidade do artigo 13.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão da alínea b) por considerar que a norma do artigo
80º do Estatuto Político-administrativo da Região Autónoma da Madeira não é
materialmente estatutária e incide antes sobre aspectos de regulamentação legal
que interessam à administração pública estadual e relativamente aos quais não
pode ser vedado o exercício da competência legislativa própria da Assembleia da
República e do Governo.
Como se afirmou ainda recentemente no acórdão do Tribunal Constitucional nº
238/2008, com apoio na doutrina, a reserva de estatuto encontra-se delimitada
negativamente pelo princípio de reserva absoluta de lei parlamentar, tal como
está definido no artigo 164º da CRP, e positivamente pelo elenco de matérias que
devem ser exclusivamente disciplinadas por lei estatutária, e que se entende ter
a ver com as competências e atribuições das regiões autónomas, o sistema de
governo regional e a delimitação das regiões autónomas relativamente a outras
pessoas colectivas territoriais (aspectos que, em última análise, se conexionam
com os poderes das regiões tal como estão consignados nos artigos 228º e 229º da
CRP).
Por outro lado, o valor paramétrico das leis estatutárias só deve ser
reconhecido em relação às normas materialmente estatutárias e, nesse sentido,
como tem sido sublinhado noutros locais pela jurisprudência constitucional, não
basta que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua
alteração por um diploma legislativo nacional importe violação da reserva de
estatuto, sendo que essa violação só ocorrerá se a norma constante do estatuto
pertencer ao âmbito material estatutário (cfr. acórdãos n.ºs 162/1999, 567/2004
e 581/2007).
Nesta linha de entendimento, para que possa atribuir-se valor de lei reforçada à
referida norma artigo 80º do EPARAM não é suficiente considerar que o princípio
da mobilidade do pessoal não integra a reserva de competência da Assembleia da
República (por se não reportar às «bases do regime e âmbito da função pública» -
artigo 165º, n.º 1, alínea t), da CRP), e que essa é, por outro lado, uma
matéria pertinente ao estatuto de um região autónoma.
A garantia de mobilidade recíproca entre o pessoal da administração regional e a
administração estadual, ainda que entendida como concretização de um princípio
de unidade do Estado, envolve por natureza matéria de interesse nacional,
cabendo prevalecentemente aos órgãos legiferantes da República determinar em que
termos e segundo que critérios essa garantia deve ser salvaguardada, pelo que a
sua inclusão em lei estatutária nunca poderia ter como efeito arredar o poder de
iniciativa legislativa genérica dos deputados, dos grupos parlamentares ou do
Governo.
Afigura-se, aliás, contraditório que, para justificar a incorporação de uma
norma desse tipo no Estatuto, se apele a um princípio constitucional geral – a
unidade de Estado – e simultaneamente se interprete a garantia de mobilidade do
pessoal como uma característica essencial das administrações públicas regionais,
e, portanto, como algo que afinal deva ter especial projecção na esfera
geográfica ou espacial de uma região e se reconduza ao âmbito regional.
Por tudo, entendo que à referida disposição não pode ser reconhecido valor
paramétrico próprio das leis reforçadas, pelo que nada obstava a que a Lei n.º
67-A/2007, de 31 de Dezembro, pudesse estabelecer um regime legal divergente.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha