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Processo n.º 546/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional,
1. A., L.da, reclama para a conferência do despacho do
relator, de 9 de Outubro de 2008, que, por considerar não existir oposição
relevante entre o Acórdão n.º 445/2008, proferido nestes autos, e os Acórdãos
n.ºs 289/99 e 77/2001, invocados pela recorrente, não admitiu o recurso por esta
interposto para o Plenário do Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo
79.º‑D da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC).
1.1. O despacho reclamado é do seguinte teor:
“A., L.da, veio interpor, ao abrigo do artigo 79.º‑D da Lei do
Tribunal Constitucional, recurso para o Plenário deste Tribunal contra o Acórdão
n.º 445/2008 da 2.ª Secção, alegando que a questão levantada no presente
processo foi julgada pelo referido Acórdão «em sentido divergente do
anteriormente adoptado nos Acórdãos n.ºs 289/99 e 77/2001 (…) e em que, em
ambos, e neste também, indubitavelmente se versava a mesma questão relativa à
interpretação das normas constantes do artigo 1038.º, alínea f), do Código Civil
e do artigo 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU, com decisões diametralmente
opostas».
O recurso para o Plenário previsto no artigo 79.º‑D da Lei do
Tribunal Constitucional pressupõe que este Tribunal, no acórdão recorrido,
tenha julgado «a questão de inconstitucionalidade (...) em sentido divergente
do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções».
No presente caso, o recurso para o Plenário é inadmissível não só
por falta de identidade entre as questões de inconstitucionalidade apreciadas
nos Acórdãos n.ºs 289/99 e 77/2001, por um lado, e no Acórdão n.º 445/2008, por
outro, mas também por inexistência de incompatibilidade entre as decisões neles
contidas.
Aqueles dois Acórdãos não julgaram inconstitucionais as normas das
alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, quando interpretadas no
sentido de que a falta de comunicação ou de autorização do senhorio não
constituem fundamento para resolução do contrato de arrendamento, estando em
causa a cessão de exploração do estabelecimento, tendo apreciado a questão em
face dos fundamentos invocados pelos respectivos recorrentes: violação do
direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa), no primeiro caso; e violação dos princípios constitucionais da
igualdade, da justiça e do Estado de direito e do direito de propriedade, no
segundo caso.
Por seu turno, o Acórdão n.º 445/2008 não julgou inconstitucional a
norma, extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do Regime do
Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, e
1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil, interpretados no sentido de que
constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a falta de
comunicação do locatário ao locador da celebração de um contrato de cessão de
exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado, quer em
confronto com os fundamentos invocados pela recorrente – violação do princípio
da igualdade e do direito de iniciativa económica privada –, quer,
oficiosamente, face ao princípio da proporcionalidade.
No entanto, só aparentemente existe oposição entre os juízos
emitidos entre os Acórdãos em confronto. É que, como, aliás, se teve o cuidado
de evidenciar no Acórdão n.º 445/2008:
«(…) a circunstância de, nos dois aludidos Acórdãos, o Tribunal
Constitucional ter decidido que não era constitucionalmente imposto que o
legislador consagrasse o dever de o locatário obter autorização do senhorio
para a cessão da exploração do estabelecimento comercial instalado no local
arrendado e de comunicar ao locador a efectivação da cessão autorizada, não
impõe, como sua decorrência lógica, que se tenha por constitucionalmente
proibida a consagração de qualquer um desses deveres. O que naqueles Acórdãos
se decidiu foi que, consideradas as diferenças entre os títulos referidos na
alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil (cessão da posição contratual,
subarrendamento e comodato) e a cessão de exploração de estabelecimento
comercial instalado em local arrendado, o princípio constitucional da igualdade
não impunha ao legislador ordinário que estabelecesse para esta cessão os
mesmos condicionalismos fixados para aquelas três figuras; e que, por outro
lado, a interpretação normativa que dispensava a autorização do e a comunicação
ao senhorio não violava, de forma intolerável, o direito de propriedade deste,
antes o conciliava com o direito de iniciativa económica do locatário.
No presente caso – sem qualquer contradição com a anterior
jurisprudência deste Tribunal –, dir‑se‑á que o critério normativo, seguido na
decisão recorrida, de que a cessão de exploração deve ser comunicada ao
senhorio (sem exigência de obtenção de prévia autorização) não viola o
princípio da igualdade, desde logo porque nem sequer equipara integralmente
esta situação às três expressamente previstas nas alíneas f) e g) do artigo
1038.º do Código Civil, relativamente às quais se exige cumulativamente a
autorização e a comunicação, e depois porque, atentas as razões invocadas para
a afirmação do dever de comunicação (legítimo interesse do senhorio em conhecer
a identidade de quem efectivamente usufrui do local arrendado e direito que lhe
assiste de controlar o preenchimento dos requisitos do contrato de cessão, ao
abrigo dos n.ºs 2 dos artigos 111.º e 115.º do RAU), a imposição deste dever
nada tem de arbitrário, desnecessário ou inadequado.»
Inexistindo oposição relevante entre o Acórdão n.º 445/2008 e os
Acórdãos n.ºs 289/99 e 77/2001, não admito o recurso para o Plenário,
interposto pela recorrente.”
1.2. A presente reclamação assenta na seguinte
fundamentação:
“I. Não se consegue entender como se pode afirmar e fundamentar que
não existe oposição entre os três acórdãos em questão n.ºs 289/99, 77/2001 e
445/2008, todos proferidos pela 2.ª Secção deste Tribunal, os quais versam,
indubitavelmente, a mesma questão de direito e de facto: a interpretação das
normas constantes do artigo 1038.º, alínea f), do Código Civil e do artigo 64.º,
n.º 1, alínea f), do RAU e foram proferidos no âmbito da vigência da mesma
legislação.
Refere o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator que «só
aparentemente existe oposição entre os juízos emitidos entre os acórdãos em
confronto».
Salvo o devido respeito, não é apenas aparente a oposição entre os
acórdãos em confronto, mas real.
Vejamos:
II. Refere‑se no Acórdão n.º 289/99, que, para mais simples
apreciação de V. Ex.as, se junta por cópia como doc. 1: «invocaram as autoras
como fundamento do pedido, por entre o mais, que o réu cedeu, sem consentimento
delas e sem alguma vez lhes ter comunicado tal facto, a exploração do referido
estabelecimento à Sociedade A., L.da».
E mais à frente refere‑se: «tratando‑se de um estabelecimento
comercial convém efectuar um mui perfunctório discorrer sobre o respectivo
conceito e aquilo que tem sido vincado como a diferenciação entre os seus
trespasse e cessão de exploração». E adianta ainda que «o que, com a cessão
ocorreu foi unicamente uma alteração subjectiva da gestão do estabelecimento,
tido como uma universalidade e da qual faz parte o próprio local onde o mesmo se
encontra instalado, estabelecimento esse que continua a ser o mesmo e titulado
pelo mesmo arrendatário (sublinhado nosso) sobre o qual como se disse continuam
a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de arrendamento».
O que conduziu os M.mos Juízes Conselheiros nesse acórdão a decidir
que: «não se divisa assim que a interpretação seguida pelo aresto recorrido e de
harmonia com a qual a falta de comunicação ou autorização do senhorio a que
aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil não constituí
fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, estando em causa a
cessão de exploração do estabelecimento comercial, seja contrária à
Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se
consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, deste diploma fundamental».
III. Também no Acórdão n.º 77/2001 (que também para mais simples
apreciação de V. Ex.as se junta por cópia como doc. 2) o thema decidendum se
centrava em acção de despejo em que a ré teria cedido a outrem a exploração de
um estabelecimento comercial instalado no locado sem que tivesse obtido
autorização das locadoras ou lhes tivesse efectuado qualquer comunicação.
E nesse Acórdão diz‑se que (pág. 13): «Isto posto, cumpre recordar
que a norma em apreço foi já objecto de apreciação por banda deste órgão de
fiscalização concentrada de constitucionalidade normativa. Uma tal
apreciação ocorreu através do Acórdão do Tribunal Constitucional, Acórdão n.º
289/99 (in Diário da Republica, II Série, de 14 de Julho de 1999), no qual se
entendeu não ser contrária à Constituição uma interpretação de harmonia com a
qual a falta de comunicação ou de autorização do senhorio, a que aludem as
alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, não constitui fundamento para
resolução do contrato de arrendamento, se em causa estiver a cessão de
exploração do estabelecimento, sendo que uma tal interpretação até
compatibilizava o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos
61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, daquela Lei Fundamental».
IV. Ora, no caso dos autos, é precisamente de uma decisão condenando
no despejo por falta da comunicação prevista nas alíneas f) e g) do artigo
1038.º do Código Civil que se trata.
A fls. 20 desse Acórdão n.º 77/2001 conclui‑se que «de facto, a
cessão de exploração de estabelecimento comercial ou industrial não é
equivalente às restantes situações invocadas nas alegações: sublocação e
trespasse. Qualquer uma das apontadas situações expressamente previstas na
alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil são consideradas, ao contrário
daquela, pela doutrina, como casos de modificação subjectiva da relação
jurídica».
E no ponto 3.1 referem os M.mos Srs. Juízes Conselheiros: «Há que
convir que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão
sob recurso à norma da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil é, de todo em
todo, similar àquela interpretação que foi objecto de análise no Acórdão de que
imediatamente acima se encontra transcrita uma parte (Acórdão n.º 289/99). Daí
que a corte argumentativa utilizada no dito Acórdão n.º 289/99 seja, cabalmente,
transponível para o caso subespécie e concernentemente à norma da alínea f) do
artigo 1038.º do Código Civil, no entendimento perfilhado pelo Tribunal da
Relação do Porto».
V. Invoca o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator que só
aparentemente existe oposição pois naqueles acórdãos foram consideradas
diferenças entre os títulos referidos na alínea f) do artigo 1038.º do Código
Civil (cessão de posição contratual, subarrendamento e comodato), o que não é
inteiramente correcto, como se pode ver da leitura atenta dos anteriores
Acórdãos, sendo certo, no entanto, que, nos termos da parte final do artigo
79.º‑C da Lei n.º 28/82, o Tribunal pode também julgar inconstitucional ou
ilegal a norma que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que haja recusado
aplicação com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou
legais diversos daqueles cuja violação foi invocada.
A circunstância de nos dois aludidos Acórdãos o Tribunal
Constitucional ter decidido que não era «constitucionalmente imposto» que o
legislador consagrasse o dever de o locatário obter autorização do senhorio para
a cessão de exploração do estabelecimento comercial instalado no local arrendado
e de comunicar ao locador a efectivação da cessão autorizada como diz o Ex.mo
Senhor Juiz Conselheiro Relator não impõe, como sua decorrência lógica, que se
tenha por «constitucionalmente proibida» a consagração de qualquer um desses
deveres.
VI. Agora o que não pode é, no âmbito da mesma legislação e da
interpretação da(s) norma(s) de direito, obter‑se num caso uma sentença
absolutória e no outro uma sentença condenatória, perante interpretação feita
pela mesma Secção do mesmo Tribunal no âmbito da vigência da mesma norma.
VII. Do que versa este instituto da cessão de estabelecimento
comercial é de uma mera cessão de posição jurídica, não de pessoas, mas de
estabelecimento comercial.
E nem se diga, como o pretende o Sr. Juiz Relator, que com a
obrigação de comunicação se garante ao senhorio a identidade de quem
efectivamente usufrui do local arrendado, já que pela mera cessão de quotas em
arrendamento a sociedade comercial as pessoas que gerem o estabelecimento podem
mudar sem que se tenha obrigação legal de comunicar esse facto ao senhorio!
Em face de todo o exposto pretende a recorrente reclamar para a
conferência do despacho do Sr. Juiz Conselheiro Relator, com vista a que a
decisão seja apreciada pelo Plenário deste Tribunal, como atempadamente se
requereu.”
1.3. A recorrida, notificada da precedente reclamação,
não apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O objecto da presente reclamação cinge‑se à
apreciação da correcção do despacho que não admitiu recurso para o Plenário,
interposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º‑D da LTC, por haver entendido não
se verificar, no caso, o específico requisito de admissibilidade desse recurso
– a existência de oposição relevante entre os juízos de constitucionalidade
emitidos no acórdão recorrido (Acórdão n.º 445/2008), por um lado, e nos
acórdãos invocados como fundamento (Acórdãos n.ºs 289/99 e 77/2001), por outro
–, sendo, assim, estranhas ao objecto desta reclamação as considerações tecidas
pela reclamante relativas ao mérito intrínseco das decisões em confronto.
Ora, para além da não integral coincidência entre as
questões de constitucionalidade apreciadas (não integrava o objecto do recurso
onde foi proferido o Acórdão n.º 445/2008 a questão da constitucionalidade da
imposição do dever de o locatário obter autorização do senhorio para proceder à
cessão da exploração do estabelecimento comercial instalado no local arrendado,
ao contrário do que ocorria nos recursos decididos pelos Acórdãos n.ºs 289/99 e
77/2001), o que é determinante, no sentido da inadmissibilidade de recurso para
o Plenário, é a inexistência de incompatibilidade entre as decisões contidas nos
Acórdãos em confronto. Como desde logo se assinalou no Acórdão n.º 445/2008, não
existe qualquer contradição lógica, antes perfeita compatibilidade, na afirmação
(contida nos Acórdãos invocados como fundamento) de que não é
constitucionalmente imposto que o legislador ordinário estabeleça o dever de o
locatário obter autorização do senhorio para ceder a exploração de
estabelecimento comercial instalado no local arrendado e o dever de comunicar a
efectivação da cessão autorizada e que sancione o incumprimento desses deveres
com a outorga ao senhorio do poder de obter a resolução do contrato de
arrendamento, em confronto com a afirmação (contida no Acórdão recorrido) de que
não é constitucionalmente proibido que o legislador ordinário imponha ao
locatário o aludido dever de comunicação e, em caso de incumprimento, faculte
ao senhorio a obtenção, com esse fundamento, da resolução do contrato. Trata‑se,
na verdade, de domínio em que não resulta directamente da Constituição uma única
solução quanto à consagração, ou não, de tais deveres e quanto ao sancionamento
do seu incumprimento. Entendendo‑se caber na liberdade de conformação do
legislador ordinário não instituir qualquer desses deveres, instituir apenas um
ou instituir ambos, e, caso os institua, associar ao seu incumprimento a
possibilidade de resolução do contrato ou estabelecer outro tipo de
sancionamento, não existe oposição de julgados, relevante para abrir via de
recurso para o Plenário, entre os juízos de não inconstitucionalidade emitidos a
propósito das diversificadas soluções que, ao nível do direito ordinário, o
legislador (de acordo com as interpretações normativas acolhidas nas decisões
recorridas), no uso da liberdade de conformação que a Constituição lhe
outorgou, entendeu dever consagrar.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 18 de Novembro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Manuel Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos