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Processo n.º 397/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Comércio de Lisboa, em que é
recorrente A., S.A., e recorridos o Ministério Público e a Autoridade da
Concorrência, foi interposto recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade da sentença daquele Tribunal, de 10.03.2008, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para
apreciação das seguintes questões:
i) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 17.°,
n.°s 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.° 18/2003,
de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao Ministério Público para
autorizar buscas à sede e domicilio profissional de pessoas colectivas, por
violação dos artigos 32.°, n.° 8, e 34.°, n.°s 1, 2, 3 e 4, da CRP e do
princípio da reserva de juiz neles consagrado;
ii) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo
17.°, n.° 1, alínea c), do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei
n.° 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.°, n.° 1, do regime geral das
contra-ordenações e coimas, aprovado pelo DL n.° 433/82, de 27 de Outubro, no
sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio
electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser
apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra-ordenacional, por
violação dos artigos 32.°, n.° 8, e 34.°, n.° 4, ambos da CRP;
iii) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo
17.°, n.°s 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.°
18/2003, de 11 de Junho, no sentido de que páginas extraídas de cadernos de
apontamentos pessoais e de agenda pessoal podem ser apreendidas e utilizadas
como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos
26.°, n.° 1, e 32.°, n.° 8, da CRP.
2. O presente recurso emerge de processo de contra-ordenação, no qual a A.,
S.A., interpôs recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa, do despacho da
Autoridade da Concorrência (AdC), de 28.03.2007, que indeferiu o seu
requerimento de arguição de nulidades, pedindo que fosse julgado procedente o
recurso e declarada a invalidade das diligências de busca e apreensão realizadas
pela AdC nas instalações da A. e, subsidiariamente, que fossem reconhecidas as
nulidades de prova resultantes da natureza especialmente tutelada de alguns
documentos apreendidos, nomeadamente aqueles que constituam correspondência,
condenando-se a AdC à sua restituição.
Por sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, de 10.03.2008, ora recorrida, o
recurso foi julgado totalmente improcedente.
3. No Tribunal Constitucional, a recorrente concluiu da seguinte forma as
respectivas alegações:
«1. No âmbito da aplicação da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, que aprovou o
regime jurídico da concorrência, e em sede de processo contra-ordenacional, a
Autoridade da Concorrência realizou em 16 de Janeiro de 2007, ao abrigo de um
mandado emitido por uma magistrada de turno do Ministério Público, diligências
de busca na sede e instalações da Recorrente, tendo apreendido correspondência
diversa (designadamente circulares e mensagens de correio electrónico), bem como
extractos de cadernos de apontamentos e agenda pessoal, no decurso das buscas.
2. O entendimento, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual as buscas
realizadas pela Autoridade da Concorrência na sede de pessoas colectivas, ao
abrigo dos poderes de inquérito que lhe são conferidos pelas normas do artigo
17.°, n.° 1, alínea c), e n.° 2, da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, não
constituem buscas domiciliárias, pelo que a entidade competente para emitir os
mandados correspondentes é o Ministério Público, é materialmente
inconstitucional por violação do disposto nos números 1 e 2 do artigo 34.° da
CRP e do princípio da reserva de juiz aí consagrado.
3. A generalidade da doutrina constitucionalista reconhece que, por si só
(imediatamente) ou em conjugação com outros direitos fundamentais (como,
nomeadamente, o direito de iniciativa económica, o direito à propriedade ou o
direito à tutela do segredo comercial), a garantia de inviolabilidade do
domicílio é extensível às pessoas colectivas, designadamente às pessoas
colectivas de direito privado como é o caso da ora Recorrente.
4. Para além de considerar que o âmbito de protecção da garantia de
inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 34.º da CRP se estende à sede
e instalações das pessoas colectivas, a doutrina converge em sentido idêntico no
que respeita à titularidade deste direito subjectivo fundamental, considerando
que, nos termos do disposto no número 2 do artigo 12.° da CRP, a inviolabilidade
do domicílio não é indissociável da personalidade humana ou da pessoa física,
sendo, portanto, compatível com a específica natureza das pessoas colectivas.
5. As empresas devem beneficiar de uma esfera específica de reserva e sigilo
merecedora de tutela equiparável à que é conferida à “habitação” das pessoas
físicas, nomeadamente em atenção ao facto de que é na sede e instalações destas
pessoas colectivas que se concentram as suas actividades industriais, comerciais
ou de investigação; os seus dados de negócio e documentação contabilística e
financeira; os haveres pessoais dos seus funcionários, administradores e
trabalhadores; informação sobre clientes e fornecedores; planos de negócios e
orçamentos; registos de declarações fiscais; documentação bancária e relativa a
créditos e financiamentos, etc.
6. A circunstância de, nos termos do número 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas
colectivas gozarem dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, por
direito próprio, corresponde a uma limitação, consensualmente reconhecida, ao
princípio do carácter individual destes direitos.
7. O facto de ser incriminada, nos termos do artigo 187.° do Código Penal, a
violação de bens jurídicos e valores eminentemente pessoais específicos de
pessoas colectivas (como o prestígio, a confiança e a credibilidade) reforça o
entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade do domicílio é
compatível com a natureza das pessoas jurídicas.
8. Acresce que, nos termos da jurisprudência mais recente do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem, a protecção do domicílio decorrente do artigo 8.° da
Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais estende-se inequivocamente à “sede e delegações” das empresas (cf.
acórdão Colas Est v. França, de 16.04.2002, que concluiu pelo carácter
desproporcionado das disposições de um regime legal de direito francês,
aplicáveis a investigações a empresas no âmbito da fiscalização de práticas
anti-concorrenciais, segundo as quais não seria necessária autorização judicial
prévia para diligências de busca na sede e instalações de pessoas colectivas).
9. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem constitui um
elemento hermenêutico de enorme importância na densificação, normativa e
jurisprudencial, das normas consagradoras de direitos fundamentais, quer a nível
nacional quer a nível comunitário (neste segundo plano, o valor das normas da
Convenção Europeia e da aludida jurisprudência enquanto padrões de interpretação
do direito comunitário foi, inclusivamente, reforçado com a adesão formal da
União Europeia àquela Convenção por via do Tratado de Lisboa, de 13.12.2007 —
cf. nova redacção dos números 2 e 3 do artigo 6° do Tratado da Comunidade
Europeia) pelo que não poderá deixar de ser tida em conta na interpretação do
disposto no artigo 34.° da CRP.
10. Aplicando-se a garantia de inviolabilidade do domicílio à sede e instalações
das pessoas colectivas, verifica-se que a realização de buscas e apreensões nas
instalações da Recorrente é, nos termos do disposto no número 2 do artigo 34.°
da CRP, um acto sujeito a reserva de juiz (o que é confirmado, na legislação
ordinária, pelas disposições do artigo 177.°, n.° 1 e 269.°, n.° 1, alínea a) do
Código de Processo Penal, na redacção vigente à data em que foram autorizadas e
tiveram lugar aquelas diligências) pelo que a interpretação do artigo 17°, n.°
1, alínea c) e n.° 2 da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de que a
“autoridade judiciária” referida nesta última norma não tenha de ser,
necessariamente, um magistrado judicial, é materialmente inconstitucional por
violação do disposto nos artigos 32.°, n.° 4, e 34.°, n.° 2 da CRP.
11. Acresce não ser possível recorrer subsidiariamente ao conceito de
“autoridade judiciária” constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 1.° do CPP
porquanto em processo contra- ordenacional, em especial na fase anterior à
aplicação da coima pela autoridade administrativa, nenhuma autoridade judiciária
tem competência decisória, pelo que falta à norma contida no n.° 2 do artigo
17.° da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, a indispensável definição, em norma
expressa habilitante, de qual deva ser a autoridade judiciária competente para
efeitos de autorização de buscas e apreensões, inexistindo, ademais, qualquer
elemento interpretativo, legal ou constitucional, que aponte para que a referida
autoridade possa ser, no âmbito das diligências de investigação reguladas no
regime jurídico da concorrência, o Ministério Público.
12. Quanto ao facto de a Autoridade da Concorrência ter apreendido
correspondência (mensagens de correio electrónico e circulares, arquivados em
suporte informático em computador pessoal) na sede da Recorrente, a decisão
recorrida propugnou o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade
da correspondência apenas vale para correspondência “fechada” (devendo a
correspondência já “aberta” seguir o regime aplicável aos documentos em geral).
13. Tal entendimento é materialmente inconstitucional por violação do disposto
no n.° 4 do artigo 34.° da CRP, norma que admite excepcionalmente a ingerência
na correspondência apenas nos «casos previstos na lei em matéria de processo
criminal».
14. Por conseguinte, em processo contra-ordenacional vigora uma garantia de
inviolabilidade absoluta da correspondência ou telecomunicações — como resulta,
a nível da legislação ordinária, do disposto no artigo 42.°, n.° 1, do regime
geral das contra-ordenações e coimas —, encontrando-se vedado o recurso a meios
de obtenção mais gravosos como a apreensão de correspondência, apenas possível
em sede de investigação criminal nos termos previstos no artigo 179.°, n.° 1, do
Código de Processo Penal.
15. Não existe qualquer motivo justificativo de um tratamento diferenciado entre
correspondência “fechada” e correspondência “aberta”, pelo que a circunstância
de uma mensagem de correio electrónico poder já ter sido lida e arquivada (em
versão impressa ou em suporte informático) releva apenas para efeitos do
preenchimento do tipo legal de crime previsto e punido no artigo 194.° do Código
Penal (violação de correspondência ou telecomunicações), sendo inoperante para
efeitos de determinação da amplitude da tutela da correspondência em sede de
processo contra-ordenacional.
16. O acesso e análise, por parte da Autoridade da Concorrência, do conteúdo
integral de uma agenda pessoal e de cadernos de apontamentos pessoais
armazenados no gabinete de um director da Recorrente, configura uma intromissão
na esfera da privacidade da pessoa em questão na medida em que,
independentemente do teor concreto dos extractos apreendidos e copiados, implica
o acesso irrestrito daquela autoridade — e a aquisição da informação respectiva
— a todas as anotações (pessoais e de outra natureza) que deles constam.
17. Constitui, portanto, uma violação da reserva da intimidade da vida privada o
escrutínio e apreensão não autorizados das referidas anotações manuscritas,
devendo ser julgado inconstitucional, por violação dos artigos 26.°, n.° 1, e
32.°, n.° 8, da CRP, a interpretação do art. 17.°, n.°s 1 e 2, da Lei n.°
18/2003, de 11 de Junho, segundo a qual é possível a apreensão e utilização como
meio de prova dos referidos elementos em processo contra- ordenacional.»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal contra-alegou,
concluindo o seguinte:
«1. O conceito de domicílio previsto no artigo 34.° da Constituição não
configura a possibilidade de uma equiparação entre domicílio de pessoa
(singular) e de pessoa colectiva, nomeadamente para efeitos de intervenção de
autoridade judiciária.
2. A interpretação do artigo 17.°, n.° 2, da Lei de Concorrência segundo a qual
o Ministério Público é competente para autorizar buscas em sede de pessoa
colectiva não viola qualquer comando constitucional, nomeadamente o artigo 34.°
3. Não viola a Constituição a norma do artigo 17.°, n.° 1, alínea c), da Lei
18/2003, de 11 de Junho, quando interpretada no sentido de ser possível a
apreensão e utilização, como meio de prova em processo contra-ordenacional,
correspondência aberta, lida e arquivada (circulares, mensagens de correio e
documentos anexos, arquivados em computador ou impressos).
4. De igual modo não viola a Constituição a interpretação do preceito referido
supra, quando permite a apreensão e utilização, como meio de prova, de páginas
extraídas de cadernos de apontamentos pessoais cujo conteúdo é relativo a “dados
de negócios” sem qualquer conexão com a reserva da intimidade da vida privada e
familiar.»
5. A recorrida Autoridade da Concorrência apresentou contra-alegações onde, para
além do mais, suscitou o não conhecimento do objecto do recurso quanto às
segunda e terceira questões colocadas, concluindo o seguinte:
«A) A Recorrente não configurou como inconstitucionalidade normativa a
interpretação da norma que resulta da interpretação do artigo 17.°, n.° 1 c) da
Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.°, n.° 1 do RGCO no sentido de
que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e
documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser aprendida e
utilizada como meio de prova em processo contra- ordenacional, por violação dos
artigos 32.°, n.° 8 e 34.°, n.° 4, ambos da CRP. Só nesta sede o fazendo.
B) Considerou, e configurou, que a AdC decorrente da sua actuação violou a
proibição de ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagradas no
n.° 4 do artigo 34.° da CRP, violando igualmente o disposto no n.° 1 do artigo
42.° do RGCO (artigo 111.º da Impugnação), violando também os termos do mandado
(artigo 112.° da impugnação) e as conclusão XII e XIII
C) Ao considerar a actuação da AdC como violadora das garantias constitucionais
de inviolabilidade de correspondência com a consequente nulidade de obtenção de
prova. Não configurando como ora pretende, uma inconstitucionalidade normativa.
D) Pelo que não devem ser conhecidas as questões de inconstitucionalidade
resultantes da segunda e terceiras questões das alegações da Recorrente por ser
a primeira vez que o faz.
E) A questão violação da reserva da intimidade da vida privada resulta do
entendimento e valoração da actuação da AdC.
F) Esta inconstitucionalidade resulta da sua discordância com a Sentença “a quo”
que não atendeu à sua tese, portanto, não configura uma questão de
inconstitucionalidade normativa, mas sim uma questão de discordância com a
sentença em ligação intrínseca com a actuação da AdC, (conclusão 16 e 17 das
suas alegações).
G) Em parte alguma das suas alegações para o Tribunal de Comércio, a Recorrente
reconduz esta questão a uma questão de inconstitucionalidade normativa, com se
constata dos artigos 123.° a 129.° da impugnação e conclusão XV.
H) Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a suscitação, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade
de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer - artigo 72.°, n.°
2, da TC.
I) A Sentença “a quo” não fez qualquer aplicação das interpretações normativas
que a Recorrente lhe imputa no presente requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional. Efectivamente, o tribunal recorrido não se
pronunciou sobre as questões de inconstitucionalidade que agora vêm colocadas.
J) Destarte, não estando preenchidos os pressupostos processuais do presente
recurso, não é possível conhecer do respectivo objecto quanto a estas duas
questões.
Caso assim não se entenda,
K) A AdC, nos termos dos artigos 1.º e 4.° dos seus Estatutos, aprovados pelo
Decreto- Lei n.° 10/2003, de 18 de Janeiro, tem como missão assegurar a
aplicação das regras da concorrência nacionais e comunitárias, no respeito pelo
princípio da economia de mercado e de livre concorrência, com vista ao
funcionamento eficiente dos mercados, à repartição eficaz dos recursos e aos
interesses dos consumidores;
L) No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à AdC
identificar e investigar as práticas susceptíveis de infringir a legislação da
concorrência nacional e comunitária, proceder à instrução e decidir sobre os
respectivos processos, aplicando se for caso disso, as sanções previstas na lei,
nos termos da alínea a) do n.° 2 do artigo 7.°, dos Estatutos supra mencionados,
e do artigo 17.°, n.°1 alínea c) da LdC;
M) No caso dos autos, e salvo melhor, não foram efectuadas buscas domiciliárias
e, igualmente, não foi apreendida qualquer correspondência, logo o mandado foi
emitido pela autoridade judiciária competente;
N) Com efeito, o conceito de domicílio deve ser “dimensionado e moldado a partir
da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de
intimidade da vida privada” (Acórdão do TC n.° 67/97 in Acórdãos do Tribunal
Constitucional 36.° vol., p. 247), não está seguramente essa “intimidade” em
causa na sede da empresa, nem este é “aquele espaço fechado e vedado a estranhos
onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e
procedimentos característicos da vida privada e familiar” (Acórdão do TC n.°
452/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 13.° vol., tomo I, p. 543).
O) Pelo que toda argumentação da Recorrente deve improceder, não existindo
qualquer inconstitucionalidade decorrente da inviolabilidade do domicílio das
pessoas colectivas e da alegada busca “domiciliária” à “sede” da recorrente, em
razão do n.° 2 do art. 12.° da CRP que prevê que “as pessoas colectivas gozam
dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza “.
P) Tal preceito não consagra um princípio de equiparação entre pessoas físicas e
pessoas colectivas no tocante à titularidade de direitos fundamentais, nem o
mesmo é defendido pelos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira;
Q) O Tribunal Constitucional rejeita expressamente uma tal equiparação, sendo a
este propósito exemplar o seu Acórdão n.° 569/98, no Proc. n.° 505/96, de 7 de
Outubro de 1998;
R) Da norma do n.° 2 do artigo 12.° decorre uma “limitação”: as pessoas
colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, alicerçado na
ligação íntima dos direitos fundamentais ao valor supremo da dignidade da pessoa
humana (artigo 1.º da CRP);
S) Disto resulta que o n.° 2 do art. 12.° da CRP não determina a atribuição
directa, por extensão, dos direitos fundamentais às pessoas colectivas, mesmo os
seus representantes sendo pessoas singulares, o que obriga a uma análise sempre
casuística e sempre temperada com o facto de inexistir um catálogo “prévio” de
direitos fundamentais que possam ser invocados pelas pessoas colectivas;
T) O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o conceito constitucional de
domicílio acolhido no artigo 34.° da CRP, entendendo, a esse propósito, no
Acórdão n.° 452/898 (in Diário da República, I Série, de 22 de Julho de 1989), e
reiterado no seu Acórdão 67/97, proc. n.° 602/96, de 4 de Fevereiro de 1997;
U) Ou seja, o conceito constitucional de domicílio é dimensionado e moldado a
partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua
vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com o
disposto no n.° 1 do artigo 26.° da CRP;
V) O que é, igualmente, confirmado no douto Parecer n.° 127/2004 do Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 17 de Março de 2005 e pelo
parecer, da mesma procuradoria, com o n.° 86/1991, no ponto 7.4, onde se defende
que as buscas na sede das pessoas colectivas não configuram buscas
domiciliárias, ou seja, “em casa habitada ou numa sua dependência fechada”;
W) As buscas efectuadas pela Autoridade da Concorrência nos presentes autos não
são enquadráveis no conceito de buscas domiciliárias previsto no artigo 177.º do
CPP, não sendo, consequentemente, acto subsumível à previsão da alínea a) do n.°
1 do artigo 269.° do CPP;
X) Nos termos dos n.°s 1, 2 do artigo 17.° da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, a
AdC goza dos mesmos direitos, faculdades e deveres dos órgãos de polícia
criminal e tem competência para proceder a buscas nas instalações das empresas,
desde que obtenha um despacho da autoridade judiciária competente para a sua
realização;
Y) Por aplicação subsidiária do CPP, ex vi da artigo 19.° da LdC, e do artigo
41.° do RGCO, e porque estas diligências têm lugar na fase de inquérito, a
entidade competente para a emissão dos mandados é o Ministério Público, nos
termos dos artigos 267.° e 2.°, ambos, do CPP.
Z) A invocação dos Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não
colhe, porque não tem aplicação ao caso concreto, e, além disso, porque todos os
princípios consagrados na Carta dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia
dos Direitos do Homem vêm expressamente previstos e sufragados na Constituição
da República Portuguesa;
AA) Não foi apreendida nenhuma correspondência, porquanto os documentos
apreendidos e classificados, pela Recorrente, como correspondência, não violam o
direito ao sigilo da correspondência, consagrado constitucionalmente como
garantia fundamental que encontra sua recriminação, no âmbito penal, no artigo
194.° do CP;
BB) Decorre do normativo supra, que o legislador ordinário ao pretender
acautelar o bem jurídico constitucionalmente garantido — o direito à privacidade
e a garantia da comunicação — veio proibir, antes de mais, a própria “abertura”
de um escrito que “se encontre fechado “, e isto, independentemente, de o seu
conteúdo versar ou não sobre matéria privada, ou mesmo de se tomar ou não
conhecimento desse mesmo conteúdo. Ou seja, é a própria “abertura” que é punida
de ‘per se’.
CC) Não é abrangida pela proibição prevista naquele normativo — e logo não é
considerada violação de correspondência ou intromissão nas telecomunicações —
visualização ou apreensão de encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se
encontre aberto, porque, para efeitos da tutela penal e (não obstante o termo
literal utilizado), o legislador penal distinguiu entre “correspondência” — a
fechada, e respectiva violação e os restantes “objectos” que, para o efeito, não
são correspondência, mas, nomeadamente, documentos, nos termos previstos no
artigo 178.° do CPP;
DD) Tal resulta, aliás, expressamente, do mandado emitido pela entidade
judiciária competente;
EE) Assim, contrariamente ao que alega a Recorrente, no âmbito das diligências
de busca realizadas, não foi feita qualquer apreensão de “correspondência “, com
violação daquelas disposições;
FF) A protecção legal visada pelo artigo 42.° n.° 1 do RGCO, tal como o artigo
179.° do CPP, que foi afastado pela douta sentença “a quo”, por não se aplicar
ao caso concreto, deve-se circunscrever, tal como no artigo 34.° n.° 1 da CRP,
apenas a escritos fechados.
GG) Termos em que não pertencendo a documentação recolhida pelos funcionários da
AdC à área da tutela da incriminação nos termos definidos tanto no direito
contraordenacional como no direito penal e direito processual penal, não
ocorreu, in casu, qualquer violação do artigo 42.°, n.° 1 do RGCO nem do artigo
179.° do CPP: este aliás, como foi defendido na Sentença “a quo”;
HH) O mesmo se dirá quanto à correspondência electrónica, porquanto não existe
no ordenamento jurídico português um regime jurídico específico para a apreensão
de correspondência sob a forma electrónica.
II) Também neste caso, toda a ‘documentação’ apreendida pelos funcionários da
AdC, circunscreveu-se, tão só, a documentos já visualizados pela empresa e que
se encontravam a circular, por conseguinte, abertos, através de sistemas de
correspondência internos, em formato papel ou electrónico, sem que, em qualquer
dos casos, se estivesse perante a ‘intromissão de correspondência’ que
requeresse especial protecção legal;
JJ) Donde carece de fundamento qualquer uma das argumentações da Recorrente
quanto à obtenção ilegal, nula e inconstitucional de todo e qualquer documento,
como a mesma pretende, e que, por razões de defesa, vem invocar como sendo
correspondência;
KK) Não existe, pois, qualquer violação, no sentido proposto pela Recorrente, do
disposto nos artigos 17.° n.°s 1 e 2, da Lei n.° 18/2003; no artigo 42.°, n.° 1,
do RGCO, e ainda, nos artigos 126.°, n.°s 1 e 3, 174.°, 178.°, 179.°, todos do
CPP, bem como dos artigos 32.° n.° 8 e 34.°, n.°s 1, 2, 3 e 4 da CRP, na
delimitação do conceito de correspondência unicamente aos documentos fechados.
LL) Há uma efectiva diferença entre o que se entende por correspondência aberta
e fechada sendo que só a segunda se enquadra dentro da previsão constitucional.
MM) Por fim, não põe em causa a dignidade da pessoa humana, nem consiste numa
intromissão abusiva da vida privada, a apreensão de agendas profissionais e
cadernos de apontamentos de reuniões, que por razões de defesa a recorrente
intitula de cadernos pessoais e agenda pessoal. Não está em causa o domínio
nuclear intocável da personalidade, da dignidade do homem, a sua esfera privada,
ou seja, o problema da (i)licitude de uma ingerência pública no âmbito da
intimidade pessoal ou familiar.
NN) O caderno de apontamentos em causa e a agenda pessoal referidas pela
Recorrente, que se encontravam nas instalações da empresa, não se encontram
abrangidos pelo direito de personalidade constitucionalmente consagrado. Estão,
portanto, fora do âmbito de aplicação dos preceitos constitucionais invocados
que impedem a recolha de provas com violação do direito à reserva da vida
privada.
OO) Não existe, qualquer inconstitucionalidade material uma vez que não está em
causa qualquer prova obtida abusivamente mediante intromissão da vida privada.»
6. A recorrente respondeu às questões prévias suscitadas nas contra-alegações da
AdC, concluindo pela sua improcedência.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
A) Questões prévias
7. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pressuposto deste tipo de recurso — e, portanto, condição da sua admissão neste
Tribunal – é que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada perante o
tribunal a quo antes de este ter esgotado o seu poder jurisdicional para a
apreciar.
A primeira questão a dilucidar há-de ser, pois, a de saber se durante o
processo foi suscitada de modo processualmente adequado uma questão de
constitucionalidade, a propósito de normas (ou de uma interpretação destas).
Ora, quanto à alegada intromissão abusiva na correspondência e nas
telecomunicações, pelo exame dos autos constata-se que, nem na motivação, nem
nas conclusões da impugnação judicial, a recorrente suscitou, perante o tribunal
recorrido, uma questão de inconstitucionalidade de dada interpretação do art.
17.º, n.º 1, al. c), da Lei da Concorrência e do art. 42.º, n.º 1, do Regime
Geral das Contra-Ordenações.
Na verdade, o que aí questionou foi a apreensão, pela Autoridade da
Concorrência, de determinados elementos, na sua sede, pondo essa actuação
directamente em confronto com prescrições legais e constitucionais, que
considera violadas.
Veja-se o que ficou escrito no artigo 86.º da citada impugnação:
«O exame e apreensão deste tipo de documentos – que constituem, inequivocamente,
“correspondência” para efeitos das normas constitucionais e legais aplicáveis –
viola a garantia da inviolabilidade da correspondência e das telecomunicações,
cuja tutela constitucional vai além da proibição (e consequente nulidade) das
provas obtidas mediante intromissão abusiva consagrada no aludido art. 32, n.º
8, da CRP».
E, de modo igualmente revelador, o que consta do art. 111.º:
«Com a apreensão de diversos documentos que constituem correspondência ou que se
enquadram no conceito de “telecomunicações” (como seja o caso de mensagens de
correio electrónico extraídas de computadores pessoais), a AdC violou a
proibição de ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagrada no
n.º 4 do art. 34.º da CRP, violando igualmente o disposto no n.º 1 do art. 42.º
do regime geral das contra-ordenações e coimas».
Em resultado e em coerência com esta linha argumentativa, a conclusão XII
reafirma que “as diligências de busca e apreensão realizadas pela Autoridade da
Concorrência“ violaram estas disposições.
“Durante o processo”, a questão da constitucionalidade relacionada com a
apreensão de correspondência foi, pois, sempre reportada a um acto levado a cabo
pela Autoridade da Concorrência, visando-se a declaração de nulidade da prova
por esse meio obtida e a consequente restituição dos elementos apreendidos
(arts. 120.º a 122.º). Nunca, em momento algum do recurso para o Tribunal do
Comércio de Lisboa, a interpretação agora questionada foi cotejada com os
parâmetros constitucionais invocados — em flagrante contraste, aliás, com a
posição tomada quanto à norma resultante da interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1
e 2, da Lei n.º 18/2003, arguida de configurar uma violação da reserva de juiz
(cfr. os arts. 67.º e 80.º, e a conclusão VII da impugnação judicial).
Um dos preceitos em que repousa a base normativa da interpretação questionada —
o artigo 17.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 18/2003 — nem sequer merece qualquer
menção, a este propósito. E quanto ao outro — o artigo 42.º, n.º 1, do regime
geral das contra-ordenações e coimas – apenas é referido enquanto norma violada
pela actuação da AdC (art. 111.º e conclusão XII).
Todo o esforço argumentativo da recorrente, perante o tribunal a quo, foi
dirigido no sentido de convencer que os elementos apreendidos cabiam no conceito
de correspondência do artigo 34.º, n.º 4, da CRP, pelo que teria sido violada,
pela AdC, a proibição dele constante.
Assim chamado a pronunciar-se, o tribunal avançou para a qualificação dos
documentos em causa, de forma a apreciar se os mesmos estavam ou não abrangidos
pelo âmbito de protecção daquele preceito constitucional, tendo concluído (fls.
583):
«Ora dos documentos objecto de apreensão juntos aos autos e dos elementos
disponíveis nos autos e das próprias alegações da recorrente, constata-se que
não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir ter sido apreendida
correspondência, tendo em conta o conceito supra referido, mas apenas documentos
lidos, disponíveis e “arquivados”, em suporte de papel ou digital».
Ou seja, o que esteve em causa, por força da concreta forma como a recorrente
defendeu o seu ponto de vista, não foi um critério normativo retirado das normas
sindicandas, mas um determinado juízo aplicativo do conceito constitucional de
correspondência, em sede decisória, e tendo em conta as circunstâncias
específicas do caso concreto. Mas a fiscalização da correcção desse juízo
encontra-se fora da esfera de competência deste Tribunal, pois corresponderia a
um reexame do mérito da decisão recorrida.
Como se diz no Acórdão n.º 618/98, reiterando jurisprudência uniforme deste
Tribunal, «impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a
desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do Direito —
concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais — mas à
própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que
enformou tal acto ou decisão».
A recorrente apenas o fez no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal. Mas esta suscitação não se afigura atempada, não podendo suprir a
falta de suscitação da inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo.
Na verdade, só a exigência do cumprimento deste ónus antes da prolação da
decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre a
questão, se compagina com a natureza da competência deste Tribunal, como
instância de recurso.
De resto, mesmo nas alegações de recurso, a recorrente não se desprende
inteiramente da posição adoptada na impugnação judicial, pois, ao mesmo tempo
que invoca a inconstitucionalidade da interpretação, que imputa ao tribunal
recorrido, das normas questionadas, continua a referir a violação da proibição
consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP pela apreensão dos documentos (cfr, a
pág. 41 das alegações, a fls. 635 do processo).
Pelo que se conclui que esta questão de constitucionalidade não foi suscitada no
decurso do processo, perante o tribunal a quo.
8. Também quanto à apreensão de diversas páginas extraídas de cadernos de
apontamentos pessoais e da agenda pessoal do director de uma unidade da
recorrente A., é a este acto que se imputa a afectação dos direitos fundamentais
do referido funcionário, por configurar uma “abusiva intromissão na vida
privada, pelo que se requer a declaração da sua nulidade como meio de prova e a
sua restituição” (arts. 124.º a 129.º e conclusão XV da impugnação).
Contrariamente ao que diz no ponto 24 do requerimento de interposição de recurso
para este Tribunal, em momento algum daquela peça processual se identifica uma
determinada norma ou interpretação normativa que tenha servido de fundamento à
decisão recorrida e cuja constitucionalidade se questione.
Em conformidade com o pedido, o tribunal a quo não apreciou a questão da
constitucionalidade da norma do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, norma que, aliás, nunca
refere, a este propósito. Tudo o que faz, para rejeitar o pedido, é caracterizar
o conteúdo dos elementos apreendidos como “dados comerciais”, para concluir não
ter sido afectada a intimidade privada e familiar do referido director.
Pode pois, concluir-se que, também quanto a esta questão, não foi devidamente
cumprido o ónus de suscitação adequada perante o tribunal recorrido, pelo que
dela não pode conhecer este Tribunal.
Em face do exposto, apenas se conhecerá da primeira questão de
constitucionalidade objecto do presente recurso, atinente às normas do artigo
17.°, n.°s 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.°
18/2003, de 11 de Junho, interpretadas no sentido de conferirem competência ao
Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicilio profissional de
pessoas colectivas.
B) Do mérito do recurso
9. Vem alegado que as normas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º
18/2003, interpretadas no sentido de conferirem competência ao Ministério
Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas
colectivas, ofendem o princípio da reserva de juiz.
A alegação põe em confronto directo o disposto no n.º 2 daquele preceito com o
direito à inviolabilidade do domicílio (artigo 34.º, n.º 1, da CRP) e as
condições legitimantes da sua restrição, fixadas no n.º 2 do mesmo artigo. Na
verdade, a norma questionada faz depender a realização das diligências previstas
na alínea c) do n.º 1 do artigo 17.º de “despacho da autoridade judiciária” que
as autorize, ao passo que, nos termos constitucionais, “a entrada no domicílio
dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial
competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei” (artigo 34.º, n.º
2).
A apreciação do eventual desrespeito desta disposição requer, como questão
prévia, a definição rigorosa do objecto da inviolabilidade do domicílio. O que
deve entender-se, para este efeito, por domicílio?
Não é fácil a resposta, até porque o conceito técnico de domicílio, compreendido
como a “residência habitual” (artigo 80.º do Código Civil), é aqui imprestável,
por demasiado restritivo, atentos o sentido e a função da tutela constitucional.
Seguro é apenas que, no âmbito do artigo 34.º da CRP, o conceito vem dotado de
maior amplitude, abarcando, sem margem para dúvidas, qualquer local de
habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em
instalações móveis. Mas já não é consensual a extensão da protecção ao domicílio
profissional (em sentido afirmativo, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição
Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 540; contra, PAULO PINTO DE
ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, 478-479).
Mas, quando se extravasa da esfera domiciliária das pessoas físicas, entrando no
campo de actividade das pessoas colectivas, afigura-se que saímos também para
fora do âmbito normativo de protecção da norma constitucional, pois decai a sua
razão de ser.
Como expressam os primeiros Autores a que fizemos referência (ob. cit., 541):
«Já quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às respectivas
instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra devassas externas
não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja justificação não
compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção do direito de
propriedade e de outros direitos que possam ser afectados, como a liberdade de
empresa, no caso das empresas (…).»
Essa conclusão decorre do substrato e das conexões valorativas do direito à
inviolabilidade do domicílio, «ainda um direito à liberdade da pessoa pois está
relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência, com o
direito à inviolabilidade pessoal, (esfera privada espacial, previsto no art.
26.º), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa (…)».
O bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe
vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da
esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa,
onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o
seu mais autêntico modo de ser e de agir.
Dando conta desta identificação do domínio protegido com a esfera da intimidade
do ente humano, afirmou-se no Acórdão n.º 67/97:
«Parece incontroverso que o conceito constitucional de domicílio deve ser
dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da
pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar – como
tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR – assim acautelando
um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio
titular do direito.»
Não se ignora que, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas
colectivas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que compatíveis
com a sua natureza. E não custa reconhecer que o direito à privacidade não é
incompatível, em absoluto, com a natureza própria das pessoas colectivas, pelo
que a titularidade desse direito não lhes pode, a priori, e em todas dimensões,
ser negada.
Mas, como acentua JORGE MIRANDA, reportando-se, em geral, à titularidade
“colectiva” de direitos fundamentais, “daí não se segue que a sua aplicabilidade
nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude
com que decorre relativamente às pessoas singulares” (JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa anotada, I, Coimbra, 2005, 113). É esta uma
orientação firme, tanto da doutrina (cfr., também, GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, ob. cit., 331, e VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2007, 126-127), como da
jurisprudência (cfr. os Acórdãos n.ºs 198/85 e 24/98).
A susceptibilidade, em princípio, de extensão da tutela da privacidade às
pessoas colectivas, não implica, pois, que ela actue, nesse campo, em igual
medida e com a mesma extensão com que se afirma na esfera da titularidade
individual. Dessa tutela estarão excluídas, forçosamente, as dimensões nucleares
da intimidade privada, que pressupõem a personalidade física.
É o que acontece com a inviolabilidade do domicílio, uma manifestação particular
e qualificada da tutela da intimidade da vida privada, dirigida, como vimos, à
realização da personalidade individual e ao resguardo da dignidade da pessoa
humana.
E, não estando em causa uma invasão do domicílio, a autorização prévia do
Ministério Público para as buscas é o bastante para excluir, sem margem para
dúvidas, estarmos perante uma “abusiva intromissão na vida privada” (cfr., nesse
sentido, o Acórdão n.º 192/2001, citando o Acórdão n.º 7/87).
É neste ponto, na exigência de despacho da autoridade judiciária autorizativo da
realização das diligências de busca “nas instalações das empresas”, que a lei da
concorrência se afasta decisivamente da lei francesa, em relação à qual foi
proferido, em 16 de Abril de 2002, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, no Affaire Colas, invocado pela recorrente em defesa da sua tese.
Como resulta da transcrição, no ponto 22, da legislação aplicável ao caso, os
agentes da direcção geral do comércio interior e dos preços tinham “livre acesso
às instalações que não constituam a habitação do comerciante”, sem qualquer
controlo de uma entidade judiciária independente. Em face desses dados
normativos, o tribunal concluiu que a legislação e a prática francesas não
ofereciam “garantias adequadas e suficientes contra os abusos” (ponto 48), como
o exigia a tutela do domicílio, consagrada no artigo 8.º da CEDH.
Não é essa, como se viu, a situação normativa vigente entre nós, em que a
salvaguarda da privacidade das pessoas colectivas está acautelada, na justa
medida, pela necessidade de autorização do Ministério Público, entidade a quem
cabe, nos termos constitucionais, “defender a legalidade democrática” (artigo
219.º, n.º 1, da CRP).
Pode, pois, concluir-se que a interpretação normativa questionada não viola o
disposto nos artigos 34.º, nºs 1, 2, 3 e 4, e 32.º, n.º 8, da CRP.
Termos em que se nega, nesta parte, provimento ao recurso.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a)- Não conhecer do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta
da interpretação do artigo 17.°, n.° 1, alínea c), do regime jurídico da
concorrência, aprovado pela Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.°,
n.° 1 do regime geral das contra-ordenações e coimas, aprovado pelo DL n.°
433/82, de 27 de Outubro, no sentido de que a correspondência aberta
(circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados em
computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em
processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.°, n.° 8, e 34.°, n.°
4, ambos da CRP;
b)- Não conhecer do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta da
interpretação do artigo 17.°, n.°s 1 e 2, do mesmo diploma, no sentido de que
páginas extraídas de cadernos de apontamentos pessoais e de agenda pessoal podem
ser apreendidas e utilizadas como meio de prova em processo contra-ordenacional,
por violação dos artigos 26.°, n.° 1, e 32.°, n.° 8, da CRP;
c)- Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo
17.º, n.ºs 1 e 2, da citada Lei n.º 18/2003, no sentido de conferir competência
ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de
pessoas colectivas;
d)- Em consequência, negar, nesta parte, provimento ao recurso, em conformidade
com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos