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Processo n.º 724/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Comércio de Lisboa, em que figura
como recorrente o Ministério Público e como recorrido A. e outra, foi proferida
decisão que recusou aplicação ao disposto no artigo 189°, n°2, al. b), do Código
da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com base na sua
inconstitucionalidade e expressa adesão aos fundamentos do acórdão n.º 564/2007
do Tribunal Constitucional. Desta decisão vem interposto pelo Ministério
Público, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70º da LTC, o presente
recurso obrigatório, para apreciação da constitucionalidade do artigo 189°, n°2,
al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
2. Já neste Tribunal foi o Ministério Público notificado para alegar, o que fez,
tendo concluído da seguinte forma:
“É inconstitucional, por violação desproporcionada ao artigo 26º da
Constituição, na parte em que consagra o direito à capacidade civil, a norma
constante do artigo 189°, n°2, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação
de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, ao impor ao juiz,
na sentença que qualifique a sentença como culposa, que decrete a inabilitação
do administrador da sociedade comercial declarada insolvente”
3. Notificados para, querendo, contra-alegarem, os recorridos nada disseram.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
4. A questão de constitucionalidade que vem colocada não é nova na
jurisprudência do tribunal que teve ocasião de sobre ela se pronunciar no
Acórdão nº 564/2007 (disponível na página Internet do Tribunal em
www.tribunalconstitucional.pt), tendo concluído pela inconstitucionalidade da
norma que agora, mais uma vez, vem questionada. Naquele aresto pode ler-se,
designadamente, o seguinte:
“[...] Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como
decorrência imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre,
tanto a capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo
que, contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas
duas variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. [...]
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
[...]
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República. [...]”
5. É esta jurisprudência que, por manter inteira validade, agora se reitera.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Sem custas, por a elas não haver lugar.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos