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Processo n.º 115/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por sentença do juiz do 1º Juízo Criminal da Comarca do Porto (a fls. 898 e
seguintes), decidiu-se condenar A. como autor material de um crime de abuso de
confiança em relação à Segurança Social, na pena de 210 dias de multa, à taxa
diária de € 50, e, bem assim, suspender a execução da pena de multa pelo período
de 3 anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social do montante ainda em
dívida e respectivos acréscimos legais, num prazo de 2 anos.
O Ministério Público recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto
(a fls. 918), sustentando, na motivação respectiva (a fls. 919 e seguintes), que
ao determinar a suspensão da pena de multa o juiz a quo violara o artigo 11º do
Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, bem como o artigo 50º, n.º 1, do
Código Penal.
Posteriormente, e por requerimento de fls. 943 e seguintes, veio A. requerer,
junto do Tribunal da Relação do Porto, que se declarasse extinto o procedimento
criminal, atendendo a que a redacção do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das
Infracções Tributárias (RGIT) havia sido alterada, tendo o tipo legal do crime
de abuso de confiança contra a Segurança Social passado a incluir, como novo
elemento, o não pagamento das contribuições comunicadas através das competentes
declarações, juros respectivos e valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias
após notificação para o efeito.
O Ministério Público emitiu o parecer de fls. 950 e seguintes, no qual sustentou
nomeadamente que a alteração legislativa a que o arguido fizera referência no
precedente requerimento introduziu mais uma condição objectiva de
procedibilidade ou punibilidade, por isso se devendo suspender o recurso que
havia interposto (fls. 918 e seguintes) e ordenar a notificação do arguido para
o efeito do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT,
aguardando-se, no decurso do prazo estipulado, que o arguido eventualmente
satisfizesse a nova condição de punibilidade ali cominada.
Foi, então, proferido pelo relator o despacho de fls. 954, ordenando a
notificação dos arguidos para, em 30 dias, procederem ao pagamento previsto no
artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT.
A. arguiu, a fls. 963 e seguinte, a nulidade ou irregularidade deste despacho,
por falta de fundamentação.
A arguição de nulidade foi julgada improcedente, por despacho de fls. 967.
Notificado para o efeito, A. respondeu ao mencionado parecer do Ministério
Público (o de fls. 950 e seguintes), para o que agora releva nos seguintes
termos (fls. 973 e seguintes):
“[…]
19. É, pois, inconstitucional, por violação do princípio constitucional da não
retroactividade da penalização (art. 29.°, n.° 1, da CRP), a norma, que se
extraia da interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4
do art. 105º e dos n.ºs 1 e 2 do art. 107.° do RGIT e do n.° 4 do artigo 2.° do
Código Penal, segundo a qual não foi descriminalizada (continuando a constituir
crime) a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social por sujeito
passivo que cumpriu as suas obrigações declarativas e que (ainda) não foi
notificado nos termos do disposto na alínea b) do n.° 4 do referido artigo 105º
do RGIT.
20. Do mesmo modo, é inconstitucional, por violação do princípio constitucional
da não retroactividade da penalização (art. 29.°, n.° 1, da CRP), a norma que se
extraía da interpretação da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do art.
105.° do RGIT, conjugada com as normas do artigo 107.° do mesmo RGIT, segundo a
qual é criminalmente punível, constituindo crime, a não entrega das
contribuições devidas à Segurança Social por sujeito tributário passivo que
cumpriu a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.° 4 mas
não foi notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea.
[…]
27. […] mesmo que o novo pressuposto consagrado na alínea b) do n.° 4 do artigo
105.º do RGIT seja julgado uma condição objectiva de punibilidade, dos
princípios constitucionais do acusatório e da plenitude das garantias de defesa
dos arguidos decorre que o tribunal do julgamento ou de recurso não pode agir
nem como uma entidade que acuse nem como — o que seria ainda mais grave — uma
entidade que crie as condições para que venha a ocorrer (no plano da realidade
da vida), um facto sem o qual o Arguido não poderia ser criminalmente punido.
[…]
34. Face ao que antecede, tendo em conta os mais elementares princípios
enformadores do processo penal e, em bom rigor, do Estado de Direito, afigura-se
intolerável que seja o tribunal de recurso (ou o do julgamento) a providenciar
pela notificação a que alude a alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT, uma
vez que assim está claramente a agir como órgão acusador ou, mesmo,
pré-acusador.
35. O que também configuraria claramente uma violação dos princípios da
separação de poderes (art. 2.° da CRP), da independência dos tribunais {art.
203.° da CRP) e da titularidade do exercício da acção penal pelo Ministério
Público (art. 219°, n.° 1, da CRP e 48.° do CPP).
36. A única solução consentânea com os referidos princípios constitucionais é a
do arquivamento dos autos ou a da absolvição do arguidos, sem prejuízo de
eventual reabertura por impulso do Ministério Público ou do Instituto do
Segurança Social caso este venha a decidir realizar a referida notificação e o
Arguido não proceda aos pagamentos legalmente previstos.
37. É, assim, inconstitucional designadamente por violação dos princípios do
acusatório (art. 32°, n.° 5, do CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32º n.° 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203º da CRP) a norma que se retire da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos artigos 105°, n.°s 1
e 4, e 107°, n.ºs 1 e 2, do RGIT, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo acusado, pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado)
pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social deu
cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a
contribuição para a Segurança Social acrescida dos juros respectivos e do valor
da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado ou pronunciado), compete
ao tribunal de recurso providenciar pela realização de tal notificação.
38. É, igualmente, inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais
do acusatório (art. 32°, n.° 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa
dos arguidos (art.32.°, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da
CRP) e da independência dos tribunais (art. 203.° da CRP) a norma que se retire
da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105°, n.° 1
e 4, e do artigo 101°, n.ºs 1 e 2, do RGIT e do artigo 2°, n.° 4, do Código
Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo acusado,
pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança contra a Segurança Social deu cumprimento às suas obrigações
declarativas e não foi notificado para pagar as contribuições para a Segurança
Social, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável (disso não
tendo sido sequer acusado ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado ou
o arguido absolvido.
[…].”
A fls. 986 e seguintes, veio ainda A. requerer, ao abrigo do disposto no artigo
700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que sobre a matéria do já referido
despacho de fls. 954 recaísse acórdão, suscitando as inconstitucionalidades que
já havia invocado na transcrita resposta ao parecer do Ministério Público.
Por despacho do relator (a fls. 1000) foi determinado que a decisão da
reclamação seria tomada aquando da decisão do recurso. Foi ainda determinada a
notificação deste despacho ao reclamante.
Por acórdão de fls. 1012 e seguintes, o Tribunal da Relação do Porto julgou
improcedente a reclamação do arguido e procedente o recurso do Ministério
Público, revogando, em consequência, a sentença, na parte em que decidiu no
sentido da suspensão da execução das penas de multa, que deixou de ser
subsistente.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“[…]
2. Fundamentação
O objecto da reclamação prende-se com a notificação, determinada pelo relator, a
que alude o art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Jurídico das Infracções
Tributárias.
O objecto do recurso, por sua vez, é parametrizado pelas conclusões (resumo das
razões do pedido) formuladas quando termina a motivação (…)
Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação na
reclamação e que é a seguinte:
Deve a notificação a que alude o art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Jurídico
das Infracções Tributárias, ser determinada pelo relator?
E a questão que se perfila para conhecimento, no recurso, é a que segue:
A pena de suspensão da execução das penas de multa cominada aos arguidos, é
admissível, face ao disposto no art. 11.º, n.º 6, do Regime Jurídico das
Infracções Fiscais não Aduaneiras?
(…)
Atentemos, em primeiro lugar, na reclamação.
Eis a respectiva questão: deve a notificação a que alude o art. 105º, n.º 4, al.
b), do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, ser determinada pelo relator?
O art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, é do
seguinte teor (a da redacção dada pelo art. 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de
Dezembro):
«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação
comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não
for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no
prazo de 30 dias após notificação para o efeito».
Anote-se, em primeiro lugar, que os mencionados factos anteriores são, em breves
termos (para o que presentemente releva), os que integram o tipo objectivo do
crime de abuso de confiança, isto é, os seguintes: não entrega (total ou
parcial) à administração tributária de prestação tributária deduzida nos termos
da lei e que estava legalmente obrigado à entrega (art. 105º, n.º 1, do Regime
Geral das Infracções Tributárias).
E, em segundo lugar, o art. 107º do Regime Jurídico das Infracções Tributárias,
que contempla, no seu n.º 1, o tipo objectivo do crime de abuso de confiança
contra a segurança social, consagra, no seu n.º 2, uma precisa remissão: para o
disposto no n.º 4 do art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Sendo aquela a norma que se destaca, procedamos à respectiva interpretação.
[…] no caso, a letra da lei, em termos de interpretação, não permite qualquer
hesitação, pois somente um sentido possibilita, qual seja o de que a concreta
punibilidade (daqueles factos previstos no art. 105º, n.º 1, do Regime Geral das
Infracções Tributárias) somente tem lugar quando o obrigado não efectuar o
pagamento da prestação referida na declaração que veio a ser apresentada à
administração fiscal, com específicos acréscimos, para o que dispõe do prazo de
30 dias, contados da notificação que, para o efeito, lhe é feita.
Dito isto, não podemos deixar de dizer, mais, em termos técnico-jurídicos, e em
perfeita coerência: que essa norma consagra uma circunstância com incidência na
punibilidade, enfim, um pressuposto de punibilidade, que corresponde, na acepção
tradicional, a uma causa de exclusão da punição, que, por isso, deve ser
ponderado nos termos do art. 2º, n.º 4, do C. Penal […]
Neste enquadramento, a notificação em destaque impunha-se, com naturalidade,
razoabilidade, ponderação, senso, coerência, inteligência, enfim, em rigorosa
obediência à lei; se assim não fosse, cair-se-ia na tese que o identificado
arguido defendeu e que acarretaria um inaceitável privilégio, pois beneficiaria
da norma que ora nos ocupa sem que, absolutamente, não cumprisse o ditame da
mesma, o ónus que sobre si impendia para obter o benefício da não punibilidade
(a final, da não punição), já que não efectuou o pagamento inerente e não queria
(mero voluntarismo) que fosse, sequer, notificado para o efeito.
Convenhamos que não percebemos o identificado arguido, a não ser que se julgue
titular de direitos, pura e simplesmente, mesmo daqueles que, legalmente,
dependiam do cumprimento de uma obrigação sua, mas sem que este tivesse de
ocorrer; ao cabo e ao resto, a norma favoreceu-o com uma condição de não
punibilidade que devia preencher, mas ousou arrogar-se (com arrogância) merecer
esse favorável tratamento sem que preenchesse essa condição.
Se fosse como o arguido quer, estaria consagrado um autêntico absurdo,
irracionalidade incomensurável, a afirmação de que o legislador padeceria de
ingenuidade primária quando criou aquela precisa norma, que levaria ao mais
inacreditável resultado: a ilibação de um arguido que, nas circunstâncias
legalmente valiosas, não cumpriu.
E o que se diria perante aqueles que, entendendo a valia dos direitos, tal como
a lei os configurava, cumpriram?
Mas o mais curioso é que a tese do arguido ia determinar, numa outra
perspectiva, o mais absurdo (e, por isso, jamais por nós subscrito) dos
resultados, tendo presente a dita norma: não sendo (não querendo ser, mais
rigorosamente) notificado, não se lhe podia aplicar o benefício contido nessa
mesma norma (para mais quando nem sequer ousou pagar o que era devido) …
Assim, essa indispensável notificação, para o efeito que importava, podia ser
determinada pelo tribunal de recurso (se a lei não fixava a quem cumpria ordenar
essa notificação, claramente que a mesma podia, não se perfilando qualquer
obstáculo - que não se perfila, pelo que se vai dizer adiante -, ser ordenada
pelo tribunal onde o processo se encontrava quando ela entrou em vigor; face ao
caso prevenido no art. 105º, n.º 6, do Regime Geral das Infracções Tributárias,
em que essa incumbência foi deferida à administração tributária, sempre, face ao
seu não cumprimento, podia o tribunal determinar a atinente notificação - v.
Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos
IDEFF, n.º 5, 2ª edição, pág. 180, nota 533), pois se houvesse o cumprimento
mencionado naquela norma tirar-se-iam, imediatamente, as necessárias
consequências: a não punição, com o concreto recurso a ver o seu conhecimento
prejudicado; no caso de o referido cumprimento não ocorrer (que, segundo a
experiência nos ensina, é resultado esmagador …), pois não havia que sustentar a
não punição e conhecer o mesmo recurso.
Tudo, portanto, na mais rigorosa obediência ao princípio da economia processual.
E, de acordo com o que fomos dizendo, não vemos como abordar, sequer, o rol das
inconstitucionalidades que o referido arguido veio invocar, pois,
definitivamente, elas são, no presente caso, mera retórica, e, a ela somente se
podia responder com retórica. O que, para lá de inútil, é ocioso.
Na verdade, onde se encontra a violação dos arts. 2º, 29º, n.º 1, 32º, n.ºs 1 e
5, 203º, 219º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, quando o
que está em causa é uma norma que condiciona a punição e que, assim sendo,
consagra um regime que, por ser mais favorável ao arguido (permite, cumprindo
uma determinada obrigação, a sua não punição), tinha, imperiosamente, de ser
cumprida, sob pena de violação, desde logo, do art. 29º, n.º 4, da Constituição
da República Portuguesa?
Uma nota final: como é evidente, não houve, no tempo devido, por parte daquele
arguido (nem, já agora, da arguida), o pagamento a que alude o art. 105º, n.º 4,
al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que faz com que a punição
sofrida por aquele (e por esta) não possa ser, nos termos desta norma, afastada.
Pelo exposto, impõe-se, com clareza, a conclusão: a reclamação improcede.
Apreciemos, agora, o recurso.
[…] impõe-se a conclusão: a suspensão da execução das penas não pode subsistir.
O recurso merece provimento.
3. Dispositivo
Improcede a reclamação.
Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença na parte
que decidiu no sentido da suspensão da execução das penas de multa, que deixa de
ser subsistente.
[…].”
Notificado deste acórdão, A. dele veio interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 1040 e seguintes):
“ […]
1. Com o presente recurso pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional
aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) A norma extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão
dos n°s 1 e 4 do art. 105.° do RGIT, do artigo 107.° do RGIT e do n.° 4 do
artigo 2.° do Código Penal, segundo a qual não foi descriminalizada (continuando
a constituir crime) a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social
por sujeito passivo que cumpriu as suas obrigações declarativas e que não fora
notificado nos termos do disposto na alínea b) do n.° 4 do referido artigo 105º
do RGIT quando tal questão foi suscitada em sede de recurso;
b) A norma que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual
versão do artigo 105°, n.° 1 e 4, do RGIT e do artigo 107.° do mesmo RGIT,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo condenado (sem
trânsito em julgado) pela prática do crime da abuso de confiança contra a
Segurança Social deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi
notificado para pagar as contribuições devidas à Segurança Social, acrescida dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer
acusado ou pronunciado), compete ao tribunal de recurso providenciar pela
realização de tal notificação;
c) A norma que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual
versão do artigo 105.°, n.° 1 e 4, do RGIT, do artigo 107.° do mesmo RGIT e do
artigo 2.°, n.° 4, do Código Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não
foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado
ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado ou o arguido absolvido.
2. As normas referidas na alínea a) supra violam o princípio constitucional da
não retroactividade da penalização (art. 29°, n.° 1, da CRP).
3. As normas mencionadas nas alíneas b) e c) supra violam os princípios do
acusatório (art. 32.°, n.° 5, da CRP). da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.°, n.° 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.° da CRP).
4. A questão da inconstitucionalidade das referidas normas foi suscitada pelo
ora Recorrente no requerimento que apresentou, em 06.06.2007, ao abrigo do
disposto no artigo 700°, n.° 3, do C.P.C., ex vi artigo 4.° do C.P.P.
[…].”
O recurso de constitucionalidade foi admitido, por despacho de fls. 1043.
Por decisão sumária (fls. 1055 a 1070) proferida ao abrigo do disposto no
artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não se tomou
conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Da decisão sumária reclamou o recorrente para a conferência, ao abrigo do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 1075 a
1077).
Por acórdão da conferência (Acórdão n.º 275/2008, a fls. 1084 a 1102) decidiu-se
indeferir a reclamação, quanto ao conhecimento das questões suscitadas nas
alíneas a) e c) do requerimento de interposição de recurso, deferi-la, quanto ao
conhecimento da questão suscitada na alínea b) do requerimento de interposição
de recurso e, bem assim, ordenar que o processo prosseguisse mediante
notificação das partes para alegações. É a seguinte a fundamentação do acórdão
da conferência:
“Numa primeira análise, poderia entender-se – tal como se ponderou na decisão
sumária agora reclamada – que o recurso interposto pelo recorrente é prematuro,
porque no acórdão que constitui objecto do presente recurso apenas se ter
decidido a questão da competência do relator, para proceder à notificação
prevista no artigo 105º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias
(RGIT).
Na verdade, na decisão recorrida enuncia-se expressamente como única questão a
resolver, no âmbito da “reclamação” apresentada pelo arguido, a da competência
do relator para determinar a notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4,
alínea b), do RGIT.
Contudo, percorrendo o texto da decisão recorrida, constata-se que esta para
além de decidir que aquela notificação “podia ser determinada pelo tribunal de
recurso” estatui, em nota final, que “não houve, no tempo devido, por parte
daquele arguido (nem, já agora, da arguida), o pagamento a que alude o art.
105º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que faz com
que a punição sofrida por aquele (e por esta) não possa ser, nos termos desta
norma, afastada.”
Ou seja, decide-se não só que o relator é competente para determinar a
notificação a que alude a alínea d) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das
Infracções Tributárias, mas também que a punição sofrida pelo arguido, ora
reclamante, não pode ser afastada, por este não ter efectuado, no tempo devido,
o pagamento a que alude essa mesma norma.
O acórdão recorrido decide assim, em definitivo, as consequências a extrair do
resultado daquela notificação.
A reclamação é, pois, de acolher.
Verifica-se, no entanto, que na decisão sumária reclamada foi invocado um outro
fundamento para o não conhecimento das questões constantes das alíneas a) e c)
do requerimento de interposição do recurso, o qual o reclamante não atacou na
reclamação em apreço.
Subsiste, pois, um obstáculo ao conhecimento destes pedidos – estes extravasam a
competência do Tribunal Constitucional, definida nas várias alíneas do n.º 1, do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional”.
Notificado para produzir alegações, veio o recorrente A. dizer o seguinte (fls.
1110 e seguintes):
“[…]
1. Do objecto do recurso
1. Salvo melhor entendimento, a questão principal a apreciar e decidir no
presente recurso é a de saber se a norma que esteve na base da douta decisão
recorrida e segundo a qual o Tribunal de Recurso deve providenciar pela
realização da notificação prevista na alínea b), do n.° 4 do artigo 105.º do
RGIT é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do
acusatório, da plenitude de garantias de defesa dos arguidos, da separação de
poderes e da independência dos tribunais, consagrados nos artigos 2°, 32°, n.°s
1 e 5, e 203º da CRP.
II. Dos fundamentos do recurso
2. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do princípio do
acusatório, “A “densificação” semântica da estrutura acusatória (n.° 5, 1.ª
parte) faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do
processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes).
Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução,
acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz
de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos
e órgão acusador.’ (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª Ed. Rev.
Amp., 1.º Vol, pág. 217)
3. Ora, ao entender que a notificação dos arguidos, determinada por despacho do
Exmo. Senhor Relator, ‘para, em 30 dias, proceder ao pagamento previsto no art.
105.°, n.° 4, al. b), do RGIT”, podia e devia ser ordenada e efectuada na fase
de recurso, o douto Acórdão recorrido violou, salvo melhor entendimento, quer a
dimensão material quer a dimensão orgânico-subjectiva, da estrutura acusatória
que o artigo 32.°, n.° 5, da CRP prevê expressamente para o processo criminal.
4. Violou a dimensão material porque, por força da absoluta distinção que tem de
existir entre as fases de acusação e de julgamento, em função das finalidades
específicas de cada uma, os elementos do tipo e os pressupostos materiais de
punição (isto é, os factos da vida ou eventos empíricos de que depende o
aplicação de uma pena entre as quais se incluem as condições objectivas de
punibilidade) hão-de estar todos preenchidos na fase de acusação e descritos no
libelo acusatório.
5. Como refere Germano Marques da Silva, “Pela acusação se define e fixa o
objecto do processo — o objecto do julgamento — e, portanto, passível de
condenação é tão só o acusado relativamente aos factos constantes da acusação”
(Curso de Processo Penal I, 4.ª Ed. Rev. e Act., 2000, pág. 62) (…).
6. O que se compreende, uma vez que só assim se pode evitar a sujeição do
arguido a imprevisíveis novas imputações e só assim lhe podem ser asseguradas
todas as garantias de defesa legalmente previstas para as fases posteriores à
dedução da acusação, incluindo as do julgamento e as do recurso, de harmonia com
o preceituado no n.° 1 do artigo 32.° da CRP.
7. Ora, no coso dos autos, o facto previsto no artigo 105°, n.° 4, alínea b), do
RGIT (omissão de pagamento após notificação para a sua realização no prazo de 30
dias) não se tinha verificado aquando da dedução da acusação e da prolação do
despacho de pronúncia e, consequentemente, neles não estava descrito.
8. No entanto, como se trata claramente de um facto empírico da vida de que
depende a punição (a expressão “só são puníveis se” não deixa dúvidas a esse
respeito), mesmo que se entenda, como resulta do douto Acórdão recorrido, que se
trata de um mero pressuposto material ou condição objectiva de punibilidade, era
absolutamente necessário que o mesmo estivesse descrito na acusação.
9. Com efeito, as condições objectivas de punibilidade participam de todas as
garantias do Estado de Direito impostas aos elementos do tipo (Cfr. Jescheck,
Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2.° volume, Bosch, Casa Editorial, pág.
769).
10. Também elas estão sujeitas ao princípio da legalidade, cujo conteúdo
essencial se traduz em não poder haver crime, nem pena que não resultem de lei
prévia, escrita, estrita e certa (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte
Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 165).
11. Por essa razão, as condições objectivas de punibilidade devem também estar
sujeitas às mesmas regras de produção de prova que os elementos do tipo (Cfr.
Jescheck, Ob. Cit.).
12. Portanto, afigura-se manifesto que, mesmo que se entenda que se trata de uma
mera condição objectiva de punibilidade, a realização da notificação prevista no
artigo 105.°, n.° 4, alínea b), do RGIT e a não realização do respectivo
pagamento têm de ter ocorrido antes da dedução da acusação e ser nela descritas
para que sejam asseguradas aos arguidos todas as suas garantias de defesa,
designadamente a possibilidade de ser apreciada em sede de instrução e
julgamento a verificação, ou não, desse pressuposto de punição, a sua natureza,
a perfeição, ou não, da notificação efectuada e a contagem do prazo.
13. Mais: deve ser assegurada a faculdade de recorrer da decisão que seja
proferida em primeira instância, de harmonia com o princípio da plenitude das
garantias de defesa, entre as quais se inclui a do duplo grau de jurisdição.
14. Ao fazer-se na fase de recurso e pelo Tribunal de Recurso, por determinação
do Exmo. Senhor Relator, a notificação a que alude a alínea b) do n.° 4 do
artigo 105.° do RGIT praticou-se um acto que, num processo criminal estruturado
segundo o princípio do acusatório, só poderia ser praticado noutra fase
processual (a prévia à dedução da acusação) que tem de estar, clara e
inequivocamente, separada das fases de julgamento e de recurso.
15. Assim, salvo melhor entendimento, ao entender que a verificação do não
pagamento previsto na alínea b) do n.° 4 do artigo 105.º do RGIT podia ser feita
em sede de recurso após notificação para pagamento realizado pelo próprio
Tribunal de recurso, o douto Tribunal “a quo” violou frontalmente o princípio do
acusatório (art. 32.°, n.° 5, da CRP, na sua dimensão material, bem como o
princípio da plenitude das garantias de defesa, incluindo o recurso (art. 32.°,
n.° 1, da CRP).
16. Acresce que, como se disse, para além de violar a estrutura acusatória na
sua “dimensão material”, a norma impugnada desrespeita também essa estrutura na
sua dimensão “orgânico-subjectiva’.
17. Com efeito, como refere Germano Marques da Silva, “O juiz tem de ser
imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por
isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente,
provocando a acusação pelo MP ou definindo-lhe os termos. A diferenciação entre
o órgão que dá a acusação e o órgão que a vai julgar há-de ser uma diferenciação
material e não simplesmente formal.” (ibidem)
18. “A jurisdição não intervém oficiosamente (nemo iudex sine actore) nem pode
alargar o seu poder de julgar a pessoas e factos distintos daqueles que são
objecto da acusação (sententia debet esse conformis libello).” (ibidem, pág. 76)
19. “O princípio da acusação limita, como referimos, o objecto da decisão
jurisdicional e essa limitação é considerada uma garantia da imparcialidade e de
defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de
julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade”
pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na
medida em que a partir da acusação sabe de que é que tem de se defender, não
podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos
factos para os quais não estruturou a defesa.” (ibidem, pág. 76) (…)
20. No mesmo sentido escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, salientando
que o princípio do acusatório é “uma garantia essencial do julgamento
independente e imparcial”, pelo que “só se pode ser julgado por um crime
precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador,
sendo a acusação condição e limite do julgamento.” (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª Ed. Revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 206) (…)
21. Ora, no caso dos presentes autos, o douto Tribunal recorrido, através do
Relator, ordenou a realização da notificação dos arguidos “para, em 30 dias,
proceder ao pagamento previsto no art. 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT”,
notificação que foi feita pela própria Secretaria do venerando Tribunal da
Relação do Porto.
22. Ao fazê-lo provocou uma omissão (não pagamento das importâncias devidas no
prazo de 30 dias) sem a qual os arguidos não poderiam ser punidos.
23. Deste modo, deu causa à ocorrência das condições objectivas (exteriores à
marcha do processo, uma vez que não se tratam de condições de procedibilidade)
sem as quais os arguidos não poderiam ser punidos.
24. Ora, salvo melhor entendimento, as exigências de imparcialidade que resultam
do princípio do acusatório, mas também dos princípios da separação de poderes
(art. 2.° da CRP) e da independência dos tribunais (art. 203.° da CRP), obstavam
a que o Tribunal recorrido providenciasse pela realização da aludida
notificação, atendendo aliás à natureza eminentemente tributária das prestações
nela referidas, procurando sanar desse modo uma insuficiência da acusação.
25. Ao fazê-lo, o douto Tribunal “a quo” acabou por desempenhar uma função que,
no caso e salvo melhor opinião, só deveria caber ao Instituto da Segurança
Social.
26. Aliás, a grande maioria das decisões proferidas em casos semelhantes pelos
tribunais que entendem que não se operou qualquer descriminalização com a
entrada em vigor da Lei n.° 53-A/2006, de 29 de Dezembro determina que a
notificação a que alude o artigo 105°, n.° 4, alínea b), do RGIT seja efectuada
pela Administração Tributária (ou o Instituto da Segurança Social, no caso do
crime de abuso de confiança contra a Segurança Social).
27. Face a tudo quanto antecede, tendo em conta os referidos princípios
enformadores do processo penal e, em bom rigor, do Estado de Direito
democrático, afigura-se inconstitucional que seja o tribunal de recurso a
ordenar e providenciar pela notificação a que alude a alínea b) do n.° 4 do
artigo 105.° do RGIT.
28. Razão pelo qual deve ser determinada a alteração do douto Acórdão recorrido.
III. Conclusões
I. O douto Acórdão recorrido entendeu que competia ao Tribunal de Recurso
providenciar, através da sua Secretaria, pela realização da notificação para
pagamento prevista na alínea b) do n.° 4 do artigo 105.º do RGIT.
II. Ainda que, na alínea b) do n.° 4 do artigo 105.º do RGIT, esteja previsto um
pressuposto material ou uma condição objectiva de punibilidade, não pode o
Tribunal de Recurso criar as condições para a sua ocorrência ou não ocorrência,
sob pena de violar os princípios do acusatório, da plenitude de garantias de
defesa dos arguidos (incluindo o recurso), da separação de poderes e da
independência dos tribunais, consagrados nos artigos 2.°, 32.º, n.°s 1 e 5, e
203.° da CRP.
III. Com efeito, os factos materiais de que depende a punição hão-de estar já
verificados aquando da dedução da acusação, de modo a evitar que o arguido fique
sujeito a imprevisíveis alterações da sua situação jurídica.
IV. Relativamente a esses factos materiais, há que assegurar ao arguido todas as
garantias de defesa, designadamente a instrução, o julgamento e a possibilidade
de recurso ou duplo grau de jurisdição.
V. Aos tribunais não cabe suprir as deficiências da acusação e, muito menos,
criar ou contribuir para a criação de factos materiais empíricos de que depende
a punição dos arguidos (mesmo que esses tactos configurem pressupostos materiais
ou das condições objectivas de punibilidade), sob pena de se estarem a
substituir a outros órgãos do Estado e, ao julgar, não estarem investidos, pelo
menos aos olhos da comunidade em geral, da devida imparcialidade e
independência.
VI. É, assim, inconstitucional a norma segundo a qual o Tribunal de Recurso deve
providenciar pela realização da notificação prevista na alínea b) do n.° 4 do
artigo 105.° do RGIT, por violação dos princípios constitucionais do acusatório,
da plenitude de garantias de defesa dos arguidos, da separação de poderes e da
independência dos tribunais, consagrados nos artigos 2°, 32.°, n.ºs 1 e 5, e
203° da CRP.
VII. Consequentemente, deverá ser determinada a alteração do douto Acórdão
recorrido.
[…]”.
Nas contra-alegações (fls. 1121 e seguintes), sustentou o representante do
Ministério Público junto do Tribunal Constitucional o seguinte:
“[…]
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
1.1. Reporta-se o objecto do presente recurso, após o decidido por acórdão
proferido nos autos a fls. 1084 e 1102, à questão suscitada na alínea b) do
requerimento de interposição de recurso de fls. 1040 a 1042.
Sobre matéria idêntica foram apresentadas no processo nº 361/08 – 2ª Secção,
contra-alegações por parte do Ministério Público, para as quais remetemos e que
se transcrevem:
“1.1. Inconformado com o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, o arguido
B. interpôs o presente recurso de constitucionalidade circunscrito à apreciação
da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 105º do Regime Geral das
Infracções Tributárias, na redacção que lhe foi introduzida pelo artigo 95º da
Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, nos termos que constam do respectivo
requerimento de interposição.
1.2. Está concretamente em causa a nova redacção do nº 4 do artigo 105º do
Regime Geral das Infracções Tributárias e especificamente o teor da sua alínea
b), que dispõe no sentido de que os factos só serão puníveis se: “A prestação
comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não
for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no
prazo de 30 dias após notificações para o efeito”.
Com apelo, nomeadamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a
decisão recorrida é completamente clara na afirmação fundamentada de que se não
está perante uma despenalização, mas tão só face a uma nova condição de
punibilidade.
Assim, tal matéria não tem que constar da acusação por não integrar a
tipicidade, a ilicitude ou a culpa, não ocorrendo qualquer violação do princípio
de legalidade, nos termos e com os fundamentos que constam igualmente da decisão
recorrida.
Sobre a matéria é de trazer igualmente à colação o contributo da circular nº
2/07 da Procuradoria-Geral da República de 13 de Março de 2007, quando refere
que:
“Na verdade, a notificação agora exigida não constitui um novo elemento do tipo
introduzido com a redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro.
Tal exigência (de notificação) configura-se antes como uma circunstância
estranha ao agente, não entrando na decisão sobre o juízo de censura, isto é,
não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa.
Com efeito, o crime de abuso de confiança fiscal, tratando-se de um crime
omissivo, consuma-se no momento em que o agente não cumpre a obrigação
tributária a que estava adstrito, não podendo reconduzir-se ao núcleo da
ilicitude e da tipicidade, o que são meras condições de exercício da acção
penal.
Não estando em causa um elemento do tipo, não terá aqui pertinência a questão da
despenalização por aplicação sucessiva da lei penal.”
e que conclui no sentido de que:
“Tendo em conta o exposto, verificando-se que existem divergências de
entendimento e de actuação no âmbito do Ministério Público, determino, ao abrigo
do disposto no art. 12º, n.º 2, al. b), do Estatuto do Ministério Público, que
os Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público observem e sustentem o
seguinte:
a) - na fase de inquérito, providenciem junto da Administração Fiscal ou da
Segurança Social pela notificação agora imposta por lei;
b) - nas fases de instrução e julgamento, promovam a realização dessa diligência
à autoridade jurisdicional que superintender no processo;
c)- impugnem para o tribunal superior as decisões que determinem o imediato
arquivamento do procedimento criminal pela mera falta de antecedente notificação
do contribuinte para efectuar os pagamentos necessários e que considerem o facto
despenalizado.”
1.3. Inexistindo numa situação de despenalização por aplicação sucessiva da lei
penal e sendo adequado e processualmente correcto que caiba à autoridade
judiciária que superintende, a cada momento à respectiva fase processual, a
competência para ordenar a notificação imposta pela nova redacção do artigo
105º, nº 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, que de modo
algum tem que constar em aditamento à peça acusatória anteriormente deduzida
pelo Ministério Público, dificilmente se poderão colocar as questões de
inconstitucionalidade tal como são equacionadas pelo recorrente.
Desde logo não nos parece possível, ainda que remotamente, sustentar a violação
de qualquer princípio de separação de poderes entre as funções do Ministério
Público e do juiz, no processo penal, quando apenas se trata de uma questão de
competência de quem deve assumir de acordo com a correspondente fase do processo
a condução dos autos, ordenando os actos e diligências que devem ser legalmente
observados.
Não há pois a registar qualquer interpretação normativa violadora do artigo 202º
da Constituição relativo à função jurisdicional ou do seu artigo 219º referente
ás funções e estatuto do Ministério Público.
Não estando em causa, por outro lado, uma situação de despenalização de
condutas, mas tão só a de exigência de uma nova condição de punibilidade, não
ocorre qualquer violação do nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, na medida em
que o crime subsiste na sua tipicidade própria e a culpa se mantém.
Sobre a não aplicação retroactiva ao arguido de uma disposição penal mais
favorável, em que igualmente não está em causa uma despenalização, mas tão só a
“transformação” de um crime público, em semi-público, cf. o Acórdão nº 523/99
disponível, em www.tribunalconstitucional.pt, que conclui, na situação que
apreciou, pela formulação de um juízo de conformidade constitucional.
Na ausência de violação qualquer norma ou princípio constitucionais não poderá
merecer qualquer censura a interpretação normativa constante da decisão
recorrida.”
1.2. O facto de ser o Tribunal de Recurso, onde pende o processo respectivo, a
providenciar pela realização da notificação, não determina alteração do juízo
relativo à conformidade constitucional da interpretação normativa em apreciação.
1.3. No referido processo nº 361/08 – 2ª Secção, foi entretanto proferido o
Acórdão nº 409/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que não julgou
inconstitucional a norma constante do artigo 105, nº 4, alínea b) do Regime
Geral das Infracções Tributárias, interpretada no sentido de que pode o Tribunal
de julgamento ordenar a notificação aí prevista.
2. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. Não é inconstitucional a norma extraída dos artigos 105º, nºs 1 e 4 e 107º do
Regime Geral das Infracções Tributárias, relativa à nova condição de
punibilidade, na redacção introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro,
ainda que seja o Tribunal de Recurso, onde pende o processo, a providenciar pelo
cumprimento da notificação aí prevista.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
[…]”.
2. Fundamentação
A questão de que cumpre apreciar é apenas – conforme determinado no acórdão da
conferência de fls. 1084 a 1102 - a da inconstitucionalidade, por violação dos
princípios do acusatório, da plenitude das garantias de defesa dos arguidos, da
separação de poderes e da independência dos tribunais (respectivamente, artigos
32º, n.º 5, 32º, n.º 1, 2º e 203º, da Constituição), da norma que se retira da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105°, n.°s 1 e
4, do RGIT e do artigo 107.° do mesmo RGIT, segundo a qual, nos casos em que o
sujeito tributário passivo condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do
crime de abuso de confiança contra a Segurança Social deu cumprimento às suas
obrigações declarativas e não foi notificado para pagar as contribuições devidas
à Segurança Social, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável (disso não tendo sido sequer acusado ou pronunciado), compete ao
tribunal de recurso providenciar pela realização de tal notificação (cfr. a
alínea b) do requerimento de interposição do presente recurso de
constitucionalidade).
É o seguinte o teor dos artigos 105º, n.º s 1 e 4, e 107º, do RGIT, aprovado
pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95º da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro:
“Artigo 105º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente,
prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado
a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
[…]
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da
prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
[…]”
“Artigo 107º
Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações
devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das
contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou
parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas
previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105º.
2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105º.”.
Questão de inconstitucionalidade semelhante – e não idêntica, na medida em que
envolvia a competência, não do tribunal de recurso, mas do tribunal de
julgamento, para providenciar pela realização da notificação a que se fez
referência - já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º
409/2008, de 31 de Julho, no qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma
constante do artigo 105º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções
Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo
artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de
que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.
É a seguinte a fundamentação do mencionado Acórdão n.º 409/2008:
“2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime
de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total
ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é
dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava
legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4 deste preceito,
os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem
decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para
2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a
condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova
alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se
“a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências doutrinais e
jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido
pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008
(Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que
fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
“A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção
introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de
punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é
aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência,
e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser
notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º
4 do artigo 105.º do RGIT).”
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na
sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT,
surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação relativamente à sua
interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de uma nova condição de
punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A primeira
orientação – uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ – considera que à
anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na
alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de
crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de
confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo
legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade;
porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do
Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o
agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na
óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à
ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda orientação – defendida
por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se
reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples
punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade – entende que o
legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma circunstância que,
por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se
encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo
do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal e que se
traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo
confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o
legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto
material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu
estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado
– concluindo, consequentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela primeira linha
de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora recorrido. E em
ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o
legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em
que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento
da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto
e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente
declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade
decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários à Administração
Fiscal”, postura esta que já não se verificaria nas situações em que a “dívida”
é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o
reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário
pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos
desvalores de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com
assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório,
“ser valoradas criminalmente de forma diferente”. E acrescenta‑se: “neste
sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo
cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em
prazo a conceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso
de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do
Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.
A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram a que no
citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que – perante uma
vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do
recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o agente, nos
casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento,
se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo concedido –
nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se
traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A alteração legal
produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é, todavia, algo que é
exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objectiva de
punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que configure um regime
concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim, o referido acórdão
uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção publicitada do
legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de
conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta
omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a
possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher
uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de
aplicação de uma pena”, pelo que “a conclusão da aplicação da lei nova é
iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
2.2. Delineado o quadro de fundo de que emerge a problemática subjacente ao
presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que resulta inequivocamente do
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que a
única questão de inconstitucionalidade aí identificada como integrando o seu
objecto se reporta à interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada
pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, que teria sido aplicada no acórdão
recorrido, “consubstanciada na substituição por parte do tribunal de 1.ª
instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do Ministério
Público” e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os “princípios
constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os
ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição
da República Portuguesa”.
Aliás, fora essa a única questão de inconstitucionalidade normativa
adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto para
o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª, atrás transcrita).
Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente recurso outras questões de
inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal recorrido e nem sequer
mencionadas no requerimento de interposição de recurso, que o recorrente veio
suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas neste Tribunal, como,
designadamente, a reportada à pretensa violação dos “princípios da proibição da
retroactividade da lei penal, da legalidade e da independência”, derivada da
consideração, na sentença, de factos não constantes da acusação. Questão esta
que, aliás, nos termos em que é colocada, carece de natureza normativa por se
reportar directamente à referida decisão judicial, em si mesma considerada.
Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da
inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da separação
de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º
53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a
notificação aí prevista.
Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à
definição da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério
Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos de soberania
com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes,
nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério
Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei
determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida
pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio
da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a
notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade
titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público,
tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em
que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação,
em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o
princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva
da Administração.
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação,
ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da
Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da
acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão
de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o
juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar
um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma
condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não
pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas
essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por
magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes,
invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da
legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta
falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal
violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal
princípio, neste contexto).
Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do recorrente.
As considerações tecidas no acórdão acabado de citar a propósito da eventual
violação do princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º, 202º e
219º da Constituição - violação também invocada pelos ora recorrentes -, são
perfeitamente transponíveis para o presente caso, pois que, para a aferição
daquela violação, é indiferente que o tribunal competente para a notificação
seja um tribunal de 1ª instância ou um tribunal de recurso: ora, como se diz no
Acórdão n.º 409/2008, “a determinação da notificação pelo Ministério Público ou
por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes”.
Essas considerações – como logo se entrevê – permitem, do mesmo modo, afastar a
pretensa violação dos princípios do acusatório, da plenitude de garantias de
defesa dos arguidos e da independência dos tribunais, também chamados à colação
pelos recorrentes.
Relativamente ao princípio do acusatório - que se extrai da referência à
estrutura acusatória do processo penal constante do artigo 32º, n.º 5, da
Constituição e que postula a diferenciação entre a entidade que julga e a
entidade que acusa ou que intervém em fase do processo anterior à do julgamento
-, consideram os recorrentes, em síntese, que o mesmo resulta violado pelo
disposto no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, atendendo à circunstância de
este preceito permitir que um pressuposto material da punição não esteja
preenchido aquando da dedução da acusação e não esteja descrito no libelo
acusatório.
No entanto, como se deixou esclarecido, a exigência resultante da referida
disposição, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, foi
determinada por razões de operacionalidade judiciária, tendo sobretudo o sentido
de impedir que possa ser punido pelo crime de abuso de confiança quem entretanto
se tenha disposto a reparar o dano infringido à Administração, na sequência da
notificação que expressamente lhe tenha sido feita para esse efeito. Não está
aqui em causa, como bem se vê, um qualquer novo elemento constitutivo do crime,
nem sequer qualquer circunstância que seja susceptível de afastar o carácter de
censura ético jurídica da infracção: o que sucede é que, por considerações de
política legislativa, se entende ser de dispensar a aplicação da pena quando,
apesar de se verificarem todos os pressupostos do tipo legal, o arguido procedeu
ainda em tempo útil ao pagamento da prestação em dívida.
Estamos assim perante uma condição objectiva de punibilidade que é externa ao
recorte típico do ilícito penal – consubstanciado na não entrega à administração
da prestação tributária – e que, tendo sido introduzida em lei penal posterior
ao momento da prática do facto ilícito e da própria dedução da acusação, não
poderia deixar de ser considerada pelo julgador segundo o princípio da aplicação
retroactiva da lei mais favorável, que emerge do artigo 2º, n.º 4, do Código
Penal.
Não há, por outro lado, aqui uma qualquer violação do princípio do acusatório,
visto que não se trata de uma alteração substancial dos factos constantes da
acusação – que ao tribunal de julgamento sempre estaria vedado conhecer (artigo
358º do Código de Processo Penal) -, mas de uma mera verificação da existência
de um requisito de procedibilidade sem que o qual o tribunal não pode emitir uma
pronúncia condenatória.
Sendo de notar, aliás, que o tribunal de julgamento está sujeito a um rigoroso
ónus de averiguação oficiosa em vista à descoberta da verdade e à boa decisão da
causa (artigo 340º, n.º 1, do Código de Processo Penal, também aplicável nos
tribunais de recurso por remissão do artigo 423º, n.º 5), que naturalmente
abrange a verificação de quaisquer circunstâncias que possam obstar à aplicação
ao arguido de uma sanção penal.
Por outro lado, não estando em causa – como se anotou – a factualidade constante
do libelo acusatório, que se mantém na sua integralidade, não ocorreu qualquer
violação do princípio das garantias de defesa do arguido, a que alude o artigo
32º, n.º 1, da CRP. A notificação para o arguido proceder ao pagamento da
prestação tributária em falta, nos termos da nova redacção dada à alínea b) do
n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não constitui um novo facto punível ou um novo
elemento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao
qual se tornasse exigível que o interessado viesse a deduzir a sua defesa antes
ainda de poder ser presente a julgamento. Do que se trata é de uma nova
oportunidade que é dada ao arguido para evitar a punição (por factos pelos quais
foi acusado em devido tempo e relativamente quais teve possibilidade de se
defender), que, traduzindo-se num mero trâmite procedimental, pode ser realizado
em qualquer fase do processo (e, por conseguinte, também na própria fase de
julgamento), e que não envolve qualquer agravamento da posição processual do
arguido (competindo-lhe apenas satisfazer ou não, em função do objectivo
previsto na lei, a cominação de pagamento da prestação em dívida dentro de
determinado prazo contado a partir da notificação).
Por tudo o que se expôs, é ainda patente que não se verifica a alegada ofensa do
princípio da independência dos tribunais, protegido pelo artigo 203º da
Constituição, e que, segundo os recorrentes, resultaria de a norma do artigo
105º, n.º 4, alínea b), do RGIT vir permitir que o julgador interfira na
acusação e assim se substitua a outros órgãos do Estado.
Como ficou suficientemente demonstrado, a norma em causa, ao possibilitar que o
juiz proceda à referida notificação, na fase de julgamento, não compromete a
imparcialidade e isenção do julgador nem põe em crise o princípio da separação
de poderes. O juiz, na circunstância, não pratica qualquer acto próprio do
acusador ou do juiz de instrução, nem acata quaisquer ordens ou instruções que
provenham de outros poderes do Estado, mas limita-se a exercer uma competência
própria, em sede de julgamento, que é a de praticar uma acto instrumental
tendente a verificar a existência de condição de punibilidade que tem relevo
para efeito de emitir a decisão final de condenação ou absolvição.
Não há, pois, motivo para alterar o julgado.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao
recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 11 de Novembro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão