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Processo n.º 615/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o B.,
SGPS, S.A., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o B., SGPS, S.A., foi
interposto recurso de acórdão proferido pela 4ª Secção do Supremo Tribunal de
Justiça, em 18 de Junho de 2008 (fls. 615 a 622), que apreciou a invocação da
nulidade de acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, em 17 de Abril de 2008 (fls.
560 a 585), para que fosse apreciada a constitucionalidade da norma constante do
n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, quando interpretada:
i) “no sentido de que permite ao Tribunal, no caso
específico ao Supremo Tribunal de Justiça, invocar um determinado fundamento
como «ratio decidendi» relativamente a uma dada questão de facto sem dar às
partes a possibilidade de previamente se pronunciarem sobre esse fundamento
decisivo, no caso de – muito embora tal fundamento nunca tenha sido alegado ou
considerado explicitamente ao longo de todo o processo, quer pelas partes nos
seus articulados e alegações, quer pelas instâncias nas suas decisões
intercalares – a parte interessada ter sustentado genericamente o que veio a ser
decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça” (fls. 626);
ii) “e no sentido de que é manifestamente desnecessário
dar às partes a possibilidade de previamente se pronunciarem se, embora a
questão a decidir seja nova, existir jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal
de Justiça no sentido da decisão que o Tribunal se prepara para proferir” (fls.
626).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 631), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
3. Desde logo, verifica-se que o recorrente afirma ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 3º do Código de
Processo Civil “no ponto 6 da reclamação por nulidade apresentada contra o seu
douto Acórdão”. Ora, estando em causa um recurso do tipo previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC, impõe-se verificar se o recorrente efectivamente
o fez.
No referido requerimento de arguição de nulidade e de reforma, o recorrente
concluiu o seguinte:
“6. Não tendo tal acontecido, foi proferida uma decisão-surpresa, com violação
do princípio do contraditório, dos princípios do direito ao patrocínio e da
equidade e do princípio do Estado de direito democrático.” (fls. 591)
Daqui resulta que, nessa sede, o recorrente apenas procura atacar a própria
“decisão jurisdicional”, nunca reputando qualquer norma jurídica de
inconstitucional. Aliás, mesmo que se analisassem as restantes considerações
tecidas no requerimento de arguição de nulidade e de reforma, a conclusão seria
forçosamente a mesma. Senão, veja-se.
Logo antes daquela consideração (cfr § 5.), o recorrente já havia invocado o
próprio n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, mas sem que tivesse
questionado a sua constitucionalidade quando interpretada nos termos em que o
foi pela decisão recorrida. Constata-se, assim, que, mesmo tendo podido fazê-lo,
o recorrente nunca suscitou, de modo processualmente adequado, como exige o n.º
2 do artigo 72º da LTC, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
pelo que se afigura legalmente inadmissível conhecer do objecto do presente
recurso.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do recurso interposto.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.”
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio reclamar, nos
seguintes termos:
“1. Como se lê na douta decisão sob reclamação, foi porque, “mesmo tendo podido
fazê-lo, o recorrente nunca suscitou, de modo processualmente adequado, como o
exige o nº 2 do artigo 72º da L TC, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa”, que foi julgado inadmissível conhecer do objecto do recurso.
2. O que está em causa é a conformidade constitucional do nº 3 do artigo 3° do
Código de Processo Civil numa determinada interpretação e o ora requerente tinha
indicado no ponto 5 do requerimento de interposição do recurso que a questão da
inconstitucionalidade da norma do nº 3 do artigo 3° do CPC, com a interpretação
que lhe deu o STJ, tinha sido suscitada perante o STJ no ponto 6 da reclamação
por nulidade que apresentou contra o seu douto Acórdão, quando, na realidade,
tal não aconteceu. O que o ora requerente ali referiu foi, como se diz na douta
decisão sumária, a inconstitucionalidade do mesmo Acórdão.
3. E, verdade sela, que, nem no ponto 6 da reclamação por nulidade, nem em
qualquer outro local, a questão da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 3° do
CPC foi, de facto, suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça.
4. Com o devido respeito, porém - e não obstante o disposto no nº 2 do artigo
72° da Lei do Tribunal Constitucional que exige, para a parte poder interpor
recurso ao abrigo da alínea b) do artigo 70º, como foi o caso, que tenha sido
por ela suscitada a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar
obrigado a dela conhecer — não se segue daí, atentas as circunstâncias, que seja
inadmissível conhecer do recurso interposto.
5. É que estamos perante um daqueles casos anómalos e excepcionais em que, por
não ter havido a possibilidade de suscitar atempadamente a questão da
inconstitucionalidade junto do Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a
Jurisprudência deste Venerando Tribunal tem vindo uniformemente a considerar
admissível conhecer dos recursos de constitucionalidade (cf. Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 61/92, de 11 de Fevereiro de 1992).
6. Até ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que revogou as decisões das
Instâncias, as decisões revogadas tinham sido favoráveis ao autor, ora
recorrente, pelo que, até então, nunca fora caso de o autor suscitar qualquer
questão de constitucionalidade relativamente ao nº 3 do artigo 3° do CPC e
também a ré não suscitou, até então, qualquer questão dessa natureza.
7. Por outro lado, do teor do Acórdão do STJ que, revogando o decidido pela
Relação, julgou desfavoravelmente ao autor, nada permitia supor, por falta
absoluta de indicação nesse sentido, que o Supremo Tribunal de Justiça tinha do
nº 3 do artigo 3° do CPC a interpretação que, mais tarde, veio a explicitar no
Acórdão que proferiu sobre a reclamação por nulidade e que motivou o recurso
para esse Venerando Tribunal.
8. Nesse Acórdão que revogou o Acórdão da Relação, tudo parecia indicar ao ora
recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça, ao invocar, sem ouvir previamente
as partes, como “ratio decidendi” determinada jurisprudência que referia ser
pacífica e uniforme - razão jurídica decisiva que, até então, não fora invocada,
nem pelas partes nas suas peças processuais, nem pelas Instâncias nas decisões,
entretanto, proferidas - não tinha pura e simplesmente tomado em consideração o
comando do nº 3 do artigo 3° do CPC, que estabelece que o juiz não pode decidir
questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as
partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Dai a
reclamação por nulidade que apresentou ao abrigo nº 1 do artigo 201° do CPC.
9. Como atrás se disse, só com a notificação da decisão proferida sobre a
reclamação apresentada contra o Acórdão do STJ (decisão final e irrecorrível) é
que o ora recorrente foi confrontado com a interpretação do Supremo para o nº 3
do artigo 3° do CPC. Era-lhe, por isso, até então impossível ter invocado,
perante o Supremo Tribunal de Justiça, de modo processualmente adequado a
inconstitucionalidade daquele preceito legal, quando interpretado nos termos em
que o Supremo o fazia, por forma a que o mesmo Supremo Tribunal estivesse
obrigado a dela conhecer.
10. Mas, ainda que do Acórdão inicial do Supremo Tribunal de Justiça se pudesse
já concluir que a sua interpretação do nº 3 do artigo 3° do CPC era a que veio
depois a explicitar no Acórdão proferido sobre a reclamação por nulidade — o
que, de modo nenhum se aceita e se considera apenas por dever de patrocínio — a
situação de impossibilidade de invocação adequada perante o mesmo Supremo da
inconstitucionalidade da norma seria idêntica, pois, estando esgotado o poder
jurisdicional do Tribunal quanto à matéria, já nem sequer a invocação de
nulidade do Acórdão com fundamento na inconstitucionalidade seria legalmente
possível, por ser antes caso de erro de julgamento.
11. Efectivamente, como se escreve no citado Acórdão nº 61/92, de 11 de
Fevereiro de 1992, deste Venerando Tribunal: “... porque o poder jurisdicional
se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual
aplicação de uma norma inconstitucional ‘não constitui erro material, não é
causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua’, há-de
entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da
sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a
questão da inconstitucionalidade (cfr. sobre este tema, por todos, os Acórdãos,
nºs 62/85 e 94/88, Diário da República, II Série, respectivamente, de 31 de Maio
de 1985 e de 22 de Agosto de 1988). E, mais à frente: “... a aplicação numa
decisão judicial de uma norma inconstitucional implicará erro de julgamento, mas
não acarreta nulidade dessa decisão, pois não integra nenhum dos vícios
elencados no artigo 668° do Código de Processo Civil ‘.
12. Assim, o ora recorrente não invocou, de facto, perante o Supremo Tribunal de
Justiça a questão da inconstitucionalidade normativa em termos adequados. Mas,
ao contrário do que se escreve na douta decisão sumária, isso aconteceu porque,
atentas as circunstâncias, não teve qualquer possibilidade de o fazer.
13. E não será o facto de o recorrente ter dito no seu requerimento, contra a
realidade dos factos, que levantara a questão da inconstitucionalidade normativa
no ponto 6 do requerimento de reclamação por nulidade do Acórdão que vai impedir
que o recurso seja admitido.
14. Por um lado, tornando-se evidente pela leitura da reclamação que apresentou
por nulidade do Acórdão do STJ e da decisão sobre ele proferida, que o ora
recorrente apenas foi confrontado com a interpretação da norma que considerou
inconstitucional com a notificação da decisão da reclamação pelo STJ, essa
evidência sempre deverá tirar qualquer relevância à afirmação feita pelo
recorrente no ponto 5 do requerimento de interposição do recurso.
15. Por outro lado, tratando-se de um lapso manifesto do signatário, com o
devido respeito, nunca deveria a referida afirmação ser merecedora de tratamento
mais gravoso do que o estabelecido no nº 5 do artigo 75°-A da LTC para os casos
de falta absoluta de indicação da peça processual onde a questão da
inconstitucionalidade foi suscitada. No caso de falta absoluta de indicação,
juiz convida o recorrente a suprir a falta e, só no caso de ele não responder ao
convite, o recurso é rejeitado (artigo 75° - A, nº 7).
No caso de erro na indicação, erro imediatamente detectável pelo Tribunal, não
se vê razão para não dar igualmente ao recorrente a oportunidade de dizer de sua
justiça.
Se esse convite tivesse sido feito, não teria o recorrente deixado de alegar —
como faz agora — a impossibilidade de invocação prévia da inconstitucionalidade.
16. Nestas circunstâncias, requer-se que, reapreciada a questão, seja o recurso
admitido, seguindo-se os demais termos”.
3. Notificado para o efeito, o recorrido deixou esgotar o prazo sem que viesse
aos autos pronunciar-se.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A reclamação é destituída de qualquer fundamento, desde logo porque é no
mínimo duvidoso que o preceito questionado seja ratio decidendi do acórdão
recorrido. Mas ainda que assim não se entenda, o facto é que confrontado com a
decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, o ora reclamante vem
agora contradizer o que havia afirmado no requerimento de interposição de
recurso. Ou seja, vem agora afirmar que nunca havia suscitado qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa, quando afirmara o contrário no referido
requerimento de recurso.
Sucede, porém, que da análise do seu requerimento de arguição de nulidade do
acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, resulta evidente que o ora
reclamante já havia considerado como decisão-surpresa a dispensa da sua audição,
em momento prévio à prolação do acórdão de fundo. Aliás, no próprio § 5 do
referido requerimento, o ora reclamante fez expressa menção ao n.º 3 do artigo
3º do Código de Processo Civil, sem que lhe tivesse imputado qualquer
inconstitucionalidade.
Ora, quando o reclamante arguiu a nulidade do acórdão de 17/4/2008, era-lhe
exigido que antecipasse as possíveis interpretações relativamente ao n.º 3 do
artigo 3º do Código de Processo Civil, numa lógica de razoabilidade, e que,
consequentemente, suscitasse uma questão de constitucionalidade normativa se
pretendia ter aberta uma via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Aliás, tanto o reclamante antecipou a possibilidade de a decisão recorrida
adoptar a interpretação normativa que agora reputa de inconstitucional que
procurou invocar a seu favor diversos princípios constitucionais, designadamente
o princípio do contraditório (cfr. § 6. do requerimento de arguição de nulidade,
já citado pela decisão reclamada). Sucede, porém, que não o fez – como se
demonstrou na decisão reclamada – de modo processualmente adequado. Não o tendo
feito, não tem agora via aberta para este Tribunal.
Em suma, não se vislumbra qualquer fundamento que possa colocar em crise o juízo
de não conhecimento formulado pela decisão sumária reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 17 de Novembro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão